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11. A (IN) APLICABILIDADE DOS DANOS PUNITIVOS NO BRASIL

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A (IN) APLICABILIDADE DOS DANOS PUNITIVOS NO BRASIL

Rodrigo da Silveira Barcellos140 Calil Pellaes Mekanna141 Yasmin Fauze Mahmoud142

RESUMO Com o passar dos tempos a responsabilidade civil deixou de ter um papel acessório do direito contratual, tendo composição própria, estudos, doutrinadores, teses, cadeira própria nas faculdades de Direito, e, por conseguinte, uma gama de novidades e controvérsias. Essa polêmica muitas vezes decorre de uma visão dogmática do assunto, na medida em que os operadores do direito aplicam os mesmos conceitos das épocas remotas, ou partem para outros princípios para justificar velhas condutas. E o ponto escolhido para ser o foco do presente artigo é o instituto dos danos punitivos, com base nos direitos da personalidade, que em decorrência da influência do sistema da common law foi “importado” para ordenamentos jurídicos diferentes, como é o caso do Brasil. Desde já, cumpre deixar estabelecido que, dada a complexidade do assunto e as divergências existentes, buscaremos apenas iluminar alguns pontos, sem qualquer pretensão de esgotar o tema.

PALAVRAS-CHAVE Danos punitivos, Lógica Americana, Lógica Econômica, Evolução, Direitos da Personalidade.

140 Doutorando em Direito Civil pela Universidade de Coimbra – Portugal. Mestre em Direito da Sociedade da Informação no Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas; Especialista em Direito Civil pela Universidade de Coimbra. Professor Universitário. Assessor Jurídico do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

141 Discente do curso de Direito da Universidade de São Paulo. Estagiário do Gabinete do Des. José Luiz Gavião de Almeida.

142 Discente do curso de Direito da Universidade de São Paulo. Estagiária do escritório de advocacia Machado Meyer.

1. INTRODUÇÃO

No Brasil, embora não encontre previsão legal, a teoria dos punitive damages tem sido defendida como resultado da interpretação extensiva dos danos extrapatrimoniais, como concretização da suposta faceta punitiva destes danos.

Transferindo o centro da discussão da conduta do ofensor e o grau de sua culpa para a existência e extensão dos danos injustamente sofridos, como consequência, o objetivo maior não é apontar o culpado pelo fato, mas sim garantir que a vítima seja devidamente indenizada.

Isso porque o dano gerado pelo ato ilícito rompe o equilíbrio jurídicoeconômico anteriormente existente entre o agente e a vítima, revelando uma necessidade fundamental de se restabelecer esse equilíbrio, o que somente é alcançado recolocando o prejudicado no “status quo ante”143 , princípio anunciado por PEREIRA COELHO ainda em 1951: “função da responsabilidade civil, com efeito, não é punir factos ilícitos; tão-pouco preveni-los; é só para reparar os danos que ela serve”144 .

Ainda sobre o dever de reparação, derivada da ideia de compensar o desequilíbrio causado pelo ato ilícito, vemos na lição de DÍEZ-PICAZO que: “a

143 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 13.

144 COELHO, F. Pereira, Culpa do lesante e extensão da reparação, Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano VI, 1950-1951.p.68. vida jurídica é uma luta constante em que enfrentam os direitos e interesses. Cometer uma falta delitual é ferir um direito sem poder justificar-se em um direito superior ou pelo menos equivalente. Este ato ilícito e compromete a responsabilidade do seu autor, porque envolve uma ruptura do equilíbrio jurídico que somente a condenação a uma compensação pode restabelecer145.” O objetivo desse artigo, pois, não é hastear a bandeira dos punitive damages na responsabilidade civil brasileira, ou mesmo somar o esforço catártico de punição que a sociedade vem demonstrando nesses últimos tempos, mas, ao contrário, ressaltar quais problemas o instituto enfrenta hoje nos ordenamentos que, inclusive, foram seu berço. Inicialmente, será analisado o histórico e a evolução da responsabilização civil, passando pelo nascimento dos punitive damages como categoria individualizada na Inglaterra do século XX, atentando-se para suas condições, elementos e principais críticas. O cotejo dos Estados Unidos da América, em seguida, fornecerá um respaldo econômico — até econométrico — dos danos punitivos, diante de um sistema cujas indenizações cinematográficas já não representam uma realidade tão cotidiana.

145 Do original: “La vida jurídica és una lucha constante em la cual derechos e intereses se enfrentam. Cometer uma falta relictual’es lesionar un derecho sin poder justificarse en un derecho superior o por ló menos equivalente. Esse acto deviene ilícito y compromete la responsabilidade de su autor, porque supone uma ruptura del equilíbrio jurídico que solo la condena a la indemnización puede restabelecer.” DÍEZ—PICAZO, Luis. Derecho de danos. Madrid: Civitas, 1999. p. 293. Tradução livre.

Esse estudo permitirá traçar as linhas mestras da cultura dos países do common law e contrapô-las à realidade brasileira, antes de encerrar o artigo demonstrando como esse descompasso cria uma enorme “colcha de retalhos” no direito pátrio, ao se preferir impor na realidade deste país, categorias estrangeiras a usar as próprias.

2. A EVOLUÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL: PASSADO, DA PROGRESSIVA “(DES)PENALIZAÇÃO” ATÉ O CÓDIGO CIVIL ATUAL

A existência comunitária do indivíduo, enquanto ser (necessariamente) social, “só pode existir bem, isto é realizarse, quando harmoniza interioridade e vida social, bem próprio e bem comum, personalidade e comunidade”146 . Porém, sendo certo que mesmo nas comunidades primitivas se divisavam normas reguladoras da convivência (e, assim, direito), não é menos certo que tal convivência nunca se fez sem confronto ou conflito entre os seus elementos. Neste particular, desde os primeiros tempos, no seio das comunidades humanas, existiu a noção ou ideia de delito, enquanto mal ilegitimamente causado por um elemento da comunidade a outro, no quadro e em resultado das relações de convivência (então, de conflito) entre os diversos membros.

Originalmente, a reação ao delito

146 CRUZ, Sebastião, Direito Romano (Ius Romanum), Volume 1 – Introdução. Fontes, Gráfica Coimbra, Coimbra, 1984.p.9. (necessária para reafirmação da própria comunidade que aquele contraria), era concretizada pela simples exposição do autor à represália (rectius, à vindicta) do ofendido ou da sua família. A principal manifestação positiva da vingança encontra-se na famosa lei de Talião147 , também dita pena de Talião148, que se descobre em textos tão arcaicos como o Código de Hamurabi de 1730 a.C., no reino da Babilônia, ou no direito hebraico constituído na Bíblia149 .

Em último termo, a reação (reactius, retaliação) apenas demarcava pela exigência de uma rigorosa reciprocidade ou correspondência entre o crime e a pena, refletida na asserção “olho por olho, dente por dente”150. A reação ao ilícito era, então, coisa privada, da iniciativa do ofendido

147“Talião, isto é, o direito pelo qual alguém sofre o mesmo mal que fez”, do latim lex talionis: lex: lei e talis: tal, parelha.

148 Definição de MELO FREIRE (em Instituições de Direito Criminal Português, Boletim do Ministério da Justiça, n. 155, 1966, tradução de Miguel PINTO MENESES), que, reportando-se ao talião plasmado em vários livros das Ordenações Filipinas (liv. 3, tit. 60, parágrafo 5, e liv. 5, tit. 85, entre outros), afirma que essa pena “não significa que se possa retribuir com um mesmo gênero, por exemplo, infligir um ferimento natural igual, e, se for tomado à letra, não pode realmente ter lugar em todos os delitos, quais os morais, mas tão somente que deve haver verdadeira medida e estimação do delito, e a justa reparação do dano”.

149 O direito à vingança é permitido e, de certo modo, imposto pela Bíblia, no Velho Testamento, nomeadamente no Livro do Êxodo, cap. 21, versículos, 22-25.

150 “A lei do talião (...) representa já um progresso perante a ilimitação da vingança primitiva” ARANGIORUIZ apud ANTÔNIO LA TORRE, Genesi e Metamorfosi della Responsabilitá Civile, in Revista do Direito da Integração e Unificação na América Latina, ano 1999, n.8.p.62.

ou dos seus familiares151, muito distante de qualquer tipo de controle comunitário que não fosse o da fixação de um limite de reciprocidade para a retaliação152 . A Lei das XII Tábuas foi o primórdio da intervenção do Estado e os primeiros passos na direção da separação entre o ilícito de caráter civil e a infração de índole penal, efetivamente já no período da República153, que se caracterizava de um lado, por uma “notável extensão da repressão pública, à qual são atraídos muitos atos lesivos contra o interesse geral que antes não eram considerados como merecedores de sanção, e, de outro, pela forte tendência a submeter ao controle estadual o arcaico regime da vingança privada”154 . O modelo aquiliano foi um dos passos mais decisivos na evolução anunciada no plebiscito do século III a.C. , que, no domínio da responsabilidade

151 “Enquanto a vingança privada (...), que transforma a vítima ou seus parentes em ministros da expiação, foi o primeiro dominante na legislação, a distinção entre responsabilidade civil e a criminal não podia surgir”- conforme MANUEL DIAS DA SILVA, Estudo sobre a responsabilidade civil conexa com a criminal, Primeira parte, Imprensa da Universidade de Coimbra, 1886.p.2.

152 Num ulterior desenvolvimento, a vingança seria percebida como poder do lesado enquanto representante da coletividade – neste sentido ANTÔNIO LA TORRE, op. e loc. Cit. [nota 11].

153 De 510 a.C. a 27 a.C. – Até à queda no império romano do Ocidente, Roma passou pelas seguintes formas de governo: monarquia (753 a.C. a 510 a.C.); república (510 a.C. a 27 a.C.); principado (27 a.C. a fins do século III – 284); dominado (284 a 476).

154 Cf. BERNARDO SANTALUCIA, Derecho Penal Romano, Editorial Centro de Estúdios Ramon Areces, S.A., 1990, Madrid, p.55. extracontratual, ficaria famoso como a Lex Aquilia de damno, e o lançamento de um dos elementos fundamentais do ilícito civil, que até os dias atuais figura na base do sistema de responsabilidade civil extracontratual, o damnum iniuria datum: damnum vislumbrava-se, no seu desvalor econômico, e portanto, “como diminuição do patrimônio consequente do fato lesivo que é datum, ou seja, produzido ao terceiro”155 .

A evolução da responsabilidade civil ainda percorre caminho das reformas de Augusto, durante o Principado156, sendo introduzida, na sistematização, pelos juristas romanos, enquanto fato criador de obrigações, a responsabilização devida pelo dano, “como se se tratasse de um contrato no qual o devedor há de satisfazer algo ao credor”157, surgindo, assim, a obligatio ex delicto, impedindo “o passo direto entre o direito do culpado ao seu resgate e o direito de crédito da vítima à obtenção de uma reparação pecuniária”158 . Após o fim do Principado, o Império

155 ARANGIO-RUIZ apud ANTÔNIO LA TORRE, Genesi e Metamorfosi della Responsabilitá Civile, in Revista do Direito da Integração e Unificação na América Latina, ano 1999, n.8.p.76.

156 Vide nota 13.

157 Cf. Victor Manuel AMAYA GARCIA, Coautoria y Complicidad: Estudo histórico y Jurisprudencial, Editora Dykinson, 1993.p.09.

158 Cf. JUAN MANUEL BLANCH NOUGUES, Observationes Acerca de La <Poena Privada>, Revista de La Faculdad de Derecho, Universidad Complutense, Curso 19881989.p.143.

Romano, com a chegada de Justiniano ao poder, o qual “manifestou imediatamente a sua grande aspiração de restaurar, através das armas da política e da legislação, a unidade do Império, dando à nova Roma a glória da antiga, e, quanto possível, com todo o saber clássico”159 , assim agarra à tradição. O receio de infrações fez com que se introduzisse, nesta época, a ação de dano depurada de quase todas as originais conotações penais, que se quedava evidenciada na sua função de ressarcimento, e portanto uma despenalização havia neste momento surgido, culminando numa figura autônoma de ilícito civil.

Com o advento do jusracionalismo “O direito natural racionalista teve uma larga influência direta sobre a ciência jurídica positiva. Deve-se salientar-se que se organizaram minuciosas exposições sistemáticas do direito natural, conseguidas por dedução exaustiva de axiomas básicos”160 . Em consequência, surgiram as primeiras codificações civilistas no final do século XVIII, como o Código Prussiano de 1794, Código Francês de 1804 e o Código Austríaco de 1811, e foi mantida, nestes códigos, a ideia do núcleo fundamental do damnum iniuria datum, do modelo aquiliano (neste âmbito o artigo 1382º

159 CRUZ, Sebastião, Direito Romano (Ius Romanum), Volume 1 – Introdução. Fontes, Gráfica Coimbra, Coimbra, 1984.p.51.

160 Cf. ALMEIDA E COSTA, Mário Júlio, História do Direito Português, 3ª.Edição, Almedina, Coimbra, 1996.p.353 e ss. do Code Civil Francês ao estabelecer que: “Qualquer ação humana que cause a outrem prejuízo, obriga a reparação deste por parte daquele cuja culpa tal ação aconteceu”161). Ainda levando a ideia de que para qualquer dano que fosse perpetrado culposamente deveria haver o ressarcimento, como base, estariam as características que empiricamente se reconheciam como sendo a matriz do ser humano – a conservação da espécie, o instinto de preservação, uma maneira de controlar o egoísmo, e a afirmação do princípio do neminem laedere162 .

3. A RESPONSABILIDADE CIVIL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

3.1. RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA E OBJETIVA

No Brasil, o instituto da responsabilidade civil perpassa vários estágios de desenvolvimento. Fernando Penafiel exemplifica que, antes do Código Civil de 1916, quando as relações privadas ainda eram reguladas pelas Ordenações Portuguesas, o próprio Código Criminal de 1830 já previa uma indenização ao ofendido.163 Com o tempo, a

161 Do original: <Tout fait quelconque de l ‘homme, qui cause à autrui um dommage, oblige cleui par la faute duque lis est arrivé, à le réparer> (Tradução Livre)

162 BARBOSA, Ana Mafalda Castanheira Neves de Miranda. Lições de Responsabilidade Civil. 1ª ed. Cascais: Princípia.2017.p.51.

163 PENAFIEL, Fernando. Evolução histórica e

responsabilidade civil vai se diferenciando da criminal, o que se consolida com o surgimento do primeiro Código Civil. O Código de 1916 fez surgir uma figura mais clara e precisa de responsabilidade civil. Ainda com Penafiel, o Código elaborado por Clóvis Beviláqua alinhouse à teoria subjetiva da responsabilidade civil, “exigindo prova robusta da culpa do agente causador do dano, e, em determinados casos, presumindo-a”.164 Assim, preceituava o diploma civil de 1916 que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano. A verificação da culpa e a avaliação da responsabilidade regulam-se pelo disposto neste Código, arts. 1.518 a 1.532 e 1.537 a 1.553”. Essencialmente, o dispositivo celebra o damnum iniuria datum, colocando, de um lado, o dano, e de outro, a conduta lesiva. Quem sofre o dano tem direito ao ressarcimento, a quem é imputada a conduta lesiva tem o dever de reparação.

No entanto, conforme salienta Venosa, muito embora o Código Beviláqua tenha consagrado a responsabilidade civil subjetiva, houve tendência da legislação civil e da jurisprudência em reconhecer cada vez mais hipóteses em que a culpa

pressupostos da responsabilidade civil. Âmbito Jurídico, 2013. Disponíel em: <https://ambitojuridico.com.br/ cadernos/direito-civil/evolucao-historica-e-pressupostosda-responsabilidade-civil/>. Acesso em: 11 de maio de 2021.

164 Ibidem. não fosse exigida.165 Penafiel, citando Fernando Noronha (2007, p. 537-538), explica que essa tendência reflete uma preocupação maior pela reparação dos danos, que vem se afirmando desde a Revolução Industrial.166 O direito está, portanto, caminhando no sentido de proteger cada vez mais o prejudicado. A exigência de culpabilidade em todos os casos já não é compatível com a necessidade social de salvaguarda constante dos interesses do prejudicado e de reparação dos danos numa grande variedade de ocasiões. É assim que ganha força a teoria da responsabilidade objetiva, que independe de culpa. O Código Civil atual a prevê, no parágrafo único do art. 927. Não obstante, vale lembrar a lição de Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, sendo este também o posicionamento da maioria da doutrina, que no ordenamento jurídico brasileiro a responsabilidade subjetiva é o sistema geral, enquanto que a objetiva é o sistema subsidiário.167

De qualquer forma, o direito

165 VENOSA, Sílvio de Salvo. A responsabilidade objetiva no novo Código Civil. Migalhas, 2003. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/amp/depeso/916/aresponsabilidade-objetiva-no-novo-codigo-civil>. Acesso em: 10 de maio de 2021.

166 NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. Vol. I. p. 537/538. Apud PENAFIEL, Fernando. Evolução histórica e pressupostos da responsabilidade civil. Âmbito Jurídico, 2013. Disponíel em: <https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-civil/ evolucao-historica-e-pressupostos-da-responsabilidadecivil/>. Acesso em: 11 de maio de 2021.

167 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 13. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 1282.

procura a reparação do prejuízo causado por ato ilícito (art. 186 do CC/2002). Haverá responsabilidade civil, independentemente de fato culposo do agente, se a sua conduta se enquadrar nos casos previstos em lei.

Cuidou o Código de 2002, ainda, de estender as possibilidades da aplicação da responsabilidade objetiva. De acordo com o parágrafo único do art. 927, não haverá a exigência de culpa nos casos especificados em lei, ou quando a atividade habitual do agente implicar risco aos direitos de outrem. Trata-se da chamada teoria do risco, que vem refletir anseios e atender ao desejo por uma maior abrangência da responsabilidade objetiva, não mais circunscrita aos casos expressamente previstos em lei. Assim, Álvaro Villaça Azevedo fala em duas espécies de responsabilidade civil objetiva: “a responsabilidade objetiva pura, conforme o que estiver especificado em lei, e a responsabilidade objetiva pura em razão do risco criado pela atividade do agente”.168

3.2. CARACTERIZAÇÃO DO ATO ILÍCITO

Na caracterização do ato ilícito, o Código de 2002 pouco difere do diploma anterior. Assim, todo aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano

168  AZEVEDO, Álvaro Villaça. Curso de direito civil: teoria geral das obrigações e responsabilidade civil. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 241. a outrem, comete ato ilícito (art. 186). No art. 187, porém, o Código inova, ao firmar a teoria do abuso de direito, que também enseja responsabilidade civil. Ocorre quando o titular de um direito viola o fim econômico ou social a que este se destina, ou os limites da boa-fé e bons costumes.

3.3. EXTENSÃO DO DANO

Um último aspecto a ser ressaltado no tratamento da responsabilidade civil pelo Código Civil diz respeito à extensão do dano, logo de vital importância para o presente trabalho. Encontra-se no art. 944 do CC/2002 a concisa, clara e precisa redação: “A indenização mede-se pela extensão do dano”. Assim, não restam dúvidas de que o Código Civil não admite o instituto dos danos punitivos, por vedar indenização que ultrapasse a medida do dano sofrido pela vítima.

Aparentemente, o presente trabalho, que procura arguir pela inaplicabilidade dos punitive damages no Brasil, poderia ser aqui concluído, pela simples subsunção do dispositivo legal citado. A questão, porém, é mais complexa, haja vista que doutrina e jurisprudência, ao depararemse com o instituto, não se prendem à interpretação puramente normativa, adotando diversas formas de tratamento dos punitive damages, como se verá.

3.4. A DOUTRINA NACIONAL NO TRATAMENTO DOSPUNITIVE DAMAGES

A doutrina brasileira sobre responsabilidade civil é diversa. Alguns doutrinadores clássicos defendem a ideia de que os danos punitivos são integrantes dos danos morais, como é o caso de Caio Mário:

Em termos assim genéricos, o conceito não assume nenhum compromisso com as duas correntes que disputam as preferências: a teoria subjetiva da culpa e a teoria objetiva da responsabilidade sem culpa. Uma noção abrangente não deve permanecer limitada. No desenvolvimento da matéria atinente à responsabilidade civil, não há motivo para que um conceito exclua qualquer delas. A rigor elas se completam e terão (ao menos durante algum tempo) de conviver uma ao lado da outra, visando ao mesmo objetivo que é a reparação do dano.

De quantos tentam conceituar a responsabilidade civil, emerge a ideia dualista de um sentimento social e humano, a sujeitar o causador de um mal a reparar a lesão. A variedade de conceitos revela a insatisfação do jurista em plantar-se nos termos de uma definição formal. Como sentimento social, a ordem jurídica não se compadece com o fato de que uma pessoa possa causar mal a outra pessoa. Vendo no agente um fator de desequilíbrio, estende uma rede de punições com que procura atender às exigências do ordenamento jurídico. Esta satisfação social gera a responsabilidade criminal.

Como sentimento humano, além de social, a mesma ordem jurídica repugna que o agente reste incólume em face do prejuízo individual. O lesado não se contenta com a punição social do ofensor. Nasce daí a ideia de reparação, como estrutura de princípios de favorecimento à vítima e de instrumentos montados para ressarcir o mal sofrido. Na responsabilidade civil estará presente uma finalidade punitiva ao infrator aliada a uma necessidade que eu designo como pedagógica, a que não é estranha a ideia de garantia para a vítima, e de solidariedade que a sociedade humana lhe deve prestar. Tendo em vista a reparação, a responsabilidade civil oferece um plus adicionado à reparação. Esta pressupõe a existência de um dano. Mas o dano permanece no plano abstrato se o direito positivo não identificar o sujeito a quem é atribuível. O sociólogo pode contentar-se com a configuração filosófica da responsabilidade. O jurista tem o dever de ir mais longe. Sente a necessidade de identificar o autor do dano, e oferecer ao ofendido

a satisfação que, além de afirmar a existência da lesão, impõe sanções ao causador dela. E concretiza essas sanções. A responsabilidade civil consiste na efetivação da reparabilidade abstrata do dano em relação a um sujeito passivo da relação jurídica que se forma. Reparação e sujeito passivo compõem o binômio da responsabilidade civil, que então se enuncia como o princípio que subordina a reparação à sua incidência na pessoa do causador do dano. Não importa se o fundamento é a culpa, ou se é independente desta. Em qualquer circunstância, onde houver a subordinação de um sujeito passivo à determinação de um dever de ressarcimento, aí estará a responsabilidade civil.169

Outros doutrinadores já defendem a responsabilidade civil com uma visão mais indenizatória, de defesa de direitos, sem um viés punitivo:

A responsabilidade civil é, em suma, obrigação não negocial, mesmo que entre credor e devedor da indenização haja negócio jurídico. Ela pode ser subjetiva ou objetiva. Quando subjetiva, a responsabilidade civil tem por origem ato ilícito culposo ou doloso (obrigação de indenizar

169 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 13/14 vítima de acidente de trânsito, de erro médico, de crimes etc.); quando objetiva, decorre de fato jurídico (fornecer bens ao mercado gera responsabilidade pelos acidentes de consumo, p. ex.).170 A responsabilidade civil decorre de uma conduta voluntária violadora de um dever jurídico, isto é, da prática de um ato jurídico, que pode ser lícito ou ilícito. Ato jurídico é espécie de fato jurídico. Fato jurídico, em sentido amplo, é todo acontecimento da vida que o ordenamento jurídico considera relevante no campo do direito. Os que não têm repercussão no mundo jurídico são apenas “fatos”, dos quais não se ocupa o direito, por não serem “fatos jurídicos”.171 A reparação deve ser completa, abrangendo todas as consequências do dano. Por outras palavras, a indenização há de ser total. Mas não pode ir além dos prejuízos efetivamente sofridos em consequência do fato danoso. Exigese a adequação expressa dos efeitos à causa, delimitando-se, assim, a extensão do ressarcimento. (...) Não se admite, demais disso, que este consiga situação mais favorável do

170 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil. 8. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. Vol. II. p. 125-135.

171 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Responsabilidade Civil. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. Vol. IV. p. 33.

que teria se o acontecimento danoso não houvesse ocorrido.172

Indenizar significa tornar indene, isto é, reparar prejuízo porventura sofrido. De modo que, em regra, não deve o prejudicado experimentar lucro na indenização. Com o corolário dessa afirmação surge uma outra: é irrelevante a questão da existência de dolo, ou do grau da culpa (...), a indenização será sempre a mesma, pois trata-se de compor prejuízo, isto é, tornar indene o prejudicado.173

Nota-se, portanto, que a doutrina brasileira, majoritariamente, entende a responsabilidade civil por um viés indenizatório e proporcional ao dano causado e, portanto, sem teor punitivo. Porém, é interessante destacar que existe uma corrente, mesmo que menos aceita, de doutrinadores como por exemplo Caio Mário, que defendem a teoria dos danos punitivos.

4. O EXPERIMENTO DOS PUNITIVES DAMAGES

Embora as indenizações com caráter punitivo já tivessem se manifestado desde o século XIII na Inglaterra, para o que interessa a este estudo vale notar que até meados do século XIX “as funções

172 GOMES, Orlando. Obrigações. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 50.

173 RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil: Parte Geral das Obrigações. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 1984. Vol. II. p. 313. compensatória e punitiva foram confundidas pelas Cortes inglesa e norte-americanas”174 . Foi somente no decorrer do século XIX que os danos extrapatrimoniais foram progressivamente reconhecidos como indenização compensatória, e não punitiva. Os exemplary damages eram recorrentemente incluídos na categoria de compensatory damages, pela simples recusa de se atribuir um caráter compensatório às indenizações do dano extrapatrimonial. Dessa forma, os danos materiais decorrentes diretamente do ilícito, actual damages, passam a incluir também os danos extrapatrimoniais, denominados aggravated damages, isolando-se os danos punitivos, ou exemplares, em uma categoria autônoma de punitive ou exemplary damages. Assim, para todos os efeitos, o direito inglês consagrou as categorias de aggravated, exemplary e restitutionary damages, tanto que os diversos relatórios da Comissão de Direito da Inglaterra e de Wales destinados a tentar uniformizar a matéria foram assim denominados175 .

Em que pese a jurisprudência inglesa já ter consagrado os punitive damages como tradição histórica, a sua imputação ficou vaporosa e sem critérios delineados

174 MARTINS-COSTA, Judith; PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva. Revista da Ajuris. n. 100. ano XXXII. São Paulo: Ajuris, dez. 2005.p.240.

175 Law Commission for England and Wales Consultation Paper on Aggravated, Exemplary and Restitutionary Damages, relatório que foi publicado em 1993 e 1997. O relatório tinha objetivo de assentar as diversas categorias de dano com base na jurisprudência do país até então (disponível em: [www.lawcom.gov.uk/docs/lc247.pdf]. Acesso em 26/03/21.

de forma definitiva até 1964, quando o caso Rookes vs. Barnard traçou as balizas de aplicação do instituto. Aqui, a House of Lords, além de estremar os danos punitivos dos danos morais, determinou as três categorias nas quais seria possível aplicar os punitive damages: (a) atos opressivos, arbitrário ou inconstitucionais oriundos de servidores do governo; (b) condutas que, embora lesivas, sejam economicamente vantajosas para o réu de um ponto de vista econômico, considerando eventual indenização a ser paga em termos puramente compensatórios; e (c) nos casos expressos em lei176 . Portanto, ao contrário do que um sistema de common law pudesse apresentar a primeira vista, vê-se que as hipóteses de indenização com caráter punitivo são bem delineadas naquele direito, criando-se o categories test, onde se impõe examinar em cada caso concreto se está presente uma das três condições permissivas de aplicação dos danos punitivos. A experiência europeia continental foi acompanhada, noutra latitude, pelo desenvolvimento de um modelo de responsabilidade civil de evolução em sentido diferente ao inicialmente apresentado. No universo anglo-saxônico,

176 Tradução livre. No original, o acórdão da House of Lords, ao descrever os requisitos que haviam sido afirmados pela Court of Appeal, assim se pronuncia: “(...) exemplar damages could be awarded in cases (i) of oppresive, arbitrary or unconstitutional acts by government servants; (ii) where the defendant’s conduct had been calculated by him to make a profit for himself which might well exceed the compensation payable to the plaintiff; (iii) where expressly authorised by statute (post, p.1226, 1227)”([1964] A.C. 1129, p.1131). no domínio do Tort Law, floriu a indenização punitiva, cujo montante se não queda no valor dos danos, ultrapassando-o com vista a alcançar outros objetivos que não apenas o de colocar o lesado na situação em que ele se encontraria, se não tivesse produzido o fato causador do dano. Posteriormente, já na década de 70, na Inglaterra, houve a inovação para a aplicação de danos punitivos para a tutela de direitos da personalidade. O caso ficou conhecido como Cassel & Co. vs. Broome, versando sobre a publicação de um livro onde se descrevia um desastre de um navio com destino à Rússia, atribuindo implicitamente a responsabilidade do mesmo a um antigo comandante da Marinha (mesmo após o comandante ter alertado o autor e a editora que esta referida descrição ofendia seu nome). Reconduzindo o caso vertente ao segundo tipo de situações aplicadas no caso Rookes vs. Barbard, o tribunal determinou a aplicação de punitive damages, considerando que a editora havia publicado o livro intencionalmente, visando alcançar lucros e sem consideração aos direitos do lesado177. O antigo comandante da Marinha recebeu 25.000 libras, a título de danos punitivos.

Os punitive damages chegaram aos Estados Unidos no século XVIII, sendo que o primeiro caso registrado ocorreu no ano de 1784 - o caso Genay v. Norris -, no qual um

177 LOURENÇO, Paula Meira, Os danos punitivos. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol. XLIII – n.2. Coimbra Editora. 2002,p.1033.

médico havia colocado, por gracejo, uma inofensiva droga no copo do seu doente, o que lhe ocasionou terríveis dores. Em outro famoso caso, Coryell vs. Colbaugh (1791), o noivo engravidou a noiva e quebrou a promessa de casamento, o que foi considerado uma ofensa e um insulto grave à honra tanto da vítima quanto do nascituro, estigmatizando-os, do ponto de vista social, irremediavelmente. Os tribunais americanos, a partir de meados do século XIX, passaram expressamente a enunciar que os punitive damages eram atribuídos para sancionar o lesante e prevenir idênticas condutas, pelo ofensor e pelos demais membros da sociedade. É interessante notar que, desde 1935, os punitive damages são perfilhados em todos os EUA, com exceção dos estados de Lousiana, Massachusetts, Nebraska e Washington, sendo fixados em casos de negligência grosseira (gross negligence), responsabilidade civil do produtor (products strict liability), responsabilidade objetiva do comitente (vicarious liability), curta duração do contrato (contractual bypass) e incumprimento contratual (breach of contract).

Nas lições de Paolo Cendon e L. Gaudino, os danos punitivos corresponderiam a “soma que a mais e o respeito independente do dano econômico causado e realmente postar a medição, que tem precisamente a função da sanção mais grave no comportamento daqueles que causou ferimentos e assim tenha um propósito”.

178 Vale dizer, há situações prejudiciais que são tão intoleráveis que exigem do sistema jurídico uma atenção especial no sentido de se punir com maior gravidade econômica o agente lesante, excedendo a própria reparação do dano causado. Assim, se verifica a partir do momento em que são produzidos graves prejuízos, com sério menosprezo aos interesses fundamentais, máxime quando estamos diante de lesões cometidas à integridade física e espiritual das pessoas.179 Os exemplos clássicos em que se deve incidir a indenização punitiva representam situações em que o resultado do prejuízo perpetrado na esfera de direitos alheia é vantajoso ao sujeito lesivo, porquanto o seu lucro, com o dano causado, é maior que uma possível indenização que lhe seja imposta à vítima.

178 Aduzem Paolo Cendon e L. Gaudino que: “(...) una somma cioè ulteriore e indipendente rispetto alla misura del danno economico effetivamente arrecato, e che ha proprio la funzione di sanzionare in forma più severa il comportamento di chi abbia arrecato la lesione di proposito (...) E si sa poi come il rilievo per la dolosità della condotta non manchi di esercitare un’influenza dicisiva anche ai fini dell’ammontare del risarcimento, in particolare per quanto concerne la possibilita di unna condanna dell’agente alla corresponsione dei c.d. punitive o exemplary damages” (...).CENDON, Paolo e GAUDINO, L. Gli Illeciti di Dolo. In: In: La Responsabilità Civile. Saggi Critici e Rassegne di Giurisprudenza a cura di Paolo Cendon. Millano – Dott. A. Giuffrè Editore, 1988, p. 402. 179 GONZÁLEZ, Matilde Zavala e ZAVALA, Rodolfo Martín González. Indemnización Punitiva. In: Responsabilidad por Daños en el Tercer Milenio. Homenaje al Profesor Doctor Atilio Aníbal Alterini. Directores Alberto Jesús Bueres, Aída Kemelmajer de Carlucci. Abeledo – Perrot: Buenos Aires, 1997, p. 188.

Outro exemplo clássico de hipótese em que os punitive damages teriam uma eficácia maior dentro do sistema é o caso dos danos perpetrados por intermédio dos meios de comunicação em massa: o ressarcimento por difamação de uma pessoa famosa geralmente será inferior aos lucros obtidos com a atitude reprovável daquele que se insurge contra direitos da personalidade da pessoa.180 Nesse diapasão, a indenização punitiva satisfaz uma tríplice função: sancionar o autor do ato lesivo, porquanto determinadas condutas praticadas com total desprezo aos interesses mais relevantes da vida social devem ser punidas de maneira mais rigorosa pelo direito. O ressarcimento, em tese, restitui a vítima à situação ex ante, porém, se o causador do prejuízo obtém vantagens, as consequências prejudiciais para o corpo social advindas com a prática do ato ilícito não terão sido totalmente eliminadas.181

Outra função, justificadora da aplicação dos punitive damages, é a de evitar atos lesivos similares, uma vez que ao se punir com maior rigor as condutas consideradas mais perigosas para a sociedade, o sistema estará se valendo de um aspecto pedagógico eficaz no combate à disseminação de condutas

180 LOURENÇO, Paula Meira. A indemnização punitiva e os critérios para a sua determinação. In: http:// www.stj.pt/ficheiros/coloquios/responsabilidadecivil_ paulameiralourenco.pdf. Acesso em 13/03/2017, p. 8. 181 GONZÁLEZ, Matilde Zavala e ZAVALA, Rodolfo Martín González. Indemnización Punitiva. In: Responsabilidad por Daños en el Tercer Milenio. Homenaje al Profesor Doctor Atilio Aníbal Alterini. Directores Alberto Jesús Bueres, Aída Kemelmajer de Carlucci. Abeledo – Perrot: Buenos Aires, 1997, p. 189. lesivas análogas. “No sistema preventivo é eficaz, se a pessoa pode segurar benefício que exceda o peso de compensação”. 182

Assim, os punitive damages no tort law também podem resultar em um valor mais elevado a título de indenização a ser paga pelo autor do injusto, contudo, observando-se requisitos diferentes, como aquele representado pela hipótese do lucro obtido com a prática do ato ilícito, em que haveria uma elevação no valor a ser fixado a título de indenização, pela intensidade do elemento subjetivo que dirige a atuação do agente lesivo, na hipótese em que este visa obter uma vantagem com a eventual desgraça alheia, caso pratique lesão aos direitos da personalidade. Diante do exposto, pode-se chegar à ilação, em vista da necessidade de se implementar a função punitiva, que o sistema labora com a possibilidade de se impor um ressarcimento diferenciado a depender, outrossim, do elemento subjetivo. De um lado, o pagamento em pecúnia proporcionaria à vítima uma satisfação, um sentimento de compensação capaz de amenizar o sofrimento experimentado. Em contrapartida, a indenização terá o condão de servir como punição ao lesante, causador do prejuízo, incutindolhe um impacto tal que seja suficiente para dissuadi-lo de cometer novos atentados à esfera jurídica alheia, principalmente em sede de dano extrapatrimonial, no

182 Idem. p. 189.

sentido de que a reparação pecuniária não somente tem cunho de reparar o prejuízo, mas tem também caráter sancionatório ou punitivo, pedagógico, repressor e preventivo, com o escopo de evitar outros danos futuros.183

Explicita ainda, o Professor da Universidade de Siena, que do ponto de vista da análise econômica do direito, a finalidade preventiva do instituto foi positivamente apreciada, contudo, foi ainda colocado em evidência que os punitive damages, na medida em que ocasionem a obrigatoriedade de o agente lesivo pagar uma soma maior em dinheiro que o dano correspondente à sua conduta, causam enriquecimento sem causa.184 A Suprema Corte americana adotou o entendimento de que a condenação ao pagamento dos danos punitivos, se manifestamente excessivos (grossly excessive), e contraria a cláusula do devido processo (due process) estabelecida na XIV Emenda. Em particular, a Suprema Corte federal decidiu expressamente que os danos punitivos não podem ser empregados para sancionar a periculosidade ou a indesejabilidade dos comportamentos geralmente praticados

183 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Responsabilidade Civil. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 27. Nesse sentido, também assinala Fernando Noronha em artigo escrito na RT. NORONHA, Fernando. Desenvolvimento contemporâneo da responsabilidade civil. Revista dos Tribunais, São Paulo: RT, ano 88, v. 761, p. 31-44, mar. 1999.

184 SIRENA, Pietro. Il Risarcimento dei C.D. Danni Punitivi e la Restituizione dell’Arrichimento Senza Causa. In: Rivista di Diritto Civile. Ano LII, N. 6, Novembre-Dicembre. Cedam – Casa Editrice Dott. Antonio Milani. Padova, 2006, p. 531/532. pelo agente lesivo, bem como não podem estender-se ao potencial prejuízo ocasionado aos terceiros. Nesse sentido, os danos punitivos devem ser fixados levando-se em consideração três fatores: 1-) o grau de culpa ou de antijuridicidade do comportamento efetivado contra a vítima; 2-) o montante do dano ocasionado na vítima; 3-) a extensão de outras sanções civis cominadas por comportamentos semelhantes.185 Entretanto nos Estados Unidos os danos punitivos têm uma lógica econômica, funcionando como uma sanção para evitar novas lides sobre o mesmo assunto nas cortes americanas e procurando que o prejuízo causado com uma condenação, além do fator educativo, acarrete um valor punitivo ao lesante.

5. A EXPERIÊNCIA AMERICANA E A LÓGICA ECONÔMICA

A expansão dos punitive damages, nos Estados Unidos, está diretamente ligada à expansão do consumo: é na responsabilidade decorrente do produto — product liability — que se desenvolverá a terceira geração do tort law americano. Até 1960, todavia, a dispensa da prova da negligência para a responsabilização do fornecedor pelo fato do produto parecia incompatível com a doutrina dos punitive damages, que sempre tiveram na análise da culpa do ofensor seu principal e mais

185 Idem, p. 533.

importante fator186. Nada obstante, a percepção progressiva da insuficiência das disciplinas sancionatórias no âmbito do campo específico da responsabilidade pelo fato do produto, bem como a noção cada vez mais comum de prevenção e precaução, acabaram por ampliar a interpretação da jurisprudência, possibilitando a condenação em punitive damages quando a conduta do réu fosse intencional ou irresponsável – no original, willful or reckless187. Aqui, é o interesse da sociedade que prima sobre o interesse individual, e é no intuito de defender a primeira contra atitudes faltosas que o Estado impõe os punitive damages, em uma visão estritamente socializante do dano e da indenização.

186 Nesse sentido, decisão no caso Roginsky vs. RichardsonMend, Inc. Corte dos Estados Unidos of Appeals Second Circuit. n. 266, Docket 30629. Argued _]an. 4, 1967. Decided April 4, 1967, Rehearing Denied May 8, 1967. West Law 378 E2d 832, especialmente: “Although multiple punitive awards running into the hundreds may not add up to a denial of due process, nevertheless if we were sitting as the highest court of New York we would wish to consider very seriously whether awarding punitive damages with respect to the negligent— even highly negligent— manufacture and sale of a drug govemed by, federal food and drug requirements, especially in the light of the strengthening of these by the 1962 amendments,,76 Stat. 780 (1962), and the present vigorous atitude toward enforcement, would not,-do more harm than good. A manufacturer distributing a drug to manythousands of users under government regulation scarcely requires this additional measure for manifesn’ng social disapproval and assuring deterrence. Criminal penalties and heavy compensatory damages, recoverable under some circumstances even without proof of negligence, shhould sufficiently meet these objectives”.

187 Suprema Corte de Minnesota. Lee Ann Gryc, by her mother and natural guardian Jacquelyn Gryc, Apellant n. 49334, 49525. May 23, 1980. Rehearing Denied July 10, 1980. Certiori Denied Oct. 20, 1980. Especialmente: “In this case, the state punitive damages remedy concerns the vital state interest of protecting persons agaisnt personal injury. It seeks to protect state citizens from the willful, wanton, and reckless manufacture of a dangerously flammable bacric for use in childre’s sleepwear. The 1953 Flammable Fabrics Act did not seek to protect persons from this particular risk. As stated earlier, the purpose underlyng the original Act was primarily to prohibit the sale of highly flammable synthect materials, not all unreasonably dangerous fabrics”. Um clássico exemplo ocorreu com Stella Liebeck, de Albuquerque, no Novo México, a qual estava no banco do passageiro do carro de seu neto quando foi gravemente queimada pelo café do McDonalds, em fevereiro de 1992. A Sra. Liebeck, de 79 anos de idade na época, pediu café que era servido em um copo de isopor na janela do drivethrough de uma lanchonete local. A Sra. Liebeck colocou o copo entre os joelhos e tentou remover a tampa de plástico do copo. Ao retirar a tampa, todo o conteúdo do copo se derramou sobre seu colo. As calças de moletom que a Sra. Liebeck usava absorveram o café e o seguravam ao lado de sua pele. Um cirurgião vascular avaliou que a Sra. Liebeck sofreu queimaduras de espessura total (ou queimaduras de terceiro grau) em mais de 6% de seu corpo. A Sra. Liebeck procurou um acordo com a loja e sua reivindicação era de US$ 20.000, mas o McDonalds recusou. Durante o processo, o réu recebeu documentos que mostram mais de 700 reclamações por pessoas queimadas por seu café entre 1982 e 1992. A lanchonete também disse durante a descoberta que, com base em um conselho de consultores, manteve o seu café entre 180 e 190 graus Fahrenheit para preservar o melhor sabor. Ela admitiu que não tinha avaliado as ramificações de segurança a essa temperatura. Outros estabelecimentos vendem café a temperaturas substancialmente mais baixas, e o café servido em casa é geralmente de 135 a 140 graus.

A empresa admitiu que seus clientes não sabiam que podiam sofrer queimaduras de terceiro grau do café e que uma declaração no lado do copo não era um “aviso”, mas um “lembrete”, uma vez que a localização da escrita não avisaria os clientes sobre o perigo. O júri atribuiu à autora US$ 200.000 em indenização compensatória. Este montante foi reduzido para US$ 160.000 porque o júri encontrou 20% de líquido ainda no copo dela. O júri também adjudicou à autora US$ 2,7 milhões em danos punitivos, o que equivale a cerca de dois dias de vendas de café do McDonalds. O tribunal reduziu o prêmio punitivo para US$ 480.000 - ou três vezes compensatórios - mesmo que o juiz chamasse a conduta do réu imprudente, insensível e intencional. As partes finalmente entraram em um acordo que nunca foi divulgado, apesar de ser um caso público, litigado em público e sujeito a extensa reportagem da mídia. Este caso e outros estão no museu The American Museum of Tort Law188 criado em Winsted, Connecticut. Há ainda outras exposições como o estrelado por Erin Brockovich189, Ford Pinto190 e Big Tobacco191:

188 https://www.tortmuseum.org/

189 No filme, “Erin Brockovich”, o personagem principal, Erin Brockovich, Ajudou mais de 600 pessoas a apresentar um processo civil contra uma empresa. O filme é baseado Em uma história real e foi lançado em 2000. Julia Roberts desempenhou o papel de Erin Brockovich. Erin Brockovich era mãe solteira de três filhos. Ela morava em uma pequena cidade no deserto no sul da Califórnia. Com o tempo, Brockovich descobriu que a Pacific Gas and Electric (PG & E) estava despejando produtos químicos venenosos na cidade. Os produtos químicos entraram no abastecimento de água da cidade e deixaram centenas de pessoas doentes. Brockovich recolheu mais de 600 pessoas para entrar com a ação contra a empresa PG&E. No caso de “Erin Brockovich”, realmente chamado de Anderson vs. Pacific Gas & Electric, um júri decidiu que a PG&E deve pagar US$ 333 milhões em indenizações compensatórias e punitivas para as pessoas que foram feridas. PG&E também teve que limpar todo o veneno e parar de usar o este veneno. Fonte: http://www.justiceteaching.org/resource_material/ESE%20damageswksht%20(2).pdf. Acessado em 24/03/2021.

190 Famoso julgado retratado pela jurisprudência americana é o “Pinto Case”, em que a empresa Ford colocou em circulação um automóvel com um design diferente, mas com um vício de fabricação que causou uma explosão matando e ferindo pessoas. Verificouse que era do conhecimento da pessoa coletiva o vício do produto causador da explosão. Não obstante, ela preferiu inserir o carro no mercado de consumo a perder todo investimento feito na elaboração do veículo, porquanto seria mais barato pagar eventuais indenizações. Em vista disso o Tribunal da Califórnia condenou a Ford a “pagar aos lesados 4.5 milhões de dólares, a título de indenização compensatória (compensatory damages) e 125 milhões de dólares a título de indenização sancionatória ou punitiva (punitive damages).” LOURENÇO, Paula Meira. “A indemnização punitiva e os critérios para a sua determinação”. In: http://www.stj.pt/ficheiros/coloquios/ responsabilidadecivil_paulameiralourenco.pdf. Acesso em 24/03/2021 p. 5.

191 Fonte: http://www.treehugger.com/corporate-responsibility/truth-behind-mcdonalds-hot-coffee-lawsuit.html. Acessado em 24/03/2021.

É contra uma lógica econômica que se insurge o sistema de punitive damages, ao impor indenizações que refletem não apenas uma punição ou uma prevenção, mas, sobretudo, que impeçam o ofensor de prevê-las, logo, de incorporá-las em seus custos fixos, a fim de considerá-las na consecução do ilícito e mesmo repassar tal custo para seus consumidores. Não por outra razão, bem pontuou Maria Celina Bodin de Moraes ao apontar a insuficiência do argumento da imprevisibilidade: “Normalmente, porém, argumentos dessa natureza são neutralizados pela alegação, em sentido contrário, de que a previsibilidade das indenizações fixadas por júri popular acabaria por prejudicar o efeito desestimulador dos punitive damages, desnaturando-os em sua principal função social”. 192 Anderson Schreiber sugere que surjam mecanismos sancionatórios administrativos para solução parcial do problema e não através de uma responsabilização civil punitiva.193

A imprevisibilidade das indenizações e a eventual insegurança jurídica que isso pode gerar para as empresas têm sido apontadas como as grandes vilãs da responsabilidade civil norte-americana. Os críticos dos punitive damages nos

192 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de janeiro: Renovar, 2003.p. 252.

193 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. São Paulo: Atlas, 2007. p. 202. EUA têm apontado que os “montantes indenizatórios estão fora de controle”, 194 e que as elevadas penas poderiam ser repassadas para os consumidores: “(...) se não houver extremalidades a serem internalizadas pelas penas extras, a sanção também aumentará os custos, onerando os consumidores e diminuindo sua capacidade econômica?”. 195 Ora, é justamente ao manter os danos punitivos como uma externalidade que o sistema impede a internalização desse “custo” na cadeia produtiva, com a impossibilidade de perpetrar o ilícito, ou proclamar uma finalidade retributiva, alicerçada a da figura dos danos punitivos196 . Aliás, em interessante estudo sobre os efeitos econômicos dos punitive damages, chegou-se à conclusão de que o impacto das indenizações não é tão significativo em seus montantes, mas “em sua enorme variação e completa relatividade com o dano efetivamente sofrido”. 197

Outro dado curioso coletado a partir do estudo estatístico de mais de mil casos

194 ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Indenização punitiva. Revista da Emerj 9-36/ 136, 2006.p. 140.

195 KARPOFF, Jonathan M.; Lott Jr.; John R. On the determinants and importance of punitive damage awards. The journal of Law and Economics XLII (l)/533 (trad. livre).p.528

196 BARBOSA, Ana Mafalda Castanheira Neves de Miranda. Lições de Responsabilidade Civil. 1ª ed. Cascais: Princípia.2017.p.82.

197 KARPOFF, Jonathan M.; Lott Jr.; John R. On the determinants and importance of punitive damage awards. The journal of Law and Economics XLII (l)/533 (trad. livre).p.528

nos EUA é o de que, para as grandes empresas, notícias sobre a situação lesiva, acordos desfavoráveis à imagem da empresa, decisões negativas de júri, são todos elementos que têm um impacto financeiro sobre o valor da companhia bem maior do que o valor nominal da sentença, já incluídos os danos punitivos198. Aqui, portanto, aparece um fator bastante interessante, qual seja a repercussão que o sistema de punitive damages tem como meio de comunicação de condutas ilícitas.

Para o Brasil, importa perceber a dificuldade com que a jurisprudência americana se depara diante da falta de critérios, ainda quando esses estejam vagamente delineados, sendo necessário impor balizas bem mais nítidas. O pensamento do Law and Economics serve, talvez contra seu próprio objetivo, para perceber o quanto é importante que uma companhia não internalize os custos decorrentes da responsabilidade civil, e que continue a perceber nos danos punitivos verdadeira externalidade. Assim, não se buscam tanto as indenizações estratosféricas que fazem o folclore jurídico, mas a imprevisibilidade dessas compensações, sempre respeitando um mínimo de segurança jurídica.

198 Idem.p.564 5- A JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA NO TRATAMENTO DOS PUNITIVE DAMAGES

Se, na realidade brasileira, os punitive damages não foram acatados pela legislação, e tampouco comportam aceitação pacífica na doutrina, é no âmbito jurisprudencial que este instituto vem sendo acolhido. Trata-se de uma tendência de certos julgados, a contrario sensu do que defende este artigo, de se aplicar uma função punitiva ao mecanismo da responsabilidade civil.

Assim já procedeu o Excelso Pretório, em agravo de instrumento que atacava a procedência de uma ação de indenização por danos morais:

Responsabilidade civil objetiva do poder público. Elementos estruturais. Pressupostos legitimadores da incidência do art. 37, § 6º, da Constituição da República. Teoria do risco administrativo. Fato danoso para o ofendido, resultante de atuação de servidor público no desempenho de atividade médica. Procedimento executado em hospital público. Dano moral. Ressarcibilidade. Dupla função da indenização civil por dano moral (reparação-sanção): (a) caráter punitivo ou inibitório (“exemplary or punitive damages”) e (b) natureza compensatória ou reparatória. Doutrina. Jurisprudência. Agravo

improvido. (STF, Agravo de Instrumento 455846 RJ, Rel. Min. Celso de Mello, j. 11/10/2004, DJ. 21/10/2004).

E, nesse mesmo sentido, também já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça:

É certo que o magistrado, seguindo os critérios da razoabilidade e da proporcionalidade, deve, na fixação do valor da reparação do dano moral, levar em consideração o bem jurídico lesado e as condições econômicofinanceiras do ofensor e do ofendido, mas não pode perder de vista o grau de reprovabilidade da conduta do causador do dano no meio social e a gravidade do ato ilícito. Há casos em que a conduta do agente é dirigida ao fim ilícito de causar dano à vítima, atuando com dolo, o que torna seu comportamento particularmente reprovável. Nessa perspectiva, o arbitramento do dano moral deve alicerçar-se também no caráter punitivo e pedagógico da compensação. (STJ, 4ª T, REsp 839.923/MG, Rel. Min. Raul Araújo, j. 15/05/2012, DJ. 21/05/2012).

Há, como bastante sabido, na ressarcibilidade do dano moral, de um lado, uma expiação do culpado e, de outro, uma satisfação à vítima. O critério que vem sendo utilizado por essa Corte Superior na fixação do valor da indenização por danos morais, considera as condições pessoais e econômicas das partes, devendo o arbitramento operarse com moderação e razoabilidade, atento à realidade da vida e às peculiaridades de cada caso, de forma a não haver o enriquecimento indevido do ofendido, bem como que sirva para desestimular o ofensor a repetir o ato ilícito. (STJ, 4ª T, REsp 210.101/PR, Rel. Min. Carlos Fernando Mathias, j. 20/11/2008, DJ. 09/12/2008).

A indenização por danos morais possui tríplice função, a compensatória, para mitigar os danos sofridos pela vítima; a punitiva, para condenar o autor da prática do ato ilícito lesivo, e a preventiva, para dissuadir o cometimento de novos atos ilícitos. Ainda, o valor da indenização deverá ser fixado de forma compatível com a gravidade e a lesividade do ato ilícito e as circunstâncias pessoais dos envolvidos. Indenização no valor de R$ 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil reais), a cargo de cada recorrido, que, no caso, mostra-se adequada para mitigar os danos morais sofridos, cumprindo também com a função punitiva e a preventiva, sem ensejar a

configuração de enriquecimento ilícito. (STJ, 4ª T, REsp 1440721/ GO, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. 11/10/2016, DJ. 11/11/2016).

O Tribunal Regional do Trabalho da 11ª Região também já reconheceu a existência do instituto dos punitive damages, porém negou sua aplicação ao caso concreto, por não haver ocorrido um “dano grave” (sem, entretanto, apresentar qualquer critério para classificá-lo como tal):

Indenização por dano moral. Inaplicabilidade da teoria dos danos punitivos por ausência de dano extremamente grave. Pela extensão do dano, arbitro-o em R$ 2.000,00 (dois mil reais) razoável para compensar o dano. Adicional de insalubridade. Não havia risco biológico no exercício das funções de auxiliar de portaria e almoxarifado quer pela ausência de contato direto com o paciente quer pela falta de acesso às áreas de UTI, centro cirúrgico, apartamentos e enfermarias. (TRT - 11, 1ª T, RO 00012458820145110013, Rel. Valdenyra Farias Thome, j. 11/04/2017, DJ. 18/04/2017).

Por fim, nos tribunais estaduais, encontram-se alguns julgados seguindo essa tendência de se aplicar o escopo punitivo à responsabilidade civil: Quanto ao valor arbitrado, tenho que merece guarida a irresignação do autor, uma vez que o valor de R$ 3000,00 é de fato baixo diante do poderio econômico do banco, instituição financeira de grande porte. A majoração do quantum indenizatório tem em mira o caráter punitivo e pedagógico da indenização, como forma de compelir o banco a ter mais atenção nas suas operações, evitando que incidentes dessa natureza voltem a se repetir. (TJRS, Apelação Cível 70031473531, 5ª Câmara Cível, Rel. Luiz Felipe Brasil Santos, j. 14/04/2010, DJ. 23/04/2010). Tendo em vista a necessidade de se compensar o sofrimento experimentado pela autora, bem como inibir a prática reiterada de ilícitos como o presente, o quantum pleiteado na petição inicial, de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), se apresenta adequado. (TJSP, Apelação Cível 0040552- 97.2012.8.26.0224, 10ª Câmara de Direito Privado, Rel. Elcio Trujillo, j. 27/01/2015, DJ. 02/02/2015). Deste modo, o repúdio à discriminação racial deve se refletir, também, na quantificação das indenizações em ações de ressarcimento por danos morais, desestimulando a prática perniciosa. (...) Posto isso, de se reformar a r. sentença para elevar a tal importância

o valor da indenização, com correção monetária a partir deste julgamento (Súmula 362 do STJ) e juros de mora a contar do evento danoso (art. 398 do Código Civil). (TJSP, Apelação Cível 0004276-32.2012.8.26.0268, 10ª Câmara de Direito Privado, Rel. Cesar Ciampolini, j. 11/08/2015, DJ. 05/11/2015). Assim, mesmo em se fazendo aplicar a doutrina dos Punitive Damages, é necessário se observem o Postulado da Razoabilidade e o Princípio da Proporcionalidade, que condicionam a quantificação a uma regra áurea, a impor o arbitramento em patamar que não gere enriquecimento sem causa (produto da desproporcionalidade entre os fatos e o quantitativo), para nenhuma das partes. A doutrina em foco estabelece que a reparação decorrente do dano moral deve alcançar duas finalidades: uma, de compensar a ofensa causada à vítima; outra, de punir o autor do ilícito civil, exprobando a reiteração de condutas lesivas e, ainda, pedagogicamente, servindo de exemplo à sociedade, a fim operar dissuasão geral. Assim, por meio de um acréscimo econômico no valor da reparação da compensação do dano moral, busca-se, além de, sempre aproximadamente, compensar o sofrimento, punir o ofensor, dando à reparação a mencionada natureza pedagógica e punitiva. Tudo isso sopesado, insta majorar a compensação a ser paga (...) para R$ 100.000,00 (cem mil reais), cada. (TJRJ, Apelação Cível 0073799-69.2003.8.19.0001, 14ª Câmara Cível, Rel. Gilberto Campista Guarino, j. 11/03/2020, DJ. 12/03/2020).

Cabem certas considerações a respeito dos julgados supramencionados. O que se pode antecipar é que a maneira como têm sido aplicados os punitive damages no Brasil: 1) não observa os requisitos de aplicação em seus países de origem, gerando insegurança e discricionariedade; 2) tenta transportar para a realidade nacional uma categoria que, como se verá, não é admitida pelo nosso ordenamento jurídico. 1) De início, é notável, pela análise dos julgados trazidos, bem como de outros que seguem a mesma tendência, que os danos punitivos, no Brasil, estão enquadrados dentro da ideia de danos morais. As decisões que reconhecem os punitive damages os compreendem de forma a elevar a indenização por danos morais. Nunca os dissociam dos danos morais, como se fossem algo inerente à indenização moral, o que difere do tratamento que recebem nos Estados Unidos, onde são tidos como um instituto autônomo, que pode vir a amplificar tanto a indenização por danos morais como aquela por danos materiais. Como se não bastasse prender os danos punitivos à indenização por danos morais,

a jurisprudência nacional não cuida de fazer uma distinção entre qual seria o montante de indenização compensatória, e qual seria o montante de indenização punitiva. Como se nota dos julgados, as decisões se limitam a aumentar o quantum indenizatório, sem especificarem até que ponto vai a compensação, e a partir de qual ponto seria o excesso, destinado à punição. Essa situação, que novamente diverge da forma de aplicação dos punitive damages em seus países de origem, acaba por gerar insegurança e abrir as portas à discricionariedade. Ora, se não se sabe qual é o montante compensatório e o montante punitivo, não há como impor limites a cada um deles, porque não é dito quanto valem individualmente. Não há como o réu contestar o valor dado a cada um deles, apenas o montante final. Também não há como saber como o juiz se guiou para chegar a cada um dos montantes, visto que a sentença final só revela o valor somado. Não há como as partes saberem qual foi o valor atribuído ao dano moral sofrido, que se busca compensar, e qual o peso da punição que o juiz pretende aplicar, o que acaba por tornar ambos os escopos, compensatório e punitivo, um tanto quanto ineficazes, já que não se sabe qual é a sua dimensão, o seu vigor. Por fim, também não há como uma decisão futura, que pretenda aplicar a indenização punitiva a uma situação diferente, em que o dano moral sofrido pela vítima for diverso, se basear no quantum estabelecido na decisão anterior, posto que não se sabe o valor que foi atribuído aos punitive damages. Tudo isso fomenta um cenário de insegurança jurídica e econômica, especialmente quando se considera que, no Brasil, não há qualquer parâmetro claro e obrigatório para a medição dos danos punitivos, divergindo mais uma vez do que ocorre nos Estados Unidos.199 2) A tendência evidenciada pelos julgados supracitados, de se transportar o instituto dos punitive damages para o Brasil, é, ainda, discreta, seja pela quantidade de decisões nesse sentido, seja pelo valor das indenizações atribuídas, no geral muito inferiores se comparadas à realidade estadunidense. Porém, desde já, suscita-se a discussão acerca da existência ou não, no contexto nacional, de um escopo punitivo e preventivo na lógica da indenização, compreendido ou pelo menos não defeso pelo ordenamento. Vale indagar, aqui, qual é a validade que se deva atribuir a essas decisões judiciais, ou mesmo se podem ser consideradas verdadeiramente jurídicas. Isto porque, conquanto se admita a jurisprudência como fonte do direito,200

199 Nos EUA, como já mencionado, há, ainda que um tanto quanto vagos, pelo menos três fatores para a fixação dos punitive damages: 1-) o grau de culpa ou de antijuridicidade do comportamento efetivado contra a vítima; 2-) o montante do dano ocasionado na vítima; 3-) a extensão de outras sanções civis cominadas por comportamentos semelhantes.

200 Reale já concluía: “Se uma regra é, no fundo, a sua interpretação, isto é, aquilo que se diz ser o seu significado, não há como negar à Jurisprudência a categoria de fonte do Direito, visto como ao juiz é dado armar de obrigatoriedade aquilo que declara ser de direito no caso concreto”. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1981. p. 169.

bem se sabe que, em nosso sistema romano-germânico, a lei é a fonte principal. Assim, a jurisprudência pode estender suas interpretações da lei até o limite em que contrarie o próprio texto legal (contra legem), e, a partir daí, não encontra mais abrigo no ordenamento jurídico. E, deveras, os julgados supracitados colidem expressamente com a lei, razão pela qual não há que se lhes conferir juridicidade, tampouco considerá-los como uma válida porta de entrada para o instituto dos punitive damages no Brasil, como se passa a explicar. Como já se observou, o Código Civil é claro ao delimitar a indenização à reparação do dano causado, pela literalidade do art. 944, caput. 201 Fica aí circunscrita a responsabilidade civil ao escopo compensatório. E, se não bastasse, o Código proíbe a indenização que ultrapasse o valor do dano causado, pela vedação ao enriquecimento sem causa, expressa no art. 884, caput. 202 Esclarece Orlando Gomes que “há enriquecimento ilícito quando alguém, a expensas de outrem, obtém vantagem patrimonial sem causa, isto é, sem que tal vantagem se funde em dispositivo de lei ou em negócio jurídico anterior”.203 Diante dos

201 Código Civil, art. 944, caput: “A indenização mede-se pela extensão do dano”.

202 Código Civil, art. 884, caput: “Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários”.

203 GOMES, Orlando. Obrigações. 18. ed. Rio de Janeiro: julgados mencionados, que estabelecem uma indenização acima do necessário à compensação do dano, pode-se dizer que esse excesso tem uma causa, a punição do culpado. Ocorre que não se trata de causa justa, legítima, fundada na lei, porque a punição não é motivo lícito na esfera civil. O direito penal é encarregado da punição, enquanto à órbita civil compete a reparação. Não está compreendido, na legislação civil, o escopo punitivo diante de um ato ilícito e, por isso, o excesso de indenização, que se funda nesse propósito, não pode prevalecer, tratando-se de claro enriquecimento sem causa. Assim, por mais que os julgados que aplicam os danos punitivos no Brasil expressem sua preocupação em evitar o enriquecimento sem causa, fixando uma indenização que não ultrapasse os “limites da razoabilidade”, não há como escapar de que qualquer valor que ultrapasse a compensação do dano sofrido, já incorre em enriquecimento sem causa legítima, e por isso, enriquecimento ilícito. Daí, se evidencia, portanto, a incompatibilidade dos julgados citados, e por extensão, do próprio instituto dos danos punitivos, com o ordenamento jurídico nacional. Finaliza-se com Anderson Schreiber, que, a respeito dessa tendência de certos julgados brasileiros em aplicar o instituto dos punitive damages, sintetiza tudo que foi exposto, nas seguintes palavras:

Forense, 2016. p. 258.

A orientação jurisprudencial, a rigor, contraria expressamente o Código Civil de 2002, que, em seu art. 944, declara: ‘a indenização mede-se pela extensão do dano’. Pior: ao combinar critérios punitivos e critérios compensatórios, chegando-se a um resultado único, a prática brasileira distancia-se do modelo norteamericano, que distingue claramente compensatory damages e punitive damages. Com isso, cria-se, no Brasil, uma espécie bizarra de indenização, em que ao responsável não é dado conhecer em que medida está sendo apenado, e em que medida está simplesmente compensando o dano, atenuando, exatamente, o efeito dissuasivo que consiste na principal vantagem do instituto.204

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS (PROVISÓRIO)

O emprego dos danos punitivos como faceta dos danos morais decorre, em primeiro lugar, da ausência de conceituação do que seriam, efetivamente, danos morais, tendo como consequência permitir ao juiz ajustar e reajustar as soluções conforme entenda necessário, oportuno ou conveniente, inclusive de forma distorcida do ordenamento legal,

204 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 205. diante de inexistência de previsão legal. A aplicação dos danos punitivos destinada a reparo de bens e serviços incidiria em um maior valor agregado ao produto, uma vez que esta indenização, quando fixada, seria dissolvida entre os custos do produto, aumentando seu valor de venda, prejudicando o consumidor, ao invés de melhorar a qualidade da mercadoria.

No tocante aos direitos da personalidade, existe uma codificação robusta e uma tutela geral da pessoa humana, que dispensa os danos autônomos. O direito deve ser uma ferramenta aplicada de modo seguro, mas também simples, aumentar e nomear todo tipo de dano causaria a discricionariedade e taxatividade da sua aplicação, e os direitos da personalidade, como tutela geral de proteção, não estão sujeitos, a priori, de uma cartilha de aplicação. Sem mencionar que a falta de contornos decorre de uma necessidade própria desta matéria, pois a responsabilidade civil avança conforme progride a civilização, havendo necessidade de constante adaptação deste instituto às novas necessidades sociais. Bem por isso as leis sobre esta matéria devem ter caráter genérico. Contudo, não obstante o caráter genérico das normas atinentes ao assunto, o ordenamento jurídico brasileiro não está preparado para a inclusão da

indenização punitiva como resultado de um transplante legal que não observou os requisitos para sua aplicação no seu país de origem, nem tampouco, os contornos da responsabilidade civil das terras tupiniquins.

Tratando-se de uma pena, como expressamente reconhecida por vasta doutrina que acolhe sua aplicação, é necessária a existência de uma norma que lhe fundamente, por ser exigência de um dos princípios fundantes do Estado Democrático de Direito, o princípio da legalidade. Não apenas não há norma fundamentando essa punição, como o Código Civil, muito pelo contrário, veda a sua aplicação, ao dispor que a indenização se medirá pela extensão do dano.

Igualmente, permitir o pagamento de danos punitivos é chancelar o enriquecimento ilícito da vítima, visto que sua situação final não será igual a que ficaria se o dano não tivesse sido observado, além de tutelar que o sofrimento se transmude em excelente fonte de captação de ganho patrimonial, de outro modo pode-se possivelmente prever a fixação de uma indenização àqueles que receberam valores a custa de direitos alheios, pela mesma justificativa do enriquecimento sem causa, como visto nos exemplos de direito da personalidade.

Por fim, percebe-se a importância de atentar não para microssistemas isolados, mas para dar ao diálogo das fontes maior importância, com a superação das ilhas do direito. A partir desta ideia, o Brasil não deve fazer uma mera transposição de culturas jurídicas, pois não acolhidas pelo ordenamento normativo brasileiro, evitando conviver com a insegurança jurídica gerada pela dificuldade de implementação de uma punição não prevista.

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