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VII. A derrocada da cosmologia aristotdica e o segundo process0
tara com sua primeira derrota. Bem perce- bera o embaixador da Toscana em Roma, Pedro Guicciardini, que, quando soube que Galileu iria a Roma para se defender, es- creveu uma carta ao ministro dos MCdici, Curcio Picchena, na qual observava que Galileu iludia-se ao pretender levar idCias novas para a capital da Contra-reforma. Entre outras coisas, escrevia o embaixador: "Sei bem que alguns frades de Siio Domin- gos, que tCm grande participaqio no Santo Oficio, e outros nutrem ma vontade para com ele. E este nio C um lugar para se vir discutir sobre a lua, nem, no sCculo que corre, querer defender ou trazer doutrinas novas".
VII. derrocada da cosmoIogia aristotAica
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e o segundo processo
Mma sb fisica basta para o WMM~O celeste e o terrestre
Em polCmica com o jesuita Horacio Grassi a prop6sito da natureza dos come- tas, Galileu publicou o Saggiatore em 1623, obra A qual voltaremos quando tratarmos da questgo do mitodo, ja que ela contCm precisamente importantissimas doutrinas filos6fico-metodol6gicas. Entretanto, ainda em 1623, mais precisamente em 6 de agos- to, foi eleito papa, com o nome de Urbano VIII, o cardeal Maffeo Barberini, amigo e sincero admirador de Galileu, e Galileu ti- Vera provas da estima de Barberini quando do processo de 1616.
Assim, retemperado por esse fato, Ga- lileu retomou sua batalha cultural. Para co- meqar, respondeu A pretensa refutaqio do sistema copernicano feita por Francisco Ingoli, de Ravena, secretario da Congrega- $50 de Propaganda Fide. E voltou ao pro- blema das mark (Dialogo sobre o fluxo e o refluxo do mar), persuadido de que tinha em mios uma prova arrasadora, de ordem fisica, do movimento da terra e, portanto, do copernicanismo. Com efeito, Galileu apresentava as marks como resultado do mo- vimento de rotaqio diario da terra e do mo- vimento de revoluqio anual. Sua interpre- taqio estava errada: o problema das marks seria resolvido mais tarde por Newton com a teoria da gravitaqio.
Em todo caso, Galileu discute sobre esses assuntos na quarta jornada do seu Dialogo de Galileu Galilei Linceu, no qual, nos congressos de quatro jornadas, se dis- corre sobre os dois maximos sistemas do mundo, ptolomaico e copernicano, de 1632. No preiimbulo da obra, Galileu escreve que considera a teoria de CopCrnico como "pura hipotese matematica" e acrescenta que o trabalho pretende mostrar aos protestantes e a todos os outros que a condenaqio do copernicanismo estabelecida pela Igreja em 1616 fora uma coisa sCria, fundada em motivos derivados da piedade, da religiio, do reconhecimento da onipotincia divina e da consciCncia do quanto C dCbil o conheci- mento humano. Obviamente, o truque era facilmente desmascaravel. 0s interlocutores do Dialogo sio tris: Simplicio, Salviati e Sagredo. Simplicio re- presenta o filosofo aristotklico, defensor do saber constituido da tradiqio; Salviati k o cientista copernicano, cauteloso mas reso- luto, paciente e tenaz; Sagredo representa o publico, aberto para a novidade, mas que quer conhecer as razdes de ambas as partes. Historicamente, Filipe Salviati (1 583-1 614) era um nobre florentino, amigo de Galileu; Giovanfrancesco Sagredo (1 571-1 620) era um nobre veneziano muito ligado a Galileu; Simplicio talvez recorde um comentador de Aristoteles que viveu no stculo IV. 0 dido- go foi escrito propositadamente em lingua- gem popular, j6 que "o publico que Galileu quer convencer 6 o das cortes, das novas ca- madas intelectuais, da burguesia e do clero".
E sio quatro as jornadas "nos congres- sos" em que se desenvolve o Dialogo. A pri- meira jornada dedica-se a demonstrar a fal- ta de fundamento da distin@o aristotklica
entre o mundo celeste, que seria incor- ruptivel, e o mundo terrestre dos elementos que, ao contririo, seria mutivel e alterivel. Nfo existe tal distinqio: isso C atestado pe- 10s sentidos, potencializados pela luneta. E como tambCm para Aristoteles aquilo que dizem os sentidos esta no fundamento do discurso, entio, como Salviati recorda a Sim- plicio, "estaras filosofando mais aristote- licamente dizendo que o cCu C alteravel por- que assim mostram os sentidos do que dizendo que o cCu C inalteravel porque as- sim discursou Aristoteles". As montanhas sobre a lua, as manchas lunares e o movi- mento da terra atestam que existe uma so fisica e nio duas fisicas, uma valida para o mundo celeste e outra para o terrestre. E na "perfeigfo" dos movimentos circulares que Aristoteles fundamenta a "perfeiqio" dos corpos celestes; depois, com base nesta ulti- ma, afirma a veracidade da primeira. Na realidade, o movimento circular pertence niio so aos corpos celestes, mas tambtm terra. Conseqiientemente, na segunda jor- nada, o Dialogo volta-se para a critica dos argumentos observados e tipicos da obser- vaqio comum que eram propostos contra a teoria copernicana. Entretanto, antes de passar para a segunda jornada (e depois a terceira, ambas dedicadas a analise e a so- lugio das dificuldades contra o movimento diario e anual da terra), Galileu realiza in- teressantes consideraq6es sobre a linguagem, que ele vi! como "o selo de todas as admira- veis invengdes humanas". E escreve: "Mas, acima de todas as estupendas invenq6es, que mente eminente foi aquela de quem imagi- nou encontrar os modos de comunicar seus rec6nditos pensamentos a qualquer outra pessoa, mesmo que distante por longuissimo interval0 de tempo e,de lugar? falar com aqueles que estio na India ou com aqueles que ainda nio nasceram nem nascerio se- nfo daqui a mil ou dez mil anos? e com tal facilidade? com as vhrias junqoes de vinte sinaizinhos sobre um papel! "
0 principio de relatividade gal ileano
Portanto, existem argumentos antigos e atuais contra o movimento da terra. Eis alguns: os graves caem perpendicularmen- te, coisa que nio deveria se verificar se a terra se movesse; as coisas que "se mandm longamente no ar", como o caso das nu- vens, deveriam nos aparecer em movimen- to veloz se a terra verdadeiramente se mo- vesse; ao se disparar dois projiteis iguais de um mesmo canhio, um em diregfo ao oriente e outro em direqfo ao ocidente, en- tf o o alcance deste ultimo deveria ser muito maior que o do outro, ja que, enquanto o projttil se desloca em diregio ao ocidente, o canhio tambCm deveria se deslocar, seguin- do o movimento da terra. em direciio ao oriente. Mas, como isso nio ocorre, entfo a terra nfo esta em movimento, diz Sim- plicio. Ademais, continua argumentando Sirnplicio, se, em um navio parado, faz-se cair uma pedra de cima do mastro, ela cai perpendicularmente na base do proprio mastro; mas, sendo em um navio em movi- mento, entfo a pedra que se deixa cair do alto do mastro cai longe da base do mas- tro, desviando-se em diregio A popa. En- tiio, o mesmo deveria ocorrer com uma pedra que se deixa cair de cima de uma tor- re, supondo-se que a terra esteja em movi- mento. Mas isso nio se d6; portanto, a terra esti parada.
Pois bem, nesse ponto, partindo da experihcia que Sirnplicio afirma verificar- se sobre o navio, Galileu, pela boca de Sal- viati e Sagredo, estabelece o principio da relatividade dos movimentos. destruindo com isso de um s6 golpe todas aquelas "ex- perihcias" do senso comum que eram ar- gumentadas contra a teoria do movimento da terra. Em suma, por meio de suas teo- rias, consegue varrer todo o conjunto de "fa- tos" contrarios a Copkrnico e favoraveis a Ptolomeu. substituindo-os Dor outros "fa- tos", outras "experihcias" e outras "evi- dhcias". Com efeito, quem quer que faqa a experihcia da pedra sobre o navio, vera que ela "mostra todo o contrario daquilo que C escrito".
Diz Salviati: "Encerra-te com algum amigo no maior c6modo que exista sob a coberta de algum grande navio. Cuida de que haja moscas, borboletas e semelhantes animaizinhos voadores. Que exista tambCm um grande vaso com Bgua, com peixinhos dentro. Suspenda-se tambCm no alto algu- ma jarra, que gota a gota v6 derramando 6gua em outro vaso, de boca estreita, que esteja colocado embaixo. Estando o navio parado, observa com atenqfo como os ani- maizinhos voadores, com igual velocidade,
v5o em direq5o a todas as partes do c6mo- do; veras os peixes nadando indiferentemen- te em todas as diregoes; as gotas que caem entrario todas no vaso que esta embaixo; ao jogar alguma coisa para teu amigo, n5o de- veriis lanqa-la com mais forqa para esta par- te do que para aquela, quando as distiincias forem iguais; e, ao saltar, como se diz, com os pCs juntos, percorreras espaqos iguais em qualquer direg5o. Oserva que teris diligen- temente todas essas coisas, embora niio haja nenhuma duvida de que assim devem ocor- rer quando o navio esti parado. Entiio, faz com que a nave se mova com qualquer ve- locidade que queiras (desde que o movimen- to seja uniforme e n50 flutuante daqui para ali) e veris que n5o reconheceras nem mini- ma mudanqa em todos os efeitos citados, nem por qualquer dos efeitos poderas per- ceber se o navio esta andando ou parado: continuark percorrendo os mesmos espa- qos que antes no chiio; por mais que a nave se mova velozmente, nem por isso dar6s saltos maiores em direqiio h popa do que h proa, muito embora, no tempo em que es- tiveres no ar, o ch5o esteja se deslocando em direqiio h parte contraria h do teu sal- to; ao jogar alguma coisa para teu compa- nheiro, n5o precisaras atir4-la, para atin- gi-lo, com maior forqa se ele estiver na direqao da proa do que da popa, estando situado tu no ponto oposto; as gotas d'agua continuariio caindo como antes no vaso que esta embaixo, sem que uma sequer caia em direqiio h popa, muito embora, enquanto a gota esth no ar, a nave ande muitos palmos."
Tudo isso nos mostra que, com base em observag6es meciinicas realizadas no in- terior de determinado sistema, i impossi- vel estabelecer se tal sistema esta parado ou em movimento retilineo uniforme: "Se- ja, pyrtanto, o principio de nossa contem- plaqao o considerar que, seja qual for o movimento que se atribua h terra, 6 neces- shrio que a n6s, como habitantes dela e, conseqiientemente, participes desse movi- mento, apresente-se inteiramente impercep- tivel, sendo como se n5o existisse enquanto estivermos olhando somente para as coi- sas terrestres."
A importiincia desse principio de rela- tividade (galileana) salta logo aos olhos se recordarmos que a relatividade estrita de Einstein outra coisa niio C do que uma am- pliaqio da relatividade galileana a todos os fen6menos naturais, inclusive os da eletrodi- niimica e da 6tica".
TambCm niio se deve esquecer que, pel0 principio da relatividade, Galileu consegue neutralizar todo um conjunto de experiCn- cias que apontavam contra o sistema coper- nicano, construindo outros fatos e interpre- tando diversamente os antigos.
E, mais ainda, o fato de que todo mo- vimento C relativo significa que o movimento n5o 6 atribuivel a um corpo em si mesmo: e isto k o fim da doutrina aristotilica e medie- val do impetus, ou seja, de um movimento que necessita de um motor para produzi-lo e conservi-lo. Repouso e movimento siio dois estados persistentes dos corpos. E as- sim Galileu abre o caminho para a formu- laq5o do principio de inircia.
Urbano VIII foi convencido pelos ad- versiirios de Galileu de que o Dialogo so- bre os dois maximos sistemas do mundo constituia uma afronta, desacreditando a autoridade e ati o prestigio do papa, que teria sido ridicularizado na figura de Sim- plicio, defensor daquela "admiravel e ver- dadeiramente angClica doutrina", h qual "6 forqoso acomodar-se", de que se fala na ultima pigina do Dialogo. Logo depois de sua publicaqao, o inquisidor de Florenqa ordenou que sua difusio fosse suspensa. Em outubro de 1632, ordenou-se a Galileu que fosse a Roma, para ficar i disposiq50 do Santo Oficio. Galileu tentou atrasar sua viagem para Roma, alegando motivos de saude, mas a reaqiio da Inquisiqiio foi du- rissima. Em 12 de abril de 1633 Galileu estava diante do Santo Oficio, sendo acu- sado de ter enganado o padre Riccardi, que dera o imprimatur ao Dialogo, porque n50 lhe havia comunicado o preceito que lhe fora imposto em 1616, segundo o qual Galileu niio podia "ensinar ou defender de mod0 algum" a teoria de Copirnico. Ga- lileu defendeu-se afirmando que o Dialogo fora escrito para mostrar a niio-validade do copernicanismo e que niio se recordava de nenhum preceito que lhe houvesse sido imposto em presenqa de testemunhas. E mostrou a declaraqiio que lhe havia sido da- da por Belarmino em 3 61 6.