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NOS CONTRATOS DE LOCAÇÃO

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ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS EM RAZÃO DA PANDEMIA NOS CONTRATOS DE LOCAÇÃO

Rodrigo da Silveira Barcellos225 Beatrice Ferrari226 Lucas Antonio Schoba Almeida227

RESUMO O presente artigo é resultado de um estudo jurídico acerca da ocorrência de alterações, em tempos de pandemia, das circunstâncias que perfilham o cenário de formação de termos contratuais, buscando verificar as respostas do ordenamento jurídico às novas necessidades e os princípios que norteiam estas soluções. Para isso, o artigo parte de um exame histórico e principiológico da formação dos contratos e analisa essa base teórica sob a perspectiva dos dias atuais, considerando os fatos desencadeadores da alteração das circunstâncias. A evolução pela qual tem passado o direito contratual nas últimas décadas, com a incorporação de fenômenos inesperados e bruscos da economia, torna o ambiente jurídico muito propício à utilização da revisão contratual. Notadamente, o dispositivo em debate possibilita uma maior intromissão do Estado na relação jurídica negocial, com o escopo de se conferir maior justiça quando, pela alteração das circunstâncias da obrigação, mostra-se necessário realizar resolução ou modificação do contrato.

225 Doutorando em Direito Civil pela Universidade de Coimbra – Portugal. Mestre em Direito da Sociedade da Informação no Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas; Especialista em Direito Civil pela Universidade de Coimbra. Professor Universitário. Assessor Jurídico do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo;

226 Discente do curso de Direito da Universidade de São Paulo, 7º semestre. Estagiária na área de contencioso cível e arbitragem;

227 Discente do curso de Direito da Universidade Mackenzie de São Paulo.

Dito de outra forma, a partir do momento em que é diagnosticada a alteração das circunstâncias, inseridas na base subjetiva do contrato, abre-se margem para que as partes resolvam o instrumento ou, eventualmente, para que o juiz analise a conduta do lesado, propondo uma modificação do contrato segundo juízos de equidade – intromissão essa que apenas se justifica se a exigência das obrigações assumidas afetar gravemente o princípio da boa-fé e se esta situação não estiver coberta pelos riscos próprios do contrato.

PALAVRAS-CHAVE Contratos, Revisão, Alteração das Circunstâncias, Pandemia, Pacta Sunt Servanda, Rebus Sic Stantibus

1. INTRODUÇÃO

Em tempos pandêmicos, a realidade em que se desenvolve o cumprimento de um contrato demonstra-se passível de modificações, o que pode alterar a estrutura econômica em que está assentada a relação jurídica em causa. Quando se está diante de uma severa perturbação do conteúdo ajustado, tornase necessária a verificação do quantum do desequilíbrio contratual e se este afeta a concepção de justiça, do início do pacto e da força estabelecida pelo acordo. É esse ideal que surge como elemento propulsor de novas digressões e aplicações teóricas. A influência da pandemia sobre o conteúdo contratual firmado entre as partes é elemento de análise essencial para que se possa cogitar o cabimento de uma alteração na base do negócio. Nesse ponto, notável que a modificação das conjunturas ocorre, na maioria das vezes, entre o momento da formação do negócio jurídico e o momento da sua execução, e, por isso, trata-se de matéria importantíssima a ser trabalhada dentro da disciplina dos contratos duradouros. A alteração de circunstâncias, assim, é o instituto que procura regular problemas suscitados com relação ao futuro. Nessa situação, a conjuntura em que a vontade das partes foi colocada revela-se alterada no decurso do tempo. Dessa forma, entre a formação e a execução do contrato, ocorre uma ruptura que requer, por consequência, a revisão ou resolução do termo. É com essa ideia preliminar que iniciaremos um singelo estudo acerca da origem e formação do direito contratual. Senão vejamos.

2. ORIGEM E FORMAÇÃO DOS CONTRATOS

Um dos mais tradicionais e importantes institutos do direito privado, que é considerado uma das fontes das obrigações228 e que sofreu evolução e modificação229 muito grande em sua estrutura principiológica (principalmente após a falência social advinda da Revolução Industrial) é o contrato230 . O Código Civil italiano, no seu artigo 1.321, conceituou o contrato como sendo “o acordo de duas ou mais partes para constituir, regular ou extinguir, entre si, uma relação jurídica patrimonial”. A conceituação romana, estabelecida por Ulpiano, não obstante a sua simplicidade, era assaz correta: “est pactio duorum

228 O artigo 1173 do Código Civil italiano dispõe que: “Le obbligazioni derivano da contratto, da fatto illecito, o da ogni altro atto, o fatto idoneo a produrle in conformità dell’ordinamento”.

229 Nas palavras de Roberto Senise Lisboa: “Um dos institutos jurídicos civis que mais se submeteu às transformações sociais e econômicas foi, sem dúvidas, o contrato. E as alterações foram tantas, desde o direito antigo até o direito pós-moderno, a ponto de atualmente se admitir sem maiores polêmicas uma teoria geral dos contratos, apartada da teoria obrigacional clássica. ” LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil. Vol. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.p. 61.

230 Para Sílvio Rodrigues: “Dentro da teoria dos negócios jurídicos, é tradicional a distinção entre os atos unilaterais e os bilaterais. Aqueles se aperfeiçoam pela manifestação da vontade de uma das partes, enquanto estes dependem da coincidência de dois ou mais consentimentos. Os negócios bilaterais, isto é, os que decorrem de acordo de mais de uma vontade, são os contratos. Portanto, o contrato representa uma espécie do gênero negócio jurídico. E a diferença específica, entre ambos consiste na circunstância de o aperfeiçoamento do contrato depender da conjunção da vontade de duas ou mais partes. ” RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Contratos, v. 3. 25ª Ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 9. pluriumve in idem placitum consensus”, o que pode ser traduzido como o “mútuo consenso de duas ou mais pessoas sobre o mesmo objeto”231 . A semente da concepção moderna do contrato encontra-se nos fenômenos da convenção (conventio), do pacto (pacta) e o contrato (contracto), que eram institutos diversos perante os romanos. Compete destacar que o formalismo mais ou menos exacerbado era o que diferenciava as referidas expressões da manifestação da vontade232, mas esta classificação só prevaleceu no início. Em Roma, inicialmente, o acordo de vontades não tinha o condão de, por si só, gerar obrigações, uma vez que era a observância de formalidades que criava este vínculo obrigacional. Essa rigidez, contudo, começou a perder força ainda no período clássico, em razão da dinamicidade do comércio e do tráfico jurídico233. Adicionalmente, nos últimos tempos da legislação romana, os pactos legítimos, pretorianos e adjetos passaram a assumir uma conformação diversa, possuindo, inclusive, sanção legal234, mas

231 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. 5º Vol. 28ª ed. Direito das Obrigações – 2ª parte. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 4.

232 LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil. Vol. 3. 3ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 46.

233 NETTO, Humberto Theodoro. Efeitos Externos do Contrato. Direitos e Obrigações na Relação entre Contratantes e Terceiros. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 18.

234 BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Vol. IV. São Paulo: Livraria Francisco Alves, 1917.

uma vez descaracterizando a diferenciação inicialmente proposta.

Pois bem, considerando a classificação inicial, a convenção era gênero, enquanto o pacto e o contrato eram espécies. No que tange ao pacto, é forçoso convir que lhe faltava a força coercitiva que dispunha o contrato, uma vez que não era sancionado civilmente. O contrato, por outro lado, constituía-se em uma convenção sancionada pelo sistema jurídico. Para o eminente Professor Doutor FRANCISCO BRITO PEREIRA COELHO, citando as noções de BONFANTE, definese a figura do pacta235 como “acordos ou convenções destinados a regular uma determinada situação de interesse comum, despidos de forma e não integrados em qualquer dos tipos contratuais ou negociais estabelecidos”. Para SENISE LISBOA a convenção, em realidade, era um acordo de vontades em que as partes assumiam deveres relativos a uma prestação de dare, facere ou non facere, sem que houvesse grandes

p. 240. Neste sentido, temos o escólio de R. Limongi França para quem: “Numa determinada fase do Direito Romano, distinguiam-se, sobre a matéria, três categorias: a convenção, o pacto e o contrato. Convenção é palavra genérica (Digesto, 2, 14, 1, 3, Ulpiano). Por sua vez pacto vem de pacção. E pacção é o consentimento de duas ou mais pessoas sobre o mesmo objeto. Ao seu turno, o contrato é a convenção a que o jus civile atribui forma e reconhece uma ação sancionadora – conventio nomen habens a jure civile vel causam”. FRANÇA, R. Limongi. Instituições de Direito Civil. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 713.

235 COELHO, Francisco Manuel de Brito Pereira Coelho. Contrato – Evolução do Conceito do Direito Português, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1990. p.17. Citando BONFANTE, Su <Contractus> e su <Pacta>, in Scritti Giuridici Varii, III (Obligazioni), Turim, 1921, pp. 137 e ss. solenidades. O denominado pacta representava a assunção de deveres, sem que ocorresse o esperado formalismo236 . Como relembra PAIS DE VASCONCELOS237 “os atos jurídicos pelos quais, no antigo Direito Romano as pessoas se obrigavam, transferia bens ou regiam entre si os seus interesses, eram taxativamente típicos e rigorosamente formais”.

O pacto e a convenção, para SENISE LISBOA, não conferiam ao prejudicado o direito à ação judicial, mas lhe outorgava para a tutela de um bem seu a exceptio. A obrigação de dar, fazer ou não fazer era denominada de pacta vestita ou contracto se esta fosse estipulada na presença do oficial romano e se fosse concedida ao credor a possibilidade de exigir em juízo o adimplemento da obrigação. Aos poucos, o formalismo do contrato foi desvanecendo, sendo apenas exigido quando expressamente previsto em lei, circunstância que o aproximou da convenção. O contrato evoluiu sobremaneira em razão dos estudos efetivados pelo jusnaturalismo e pelo direito canônico que, simplificando a realização dos contratos, consagraram o princípio da fé jurada, fortalecendo, por conseguinte, a palavra238 .

236 LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil. Vol. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.p. 46.

237 VASCONCELOS, Pedro Pais. Teoria Geral do Direito Civil. 8ªed. Coimbra: Almedina. 2015.p.464.

238 LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil. Vol. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.p. 48.

Atualmente, todavia, não há razão para diferenciação entre pacto e contrato. Ambos estariam abarcados pela ideia de uma convenção em que duas partes ou apenas uma delas com a concordância da outra submete-se a realizar uma prestação de dar, fazer ou não fazer. 239

Por isso que ORLANDO GOMES, citando BONFANTE, asseverou que “não é no direito romano que se deve buscar a origem histórica da categoria que hoje se denomina contrato”. O liberalismo econômico e a ideia de que o mercado de trabalho e de capitais devem funcionar livremente impulsionou o contrato, erigindo-o à condição de peça fundamental para o desenvolvimento da economia240 .

Com o contrato, assevera PIETRO TRIMARCHI, cada uma das partes pode assegurar-se com relação ao empenho da outra, no sentido de que haja o desenvolvimento de um ato ou atividade, para que ocorra a obtenção de um bem ou serviço. Além disso, os contratantes podem distribuir entre eles os riscos das dificuldades e dos imprevistos não culpáveis que eventualmente venham a perturbar a atuação do programa contratual241 .

239 FRANÇA, R. Limongi. Instituições de Direito Civil. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 713.

240 GOMES, Orlando. Contratos. 18ª ed. Atualização e notas de Humberto Theodoro Junior. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 6. BONFANTE, Su <Contractus> e su <Pacta>, in Scritti Giuridici Varii, III (Obligazioni), Turim, 1921, pp. 137 e ss.

241 TRIMARCHI, Pietro. Incentivi e Rischio nella FRANCISCO BRITO PEREIRA COELHO didaticamente define como primeira condição contratual o elemento declarativo: “para haver contrato tem de haver desde logo duas ou mais declarações de vontade (...) ajustando-se no seu comum intuito de prossecução de um mesmo resultado” .

Assim, resumidissimamente, hoje em dia, pode-se conceituar este fenômeno jurídico como o acordo de duas ou mais vontades, na conformidade da ordem jurídica, destinado a produzir efeitos entre as partes, com a finalidade de criar, modificar ou extinguir relações jurídicas de conteúdo patrimonial242. É denominado, outrossim, como negócio jurídico bilateral, uma das espécies de ato jurídico em sentido amplo243, porquanto exige, para a sua formação, a manifestação de vontade de duas ou mais pessoas.

Responsabilità Contrattuale. In: Rivista di Diritto Civile. Ano LIV, n. 3 Maggio-Giugno. Cedam – Casa editrice Dott. Antonio Milani. Padova, 2008, p. 342.

242 DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 11ªed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 410. Para R. Limongi França “contrato é o ato jurídico por força do qual duas ou mais pessoas convencionam entre si a constituição, modificação, ou extinção de um vínculo jurídico, de natureza patrimonial”. FRANÇA, R. Limongi. Instituições de Direito Civil. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 714.

243 Cumpre destacar que o ato jurídico é um fato jurídico humano voluntário, conquanto necessite da manifestação de vontade do sujeito de direito. Fatos jurídico, na lição de Emilio Betti, “são, portanto, aqueles factos a que o direito atribui relevância jurídica, no sentido de mudar as situações, a que correspondem novas qualificações jurídicas”. BETTI, Emilio. Teoria Geral do Negócio Jurídico. Tomo I, Coimbra, 1969. p. 20.

3. PRINCÍPIOS CONTRATUAIS FUNDAMENTAIS

Os princípios constituem a base do sistema jurídico moderno e são abstraídos das normas, costumes, doutrina e jurisprudência, bem como de aspectos relacionados indiretamente ao direito, como a política, a economia e a sociedade. São verdadeiras diretrizes jurídicas, pairando sobre a legislação e conferindolhe validade e significado legitimador244 , de forma que atuam como força motriz do direito. O estudo destes princípios, assim, é imprescindível para a compreensão do regime jurídico que pretende visualizar e lidar com a alteração das circunstâncias contratuais de locação em razão da pandemia.

No âmbito dos contratos, ressaltamse os princípios tradicionais da autonomia da vontade, do consensualismo, da relatividade dos efeitos e da força obrigatória, além dos princípios modernos da boa-fé objetiva, do equilíbrio econômico-financeiro e da função social do contrato.

3.1. PRINCÍPIOS TRADICIONAIS

O princípio da autonomia da vontade se particulariza no âmbito dos contratos como liberdade de contratar245 , determinando que os pactos devem surgir

244 GAGLIANO e FILHO, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona. Novo Curso de Direito Civil: Contratos: Teoria Geral, v.4, t.1, ed. 13, versão digital. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 84.

245 GOMES, Orlando. Contratos, ed. 26. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2007, p. 25. da vontade livre246 - isto é, da vontade sem vícios (erro, dolo, coação, estado de perigo ou lesão). Abrange, portanto, a liberdade de contratar, a liberdade de estipular o contrato e a liberdade de determinar o conteúdo do contrato.247 Não é, contudo, um princípio absoluto. Como explica ORLANDO GOMES, desde sempre houveram duas limitações de caráter geral e de difícil definição - a ordem pública e os bons costumes - e outras têm surgido com a desigualdade econômica propiciada pelo desenvolvimento do capitalismo, sob a qual a noção tradicional de liberdade passou a representar um potencial abuso.248 É um princípio, assim, cuja concepção tem se adequado ao longo tempo, mas que permanece fundamental à formação de contratos. O princípio da relatividade, conforme PABLO STOLZE GAGLIANO E RODOLFO PAMPLONA FILHO249, funda-se no preposto de que os efeitos do contrato apenas dizem respeito às partes, razão pela qual sua oponibilidade é relativa, e não “erga omnes”. As disposições do contrato, preliminarmente, não interessam a terceiros, justamente por não haver manifestação expressa, e, consequentemente, não haver negócio

246 MÁRIO, Caio da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil: Contratos, v.3, ed.17. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 20.

247 Ibid. p. 26.

248 Ibid. p. 27, 29 e 30.

249 GAGLIANO e FILHO, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona. Novo Curso de Direito Civil: Contratos: Teoria Geral, v.4, t.1, ed. 13, versão digital. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 100, 101 e 102.

jurídico; sob esta ótica, entende-se que o referido princípio tem como origem a autonomia da vontade. Existem, entretanto, exceções à regra, aptas a envolver terceiros na relação contratual em razão da flexibilização de interesses. No que se refere ao princípio do consensualismo, tem-se, como regra geral, que os contratos necessitam apenas e unicamente do acordo de vontades, contrapondo-se, assim, ao formalismo e simbolismo típicos da antiguidade.250 Dessa forma, o princípio é corolário natural da liberdade, ou seja, as pessoas gozam da faculdade de vincular-se ao título pelo simples consenso, sem demais solenidades, formas ou fórmulas qualificadoras do acordo, convergindo ao princípio ético do respeito à palavra dada e na confiança recíproca (“solo consensu”251). Contudo, alguns poucos contratos necessitam do formalismo, a citar os classificados como reais. No intuito de conferir maior segurança e seriedade ao negócio, o legislador atribuiu maior rigor ao título, exigindo a forma escrita, pública ou particular, em casos específicos determinados pela lei, bem como expresso no art. 107 do Código Civil. Como exceções ao princípio do consensualismo, citam-se a imposição do registro na alienação fiduciária em

250 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: contratos e atos unilaterais, v.3, ed. 14, versão digital. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 42 e 43.

251 MÁRIO, Caio da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil: Contratos, v.3, ed.17. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 16; garantia e a obrigatoriedade de inscrição no registro imobiliário (arts. 1.361, §1º e 1.417 do CC, respectivamente). O princípio da força obrigatória, por sua vez, tal como explica ORLANDO GOMES, atribui aos contratos a condição de lei entre as partes, garantindo que não haja a revogação unilateral. Trata-se de um princípio imprescindível à segurança dos acordos firmados252. Proveniente da expressão em latim “pacta sunt servanda” (“os pactos devem ser cumpridos”), apresenta-se como corolário lógico da liberdade de contratar e da autonomia privada253, pois, pela perspectiva voluntarista, verificado o livre exercício da vontade, não haveria razões para o descumprimento do acordo.254 Em sua origem, representava uma linha dogmática e absoluta, que impedia a modificação ou extinção unilateral, seja pelas partes, seja pelo Estado.255 Essa realidade se modificou ao longo dos anos e, no cenário brasileiro, culminou no Código Civil de 2002, mais permissivo a flexibilização da obrigatoriedade e com maior inclinação à socialidade e ao reconhecimento da pessoa humana.256 Intitulados princípios individuais, a

252 GOMES, Orlando. Contratos, ed. 26. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2017, p. 38.

253 NALIN, Paulo. A Força Obrigatória dos Contratos no Brasil: Uma Visão Contemporânea e Aplica à Luz da Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em vista dos Princípios Sociais dos Contratos, Revista Brasileira de Direito Civil, v.1, jul/set/2014, p. 113.

254 Ibid. p. 116.

255 Ibid. p. 116.

256 Ibid. p. 115.

autonomia da vontade, o consensualismo, a relatividade dos efeitos e a força obrigatória provém da consolidação do Estado liberal e traduzem, em sua conotação original, os princípios ideológicos da época. Estão relacionados com a correta formação dos contratos e figuram alicerce da era de direitos instaurada pela Revolução Francesa de 1789. Note-se, neste ponto, que apesar de conectar-se com o adimplemento, o pacta sunt servanda também visa a correta constituição das relações contratuais, pois é a garantia de cumprimento de contratos que justifica e motiva a sua criação.

3.2. OS NOVOS OBJETIVOS DA PRINCIPIOLOGIA CONTRATUAL

Diferentemente dos princípios tradicionais elencados, a principiologia contratual contemporânea conecta-se com a necessidade de manutenção das relações contratuais em face de direitos sociais, considerando que as relações no mundo atual são, em sua maioria, prolongadas no tempo. A principiologia baseia-se, assim, em um viés intervencionista, atuando de maneira a conter a ampla e total liberdade dos contratantes para disporem de seus interesses, porque o exercício ilimitado acabaria por impactar negativamente a parte social ou economicamente mais fraca, além de promover, em alguns casos, a sobreposição do interesse privado ao público. Tornou-se necessário, portanto, coibir abusos da parte economicamente superior e garantir a aplicação de fundamentos éticos e funcionais que regem a ordem normativa, alicerce que se conecta com os preceitos da Constituição de 1988.

Neste ponto, retoma-se o impacto que o mencionado viés normativo ocasionou na noção de obrigatoriedade dos contratos. Apesar de ainda vigente e central às relações contratuais, a concepção do pacta sunt servanda passou a ser limitada pelos princípios contemporâneos, que expressam valores e princípios sociais. As discussões de revisão contratual frente à pandemia, aliás, só são uma realidade em vista da referida flexibilização, incorporada no Código Civil de 2002, que garante ao direito contratual a noção de cooperatividade.257 Dessa forma, os novos princípios introduziram uma diferente perspectiva às relações contratuais, adicionando deveres laterais e bilaterais decorrentes da boa-fé objetiva - como o equilíbrio econômico-financeiro e a função social do contrato. Deveres, estes, decorrentes da superação promovida pela Constituição de 1988 (e, em seguida, pelo Código Civil de 2002) da dicotomia entre Direito Público e Privado258; os novos deveres, por consequência, divergem da ideia da liberdade máxima (séc. XIX) e se aproximam da isonomia, mostrando-se essenciais em períodos de excepcionalidade.

257 Ibid.. p. 117.

258 Ibid.. p. 120.

3.3. PRINCÍPIOS MODERNOS

A boa-fé é utilizada pelos juristas de modo multifacetado.259 Trata-se de um princípio antigo, que remonta ao Direito Romano, tendo sofrido influências do Direito Canônico, do Jusnaturalismo, do Código Civil Francês e do Código Civil Alemão.260 Hoje, como explica JUDITH MARTINS-COSTA, entende-se a boa-fé objetiva, na seara dos contratos, como uma estrutura normativa que prescreve um standart comportamental, constituindo um cânone de interpretação.261 Em outras palavras, a boa-fé objetiva, positivada no art. 422 do Código Civil de 2002, engloba parâmetros de conduta que devem ser seguidos e que auxiliam na interpretação das cláusulas contratuais, a fim de evitar comportamentos que prejudiquem a concretização dos objetivos do contrato - tanto no âmbito do adimplemento, quanto no âmbito da função social. O conteúdo do princípio da boa-fé objetiva, neste cenário, é alcançado através da análise de casos concretos, nos quais juristas, de acordo com JUDITH MARTINSCOSTA, “encontram a razão de decidir (ou uma delas) na violação a esse standart comportamental”.262

259 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado: Critérios para a sua aplicação, ed. 2, versão digital. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 34.

260 Sobre o tema, MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado: Critérios para a sua aplicação, ed. 2, versão digital. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, mais especificamente o capítulo “As Raízes”, pp. 39-81.

261 Ibid. p. 34

262 Ibid. p. 34. Não é um conceito fechado e com recorte preciso, de modo que o padrão de comportamento será definido de forma relacional, considerando o contexto dos negócios firmados.263 Neste ponto, ressalta ANTÔNIO MANUEL DA ROCHA E MENEZES CORDEIRO que a boa-fé objetiva não comporta uma interpretação-aplicação clássica.264 Tanto é verdade que o Código Civil Português fornece sete definições distintas de boa-fé em seus institutos.265 A obra de JUDITH MARTINS-COSTA, aliás, busca, nas palavras da autora, entender a boafé de forma funcional, sistematizando e propondo critérios para a sua aplicação.266 Vale ressaltar que existem discordâncias doutrinárias quanto à caracterização da boa-fé objetiva como princípio contemporâneo, pois como supramencionado, o princípio é reconhecido desde o Direito Romano. Nota-se, contudo, que este tem adquirido maior relevância e amplitude com a incorporação dos direitos e valores sociais que hoje regem o sistema contratual brasileiro. PAULO NALIN, neste sentido, entende que o Código Civil de 2002 promoveu a “consagração do princípio

263 Ibid. p. 35.

264 CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e Menezes. Da Boa Fé no Direito Civil. Dissertação de doutorado, Almedina, 2ª reimpressão, 2001, p. 42.

265 Ibid. p. 23.

266 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-fé no Direito Privado: Critérios para a sua aplicação, ed. 2, versão digital. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 24.

da boa-fé como princípio concreto e geral dos negócios jurídicos e, logo, dos contratos”267 .

Outro ponto a ser debatido é o equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Este princípio atrela-se ao da autonomia da vontade, pois, nas palavras de FÁBIO ULHOA COELHO268, a ordem jurídica somente deve reconhecer validade e eficácia à composição dos interesses pelos próprios titulares, mediante acordo de vontades, se eles possuírem iguais meios para defendêlos na mesa de negociação. O contrato deve manter, portanto, um equilíbrio econômico durante toda a sua execução; caso contrário, torna-se possível pedir a rescisão ou a revisão judicial - como nos casos em que resta evidente o instituto da onerosidade excessiva nos contratos de execução diferida e de trato sucessivo. Nessa toada, o princípio da função social do contrato, a que se refere os arts. 421 e 608 do Código Civil, dispõe sobre o dever de limitar a autonomia contratual no intuito de evitar abusos (consequência direta da ampliação do conceito tradicional de obrigações), de modo a garantir o equilíbrio entre os contratantes e fazer com que o contrato atinja os interesses sociais através da própria eticidade. Por

267 NALIN, Paulo. A Força Obrigatória dos Contratos no Brasil: Uma Visão Contemporânea e Aplica à Luz da Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em vista dos Princípios Sociais dos Contratos, Revista Brasileira de Direito Civil, v.1, jul/set/2014, Instituto Brasileiro de Direito Civil, p. 123-124.

268 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil: Contratos. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 42. essa razão tem-se que valores éticos são fundamentais na interpretação, vez que unificam parâmetros como a boa-fé e o interesse coletivo, não prejudicando terceiros e cumprindo com o exposto no título (“pacta sunt servanda”). Enquanto os princípios tradicionais funcionam como alicerce da criação de contratos, os princípios contemporâneos prestam-se a garantir a interpretação dos acordos frente à realidade social e econômica das partes e às alterações das circunstâncias por fatores imprevisíveis e supervenientes. Nessa seara, os impactos da pandemia, enquanto crise sanitária, econômica e social, ocasionaram a mudança de regras de ordem pública e de interesse social, trazendo à tona as questões de redução dos aluguéis e sanções pelo descumprimento do título. Estes temas conectam-se profundamente com os princípios tradicionais do direito contratual ao mesmo tempo que exigem uma análise frente aos princípios modernos, e, em última análise, frente ao macroprincípio da dignidade da pessoa humana.

4. ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS

Após a explanação dos princípios que regem o direito contratual, passa-se a abordar a questão da modificação de uma situação de fato ou de direito posterior à celebração do negócio jurídico. Trata-se este de um dos assuntos mais controversos

dentro dos contratos de locação, em razão da pandemia, mudança ou perda de empregos, diminuição de salários, entre outros, surgindo um conflito aparente entre princípios basilares. Em 2020, com as medidas de isolamento para conter a disseminação da Covid-19, os principais setores da economia sofreram bruscas reduções. A indústria, em um primeiro momento, sofreu a maior queda, mas a área de serviços, atualmente, é a mais prejudicada com as oscilações das medidas restritivas.269 O auxílio emergencial e a permissão do saque do FGTS emergencial, neste cenário, foram essenciais para reduzir os retrocessos.270 De acordo com o IBGE, o PIB sofreu uma redução de 4,1% e o desemprego alcançou 13,9% no quarto trimestre de 2020271, dados que demonstram a grave recessão, mas que só se mantiveram nesse patamar devido aos auxílios governamentais. Mas essas medidas de incentivo ao consumo, inicialmente pensadas para poucos meses, não se sustentam a longo prazo, tendo sofrido reduções ao longo da pandemia, que hoje já ultrapassa um ano de duração. É ilusório pensar que esses incentivos governamentais seriam

269 Como a pandemia ‘bagunçou’ a economia brasileira em 2020 | Economia | G1 (globo.com). Acessado em 02-052021.

270 Como a pandemia ‘bagunçou’ a economia brasileira em 2020 | Economia | G1 (globo.com). Acessado em 02-052021.

271 IBGE | Portal do IBGE | IBGE. Acessado em 02-052021. suficientes para equilibrar financeiramente as famílias e empresas vulneráveis brasileiras, bem como pensar que estas alterações fáticas, sociais e econômicas não promoveriam alterações jurídicas. A situação econômica anteriormente observada no país, via de regra, permitia o equilíbrio econômico e financeiro entre os direitos e obrigações contratuais avençadas. A drástica redução nas relações consumeristas exigiu de toda a sociedade uma postura proativa para a redução dos impactos econômicos, postura esta pautada pela solidariedade e repartição de prejuízos.272

4.1. A TEORIA DA BASE DO NEGÓCIO FRENTE ÀS ALTERAÇÕES CONTRATUAIS

A teoria da base do negócio, conquanto tenha sido desenvolvida por outros autores alemães, pouso se alterou ou se incrementou em relação à obra pioneira de OERTMANN, que traz interessantes exemplos de figuras legalmente consagradas que poderiam ter sua fundamentação no desaparecimento ou inexistência da base negocial273 . Entretanto, dessas contribuições, o passo mais importante foi dado por

272 TJSP, 28ª Câmara de Direito Privado, Apelação cível n. 1013485-18.2020.8.26.0562, Relatora Berenice Marcondes Cesar, j. 30/04/2021;

273 CORDEIRO, António Menezes. Da Boa-fé do direito civil. Coimbra: Almedina. 1997.p. 1033.

KARL LARENZ274, que diferenciou a base objetiva do negócio da base subjetiva, fazendo seus estudos apoiando-se diretamente em casos jurisprudenciais. O autor, ao analisar a base objetiva do negócio jurídico, definiu-a como “o conjunto de circunstâncias e estado geral das coisas cuja existência ou subsistência é objetivamente necessária para que o contrato, segundo o significado das intenções de ambos os contratantes, possa subsistir como regulação dotada de sentido. A base objetiva terá desaparecido quando a relação de equivalência entre prestação e contraprestação pressuposta no contrato tenha sido destruída de tal maneira que não se possa falar racionalmente de uma prestação, e quando (...) haja frustração da finalidade”275 .

Nas palavras de MENEZES CORDEIRO276, “perante uma modificação ambiental de vulto, todas as situações singulares são, em princípio, tocadas por igual. Uma decisão isolada que provoque determinada adaptação pode,

274 É importante frisar que os contributos de Larenz são de extrema importância para o estudo do desenvolvimento da teoria da base do negócio, mesmo que não tenha tido tempo de influenciar o Código Civil de 1966, citado por CORDEIRO, António Menezes. Da Boa-fé do direito civil. Coimbra: Almedina. 1997.p.1047.

275 LARENZ, Karl. Base del negocio jurídico y cumplimiento de los contratos. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1956. p.225.

276 Como refere o Professor Menezes Cordeiro, in Da alteração das Circunstâncias – A concretização do art. 437º do Código Civil à luz da Jurisprudência posterior a 1974, “Separata dos Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha”, Lisboa, 1987. p. 71 a 75. perante outras, ter consequências distorcidas (…) a solução pontual solicita que todos os problemas análogos, uma vez colocados judicialmente, terão saída similar: a revisão de um contrato deixa esperar revisões de todos os pactos semelhantes e assim por diante. Entra-se num domínio de grandes proporções, onde a regulação terá de ser genérica: de novo se solicita a intervenção do legislador. ”

Por sua vez, o Professor OLIVEIRA ASCENSÃO compreende que este fenômeno faz referência ao respeito “aos contratos de execução continuada ou diferida ebaseia-se essencialmente em três fatores: os termos contratuais sofrerem uma alteração anormal, em virtude de factos supervenientes, extraordinários e graves”277 . Esta alteração das circunstâncias afetaria o princípio do pacta sunt servanda e estaria relacionada à cláusula rebus sic stantibus, caracterizando-se por poder ser uma alteração tanto de fato, como de Direito - pode, por exemplo, ser uma alteração legislativa (alteração das condições de segurança nos estaleiros de obras públicas, modificações ao nível do regime fiscal , entre outros).; ainda, caracteriza-se como uma decorrência direta do princípio da boa-fé, na vertente

277 Cf. José Oliveira Ascensão, In Alteração das Circunstâncias e Justiça Contratual no Novo Código Civil, o artigo 437.º do Código Civil. Revista do Centro de Estudos Judiciários, Brasília, n. 25, p. 59-69, abr./jun. 2004.

da proteção da confiança legítima278; por fim, também é uma forma de proteção a quem confiou num determinado conjunto de circunstâncias – que formam a base do negócio279 – e fez um investimento, não sendo exigível que se mantenham as mesmas obrigações se a base do negócio se alterou.

Finalmente, num plano mais amplo, a cláusula rebus sic stantibus constitui uma garantia da própria atividade econômica, visto que nenhum operador aceitaria celebrar um contrato sabendo que seria obrigado a cumprilo na íntegra, sem alterações nem compensações, independentemente das alterações supervenientes. Este aspecto é particularmente relevante nos contratos públicos, uma vez que, nestes, a Administração precisa da colaboração dos particulares para perseguir o interesse público.

Assim, a alteração das circunstâncias pode determinar a modificação do contrato se restar verificada uma alteração anormal e imprevisível que cause prejuízos elevados, além da exigência do cumprimento das obrigações assumidas afetar gravemente o princípio da boa-fé e

278 Como refere MENEZES CORDEIRO. Contratos Públicos. Subsídios para a Dogmática Administrativa, com exemplo no Princípio do Equilíbrio Financeiro, in Cadernos O Direito, n.º 2, 2007. pág. 106, “a confiança não se limita à não ocorrência de graves prejuízos: ela antes assenta em todo um programa contratual, a desenrolar no tempo, e que irá proporcionar o lucro mobilizador em toda a operação”.

279 Este acaba por ser, segundo MENEZES CORDEIRO, op. cit., pág. 62, um conceito vazio, referindo-se os preceitos às “circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar”, expressão que é muito mais explicativa e clara. a alteração não estar coberta pelos riscos próprios do contrato. Deve considerar-se que a exigência do cumprimento das obrigações assumidas afeta gravemente os princípios da boa-fé quando ficar definitivamente prejudicada a equivalência das prestações, que é um pressuposto de qualquer contrato. HENRIQUE ANTUNES assevera que “a alteração das circunstâncias relevante tem de ser anormal. Na doutrina, distinguese a anormalidade da imprevisibilidade, acolhendo à resolução ou modificação do contrato alterações que, embora previsíveis, sejam excepcionais, anómalas. É o caso dos cortejos reais […] Mas pode não se justificar em outros casos, nos quais a boa fé obrigaria a outra parte a aceitar que o contrato ficasse dependente de determinada circunstância […] É imprevisível a verificação de um evento, ou do seu alcance, quando, embora pudesse ser representado, em abstrato, pelas partes, a prevenção dos seus efeitos não lhes é imputável, em razão das circunstâncias contemporâneas da vinculação negocial, explicando, assim, que o bom pai de família acordasse, nos mesmos termos, o contrato”280 .

O risco contratual recorta negativamente a cláusula rebus sic stantibus, o que se justifica, visto que, em princípio, decorre do pacta sunt servanda

280 No recente Estudo publicado nos “Cadernos de Direito Privado”, nº47 Julho/Setembro 2014, da autoria do Professor Doutor Henrique ANTUNES In A alteração das Circunstâncias no Direito Europeu dos Contratos, sobre a anormalidade ou excepcionalidade da alteração. p.13.

que cada parte suporta os agravamentos resultantes de ocorrências supervenientes que afetem a sua esfera jurídica. O risco pode definir-se como um evento incerto, mas previsível (senão subsumir-se-ia na figura da alteração das circunstâncias) e que pode ser positivo ou negativo. Tratase de uma figura que, existindo em todos os contratos, é mais relevante também nos contratos de longa duração, exatamente porque, sendo a relação contratual mais duradoura, há mais hipóteses de eventos incertos que podem afetar as condições contratuais inicialmente acordadas. Há alterações que não ultrapassam o risco contratual normal que as partes assumem, a álea do negócio jurídico. Nestes casos, não se verifica a cláusula rebus sic stantibus, pela simples razão que as superveniências estão cobertas pelos riscos contratuais, não tendo uma parte de arcar com os prejuízos que essa situação acarrete para a outra.

A boa-fé, extravasando até mesmo a teoria apresentada por LEHMANN281 , justifica outras situações em que não necessariamente estaria presente o condicionamento do negócio. É o que se verifica, por exemplo, em uma hipótese

281 De acordo com Antunes Varela, “pela fórmula de Lehmann, a alteração da base negocial só é invocável pela parte lesada quando a essencialidade das circunstâncias factuais que a integram se tornou, no momento da conclusão do contrato, conhecida ou cognoscível pela outra parte e quando esta, caso lhe houvesse sido proposto condicionar a eficácia do negócio à perduração de tais circunstâncias, tivesse presuntivamente aceitado tal proposta ou, segundo os princípios de boa fé, devesse têlo feito”. VARELA, João de Matos Antunes. Resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias”, in Colectânea de Jurisprudência, ano VII, tomo II, 1982. p.10. de turbação da equivalência a ponto de o contrato não mais manifestar elementos que perfilham uma relação de troca282 . Conforme ALMEIDA COSTA, com quem concordamos, a forma como a matéria relativa à alteração das circunstâncias foi tratada pela codificação portuguesa não se encaixa adequadamente, utilizando-se de cláusulas gerais, com recurso, ainda, ao princípio da boa-fé. Esse modelo legislativo transfere à jurisprudência e à doutrina a incumbência de delimitar contornos de aplicação da norma, da maneira mais razoável e de acordo com as vicissitudes da casuística283 .

4.2. JURISPRUDÊNCIA SOBRE A ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS EM CONTRATOS DE LOCAÇÃO RESIDENCIAIS E NÃO RESIDENCIAIS

No que tange os entendimentos jurisprudenciais, é interessante perceber que os princípios contratuais modernos também são invocados para a resolução de conflitos envolvendo locação não residencial. Os enunciados decorrem da necessidade de coibir eventuais abusos da parte economicamente superior e garantir a manutenção do interesse público, situações perfeitamente compatíveis com questões de locação não residencial. Neste ponto, afirma PAULO

282 Cf. PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria Geral do Direito Civil. 4ªed., por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra: Coimbra Editora, 2005. p.611.

283 Cf. COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das Obrigações. 10ª ed., Coimbra: Almedina, 2006. p. 334.

NALIN que o Código Civil de 2002 inovou metodologicamente ao incorporar o Direito de Empresas e, por consequência, os contratos empresariais284 - o que, ao nosso ver, gera maior aproximação desses negócios jurídicos aos princípios contratuais gerais. A partir destas considerações, destacam-se trechos do recente julgado do Superior Tribunal de Justiça, que, conquanto não tenha conhecido do Recurso Especial por questões processuais285, demonstra, em seus trechos, a análise de mérito que tem sido desenvolvida nos casos de locação não residencial.

Cuida-se de agravo apresentado por BLUEFIT ACADEMIAS DE GINÁSTICA E PARTICIPAÇÕES S.A contra a decisão que não admitiu seu recurso especial. O apelo nobre, fundamentado no artigo 105, inciso III, alínea “a”, da CF/88, visa reformar acórdão proferido pelo TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO, assim resumido: AGRAVO DE INSTRUMENTO -

284 NALIN, Paulo. A Força Obrigatória dos Contratos no Brasil: Uma Visão Contemporânea e Aplica à Luz da Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em vista dos Princípios Sociais dos Contratos, Revista Brasileira de Direito Civil, v.1, jul/set/2014, Instituto Brasileiro de Direito Civil, p. 115-116.

285 O art. 21-E, V, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, o qual fundamentou a decisão, preceitua: “Art. 21-E. São atribuições do Presidente antes da distribuição:” V - não conhecer de recurso inadmissível, prejudicado ou que não tiver impugnado especificamente todos os fundamentos da decisão recorrida;”. Interposição contra decisão que indeferiu o pedido de redução do valor locatício e liberação do imóvel dado em garantia no contrato. Impossibilidade de se conceder a tutela cautelar antecedente, relativamente à liberação do imóvel dado em garantia, diante da ausência de elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo. Redução do valor locatício.

Atividades comerciais interrompidas por força da quarentena decorrente

da pandemia de COVID-19, fundadas na Lei Federal nº 13.979/2020 e no Decreto Estadual nº 64.881/2020. Teoria da imprevisão. Inteligência do artigo 317, do Código Civil.

Evidente impacto econômico direto na atividade exercida pela locatária em decorrência da pandemia e de seus meios de enfrentamento da emergência de saúde pública. Determinação de suspensão do pagamento de metade do aluguel, a partir do mês de abril de 2020 (vencimento dia 10.05.2020), por quatro meses, ou enquanto perdurar o fechamento compulsório das

academias, sendo certo que, em caso de reabertura, o pagamento do locatício que vença no mês subsequente, será realizado de forma proporcional aos dias em que o estabelecimento for aberto, podendo, eventualmente, o Juízo de 1º grau estender a suspensão,

conforme as circunstâncias.

Suspensão apenas em relação aos valores locatícios, não abrangidos, portanto, quaisquer outros encargos, despesas ou tributos. A suspensão de 50% do aluguel não importa na inexigibilidade da

diferença, devendo o pagamento da diferença ser realizado de forma parcelada, em dez vezes, sem juros, a partir restabelecimento do Estado de normalidade (reabertura das academias), autorizada a revisão em caso de disciplina diversa pelo Legislativo (Projeto de Lei nº 936/2020 e Projeto de Lei nº 1179/2020). Decisão modificada. Agravo de instrumento parcialmente provido. (fls. 453-454) O recorrente, pela alínea “a” do permissivo constitucional, alega violação dos arts. 317, 421 e 422 do CC, no que concerne à revisão contratual (redução do valor locatício), diante dos princípios da função social e boa-fé contratuais, em sede de tutela de urgência, trazendo os seguintes argumentos: Isto porque, muito embora tenham os

contratantes a liberdade de contratar, referida liberdade, necessariamente, é limitada pela função da avença entabulada pelas partes, tanto no âmbito econômico, o que primordialmente se destaca, quanto relativamente a sua função social.

[...] Desta feita, na medida em que a função social é cláusula geral,

e, frise-se, de ordem pública, é

possível a intervenção do Estado, na figura do Poder Judiciário, a fim de afastar as causas que permeiam a inobservância de referido princípio. Evidentemente, que ao tratar de

função social do contrato há que se falar, necessariamente, no princípio

da boa-fé dos contratantes no âmbito da relação que por eles fora criada. [...] A pretensão da Recorrente, tem amparo, portanto, em cláusulas gerais perfeitamente aplicáveis ao contexto fático em que está inserido o contrato firmado com a Recorrida. Mas não somente.

Conforme expressamente mencionado pelo v. Acórdão recorrido, os contornos fáticos do caso trazido aos autos também se encaixam de forma perfeita ao quanto preconizado pela norma do artigo

317 do Código Civil, que estabelece: [...] Ou seja, à luz da melhor aplicação da Lei, não há justificativa que sustente a manutenção integral da obrigação de pagamento do aluguel de um imóvel que não vem sendo comercialmente utilizado em decorrência da pandemia de COVID-19, a qual que não tem origem, por óbvio, em qualquer ação ou omissão da Recorrente. E, tal qual como inaugura a sua fundamentação, o v. Acórdão recorrido, inicialmente, caminhou no sentido de prestigiar referidos comandos legais trazidos pelos

artigos 421, 422 e 317 do Código Civil. (fls. 475-478) É, no essencial, o relatório. Decido.(...) Ante o exposto, com base no art. 21-E, V, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, conheço do agravo para não conhecer do recurso especial.286

Adiante, após a concessão de uma série de liminares em primeira instância, relacionadas tanto à locação residencial quanto à comercial, tem-se visto um movimento de reforma das decisões nos órgãos colegiados, vide entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO REVISIONAL DE ALUGUEL - LOCAÇÃO RESIDENCIAL - REDUÇÃO TEMPORÁRIA DE ALUGUEL EM RAZÃO DAS RESTRIÇÕES ECONÔMICOFINANCEIRAS CAUSADAS PELA PANDEMIA MUNDIAL - TUTELA PROVISÓRIA DEFERIDA EM PARTE PARA SUSPENDER EM 50% O VALOR DO ALUGUEL ESTIPULADO EM CONTRATO, NO PERÍODO COMPREENDIDO ENTRE ABRIL A OUTUBRO DE 2020 - INSURGÊNCIA DO AUTOR PRETENSÃO DE REDUÇÃO DO ALUGUEL PARA R$ 200,00 ATÉ O PERÍODO POSTERIOR À VACINAÇÃO DA POPULAÇÃO CONTRA O COVID-19

286 STJ, AREsp n. 1801201, Rel. Min. Humberto Martins, j.17.02.2021. – DESCABIMENTO DECISÃO MANTIDA RECURSO DESPROVIDO. O contrato de locação residencial é relação jurídica de direito privado essencialmente consensual e as consequências econômicas causadas pelo coronavírus no presente caso dependem de maiores elementos de convicção para aplicação da teoria da imprevisão expressa nos artigos 478 a 480 do Código Civil.

Muito embora a tutela provisória tenha sido deferida em parte na origem, verifica-se que o contrato de locação é anterior à admissão do locatário no último emprego formal do qual foi demitido no início da pandemia e cuja remuneração alega que compunha a maior parte de sua renda mensal, o que fragiliza a alegação de desequilíbrio substancial

da relação locatícia. Ademais, não há demonstração concreta de que, em razão da crise sanitária, o aluguel do imóvel em discussão sofreu desvalorização na mesma proporção da redução pretendida pelo agravante. Inexiste também prova do perigo de dano, pois não há notícia sobre qualquer notificação de mora ou de despejo por parte do locador que, vale ressaltar, é

também pessoas física e certamente está passando pelos mesmos percalços econômico-financeiros.

Ausentes os requisitos da tutela provisória pleiteada, a decisão deve ser mantida por força do princípio

“non reformatio in pejus”.287 AGRAVO DE INSTRUMENTO AÇÃO REVISIONAL - LOCAÇÃO COMERCIAL - REDUÇÃO TEMPORÁRIA DE ALUGUEL E ENCARGOS CONTRATUAIS EM RAZÃO DAS RESTRIÇÕES ECONÔMICO-FINANCEIRAS CAUSADAS PELA PANDEMIA MUNDIAL - LIMINAR DEFERIDA NA ORIGEM PARA SUSPENDER AS OBRIGAÇÕES DA LOCATÁRIA INSURGÊNCIA DA LOCADORA - ENCARGOS REDUZIDOS PARA 50% APENAS NO PERÍODO DE FECHAMENTO DAS ATIVIDADES COMERCIAIS - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. O

contrato de locação comercial é relação jurídica de direito privado essencialmente consensual e as consequências econômicas causadas pelo coronavírus no presente caso dependem de maiores elementos de convicção para aplicação da teoria da imprevisão expressa nos artigos 478 a 480 do

Código Civil. Conquanto o governo tenha adotado medidas destinadas a suspender o comércio e obrigando o fechamento dos estabelecimentos, bem como a posterior restrição de horários de funcionamento, gerando prejuízos aos locatários, é certo que a suspensão total dos valores dos locativos e encargos também prejudica os locadores, que têm despesas com a manutenção do local, com funcionários, segurança, limpeza. Diante da necessidade de se repartir os efeitos econômicos nocivos decorrentes da pandemia, entendo prudente reduzir o aluguel e demais encargos contratuais em 50% apenas no período de fechamento das atividades comerciais determinado pelo Governo do Estado de São Paulo, devendo as demais questões envolvendo eventuais débitos e demais períodos serem discutidas no curso do processo. Recurso parcialmente provido. 288 CIVIL. LOCAÇÃO RESIDENCIAL. PRETENSÃO DE REVISÃO CONTRATUAL PARA REDUÇÃO DO ALUGUEL EM RAZÃO DA PANDEMIA DA COVID-19. INADMISSIBILIDADE. PERDA DE FONTE DE RENDA PELO LOCATÁRIO EM FUNÇÃO DAS RESTRIÇÕES POLÍTICO-ADMINISTRATIVAS EM DECORRÊNCIA DA PANDEMIA QUE NÃO ENSEJA A APLICAÇÃO DOS ARTS. 317 E 478 DO CÓDIGO CIVIL. AUSÊNCIA DE DESPROPORÇÃO ENTRE O VALOR DA PRESTAÇÃO DEVIDA PELO LOCATÁRIO E O DO MOMENTO DA SUA EXECUÇÃO. INOCORRÊNCIA DE QUALQUER VANTAGEM AO LOCADOR.

287 TJSP, 29ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento n. 2189324-77.2020.8.26.0000, Relator Francisco Carlos Inouye Shintate, j. 01/02/2021. 288 TJSP, 29ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento n. 2029091-72.2021.8.26.0000, Relator Francisco Carlos Inouye Shintate, j. 28/04/2021.

ONEROSIDADE EXCESSIVA INEXISTENTE. INAPLICÁVEL A TEORIA DA IMPREVISÃO. SENTENÇA MANTIDA. 1. A situação vivenciada pelas sociedades em todo o mundo, em razão da pandemia da Covid-19, não cuida de força maior ou caso fortuito, pois o fundamento do pedido do ora apelante no bojo da presente ação de revisão de contrato de aluguel não é a disseminação do novo Coronavírus, mas sim o conjunto de decisões político-administrativas de governantes, que, em maior ou menor extensão, adotaram medidas restritivas das atividades econômicas. Tanto é que, nas últimas pandemias enfrentadas pelo país, não foram adotadas medidas semelhantes de “quarentena”, de “lockdown”, de “isolamento horizontal”, dentre outras. 2. Não se verifica a aplicabilidade dos arts. 317, 478 e 479 à situação dos autos, em que o autor pleiteia a revisão do contrato de locação residencial por ter perdido sua fonte de renda em função da pandemia da Covid-19, uma vez que a perda da fonte de

renda não é evento extraordinário e imprevisível, e, ademais, não se verifica a existência de desproporção entre o valor da prestação devida pelo locatário e o do momento da sua execução, e muito menos se verifica a ocorrência de qualquer vantagem ao locador, o que afasta a existência de onerosidade excessiva ou a aplicabilidade da teoria da

imprevisão. 3. Recurso improvido.289 Estas decisões parecem demonstrar uma resistência dos tribunais quanto à aplicação da Teoria da Imprevisão nos eventos causados pela pandemia. Note-se que, como a excessiva onerosidade requer o enriquecimento sem causa de uma das partes em detrimento da outra (como explicado anteriormente), não restou deferida a revisão tal como pleiteada pelos inquilinos em situações em que o locador também se encontra em prejuízo com os fatos imprevisíveis supervenientes. Esta posição, por um lado, está em consonância com o ideal de cooperatividade, anteriormente mencionado. Por outro, a simples manutenção dos contratos como anteriormente acordados, sem qualquer tipo de ajuste das obrigações pactuadas, pode contribuir para o agravamento da situação econômica dos locatários. Em relação ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, também se observa uma análise cautelosa das circunstâncias para justificar a intervenção excepcional estatal:

Agravo de instrumento. Ação de revisão de aluguéis. Locação de imóvel comercial. Alegada onerosidade excessiva. Restrições impostas pelo poder público. Redução dos alugueres para 50% do valor contratado, por acordo

289 TJSP, 35ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível n. 1005033-24.2020.8.26.0625, Relator Artur Marques, j. 02.03.2021.

entre as partes, pelo período de 6 meses. Decisão agravada que fixou aluguéis provisórios de 80% do valor contratado. Pretensão de majoração do desconto para 50% enquanto durar a pandemia e restrições impostas pelo poder público. Impossibilidade. Ausência de prova acerca da duração das medidas de restrição sofridas, bem como do seu impacto no fluxo financeiro da agravante após a cessação dos descontos concedidos pelo locador. Necessidade de dilação probatória. Existência de saldo em conta corrente capaz de fazer frente aos pagamentos nos prazos pactuados. Negado provimento ao recurso.290

Agravos de instrumento. Julgamento conjunto. Ação de rescisão contratual c/c entrega das chaves e revisão de contrato de locação comercial em razão dos efeitos da pandemia da Covid-19. Restaurante que ocupa duas lojas em bairro da zona sul do Rio de Janeiro. Decisão que deferiu a tutela provisória de urgência pleiteada para reduzir o valor do aluguel bruto mensal em 50% a contar da data de 19/03/2020, data de fechamento do comércio, até a data de distribuição da ação, 03/07/2020, e autorizar a entrega das chaves da Loja A, objeto do contrato. É certo que a pandemia, como evento externo, irresistível e

290 TJRJ, Agravo de Instrumento n. 001359192.2021.8.19.0000, Rel. Des. Marcos Alcino de Azevedo Torres j. 30.4.2021. imprevisível, não deve ser tomada em abstrato para a partir daí irradiar seus efeitos para os contratos em geral, sem as considerações peculiares de cada situação concreta. O seu enquadramento como força maior depende da verificação da objetiva possibilidade de adimplemento da prestação. A adoção de medidas governamentais para evitar aglomerações impôs aos bares e restaurantes a autorização de funcionamento apenas regime de entrega em domicílio ou sistema “drive thru”. Tal situação se colocou de forma passageira, mas alterou, aparentemente, no período, a base objetiva do negócio surtindo efeitos para ambas as partes, a atrair, à primeira vista, o disposto nos arts. 317 e 421-A do Código Civil. É razoável, neste estágio processual, a redução em 50% do valor do aluguel bruto para repartir o prejuízo e equilibrar as partes contratantes, vez que só a instrução probatória possibilitará aferir o valor justo para o aluguel no período de restrição das atividades da locatária. É faculdade do locatário propor a ação consignatória com a finalidade de devolver o imóvel, representada pela entrega das chaves, sendo dever seu devolvê-lo no estado em que o recebeu, a teor do art. 23, III, da Lei nº 8.245/91. Possibilidade de o locador perquirir as perdas e danos e/ou multa rescisória em ação

própria. Restaurante que continua explorando o fundo de comércio do local, o que, aparentemente, neste caso concreto, afasta a alegada força maior que tornaria inexigível a multa. Aplicação da Súmula nº 59 do TJRJ. RECURSOS DESPROVIDOS.291

AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXAME DA INSURGÊNCIA CONTRA DECISÃO QUE, EM AÇÃO ORDINÁRIA COM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA DE URGÊNCIA REQUERIDA EM CARÁTER ANTECEDENTE, PROPOSTA PELA PARTE AGRAVANTE EM FACE DO AGRAVADO, NEGOU A TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA, CONSISTENTE NA DETERMINAÇÃO DA REDUÇÃO DE 90% (NOVENTA POR CENTO) SOBRE O PAGAMENTO DO ALUGUEL FIRMADO NO CONTRATO DE LOCAÇÃO, ATÉ QUE SE CESSEM OS PRINCIPAIS IMPACTOS ECONÔMICOS OCASIONADOS PELO COVID-19. ASSISTE RAZÃO AO AGRAVANTE. Da análise dos autos de origem, estão presentes os pressupostos que autorizam a medida antecipatória pleiteada, porquanto ficou demonstrada a verossimilhança das alegações autorais e o perigo da demora. É notório que a enfermidade

291 TJRJ, Agravo de Instrumento n. 004568445.2020.8.19.0000, Rel. Des. Maria Luiza de Freitas Carvalho, j. 27.1.2021. epidêmica que atinge o Município do Rio de Janeiro é de espectro mundial e impõe reflexos indesejados e mesmo imprevistos às relações sociais e, em especial, ao ambiente empresarial/econômico como um todo, cujos desfechos requerem especial atenção para que sejam minimizados os resultados de trágico cenário. A locação vista nestes autos é comercial, ou seja, está diretamente vinculada à atividade desempenhada no endereço do imóvel. Pois bem, por meio do Decreto Rio nº 47.282 de 21 de março de 2020, o Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro determinou a adoção de medidas para enfrentamento da pandemia do novo Corona vírus - COVID - 19, dentre as quais, a suspensão dos estabelecimentos que pratiquem o comércio de bens, o que é o caso da Agravante, a qual comercializa a revelação de fotos e venda de equipamentos de som e imagem. Do exame da questão posta, observase com facilidade que a paridade e o equilíbrio do contrato não se mostram mais presentes. Em outras palavras, ocorreu fato imprevisível e que não há como as partes controlarem. Tal cenário impõe reconhecer que, sem faturamento de um lado, não há a garantia de recebimento

do aluguel pela outra parte. Não

há interesse social, tampouco às partes contratantes, locador e locatário, em ver o estabelecimento comercial fechado e a extinção do contrato de locação submeter a loja a um período indeterminado sem qualquer atividade comercial de fomento econômico e de convívio comunitário ou até ficar exposta a longo período sem qualquer

aluguel a ser recebido. De acordo com levantamento da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), publicado pelo Jornal do Comércio, 75 mil estabelecimentos comerciais com vínculos empregatícios fecharam as portas no Brasil em 2020, primeiro ano da pandemia da Covid-19, ademais, as micro e pequenas empresas responderam por 98,8% dos pontos comerciais fechados. Por outro lado, em livre consulta à Rede Mundial de Computadores, vê-se que a Agravante/Locatária retornou ao empreendimento comercial e mantém em funcionamento as atividades desenvolvidas no imóvel locado. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO, para confirmar e deferir a

tutela antecipada recursal requerida, para fixar o aluguel do imóvel locado em 10% do valor que consta no

contrato, durante a pandemia e até um mês após a data de 02/07/2020, reabertura do comércio, ficando mantidos os demais encargos locatícios.292

Destoante das decisões acima elencadas, observa-se decisão que, em primeiro grau, buscou ajustar desequilíbrios econômico-financeiros pela alteração da base de cálculo do aluguel em caráter liminar. Essa decisão não foi alterada no julgamento do agravo interno:

“Cuida-se de agravo interno interposto com base no art. 1.021 do Código de Processo Civil, contra a r. decisão de fls. 34/35 que deferiu a tutela recursal de urgência, determinando que o 13º aluguel seja calculado com base na média dos locativos pagos durante o ano de 2020, Estabeleceu ainda a substituição do índice de correção monetária, alterando de IGP-M pelo IPCA. (...) NEGO PROVIMENTO ao agravo interno.”293

4.3. LEIS EDITADAS EM FACE DA PANDEMIA

Diante disso, nota-se que ambas as partes (locador e locatário) sofreram

292 TJRJ, Agravo de Instrumento n. 002566263.2020.8.19.0000, Min. Rel. José Acir Lessa Giordani, j. 22.4.2021.

293 TJSP, 31ª Câmara de Direito Privado, Agravo Interno Cível 2298701-80.2020.8.26.0000, Relatora Rosangela Telles, j. 09.03.2021.

com as medidas adotadas pelos Poderes Públicos no combate ao Covid-19, este pela redução na procura por imóveis resultante da diminuição do poder aquisitivo populacional, e aquele pelo fechamento ou restrição impostos à sua prática comercial. Isso pois o estado de calamidade pública forçou o governo federal e os governos estaduais e municipais a restringirem aglomerações em espaços públicos, causando impacto nas relações econômicas.294 Desse cenário surge a Lei nº 14.010/2020, que instituiu normas de caráter transitório e emergencial para a regulação de relações jurídicas de Direito Privado em virtude da pandemia do coronavírus. Assim, a referida lei foi editada no intuito de reequilibrar as relações impactadas pela alteração inicial da condição econômica das partes contratantes295, tal qual dispõe o princípio do equilíbrio econômico-financeiro, sendo perceptível a predominância da alteridade negocial e do valor da pessoa humana, perspectivas trazidas pelo Código Civil de 2002 e que hoje fundamentam o ordenamento jurídico.296 A Lei, em seu artigo 9º, estabelece: “Art. 9º Não se concederá liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações

294 https://www.politize.com.br/alugueis-e-covid-19/. Acessado em 02-05-21.

295 https://www.politize.com.br/alugueis-e-covid-19/. Acessado em 02-05-21.

296 NALIN, Paulo. A Força Obrigatória dos Contratos no Brasil: Uma Visão Contemporânea e Aplica à Luz da Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em vista dos Princípios Sociais dos Contratos, Revista Brasileira de Direito Civil, v.1, jul/set/2014, p. 113. de despejo, a que se refere o art. 59, § 1º, incisos I, II, V, VII, VIII e IX, da Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, até 30 de outubro de 2020” 297. Embora seu efeito esteja restrito até 30/10/2020, fato é que a medida buscou ao máximo correlacionar os princípios contratuais ao chamado mínimo existencial, garantido, nas palavras de ALDO ARANHA DE CASTRO e YNES DA SILVA FÉLIX298 preservar a integridade de cada indivíduo.

No que se refere às mudanças de circunstâncias necessárias para a alteração do título, ficou estabelecido pela Lei que as consequências imprevisíveis da pandemia da Covid-19 nas execuções dos contratos não terão efeitos jurídicos retroativos (art. 6º da lei) - ou seja, em período anterior à 20/03/2020. Além da delimitação temporal para a alegação de imprevisibilidade, o artigo 7º da Lei nº 14.010/2020 afirmou que, para fins de finalização ou revisão contratual, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou a substituição do padrão monetário não são considerados fatos imprevisíveis, e, sendo assim, à luz dos arts. 317, 478, 479 e 480, não podem ser invocados para a obtenção de vantagens frente ao credor. Estes institutos relacionam-se com a Teoria da Imprevisão (arts. 478 a 480 do

297 Lei nº 14.010, de 10 de junho de 2020. 298 CASTRO e FÉLIX, Aldo Aranha e Ynes da Silva. Justiça e equidade como elementos basilares para o desenvolvimento de meios adequados à concretização do acesso à justiça, Revista Cidadania e Acesso à Justiça, p. 12, Disponível em indexlaw.org/index.php/acessoajustica/ article/view/5999.

Código Civil de 2002), profundamente conectada com o princípio da boa-fé objetiva e aplicável quando se pretende a flexibilização do pacta sunt servanda, buscando reequilíbrio econômicofinanceiro e cumprimento da função social do contrato. Por essa teoria, como explica PABLO STOLZE GAGLIANO E RODOLFO PAMPLONA FILHO, temse o reconhecimento de que alguns acontecimentos novos e imprevisíveis que alteram as condições de execução do contrato não podem ser imputáveis às partes, justificando resolução ou revisão.299 Esses acontecimentos se configuram quando há excessiva onerosidade, caracterizada pelo enriquecimento sem causa de uma das partes em detrimento da outra.300 A Lei ressalva o aumento da inflação, a variação cambial e a desvalorização ou a substituição do padrão monetário, nesse sentido, pois estas situações não cumprem o requisito de excessiva onerosidade, posto que, se consideradas por si só, atingem a todos de forma uniforme.

Há, ainda, o Projeto de Lei 34/21, que, de forma complementar à Lei supracitada, visa estabelecer uma espécie de “ônus de renegociação” para locações não residenciais. Se aprovado, o Projeto obrigará os proprietários e inquilinos de imóveis não residenciais a realizar uma

299 GAGLIANO e FILHO, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona. Novo Curso de Direito Civil: Contratos: Teoria Geral, v.4, t.1, ed. 13, versão digital. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 363.

300 Ibid. p. 370. renegociação dos aluguéis atrasados antes de recorrer à Justiça. Para que essa obrigação se configure, o contrato deve ter sido assinado até 20 de março de 2020, quando reconheceu-se o estado de calamidade pública, e deve o inadimplemento decorrer das medidas de combate à pandemia301 - critérios que, assim como na Lei de 2020, relacionam-se com a Teoria da Imprevisão.

A renegociação ocorreria a partir da apresentação de uma proposta por parte do inquilino e a apreciação do locador no prazo de 15 dias. Diante o silêncio do locador após 15 dias ou o vencimento do prazo de 30 dias para a renegociação, ficaria reservado ao inquilino o direito de pagar aluguel provisório equivalente a 80% do valor original e, dentro de dois meses, instaurar a ação revisional. 302 Interessante perceber como o Projeto de Lei, para além de gerar a obrigação de renegociar, prevê também uma proteção extra ao inquilino, que, diante o silêncio do locador, adquire direito de redução no valor do aluguel. Protege-se, assim, a parte mais vulnerável da relação, medida que se conecta com os princípios modernos de boa-fé objetiva, equilíbrio econômico-

301 Agência Câmara de Notícias: Projeto define regras para negociação de aluguéis não residenciais atrasados durante pandemia - Notícias - Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br). Acessado em 08-05-2021.

302 Agência Câmara de Notícias: Projeto define regras para negociação de aluguéis não residenciais atrasados durante pandemia - Notícias - Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br). Acessado em 08-05-2021.

financeiro, função social do contrato e, em última instância, dignidade humana. O Projeto de Lei 34/21 está sendo analisado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.303

5. A CLÁUSULA REBUS SIC STANDIBUS – UMA RESSALVA

Todavia, concordamos que não é qualquer acréscimo de onerosidade, provocado por fatos supervenientes extraordinários, que implica a intervenção deste instituto. É incorreta uma leitura literal da “cláusula” rebus sic stantibus sob a qual sustente-se que qualquer modificação da base do negócio ou qualquer onerosidade daí derivada confere a faculdade de resolver ou modificar o negócio; afinal, parte-se da premissa que nenhum princípio jurídico é absoluto. Não o é mesmo um princípio com uma justificação material tão sólida como o princípio rebus sic stantibus. Terá pelo menos de sofrer a concorrência de outros princípios, igualmente indispensáveis para a ordem social e que exigem uma conciliação304 .

303 PL 34/2021 — Portal da Câmara dos Deputados - Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br). Acessado em 26-06-2021.

304 Cf. José de Oliveira Ascensão in: Alteração das Circunstâncias e Justiça Contratual no novo Código Civil. Que brilhantemente conclui: “A ordem jurídica traduz exuberantemente esta constrição: só admite intervenções fundadas na desproporção ou injustiça do conteúdo em casos em que o desequilíbrio seja manifesto. Embora as fórmulas sejam diversas, consoante os institutos em causa, o núcleo está claramente definido: – art. 157 (lesão): manifestamente excessiva – art. 187 (“abuso do direito”): excede manifestamente – art. 317 (prestação reduzida pela inflação): desproporção manifesta – art. 413 (cláusula OLIVEIRA ASCENSÃO305, neste tópico, faz ressalva interessante, apontando que, mesmo em uma eventual alteração desencadeada por uma guerra, atingindo as matérias-primas necessárias cotações exorbitantes, quem estivesse em mora não poderia prevalecer-se da alteração das circunstâncias; se mesmo neste drástico exemplo não caberia, sequer podemos imaginar no caso de uma crise econômica.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ordem jurídica brasileira, ao salvaguardar as conjunturas de quebra da base subjetiva, coloca a imprevisibilidade como elemento inafastável para a

penal): manifestamente excessiva, perante o art. 478, que é aquele que nos interessa? A lei fala em prestação “excessivamente onerosa, com extrema vantagem” para a outra parte. Diretamente, não se diz que a desproporção deve ser manifesta. A onerosidade excessiva não equivale necessariamente a onerosidade manifesta”. Retirado da p.24 do artigo Alteração das Circunstâncias e Justiça Contratual no Novo Código Civil. Fonte: http://www. fd.ulisboa.pt/wp-content/uploads/2014/12/AscensaoJose-Oliveira-ALTERACAO-DAS-CIRCUNSTANCIAS-EJUSTICA-CONTRATUAL-NO-NOVO-CODIGO-CIVIL.pdf. Acessado em 24/03/2021.

305 Cf. José de Oliveira Ascensão in: Alteração das Circunstâncias e Justiça Contratual no novo Código Civil. Que assevera “De outra maneira, a exclusão do efeito da alteração das circunstâncias só por haver mora seria injusta, por ser desproporcionada. Mas a questão complica-se se a relacionarmos com outra, em que não vamos entrar: a do possível caráter retroativo das consequências da alteração das circunstâncias. Apenas observamos que a prestação ou mora deve estar sujeita ao mesmo regime das prestações anteriormente satisfeitas e que talvez esse deva ser mais um aspecto que fica dependente da apreciação equitativa das circunstâncias contratuais”. Conferência proferida na “II Jornada de Direito Civil”, realizada pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, de 17 a 25 de novembro de 2003, nos auditórios do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, Superior Tribunal de Justiça e Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Anais do evento p. 66.

configuração do instituto e recorre à boa-fé como elemento auxiliador na configuração das situações objetivas que devem ser merecedoras de proteção. Diante do atual contexto em que se insere o Direito, importa repensar o tema da alteração de circunstâncias. A busca por mecanismos que privilegiem o revisionismo e a manutenção do contrato deve prevalecer sobre juízos que propugnem, preambularmente, pela resolução. Essa prática deve ser sempre concretizada, tanto no âmbito do direito positivo, como no campo das disposições contratuais. Em paralelo, não deveriam sobrelevar os juízos que se pautem no dogma da intangibilidade contratual. As avenças, hoje, carecem ser compreendidas como instrumentos dotados de caráter dinâmico, imprescindindo de serem adaptadas às novas vicissitudes que são originadas por esta fase. Trabalhando com o instituto da alteração das circunstâncias, despois de decorrer pelo capítulo dedicado aos princípios contratuais fundamentais, é surpreendente como estamos já longe do absolutismo do pacta sunt servanda, recolocando a ideia de “justo” no centro das atenções das cláusulas contratuais dos contratos duradouros. Isto ocorre pois, durante a execução, estes podem sofrer um dano a sua base, e, se isto acontecer, bem como se o devedor não estiver em mora, pode haver uma modificação ou resolução contratual para manter o poder auto vinculativo da vontade e da autonomia privada, tal como no momento de formalização inicial de um contrato. Isto, contudo, não abrangerá os riscos que podem estar previstos no contrato. O que se procura manter, em realidade, é a proporção de equilíbrio que as partes estabeleceram entre si, e isso deve ser determinando, inclusive, para preservar o que foi estipulado, acordado e executado entre contratantes e contraentes. Até mesmo onde há uma liberalidade ou desequilíbrio livre e conscientemente aceito, continua a ser essa proporção a base da vinculação entre as partes. Nesse cenário, se houver alteração das circunstâncias essenciais à preservação do negócio, será necessária deferência ao princípio tradicional rebus sic stantibus.

Havendo alteração das circunstâncias que afetaram a base negocial, deverá haver a recomposição do equilíbrio substancial que as partes pretenderam, não sendo cabível insistir em cláusulas que se modificaram com o tempo, durante a execução do contrato, e que não são mais aquelas do momento inicial da sua vontade.

Este perseguido equilíbrio consiste, portanto, em preservar a manifestação concreta da vontade, a autonomia consentida, durante a formalização contratual, e não impor o cumprimento quase cego e absoluto das partes ao contrato, que foi modificado pelas alterações de tempo e espaço e que comprometeram a sua estrutura. Nos casos em que este realinhamento se tornar-se impossível, fática ou legalmente,

ter-se-ão as partes que aceitar a resolução do contrato.

Note-se, contudo, que os tribunais ainda não traçaram um entendimento claro sobre a questão dos contratos de locação na pandemia, sendo perceptível um movimento pendular entre liminares deferidas em primeira instância e posteriores revogações, aplicações da Teoria da Imprevisão e seu afastamento, entre outros embates. Nesse sentido, a legislação específica sobre o assunto, que tem se desenvolvido em 2020 e 2021, pode auxiliar na fixação de teses mais concretas, fornecendo soluções jurídicas direcionadas especificamente ao cenário aqui analisado.

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