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VI. 0 mundo t uma maquina

6 0 ewo n~o depende de Deus, mas do homem

Mas, se 6 verdade que Deus C verda- deiro e nao enganoso, tambCm C verdade que o homem erra.

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Qua1 6, entao, a origem do erro?

Naturalmente, o err0 nio e imputavel a Deus, mas sim ao homem, porque nem sempre ele se demonstra fie1 a clareza e a distingzo.

As faculdades do homem funcionam. Mas cabe ao homem fazer bom uso delas, niio confundindo com claras e distintas as idCias que siio aproximativas e confusas. 0 err0 se da no juizo. E, para Descartes, dife- rentemente do que pensaria Kant, pensar niio C julgar, porque no juizo intervcm tan- to o intelecto como a vontade. 0 intelecto, que elabora as ideias claras e distintas, nao erra. 0 err0 brota da pressiio indevida da vontade sobre o intelecto: "Se me abstenho de dar meu juizo sobre alguma coisa, quan- do n5o a concebo com suficiente clareza e distinqao, C evidente que estou fazendo 6ti- mo uso do juizo e nZo estou sendo engana- do; mas, se me determino a nega-la ou afir- ma-la, endo niio estou mais me servindo como devo do meu livre-arbitrio; e se afir- mo aquilo que nio C verdadeiro, C evidente que estou me enganando; [. . .] porque a luz natural nos ensina que o conhecimento do intelecto deve preceder sempre a determi- naqiio da vontade. E precisamente nesse mau uso do livre-arbitrio 6 que se encontra a pri- vaqiio que constitui a forma do erro".

Com essa imensa confianqa no homem e em suas faculdades cognoscitivas, e depois de indicar as causas e implicaq6es do erro, Descartes pode agora tratar do conheci- mento do mundo e de si enquanto existe no mundo. 0 mCtodo esta justificado, a cla- reza e a distinqso fundamentadas, e a uni- dade do saber reconduzida a sua fonte. a razz0 humana. sustentada e iluminada pela garantia da suma veracidade do seu C r iado r.

VI. O mundo C uma m6quina

Deus 4 arante do fato de que a faculdade imaginativa e a sensivel atestam a existencia o ft jetiva do mundo corporeo, e entre todas as coisas que do mundo externo chegam a consci4ncia C possivel conceber como clara e distinta apenas a extensiio. N%o ha, pottanto, mais que uma mesma materia em o universo 6 uma srande todo o universo, e n6s a conhecemos apenas porque ela C exten- Sa em comprimento, largura e profundidade. Este e um ponto de "mdquina", imensa importhcia revolucioniiria, ja proposto em pauta por cujose/ementos Galileu, que Descartes retoma porque dele depende a possibili- essenciais dade de aviar um discurso cientifico rigoroso e novo. O universo materia e uma grande "mSquinan, cujos elementos essenciais s%o mate- e rnovimento -+ 3 1-5 ria e movimento. Tambem o corpo humano e os organismos ani- mais sao mSquinas e, portanto, funcionam em base a princfpios mecanicos que regulam seus movimentos e relat$3es; isso que cha- mamos "vida" C3 redutivel a uma entidade material, isto e, a elementos sutilissimos que, veiculados pelo sangue, se difundem por todo o corpo e presidem as princi- pais fun~bes do organismo.

3 A idkia de extens60 dade externa para a conscihcia, que nio C t; e S M ~ import&ncia essential artifice delas, mas so depositaria. Antes de mais nada, a existincia do mundo corporeo 6 possivel por causa do fato

Descartes chega a existhcia do mun- de que ele C objeto das demonstraqoes geo- do corporeo aprofundando as ideias adven- metricas, que se baseiam na ide'ia de exten- ticias, isto 6, as idCias que V~O de uma reali- Go. Ademais, ha em nos uma faculdade dis-

tinta do intelecto e niio redutivel a ele, isto C, a capacidade de imaginar e sentir. Com efeito, o intelecto C "uma coisa pensante ou urna substincia, cuja esshcia ou natureza toda C apenas a de pensar", essencialmente ativa. Jii a faculdade de imaginar C essen- cialmente representativa de entidades mate- riais ou corporeas, razio pela qua1 "estou inclinado a considerar que C intimamente ligada ou dependente do corpo". Desse modo, o intelecto pode considerar o mun- do corporeo valendo-se da imaginaqiio e das faculdades sensorias, que se revelam passi- vas ou receptivas de estimulos e sensaq6es.

Ora, se esse poder de ligaqio com o mundo material, operado pela faculdade de imaginaqiio e pelas faculdades sensorias, fosse enganoso, dever-se-ia concluir entiio que Deus, que me criou assim, nio i veraz. Mas isso C falso, como ja dissemos. Desse modo, se as faculdades imaginativas e sen- siveis atestam a existencia do mundo corpo- reo, niio hi raziio para p6-lo em discussiio.

Isso, porCm, niio deve me induzir a "admitir temerariamente todas as coisas que os sentidos parecem me ensinar". Como tambCm nao deve me induzir a "revogar pela dhida todas elas em geral".

Mas como operar tal seleqio? Isso pode ser feito aplicando o mitodo das idiias cla- ras e distintas, isto C, s6 admitindo como reais aquelas propriedades que consigo con- ceber de mod0 distinto.

Pois bem, dentre todas as coisas que me chegam do mundo externo atravis das fa- culdades sensiveis, s6 consigo conceber como clara e distinta a extensiio, que, conseqiiente- mente, podemos considerar como consti- tutiva ou essencial. "Com efeito, toda outra coisa que se pode atribuir ao corpo pressup6e a extensiio, sendo apenas algum mod0 da propria coisa extensa, como tambCm todas as coisas que encontramos na mente siio somente modos diversos de pensar". regras " do mitodo.

A tendencia a considera-las obietivas 6 muito mais fruto de exoeriencias infantis. niio avaliadas criticamente, porque niio nos demos conta de que se trata mais de urna sirie de respostas do sistema nervoso aos estimulos do mundo fisico.

Esse C um Donto de imenso alcance re- volucion6ri0, j6 enfocado por Galileu e que Descartes retoma porque sabe que dele de- pende a possibilidade de encaminhar um discurso cientifico rigoroso e novo. A ajuda dos sentidos pode significar fonte de esti- mulos, mas niio C a sede da ciencia. Esta pertence ao mundo das idCias claras e dis- tintas.

Chegando a esse ponto, reduzida a materia a extensiio, Descartes encontra-se diante de urna realidade global dividida em duas vertentes dutiveis urna a claramente distintas e irre- outra: a yes cogitans no que se refere ao mundo esoiritual e a res extensa no aue concerne ao mundo material. Nio exisiem realidades intermedihrias.

A forqa dessa colocaqio C devastado- ra, sobretudo em relagio is concepq6es renascentistas de matriz animista, segundo as quais tudo era permeado de espirito e vida, e com as quais eram explicadas as co- nex6es entre os fen6menos e sua natureza mais rec6ndita. Nio ha graus intermedii- rios entre a res cogitans e a res extensa. A exemplo do mundo fisico em geral, tanto o corpo humano como o reino animal devem encontrar explicaqio suficiente no mundo da mecinica, fora e contra qualquer doutri- na magico-ocultista.

Arenas a extens60 i.. propriedade essencial

Assim, aplicando as regras da clareza e da distinqiio, Descartes chega a conclusio de que s6 se pode atribuir como essencial ao mundo material a propriedade da exten- siio, porque s6 ela C concebivel de mod0 cla- ro e completamente distinto das outras. 0 mundo espiritual C yes cogitans, o mundo material 6-res extensa.

Descartes considera "secund6rias" to- das as outras propriedades, como a cor, o sabor, o peso ou o som, porque nio C possi- vel ter delas urna idiia clara e distinta. Atri- bui-las ao mundo material como componen- tes constitutivas simificaria abandonar as

como principios

A doutrina que atribui um carater pu- ramente subjetivo ao reino das qualidades C o primeiro resultado dessa nova filosofia. E

sua importincia reside na capacidade de eli- minar todos os obsticulos que haviam im- pedido a afirmaqiio da nova ciincia.

Mas quais siio entiio os elementos es- senciais para se explicar o mundo fisico? 0 universo cartesiano C constituido por poucos elementos e principios: matCria (en- tendida no sentido geomitrico de extensiio) e movimento.

A matCria como pura extensiio, priva- da de qualquer profundidade, leva a rejei- qio do vicuo. 0 mundo C como um ovo pleno. 0 vicuo dos atomistas C inconcebivel com a continuidade da matiria extensa. Como explicar entio a multiplicidade dos fen6menos e seu carater dinimico? Atra- vCs do movimento ou daquela "quantida- de de movimento" que Deus injetou no mundo quando o criou e que permanece constante, porque niio cresce nem diminui.

0s principios fundamentais que regem o universo

Quais as leis fundamentais?

Antes de mais nada, o principio de con- serva@o, segundo o qual a quantidade de mo- vimento permanece constante, contra qual- quer possivel degradaqiio de energia ou entropia. 0 segundo C o principio de ine'rcia.

Tendo excluido todas as qualidades da matCria, s6 pode haver alguma mudanqa de diregio mediante a impulsiio de outros cor- pos. 0 corpo nio se detCm nem diminui seu proprio movimento, a menos que o ceda a outro. Em si, uma vez iniciado, o movimen- to tende a prosseguir na mesma diregio.

Portanto, o principio de conservaqiio e, conseqiientemente, o principio de inCrcia sio principios basilares que regem o universo.

A eles deve-se acrescentar outro prin- cipio, segundo o qual toda coisa tende a mover-se em linha reta. 0 movimento ori- ginirio C o movimento retilineo, do qual os outros derivam. Essa extrema simplificaqiio da natureza esti em funqiio de uma raziio que, atravCs de modelos tebricos, quer co- nhecer e dominar o mundo.

Trata-se de uma tentativa relevante de unificar a realidade, a primeira vista multi- la e variivel, atravCs de uma espkcie de modelo mecBnico facilmente dominivel pel0 homem.

Mais do que na variabilidade dos fe- nGmenos, Descartes estava interessado em sua unificagiio, mediante modelos mecini- cos de inspiraqiio geomCtrica.

Reduc&o de todos os organismos

ao qual niio se subtraem sequer aquelas re- alidades tradicionalmente reservadas a ou- tras ciincias, como a vida e os organismos animais.

Tanto o corpo como os organismos ani- mais siio maquinas e, portanto, funcionam com base em principios meci nicos que regu- lam seus movimentos e suas relaq8es. Em con- traste com a teoria aristotilica das almas, ex- clui-se todo principio vital (vegetativo e sens6rio) do mundo vegetal e animal. Tam- bCm nesse caso o que importa C a mudanqa do quadro sistemitico, porque dai em dian- te tambCm o corpo e qualquer outro orga- nismo seriio objeto de anilise cientifica no quadro dos principios do mecanicismo. 0s animais e o corpo humano nada mais sio do que miquinas, "autbmatos", como os define Descartes, ou "miquinas semoventes" mais ou menos complicadas, semelhantes a "rel6gios, compostos simples- mente de rodas e molas. aue podem contar as horas e medir o tempoi'.

E as numerosissimas operaq6es dos animais? Aquilo que chamamos de "vida" C redutivel a uma esptcie de entidade mate- rial, isto C, a elementos sutilissimos e pu- rissimos, que, levados do coraqiio ao &re- bro por meio do sangue, se difundem por todo o corpo e presidem As principais fun- q6es do organismo. Dai a exaltaqio da teo- ria da circulaqiio do sangue proposta por Harvey, seu contemporineo, que publicou seu famoso ensaio sobre o Movimento do cora@o em 1627.

Descartes, portanto, nega aos organis- mos qualquer principio vital autbnomo, tan- to vegetativo como sens6rio. convencido de " que, se eles possuissem alma, a teriam reve- lado pela palavra, que "C o unico sinal e a unica prova segura do pensamento oculto e encerrado no corpo" .

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