50 minute read

EM AMBIENTES VIRTUAIS

10

A LIBERDADE DE EXPRESSÃO VERSUS A LEI DE SEGURANÇA NACIONAL EM AMBIENTES VIRTUAIS

Rodrigo da Silveira Barcellos103 Gustavo Silva Torres104 Pietro Ferreira Bello105

RESUMO Atualmente, a Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170/1983) vem sendo reiteradamente utilizada a fim de penalizar certas condutas que estariam indo contra a segurança nacional e a ordem política e social. Ocorre que essa busca pela penalização pode levar a uma restrição à liberdade de expressão e, diante das novas tecnologias de informação dos ambientes virtuais, esta regulação ganha novos contornos, os quais ainda são matéria de ampla discussão. Com isso em vista, o presente artigo traz dois casos (Daniel Silveira e Felipe Neto) que expressam este embate entre a liberdade de expressão e a Lei de Segurança Nacional (LSN) e busca discuti-los a fim de entender se a garantia fundamental da livre manifestação ou a proteção penal dada pela LSN deve prevalecer em cada caso, tendo como base a Constituição Federal e a legislação infraconstitucional.

PALAVRAS-CHAVE Liberdade de Expressão, Lei de Segurança Nacional, Internet, Ambientes virtuais, Liberdade de Informação, Direitos de personalidade, Conflito.

103 Doutorando em Direito Civil pela Universidade de Coimbra – Portugal. Mestre em Direito da Sociedade da Informação no Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas; Especialista em Direito Civil pela Universidade de Coimbra. Professor Universitário. Assessor Jurídico do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

104 Discente do curso de Direito da Universidade de São Paulo. Aluno pesquisador da Escola de Formação Pública da Sociedade Brasileira de Direito Público.

105 Discente do curso de Direito da Universidade de São Paulo; estagiário do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

1. INTRODUÇÃO

Um dos direitos mais caros do ordenamento jurídico brasileiro é a liberdade de expressão, assegurada no artigo 5º, IX, e no artigo 220 da Carta de 1988. Não há como afirmar que um Estado é democrático sem que seus membros tenham a prerrogativa de se expressar livremente. No entanto, a realidade concreta, caracterizada pela complexidade das relações sociais, diversos direitos ao serem exercidos se chocam com outras faculdades protegidas por lei. Observa-se, portanto, que a liberdade de expressão dos cidadãos não é absoluta, ainda que tida como fundamental. No caso dela, uma via que limita este direito é a Lei 7.170/1983, a Lei de Segurança Nacional (LSN). Esta norma - que vem sendo amplamente utilizada - trata-se de um dispositivo penal que prevê crimes contra a segurança nacional, estipulando sanções àqueles que cometerem tais condutas tidas como lesivas à nação. Ocorre que esta lei apresenta resquícios ditatoriais que restringem a manifestação da sociedade civil na democracia instituída após 1988. Nesse sentido, diversos artigos da referida norma especificam tipos penais que já são previstos em demais legislações, por exemplo, o Código Penal, o que traz como corolário uma maior restrição de determinados direitos, ao invés da suposta maior segurança nacional. Diante desse conflito, uma questão central se apresenta: a atual Lei de Segurança Nacional se mostra necessária e compatível com a democracia? Para elucidar como se estabelece este embate entre a Lei de Segurança Nacional e a liberdade de expressão, foram analisados dois casos recentes que obtiveram notória repercussão pública: o caso do deputado federal Daniel Silveira e o do influenciador digital Felipe Neto. Ainda que sejam casos com teor distinto, ambos trazem à luz - cada um à sua maneira - este debate acerca dos limites da liberdade de expressão e sua importância para a democracia e, a partir deles, busca-se traçar respostas para as indagações que se estabelecem.

2. A LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Para melhor analisar os casos que motivaram a produção deste artigo, precisamos conceituar e estabelecer a diferença entre a liberdade de expressão, comunicação e informação, bem como a maneira pela qual essas três premissas, tão fundamentais para o desenvolvimento e evolução de um Estado Democrático de Direito, se manifestam na sociedade atual. Nas lições de Canotilho e Vital Moreira, “A liberdade de expressão implica o direito de expressar o pensamento, ou seja, ideias, opiniões, pontos de vista, juízos de valor, críticas, tomadas de posição sobre quaisquer assuntos, quaisquer que sejam as finalidades e os critérios de valoração, não pressupondo “sequer um dever de verdade perante os factos embora isso possa vir a ser relevante nos juízos de valoração em

caso de conflito com outros direitos ou fins constitucionalmente protegidos”106 . Devemos iniciar com a liberdade de expressão stricto sensu. A livre manifestação do pensamento é expressão fundamental da personalidade e é garantida constitucionalmente e legalmente na ordem jurídica brasileira. A manifestação pode ser dirigida a uma ou mais pessoas não presentes, mesmo que de forma sigilosa, por correspondência, através de carta, telegrama, telefone ou rádio. Tal liberdade é assegurada pelo artigo 5º, XII, da Constituição Federal:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.

Mesmo a palavra correspondência sendo assumida muitas vezes como

106 GOMES, J.J. Canotilho e Vital Moreira. Fundamentos da Constituição. Coimbra Editora, 1991. p. 572. sinônimo de carta, vários autores interpretam esse conceito de maneira mais abrangente, já que a técnica deu à humanidade outros meios de se corresponder como os demais. Entende-se que essas novas formas de comunicação também estão asseguradas pelo artigo acima transcrito.

A exceção fica por conta das comunicações telefônicas, já que podem sofrer restrição na sua inviolabilidade perante investigação ou instrução processual criminal. Tal restrição é defendida pela doutrina e adotada em alguns sistemas jurídicos, principalmente em casos como sequestro e narcotráfico, sendo que muitas vezes a “escuta” telefônica é o único meio de solução de tais crimes. Mesmo com isso em mente, a “escuta” só será permitida perante ordem judicial e nas hipóteses e formas previstas em lei específica, que deverá o juízo observar.

Mas a regra, portanto, é a inviolabilidade da comunicação. Inclusive o artigo 5º inciso LVI da Constituição proíbe a obtenção de provas por meios ilícitos:

LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.

Outros importantes dispositivos constitucionais que asseguram a liberdade de expressão e comunicação são os seguintes:

Art. 5º: (...) IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

A manifestação do pensamento é uma das principais de todas as liberdades humanas, já que a linguagem é expressão fundamental da humanidade. A linguagem diferencia os seres humanos de outros animais, sendo o meio pelo qual transmitimos e recebemos lições de civilização.

Outra forma de manifestação de pensamento é a palavra escrita destinada a pessoas indeterminadas, divulgadas através de livros, jornais, revistas ou outros tipos de publicação. Nesse sentido, assevera o jurista Manoel Gonçalves Ferreira Filhos, sobre censura:

Durante longos séculos, todas as publicações dependeram de autorização governamental, cientes os poderosos do tempo da força da palavra escrita, o meio de comunicação de massa ao tempo existente. Essa autorização só era dada após a censura da obra, que, conforme o tempo se fazia com rigor maior ou menor.

Por atingir talvez bem de perto os enciclopedistas e iluministas que inspiraram a Revolução de 1789, esta se preocupou em proscrever a censura. A Constituição brasileira (art. 5º, IX) veda a censura da palavra escrita. Declara independente de censura ou licença do Poder Público a ‘expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação’. Proíbem, todavia, o anonimato (não o pseudônimo).107

Ainda sobre a censura, assevera o especialista em liberdade de expressão, Edilsom Farias:

Convém enfatizar a imprescindibilidade da liberdade de expressão política para o funcionamento de um autêntico regime democrático. A ‘freedom of political speech’ é pré-requisito para a formação de uma opinião pública independente e pluralista ou para o estabelecimento de um debate público franco e vigoroso. Um regime político no qual os cidadãos estão impedidos de manifestarem publicamente as suas opiniões sobre os atos dos responsáveis pelo resguardo da coisa pública ou sobre o desempenho de instituições públicas não passa de um embuste ou arremedo de democracia.108

107 FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 33. Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2007. p. 301.

108 FARIAS, Edilsom. Liberdade de Expressão e Comunicação: Teoria e Proteção Constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 158.

Em nossa Constituição de 1988, portanto, é vedada a censura. A garantia da livre expressão em território brasileiro é reforçada, ainda, no capítulo V constitucional, chamado “Da comunicação social”. O artigo 220 reforça a proibição da censura em seu parágrafo 2º. Veja-se o artigo:

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. § 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV. § 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. (...)

Com relação à imprensa, deve-se prestar atenção ao artigo 222, do mesmo capítulo, da Constituição, que dispõe que é vedado ao estrangeiro ser dono, orientador ou responsável por empresa jornalística ou de radiodifusão. Só cabe a brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos a orientação ou a responsabilidade por esses tipos de empresas. Importante salientar em relação ao direito de imprensa, o fato de que em 2009 o Supremo Tribunal Federal, guardião de nossa Constituição, através do ministro relator Ayres Britto na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 130 (Distrito Federal), decidiu que a lei de imprensa não foi recepcionada pela Constituição de 1988. Tal lei foi promulgada no ano de 1967, ou seja, período que nosso país se encontrava em plena ditadura empresarial-militar, trazendo vários artigos considerados problemáticos e repressivos depois da redemocratização. Nesse sentido, em julgamento histórico, o Tribunal pode, assim, declarar a inconstitucionalidade da lei inteira, fazendo com que não seja mais aplicável. O principal argumento é o fato de que tal lei não seria compatível com a democracia prometida pela nossa atual Constituição Federal. Colaciona-se um trecho da ementa dessa decisão, para ilustrar como o Supremo Tribunal decidiu que seria tratado dali para frente os casos de relação de imprensa:

(...) 11. EFEITOS JURÍDICOS DA DECISÃO. Aplicam-se as normas da legislação comum, notadamente o Código Civil, o Código Penal, o Código de Processo Civil e o Código de Processo Penal às causas decorrentes das relações de imprensa. O direito de resposta, que se manifesta como ação de replicar ou de retificar matéria publicada é exercitável por parte daquele que se

vê ofendido em sua honra objetiva, ou então subjetiva, conforme estampado no inciso V do art. 5º da Constituição Federal. Norma, essa, “de eficácia plena e de aplicabilidade imediata”, conforme classificação de José Afonso da Silva. “Norma de pronta aplicação”, na linguagem de Celso Ribeiro Bastos e Carlos Ayres Britto, em obra doutrinária conjunta. 12. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO. Total procedência da ADPF, para o efeito de declarar como não recepcionado pela Constituição de 1988 todo o conjunto de dispositivos da Lei federal nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967.109

Nesse sentido, segundo o Supremo, a partir da data de publicação dessa decisão os juízes devem se basear em outras leis para julgar casos que envolvam a imprensa, como direito à imagem e à intimidade. As leis que devem ser consideradas são, por exemplo, os Códigos Penal, Civil e os de Processo Penal e Civil, além, é claro, da própria Constituição. O principal debate, que os tribunais ainda não conseguiram chegar a um consenso, seria sobre o direito de resposta. Segundo os ministros, no julgamento da ADPF nº 130, tal direito já é previsto na Constituição (como já citado anteriormente, tal direito está previsto no artigo 5º da Constituição Federal, em

109 Supremo Tribunal Federal, Relator Ministro Ayres Britto, Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 130 – DF, DJE 12 de maio de 2009. seu inciso V), não necessitando de uma lei ordinária para garanti-lo. Por fim, o que podemos interpretar de tal julgamento é que os ministros do Supremo Tribunal Federal se preocupam com a garantia, prevista em Constituição, de liberdade de expressão, não podendo uma lei retrógrada impedir o seu livre exercício, apesar, claramente, de este direito ser limitado por outras garantias também fundamentais como o direito à intimidade, à privacidade, à honra, à imagem etc. Com relação à legislação comum que passa a regular o direito de imprensa, segundo o julgado do Supremo Tribunal Federal, tem-se alguns exemplos de regulação. A Lei de Execução Penal traz em seu artigo 41, inciso VIII, o seguinte:

Art. 41 - Constituem direitos do preso: (...) VIII - proteção contra qualquer forma de sensacionalismo.

Fica disposto, portanto, que a pessoa acusada em processo penal deve ser privada apenas de sua liberdade, não perdendo todos os outros direitos civis. Deve, portanto, ser protegida de sensacionalismo da imprensa, que muitas vezes tenta se aproveitar do momento de vulnerabilidade pela qual a pessoa está passando quando está detida e produz notícias não autorizadas, exibindo a imagem do preso como se este não fosse mais um cidadão.

Nesse sentido, é importante interpretar tal inciso da Lei de Execução Penal conjuntamente com alguns incisivos do artigo 5º, que estabelece os direitos e garantias fundamentais da pessoa humana. Como por exemplo, o direito à intimidade, que está estabelecido no inciso:

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

Outro exemplo de disposição em legislação ordinária ocorre no Código Civil, no artigo 20:

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

Tal artigo trata de uma das limitações à liberdade de expressão, já que trata da invasão injusta na intimidade de uma pessoa. Além disso, ainda trata sobre a utilização comercial da imagem ou palavra de alguém, que, claro, sempre deve ter autorizado a exibição de sua imagem, sob pena de indenização por danos materiais e morais, já que a exploração econômica de uma pessoa obtendo lucro com isso só pode ser feito caso a pessoa deseje isso. Passa-se, então, para a liberdade de comunicação. Segundo o constitucionalista José Afonso da Silva, a liberdade de comunicação consiste em:

(...) um conjunto de direitos, formas, processos e veículos, que possibilitam a coordenação desembaraçada da criação, expressão e difusão do pensamento e da informação. É o que se extrai dos incisos IV, V, IX, XII e XIV do art. 5º combinados com os arts. 220 a 224 da Constituição. Compreende ela as formas de criação, expressão e manifestação do pensamento e de informação, e a organização dos meios de comunicação, esta sujeita a regime jurídico especial (...).110

Nesse sentido, para esse jurista, o direito de comunicação é um direito amplo, que engloba tanto a liberdade de expressão quanto a liberdade de informação, conceitos tratados no presente capítulo. A comunicação, portanto, pode ser feita, observado o disposto na Constituição, sem sofrer qualquer restrição não importando qual veículo de informação que possa ser utilizado; nenhuma lei poderá conter dispositivo

110 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo 31. Edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2008. p. 243.

que constitua embaraço à liberdade de informação do jornalismo – a exemplo da decisão do Supremo Tribunal Federal tornando sem efeito a lei de imprensa por conter dispositivo antidemocráticos –; existe a vedação de censura a qualquer forma de expressão com natureza artística, ideológica ou política; a publicação de qualquer veículo informativo não depende de autorização; os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens dependem apenas de autorização, concessão ou permissão do Poder Executivo federal; por fim, o meios de comunicação não podem ser objeto de monopólio.

Sobre os limites da liberdade de comunicação, Edilsom Farias, especialista em liberdade de comunicação, assevera que:

Cumpre evocar que a liberdade genérica de expressão do pensamento, embora não concebida ao critério da verdade, deve ser exercida com continência para obter a proteção constitucional (ver supra, cap. 2 da 1.ª Parte, item 2.5). 17 Vale dizer, o âmbito normativo do citado inciso IV do art. 5.º não cobre a emissão do pensamento que revele animus para difamar, injuriar ou caluniar, ou contenha expressões que violem outros direitos personalíssimos (intimidade, vida privada e imagem).111

111 FARIAS, Edilsom. Liberdade de Expressão e Comunicação: Teoria e Proteção Constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 155. Ou seja, sempre importante lembrar que o direito à livre comunicação nunca pode ser pretexto para violação de direitos de outras pessoas. Não é permitido caluniar, macular a honra, violar a intimidade ou a imagem de pessoas, mesmo que públicas, etc., sob pena de uma sanção de natureza patrimonial ou reparatória, como uma indenização ou uma reparação pelo direito de resposta, regulamentado pela Lei 13.188/2015. Enfim, não se pode abusar desse direito.

Sobre a liberdade de informação, necessário se fazer a distinção entre liberdade de informação e direito à informação. O direito à informação, é um direito coletivo ao acesso à informação. Diferentemente da liberdade de informação que para o jurista José Afonso da Silva, seria o conjunto de modalidades de difusão para o público, sob forma, por exemplo, de notícias ou ideias. A liberdade de informação, nesse sentido, compreenderia a liberdade de informar e a liberdade de ser informado. A primeira liberdade coincide com a liberdade de manifestação das ideias e pensamentos através da palavra, por qualquer meio de difusão, não só escrito. Enquanto a segunda liberdade englobaria o interesse da coletividade de estar informada, podendo assim, exercer livremente suas liberdades públicas.

Nas palavras do próprio autor:

Nesse sentido, a liberdade de informação compreende a procura, o acesso, o recebimento e a difusão de informações ou ideias, por qualquer meio, e sem dependência de censura, respondendo cada qual pelos abusos que cometer. O acesso de todos à informação é um direito individual consignado na Constituição, que também resguarda o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional (art. 5º, XIV). Aqui se ressalva o direito do jornalista e do comunicador social de não declinar a fonte onde obteve a informação divulgada. Em tal situação, eles ou o meio de comunicação utilizado respondem pelos abusos e prejuízos ao bom nome, à reputação e à imagem do ofendido (art. 5º, X).112

Ou seja, a posteriori, aquele que causou danos através de meios de difusão irá indenizar as pessoas prejudicadas. Isso garante que não haja censura, de fato, ou seja, intervir estatal anterior à manifestação por meio de difusão de informação como jornais ou programas de televisão.

Nesse sentido, pode-se analisar a liberdade de informação jornalística, que é o desdobramento mais importante do direito de informação, principalmente modernamente com as novas formas de

112 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 31. Edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2008. p. 248. disseminação de conteúdo, como páginas na internet tanto de notícia como de entretenimento.

A ordem jurídica brasileira confere ao jornalismo regime especial, para que possa cumprir sua função, garantindo sua atuação, mas, não menos importante, coibindo os abusos.

A Constituição, em seu artigo 220, §º, não se resume, mas trata da liberdade de imprensa, pois está ligada apenas à publicação de veículo impresso de comunicação. Sabe-se que hoje a imprensa não é constituída apenas de veículos impressos, e sim dos mais diversos tipos, como radiodifusão e internet.

A liberdade de informação não é apenas da liberdade do jornalista. A liberdade deste é reflexa, no sentido de que esta só existe e é justificada na medida em que o direito dos cidadãos à informação correta e imparcial também deve ser assegurada. Cada cidadão tem o direito de ser informado e ter acesso às fontes da informação, assumindo, dessa maneira, que o jornalista e o dono da empresa de jornalismo possuem o dever de informá-los corretamente.

Sobre a liberdade/dever do jornalista, assevera o constitucionalista José Afonso da Silva:

Reconhe-se-lhes o direito de informar ao público os acontecimentos e ideias, mas sobre ele incide o

dever de informar à coletividade de tais acontecimentos e ideias, objetivamente, sem alterar-lhes a verdade ou esvarziar-lhes o sentido original, do contrário, se terá não informação, mas desinformação. Os jornalistas e empresas jornalísticas reclamam mais seu direito do que cumprem seus deveres.113

Tal advertência se justifica tendo em conta que o jornalismo é importante instrumento de formação de opinião pública, assumindo, portanto, importante função social que não pode ser exercida irresponsavelmente por profissionais que tragam as notícias de maneira sensacionalista e até mesmo mentirosa, omissa, de maneira comprometedora etc. Mas para o jornalismo o constitucionalista José Afonso da Silva não é só críticas. Tal jurista também admite que o jornalismo cumpre importantíssimo papel social, de grande relevância, constituindo uma defesa contra o excesso de poder do Estado, por exemplo, já que tem a prerrogativa de noticiar aos cidadãos o que se passa na altas instâncias do poder governamental. É o jornalista que informa ao cidadão sobre decisões governamentais importantes que farão parte de suas vidas. E é exatamente por exercer função social tão importante que não se pode

113 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 31. Edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2008. p. 247. deixar a imprensa tendo uma liberdade absoluta, sem que haja punição pelos seus excessos e condicionamento de sua liberdade, limitando, por exemplo, a questão do anonimato. É vedado o anonimato. Em matéria jornalística não identificada, o diretor veículo que divulgou pode ser responsabilizado caso o jornalista tenha cometido excessos e precise indenizar alguém. Samanta Ribeiro Meyer-Pflug define liberdade de expressão como sendo a exteriorização do pensamento, ideias, opinião, convicções, bem como de sensações e sentimentos em suas mais variadas formas, quais sejam, as atividades intelectuais, artísticas, científicas e de comunicação.114 Continua a mesma autora, afirmando que no direito de cada indivíduo pensar e abraçar as ideias que lhe aprouver sem sofrer qualquer restrição ou retaliação por parte do Estado. O homem é livre para pensar e manifestar seus pensamentos, e a liberdade de informação consiste no direito que o indivíduo possui de ter acesso a notícias e dados sem quaisquer restrições por parte do poder público ou da sociedade.115

A dignidade só é devidamente eficiente quando há a consideração do “outro”, e a comunicação de massa é ou pode vir a ser veículo de corrosão continua desta dignidade. Ser digno,

114 MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo: RT, 2009. p. 27.

115 Idem. p. 42.

ter vida com dignidade, é respeitar-se a si mesmo, respeitar o outro e se fazer respeitar. A comunicação atual e seus fenômenos como a mídia, impressa ou eletrônica e ainda na atualidade, mídia de convergência, surgiram com o uso aperfeiçoado da tecnologia, mas sua necessidade de comunicação algo inerente a ele, que diz respeito a essa sua natureza social.

Para finalizar, a liberdade de comunicação envolve também o conceito de meios de comunicação, já que cada meio terá um regime jurídico específico. Como por exemplo, os livros, jornais e outros periódicos.

3. PONDERAÇÃO DE CONFLITOS ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS

A liberdade de expressão e os direitos da personalidade podem estar em rota de colisão, é propenso à difusão de ofensas, principalmente na internet, e a Lei nº 12.965/2.014 lista como fundamentos e como princípios da internet a liberdade de expressão e os direitos da personalidade. Veja, neste sentido, que o caput do artigo 2º da lei dispõe que a disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão. No inciso II do mesmo artigo, consta também como fundamento o desenvolvimento da personalidade. O artigo 3º do diploma, de modo similar, dispõe que a garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento (inciso I), a proteção da privacidade (inciso II) e a proteção dos dados pessoais (inciso III) são princípios da disciplina do uso da internet.

Com efeito, tanto a liberdade de expressão como direitos da personalidade foram dispostos como fundamento e princípio do Marco Civil da Internet, ou seja, nos termos da teoria de Robert Alexy, como mandamento de otimização que ordena que algo seja feito na maior medida possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas do caso concreto116 . E para disciplinar eventual conflito entre esses dois princípios, materializado em atos ilícitos que violem a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, a nova lei trouxe um sistema de responsabilidades. Tal sistema foi minuciado numa série de regras, prescritas a partir do artigo 7º da lei117, delineando

116 SILVA, Virgilio Afonso. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. Revista LatinoAmericana de Estudos Constitucionais. Vol. 1. 2003. p. 607-630.

117 Art. 7º O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos: I - inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; II - inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei; III - inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial; IV - não suspensão da conexão à internet, salvo por débito diretamente decorrente de sua utilização; V - manutenção da qualidade contratada da conexão à internet; VI - informações claras e completas constantes dos contratos de prestação de serviços, com detalhamento sobre o regime de proteção aos registros de conexão e aos registros de acesso a aplicações de internet, bem como

de forma mais concreta os limites da liberdade de expressão, preenchendo lacunas anteriormente encontradas no ordenamento jurídico. Apesar disso, o texto legal nada dispõe a respeito da responsabilidade do ofensor, sendo a matéria disciplinada pelas regras gerais de responsabilidade

sobre práticas de gerenciamento da rede que possam afetar sua qualidade; VII - não fornecimento a terceiros de seus dados pessoais, inclusive registros de conexão, e de acesso a aplicações de internet, salvo mediante consentimento livre, expresso e informado ou nas hipóteses previstas em lei; VIII - informações claras e completas sobre coleta, uso, armazenamento, tratamento e proteção de seus dados pessoais, que somente poderão ser utilizados para finalidades que: a) justifiquem sua coleta; b) não sejam vedadas pela legislação; e c) estejam especificadas nos contratos de prestação de serviços ou em termos de uso de aplicações de internet; IX - consentimento expresso sobre coleta, uso, armazenamento e tratamento de dados pessoais, que deverá ocorrer de forma destacada das demais cláusulas contratuais; X - exclusão definitiva dos dados pessoais que tiver fornecido a determinada aplicação de internet, a seu requerimento, ao término da relação entre as partes, ressalvadas as hipóteses de guarda obrigatória de registros previstas nesta Lei; XI - publicidade e clareza de eventuais políticas de uso dos provedores de conexão à internet e de aplicações de internet; XII - acessibilidade, consideradas as características físico-motoras, perceptivas, sensoriais, intelectuais e mentais do usuário, nos termos da lei; e XIII - aplicação das normas de proteção e defesa do consumidor nas relações de consumo realizadas na internet. Art. 8º A garantia do direito à privacidade e à liberdade de expressão nas comunicações é condição para o pleno exercício do direito de acesso à internet. Parágrafo único. São nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que violem o disposto no caput, tais como aquelas que: I - impliquem ofensa à inviolabilidade e ao sigilo das comunicações privadas, pela internet; ou II - em contrato de adesão, não ofereçam como alternativa ao contratante a adoção do foro brasileiro para solução de controvérsias decorrentes de serviços prestados no Brasil. civil dispostas no Código Civil e pelas normas incriminadoras do Código Penal.

Interessante notar que o caput do artigo 19 da citada lei apresenta uma justificativa à necessidade de prévia ordem judicial para a exclusão de conteúdo ofensor gerado por terceiro. O texto da lei diz que tal disposição tem “o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura”. Portanto, o Marco Civil privilegiou a liberdade de expressão no ambiente cibernético e delegou ao Judiciário a análise de existência ou não de atos violadores da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem. Como bem observam André Zonaro Giacchetta e Pamela Gabrielle Meneguetti:

Fica clara, nesse ponto, a opção do Marco Civil da Internet pela garantia da livre manifestação do pensamento e da expressão, que a Constituição Federal assegura em termos amplos. Evita-se, com isso, que o provedor de serviço de internet seja levado a, uma vez comunicado extrajudicialmente sobre determinado conteúdo gerado por usuário, avaliar sua licitude ou ilicitude, exercendo prerrogativa do Poder Judiciário que, frequentemente, apresenta caráter subjetivo. Evidentemente, o Marco Civil da Internet, ao assim prever, não deixou

o direito à intimidade ou à vida privada em segundo plano, mas, antes, a fim de preservar o equilíbrio entre garantias constitucionais, relegou ao Poder Judiciário a apreciação, no caso concreto, da valoração e prevalência dos direitos constitucionalmente assegurados. 118

4. CASO DANIEL SILVEIRA

Ganhou notoriedade na mídia e em discussões jurídicas o polêmico caso do Deputado Federal Daniel Silveira, que teve sua prisão determinada após divulgar um vídeo nas redes sociais defendendo o AI-5 e atacando diversos ministros do Supremo Tribunal Federal, com destaque para as ofensas proferidas contra o Ministro Edson Fachin.

Em decisão de ofício119, em inquérito aberto sem requerimento da Polícia Federal ou do Ministério Público Federal (a apuração de fato que configure crime previsto pela Lei 7.170/83 é competência da Polícia Federal, como aponta o caput do artigo 31120), o Ministro Alexandre de

118 Idem, p. 383.

119 Decisão disponível para leitura em: https://static. poder360.com.br/2021/02/decisao-STF-prisaoDaniel-Silveira.pdf.

120 Art. 31 - Para apuração de fato que configure crime previsto nesta Lei, instaurar-se-á inquérito policial, pela Polícia Federal: I - de ofício; II - mediante requisição do Ministério Público; III - mediante requisição de autoridade militar responsável Moraes determinou a ordem de prisão em flagrante delito do deputado, por crime inafiançável, que foi referendada pelo plenário do STF no dia seguinte à prisão, por unanimidade dos membros da Suprema Corte.

A decisão determinou que a apuração de fato que configure crime previsto pela Lei 7.170/83 é competência da Polícia Federal, como aponta o caput do artigo

31121

A Câmara dos Deputados, conforme determinação constitucional, votou para decidir se Daniel Silveira continuaria ou não preso, resolvendo pela manutenção de sua restrição de liberdade, com 364 votos a favor e 130 contra.

Muitos pontos da decisão proferida pelo Ministro Alexandre de Moraes vêm sendo objeto de acaloradas discussões. Dentre elas, pode-se citar a que gira em torno da caracterização (ou ausência dela)

pela segurança interna; IV - mediante requisição do Ministro da Justiça. Parágrafo único - Poderá a União delegar, mediante convênio, a Estado, ao Distrito Federal ou a Território, atribuições para a realização do inquérito referido neste artigo.

121 Art. 31 - Para apuração de fato que configure crime previsto nesta Lei, instaurar-se-á inquérito policial, pela Polícia Federal: I - de ofício; II - mediante requisição do Ministério Público; III - mediante requisição de autoridade militar responsável pela segurança interna; IV - mediante requisição do Ministro da Justiça. Parágrafo único - Poderá a União delegar, mediante convênio, a Estado, ao Distrito Federal ou a Território, atribuições para a realização do inquérito referido neste artigo.

da prisão em flagrante, justificada pelo Ministro Relator como decorrente da perpetuação dos delitos cometidos pelo deputado, tendo em vista a permanência do vídeo publicado a todos os usuários da rede mundial de computadores, com visualização de dezenas de milhares de pessoas. Ainda, há extensa discussão acerca da imunidade parlamentar do deputado (que, conforme determina o art. 52, §2°, da Constituição Federal, não poderia ter sua prisão decretada, “salvo em flagrante de crime inafiançável”), ou mesmo sobre a ausência de requerimento por parte da Polícia Federal ou do Ministério Público para instauração de inquérito (que envolve também o debate sobre a inegável seletividade política dessas instituições em suas investigações). São questionamentos perfeitamente cabíveis e coerentes, cujo debate deve impreterivelmente ocorrer na comunidade jurídica. Contudo, pouco agregariam à discussão dos temas que o presente artigo visa abordar. Para tal finalidade, à parte dos tópicos supracitados, cabe destaque à base legal utilizada pelo Ministro Alexandre de Moraes para decretar a prisão do deputado: a Lei de n° 7.170, de 1983, conhecida como Lei de Segurança Nacional.

Trata-se de lei criada durante a vigência da ditadura empresarial-militar brasileira, que perdurou de 1964 a 1985. Datada de 1983 (e não de 1973, conforme erroneamente informado na decisão do Ministro Relator), em pleno governo de João Figueiredo, é definidora dos crimes contra a segurança nacional e a ordem econômica e social, bem como contra os chefes dos poderes executivo, legislativo e judiciário, e contra o Estado de Direito em si. Ocorre que, como definido pelo próprio Ministro Ricardo Lewandowski em participação em transmissão do Grupo Prerrogativas em homenagem aos seus quinze anos de atuação no STF, a Lei de Segurança Nacional é um “fóssil normativo”122, e tem sido tratada por diversos juristas como um “entulho autoritário”123 .

De fato, a Lei de Segurança Nacional foi estabelecida com a perspectiva de exercício por um tribunal militar com a intenção de autuar e condenar indivíduos de maneira autoritária, visando o controle dos cidadãos em um regime antidemocrático. E, recentemente, o governo atual tem aumentado bruscamente a utilização dessa lei, recorrendo a ela visando justamente a opressão de seus adversários políticos, cerceando sua liberdade de expressão.

122 Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ politica/ultimas-noticias/2021/03/20/lei-deseguranca-nacional-e-um-fossil-normativo-dizministro-lewandowski.htm. Acesso em: 11 de maio de 2021.

123 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/ quentes/343783/entulho-autoritario--dizem-advogadossobre-lei-de-seguranca-nacional. Acesso em: 11 de maio de 2021.

A Lei de Segurança Nacional possui base na Doutrina de Segurança Nacional (DSN), cujas principais influências são as ideias de um grupo de militares que obtiveram destaque nas Forças Armadas, vindo a formar a Escola Superior de Guerra (ESG), na década de 1940. Com fundamento no conceito de guerra total, a DSN parte do pressuposto da existência de uma guerra entre todos os setores da sociedade124 .

Visando a defesa contra quem esses militares caracterizavam como inimigos externos, instituiu-se a lógica de defesa contra supostos inimigos internos, contra os quais se deveria praticar a censura a fim de punir o dissenso de qualquer um que se opusesse aos ideais que consideravam essenciais para o desenvolvimento e segurança do país, que, por sua vez, deveriam ser a última razão do Estado Nacional. Estava instituída, portanto, a lógica do inimigo, segundo a qual a perseguição e o silenciamento de opositores seria imprescindível à proteção do regime instituído. Inevitável a conclusão de qual tal lógica carrega fortes traços de incompatibilidade com o atual regime democrático e os respectivos direitos e liberdades instituídos pela Constituição de 1988.

124 TIBOLA, A. A Escola Superior de Guerra e a Doutrina de Segurança Nacional (1949-1966). Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Passo Fundo. Passo Fundo, 2007. Para decidir em prol da prisão do deputado, o Ministro Alexandre de Moraes utilizou como base legislativa a Lei de Segurança Nacional. Mais especificamente, imputou ao deputado a prática dos delitos previstos em seus artigos 17, 18, 22 e 23, que definem como crime contra a segurança nacional as seguintes práticas, respectivamente: “tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito”; “tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos estados”; “fazer, em público, propaganda de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social”; e “incitar à subversão da ordem política ou social”. É evidente que, neste caso, as declarações do deputado Daniel Silveira são extremamente ultrajosas, sendo lamentável que tenham sido proferidas por uma figura que ocupa tão importante cargo do poder legislativo. É preciso, contudo, entender precisamente em que medida elas excedem a liberdade de expressão constitucionalmente protegida.

Pelo teor de suas falas125, torna-se inequívoco que o deputado em muito excedeu a sua faculdade de criticar a atuação dos ministros da Corte Federal,

125 A transcrição das falas do deputado está disponível para consulta em: https://www.poder360.com.br/justica/ leia-a-transcricao-do-que-disse-daniel-silveira-e-o-quelevou-o-stf-a-prende-lo/.

tendo realizado ataques pessoais e de baixo calão a esses, traduzindo-se em pura manifestação de ódio e desacato às suas autoridades.

Ora, o chamado discurso de ódio não pode ser abarcado pela proteção constitucional à liberdade de expressão126 . Quando o discurso deixa de expor a opinião de um indivíduo contrária à de outro e passa a constituir ação legalmente vedada, deve passar a ser qualificado como crime. A sua criminalização não seria, portanto, um desacato à liberdade de expressão constitucionalmente garantida, mas sim uma confirmação do Estado Democrático de Direito frente a ataques que visam incitar o caos, o pânico e a violência. A ilicitude no comportamento de Daniel Silveira, contudo, vai muito além: o deputado não apenas ofendeu, caluniou e injuriou os ministros da Suprema Corte, mas também praticou incitação ao crime, delito previsto no artigo 286, do Código Penal127. Para tal análise, cabe analogia do presente caso com o do ex-presidente estadunidense Donald Trump, que teve seu impeachment aprovado pela Câmara dos Representantes após incitar a invasão ao Capitólio que ocorreu em 6 de janeiro deste ano, que culminou na morte de seis pessoas.

126 MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo: RT, 2009.

127 Art. 286 - Incitar, publicamente, a prática de crime: Pena - detenção, de três a seis meses, ou multa. Assim como no caso de Trump, as manifestações do deputado Daniel Silveira produzem real implicação de motivar seus simpatizantes a protestarem contra os ministros do Supremo Tribunal Federal da forma como ele declarou que gostaria de fazer:

“O que acontece, Fachin, é que todo mundo está cansado dessa sua cara de ***** da **** que tu tem… Essa cara de vagabundo… Várias e várias vezes já te imaginei levando uma surra, quantas vezes eu imaginei você e todos os integrantes dessa Corte … Quantas vezes eu imaginei você na rua levando uma surra... Que que você vai falar? Que eu to fomentando a violência? Não... Eu só imaginei... Ainda que eu premeditasse, não seria crime, você sabe que não seria crime... Você é um jurista pífio, mas sabe que esse mínimo é previsível.... Então qualquer cidadão que conjecturar uma surra bem dada com um gato morto até ele miar, de preferência após cada refeição, não é crime.”

Embora o parlamentar não demande diretamente que seus seguidores o façam, é límpido que suas declarações possuem a capacidade de causar tais efeitos, ainda mais em um contexto político no qual tornaram-se frequentes manifestações inconstitucionais clamando pelo fechamento da Corte Federal e do Congresso, que costumam reunir justamente indivíduos vinculados à ala

política do atual Presidente da República, à qual Daniel Silveira abertamente pertence. É manifesto, destarte, que a limitação da liberdade de expressão torna-se imperiosa no caso em tela, posto que, em ponderação de conflitos entre direitos fundamentais, esta é ínfima em comparação com o atentado à democracia e ao Estado Democrático de Direito e suas instituições republicanas que o deputado promove não apenas em suas declarações, mas também em sua atuação política, que é objeto de investigação em inquérito policial no STF, a pedido da ProcuradoriaGeral da República, por promover associações definidas pelo Ministro Alexandre de Moraes em sua decisão previamente abordada como detentoras do “intuito de modificar o regime vigente e o Estado de Direito, através de estruturas e financiamentos destinados à mobilização e incitação da população à subversão da ordem política e social, bem como criando animosidades entre as Forças Armadas e as instituições”.

5. CASO FELIPE NETO

Nesta mesma seara, apresenta-se o caso do influenciador digital e youtuber Felipe Neto. Após publicação na rede social Twitter, no dia 04/03/2021, em que chama o Presidente da República de “genocida” pela condução da pandemia de covid-19, Felipe Neto foi intimado pela Polícia Civil do Rio de Janeiro para prestar depoimento. Segundo a denúncia, solicitada pelo vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ), filho do Presidente da República, o youtuber teria violado o artigo 26 da LSN128, que trata de calúnia e difamação contra o Presidente da República e o artigo 138 do Código Penal129, que tipifica a calúnia.

A investigação contra Felipe Neto foi suspensa pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, após habeas corpus com pedido de liminar. A decisão determinou que, como já abordado, a apuração de fato que configure crime previsto pela Lei 7.170/83 é competência da Polícia Federal, como aponta o caput do artigo 31. Ademais, a requisição do vereador Carlos Bolsonaro não poderia ser acatada, já que o mesmo artigo 31, incisos I a IV, lista as hipóteses para a instauração do inquérito policial, quais sejam de ofício; mediante requisição do

128 Art. 26 - Caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação. Pena: reclusão, de 1 a 4 anos. Parágrafo único - Na mesma pena incorre quem, conhecendo o caráter ilícito da imputação, a propala ou divulga.

129 Art. 138 - Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa. § 1º - Na mesma pena incorre quem, sabendo falsa a imputação, a propala ou divulga. § 2º - É punível a calúnia contra os mortos.

Ministério Público; mediante requisição de autoridade militar responsável pela segurança interna; mediante requisição do Ministro da Justiça. Destarte, o juízo deferiu a liminar até julgamento definitivo do habeas corpus.

Ainda que a investigação tenha sido suspensa, entende-se que houve uma clara e manifesta tentativa de obstaculizar a liberdade de expressão do influenciador digital, o que, em última análise, esfria o livre debate de ideias na sociedade como um todo. Para entender melhor esse esfriamento, pode ser utilizada a experiência americana acerca da restrição da livre manifestação de ideias.

Por mais que a realidade brasileira se distinga da estadunidense, na medida em que a primeira emenda da Constituição Americana130 é muito mais protetiva à liberdade de expressão, a fundamentação teórica que baseia esta proteção mostrase útil para entender o caso de Felipe Neto. Uma das bases dessa proteção ao livre discurso é a defesa contra o chamado chilling effect, o qual seria consequência que a intimidação à liberdade de manifestação geraria.

O chilling effect se manifestaria

130 Artigo 1º - O Congresso não fará lei relativa ao estabelecimento de religião ou proibindo o livre exercício desta, ou restringindo a liberdade de palavra ou de imprensa, ou o direito do povo de reunir-se pacificamente e dirigir petições ao governo para a reparação de seus agravos. quando um indivíduo, ao saber que pode ser preso pelas palavras que disser, por diversas vezes, deixará de se manifestar, abdicando seu direito, já que teria medo de uma eventual punição131. Este fenômeno seria replicado não só por um indivíduo, mas na sociedade como um todo, com isso, o debate público e o exercício da crítica – tão caros em uma democracia - ficam comprometidos. Essa abdicação é chave para entender como, ao buscar-se à responsabilização penal de Felipe Neto, gera-se um dano que potencialmente inibe mais pessoas de se expressarem e se manifestarem.

Adentrando ao caso, é importante o entendimento do uso do termo genocida. Mesmo que não seja o cerne da questão que se levanta por meio deste artigo, genocídio apresenta diferentes acepções. Ainda que haja uma acepção adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro, baseada no Estatuto de Roma132, o vocábulo possui

131 MACEDO Jr, Ronaldo Porto. “Liberdade de expressão: que lições podemos aprender com a experiência americana”.

132 O artigo 6º do tratado citado aduz: Crime de Genocídio Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por “genocídio”, qualquer um dos atos que a seguir se enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal: a) Homicídio de membros do grupo; b) Ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; c) Sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial; d) Imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; e) Transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo.

raízes históricas que extrapolam os limites do Direito:

No significado atual, o termo foi usado pela primeira vez em 1944 por R. Lemkin para indicar a destruição em massa de um grupo étnico, assim como todo projeto sistemático que tenha por objetivo eliminar um aspecto fundamental da cultura de um povo. Assim definido, o Genocídio é tão antigo quanto a história humana, mas somente após a Segunda Guerra Mundial a comunidade internacional, estarrecida pelos enormes crimes cometidos pela política racista do nazismo, sentiu necessidade de fixar normas de direito internacional para coibir tal delito. 133

Portanto, antes de um tipo penal que prevê penas a quem vier a cometêlo, o genocídio é um ato, ou melhor, um conjunto reiterado de atos. Desse modo, chamar alguém de genocida seria uma crítica, portanto, enquadra-se dentro do escopo estabelecido por Canotilho e Vital Moreira, para definir a liberdade de expressão: “ideias, opiniões, pontos de vista, juízos de valor, criticas, tomadas de posição sobre quaisquer assuntos, quaisquer que sejam as finalidades e os critérios de valoração (...)”

133 BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política I. Tradução de CARMEN C, Varriale. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1 ed., 1998. p. 543. Nesse sentido, chamar a autoridade em questão de genocida seria crítica, seria antes um juízo de valor de um cidadão contra a maneira pela qual foi feita a condução da pandemia global de covid-19 no Brasil pelo Presidente da República do que uma busca por incriminação de quem teria cometido o genocídio. Tal constatação é fundamental para que se entenda como a conduta de Felipe Neto está protegida sob o escudo da liberdade de expressão. À luz da ponderação entre estes direitos fundamentais, entende-se que Felipe Neto, ao receber a intimação da notícia-crime impetrada contra o influenciador, teria sofrido lesão à liberdade de expressão. Como já apontado, o Marco Civil da Internet tem como princípio basilar a liberdade de expressão e, além disso, em seu artigo 19, caput, indica o intuito de assegurá-la e impedir a censura. E, como também indicado alhures, a responsabilidade por dano decorrente de conteúdo na internet foi reservada ao diploma civil e às normas penais. É nesse último campo que se insere a Lei de Segurança Nacional.

O bem jurídico tutelado pelo artigo 26, caput, da LSN seria a honra do Presidente da República. Nos delitos de calúnia e difamação, o objeto jurídico seria a honra objetiva, isto é, o direito à reputação ou imagem da pessoa diante

de terceiros, como afirma NUCCI.134 Este direito à honra é protegido constitucionalmente pelo artigo 5º, X, da Carta Maior135, o que leva ao conflito entre a honra do Presidente da República e à liberdade de expressão de Felipe Neto. O raciocínio a ser utilizado para definição de qual desses dois direitos fundamentais deve prevalecer deve ser feito com base na teoria de Alexy, anteriormente mencionada.

Para o autor, em caso de colisão entre normas, como aqui ocorreu, devese fazer um sopesamento entre as regras e estipular uma precedência condicional com base no caso concreto: “Duas normas levam, se isoladamente consideradas, a resultados contraditórios entre si. Nenhuma delas é inválida, nenhuma tem precedência absoluta sobre a outra. O que vale depende da forma corno será decidida a precedência entre elas sob a luz do caso concreto”. 136

Um instrumento para definir qual(is) direito(s) deve(m) prevalecer é o teste de

134 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 10. ed. rev., atual. e ampl, 2014. p. 553-555.

135 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

136 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: 2ª ed., 2011. p 101. proporcionalidade. Este instrumento é composto por três etapas: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. 137

Ao se questionar a adequação, busca-se entender se a medida adotada para proteger um direito é adequada. No caso em questão, a medida adotada seria aplicar uma pena para Felipe Neto em busca de proteger a honra objetiva do Presidente. Ainda que se possa questionar o uso do aparato penal para o caso, visto que este deve ser aplicado como ultima ratio, é possível afirmar que a medida seria adequada na medida em que a LSN segue vigente em nosso ordenamento jurídico. Já a análise da necessidade questiona se não haveria outros meios de conseguir o mesmo fim almejado. Caso haja outra medida que também seja adequada, no mínimo, tão eficiente quanto a pensada no primeiro momento e que restrinja menos o direito fundamental, esta medida alternativa deve ser aplicada. No caso em questão, o uso do instrumento penal da LSN não se mostra necessário, sendo que a honra objetiva já é protegida pelo Código Penal e também por meios não-penais.

Com isso, já seria suficiente para afastar a demanda de aplicação da LSN no caso em concreto. Nesse sentido,

137 SILVA, Virgílio Afonso da. Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2021, p. 120.

medidas de responsabilidade civil138 poderiam ser aplicadas caso se concluísse que Felipe Neto, de fato, teria cometido um dano ao Presidente, ainda que existam muitas controvérsias a respeito. Porém, a terceira e última etapa do teste de proporcionalidade nos permite entender melhor o que está em cena nessa colisão de direitos fundamentais.

A proporcionalidade em sentido estrito configura-se como um sopesamento entre os direitos envolvidos. Caso uma medida que busque restringir um direito fundamental seja configurada como adequada e necessária, deve-se questionar se a restrição é justificável. No caso em tela, a publicação de uma crítica ao Presidente da República levaria à uma restrição não somente da liberdade de expressão, mas a liberdade em sentido amplo, já que a pena de reclusão seria aplicada. Destarte, mostra-se nítida a desproporcionalidade entre o possível dano gerado advindo da publicação em face da restrição à liberdade de Felipe Neto e do esfriamento do debate público – o chilling effect. Portanto, a compreensão que se chega é de que a potencial lesão à honra do Presidente da República em face da manifestação de pensamento por parte de

138 Código Civil: Art. 186 - Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Felipe Neto é diminuta se comparada com a gravidade que o ferimento à liberdade de expressão gera. Tal constatação se dá em razão da posição institucional que aquele que possivelmente teria a honra objetiva ferida ocupa: Presidente da República. Seus atos são públicos e seu poder deriva da vontade popular que o elegeu. Deste modo, afastar a liberdade de expressão com base em uma crítica a atos públicos feita por integrante pertencente ao povo que o escolheu soa como uma medida autoritária e incompatível com a democracia.

A utilização do termo genocida para além da busca de potenciais efeitos criminais, como prevê o Estatuto de Roma - os quais não são o cerne da presente análise - estimula reflexões, fomenta debates, gera questionamentos e desenvolve a democracia. No caso em tela, com as condições postas, deve-se adotar a garantia da liberdade de expressão como prevalecido em relação ao direito fundamental à honra. Caso contrário, abre-se precedente a uma perpetuação de ameaças à ordem democrática.

5. REFLEXÕES ACERCA DA LEI DE SEGURANÇA NACIONAL

Como anteriormente dito, a Lei de Segurança Nacional foi promulgada ainda durante a vigência da ditadura

empresarial-militar e buscou a proteção de certos bens jurídicos em prol da segurança nacional. Ocorre que a Lei de Segurança Nacional tem sido amplamente questionada pelo Poder Legislativo e pelo Poder Judiciário, com Projetos de Lei que buscam revogá-la e com ações que pleiteiam a inconstitucionalidade da referida norma.139

As controvérsias com relação a este dispositivo aqui expostas levam ao entendimento de que para os casos de Daniel Silveira e de Felipe Neto poderiam ser utilizados outros aparatos legais para a proteção dos bens jurídicos protegidos. A questão acerca do uso da liberdade de expressão no caso de Daniel Silveira, conforme abordado, poderia ter sido tratada no âmbito jurídico previsto pelo Código Penal, sem necessidade de enquadramento na obsoleta Lei de Segurança Nacional. Isso porque as condutas por ele praticadas são devidamente tipificadas como delitos (calúnia, injúria, difamação e, principalmente, incitação ao crime). Analogamente, no caso de Felipe Neto, há um debate acerca do uso da liberdade de expressão, sendo ela vista como garantia constitucional ou como justificativa para a realização de condutas

139 Para ilustrar este cenário de questionamento da Lei 7.170/1983, podem ser citados os Projetos de Lei 2.462/1991, 6.764/2002 e as Ações de Descumprimento de Preceito Fundamental 797 (autoria do PTB), 799 (autoria do PSB), 815 (autoria do PSDB) e 816 (autoria do PT, PSOL e PCdoB). criminosas (difamação e calúnia). Ocorre que esses crimes já estão previstos no Código Penal, nos artigos 138 e 139, o que leva à seguinte reflexão: a existência de uma tipificação exclusiva da calúnia e da difamação realizadas contra os governantes se mostra necessária? Qual o seu objetivo? Entende-se que não há necessidade de tipificação exclusiva para estes delitos cometidos contra tais governantes por uma razão democrática. A Lei de Segurança Nacional pode ser utilizada, como foi no caso de Felipe Neto, como instrumento para perseguição de adversários políticos, de modo a lançar mão da lógica de inimigo derivada da doutrina de segurança nacional. Tal lógica de inimigo interno mostra-se incompatível com a ordem democrática vigente no Brasil, de modo a limitar e cercear a liberdade de expressão de possíveis críticos que buscam somente exercer seu direito cívico de se manifestar contra algumas autoridades públicas. A imunidade conferida a essas autoridades soa desproporcional na medida em que, além de terem o dever de prestar contas e se sujeitarem ao escrutínio público devido a natureza de seus cargos, parecem se colocarem acima dos demais cidadãos, blindando-os de críticas e ferindo a liberdade de expressão. Logo, observa-se a incoerência de se manter em vigência tais dispositivos, haja vista também que, caso de fato se configure a existência de difamação e

calúnia contra as autoridades que o artigo 26 da Lei 7.170/83 protege, podem ser utilizados os dispositivos do Código Penal para proteção delas.

6. CONCLUSÃO

Ainda que os acontecimentos envolvendo o deputado federal Daniel Silveira e o youtuber Felipe Neto possam merecer discussão jurídica na seara penal, seu julgamento tendo como base a Lei de Segurança Nacional abre margem para a aplicação autoritária e arbitrária de alguns de seus dispositivos.

Tendo sido elaborado com base na DSN (Doutrina de Segurança Nacional), a Lei 7.170/1983 envolve axiomaticamente a ideologia de perseguição ao inimigo que vigorava entre os idealizadores do regime ditatorial militar que vigorou no país de 1964 a 1985, sendo, portanto, sintomático que a utilização de tal diploma legislativo volte a ser realizada em meio a um período no qual as principais instituições da democracia brasileira encontram-se fragilizadas e sob constante ataque do governo vigente e de seus apoiadores. A baixa densidade normativa que muitos de seus dispositivos manifestam possibilita que sejam feitas interpretações que se chocam com os princípios, direitos e liberdades previstos pela Constituição Federal. Em decorrência da extrema plausibilidade de que tal diploma jurídico seja aproveitado para fins arbitrários e seletivos, impõe-se a necessidade de que seu texto seja atualizado, a fim de condizer com a nova realidade democrática que foi instaurada desde 1988 pela promulgação da atual Carta Magna que vigora no país, ou mesmo revogado, tendo em vista que, como demonstrado ao longo do presente artigo, o ordenamento jurídico nacional detém de suficiente legislação para abarcar casos que se insiram no âmbito de eventual transposição do direito constitucional à liberdade de expressão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: 2ª ed., 2011.

BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política I. Tradução de CARMEN C, Varriale. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1 ed., 1998.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constituicao.htm. Acesso em: 03 de maio de 2021.

BRASIL. Decreto Nº 4.388, de 25 de setembro de 2002. Promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Disponível em: http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4388.htm. Acesso em: 03 de maio de 2021.

BRASIL. Decreto-lei No 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/ del2848compilado.htm. Acesso em: 10 de maio de 2021.

BRASIL. Lei N. 7.170, de 14 de dezembro de 1983. Define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social, estabelece seu processo e julgamento e dá outras providências. Disponível em: http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7170.htm. Acesso em: 3 de maio de 2021.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/ l10406compilada.htm. Acesso em: 10 de maio de 2021.

BRASIL. Marco Civil da Internet. Lei 12.964/14. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/ l12965.htm. Acesso em: 03 de maio de 2021.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Relator Ministro Alexandre de Moraes, Inquérito nº 4781 - DF, DJE 14 de março de 2019.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Relator Ministro Ayres Britto, Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 130 – DF, DJE 12 de maio de 2009.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro - Comarca da Capital (Cartório da 38ª Vara Criminal). Habeas Corpus Criminal nº 0061214-52.2021.8.19.0001. Paciente: Felipe Neto Rodrigues Vieira. Juíza Gisele Guida de Faria. Rio de Janeiro, 18 de março de 2021.

“ENTULHO autoritário”, dizem advogados sobre lei de segurança nacional. Migalhas, São Paulo, 18 de abril de 2021. Disponível em: https://www. migalhas.com.br/quentes/343783/entulho-autoritario--dizem-advogadossobre-lei-de-seguranca-nacional. Acesso em: 2 de maio de 2021.

FARIAS, Edilsom. Liberdade de Expressão e Comunicação: Teoria e Proteção Constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.

FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 33. Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2007.

GOMES, J.J. Canotilho e Vital Moreira. Fundamentos da Constituição. Coimbra Editora, 1991.

LEI de Segurança Nacional é um “fóssil normativo”, diz ministro Lewandowski. - UOL, Brasília, 20 de março de 2021. Disponível em: https://noticias.uol.com. br/politica/ultimas-noticias/2021/03/20/lei-de-seguranca-nacional-e-umfossil-normativo-diz-ministro-lewandowski.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em: 02 de maio de 2021.

LEIA a transcrição do que disse Daniel Silveira e o que levou o STF a prendêlo. Poder 360, Brasil, 21 de fev. 2021. Disponível em: https://www.poder360. com.br/justica/leia-a-transcricao-do-que-disse-daniel-silveira-e-o-quelevou-o-stf-a-prende-lo/. Acesso em: 09 de maio de 2021.

MACEDO Jr, Ronaldo Porto. “Liberdade de expressão: que lições podemos aprender com a experiência americana”.

MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo: RT, 2009.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 10. ed. rev., atual. e ampl., 2014.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 31. Edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2008.

SILVA, Virgílio Afonso da. Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2021.

SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais. Vol. 1. 2003.

TIBOLA, A. A Escola Superior de Guerra e a Doutrina de Segurança Nacional (1949-1966). Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Passo Fundo. Passo Fundo, 2007.

This article is from: