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111. As regras do mttodo
0 problems ge~al do fMndamento do saber
Se toda a casa est6 desmoronando, isto C, se caem por terra a velha metafisica e a velha cihcia, entiio o nouo me'todo deve se apresentar como o inicio de novo saber, em condiq6es de impedir que nos dispersernos em urna sCrie desarticulada de observaqijes ou caiamos em forrnas novas e mais refina- das de ceticismo.
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Esses, com efeito, siio dois resultados conseqiientes ao ruir de antigas concepqijes sob a pressiio de novas aquisiq6es cientifi- cas e de novas insthcias filos6ficas. Se es- tava difundida a confianqa no homem e no seu poder racional, tambim estava bastan- te difundida a incerteza sobre o caminho a tomar para garantir urna coisa e superar a outra. Niio podia mais se sustentar a filoso- fia tradicional, muito estranha aquele con- junto de novas teorizaq6es e descobertas, tornadas possiveis tambCm por instrumen- tos tkcnicos que, potencializando ou corri- gindo nossos sentidos, nos introduziam em reinos at6 entiio inexplorados. Era urgente urna filosofia que justificasse a confianqa comum na raz5o. S6 era possivel opor ao ceticismo desagregador urna raziio metafisi- camente fundada, capaz de se sustentar na busca da verdade, e urn mCtodo universal e fecundo.
Niio se trata, portanto, de lanqar i dis- cuss50 este ou aquele ram0 do saber, e sim o fundamento do proprio saber. Por isso, mesmo admirando Galileu, Descartes o cri- tics, precisamente por n5o ter apresentado um mCtodo em condiq9es de ir as raizes da filosofia e da cihcia. (E de 161 9 sua desco- berta da formula que hoje leva o nome de Euler, u + f = s + 2, onde u, f, s estiio, respec- tivamente, para o numero dos vertices, das faces e dos ringulos de um poliedro con- vex~.)
E para o fundamento que Descartes chama a atenqiio, ji que C do alicerce que dependem a amplitude e a solidez do edifi- cio que C preciso construir para se contra- por ao edificio aristotilico, no qua1 se ap6ia toda a tradiqiio. Descartes niio separa a filo- sofia da cicncia. 0 que urge evidenciar C o fundamen- to que permita um nouo tip0 de conheci- mento da totalidade do real, pelo menos em suas linhas essenciais. Necessita-se de novos principios, niio importando que eles sejam depois explorados mais em urna do que em outra direqiio. Principios que, des- locando os principios aristotClicos, aos quais a cultura academics ainda C ciumen- tamente fiel, contribuam para a edificaqiio da nova casa.
* Descartes quer primeiramente oferecer regras certas e faceis que, corretq- rnente obsewadas, levarilo ao conhecimento verdadeiro de tudo aquilo que se pode conhecer. No Discurso sobre o metodo, estas regras sZio quatro: 1) a evidE3ncia racional, que se alcansa mediante um ato in- tuit/~~ que se autofundamenta; AS quatro 2) a andlise, uma vez que para a intui@o b necessdria a sim- normas plicidade, que se alcanqa mediante a decomposic;ilo do complexo que c0n5tituem o metodo cartesiano 3 1-6 em partes elementares; 3) a sintese, que deve partir de elementos absolutos ou nlo dependentes de outros, e proceder em dire~ilo aos elementos relativos ou dependentes, dando lugar a urna cadeia de nexos coerentes; 4) o controle, efetuado mediante a enurnerasilo completa dos elementos analisados e a redsilo das operas6es sintbticas. Em suma, para proceder com reti- d%o em quaique~ pesquisa, 4 preciso r'epetir o movimento de simplificac;Zio e rigo- rosa concatena@o, tipico do procedimento geometrico.
,&, Conceitos e 4mero das vegvas do mktodo
Como escreve nas Regulae ad directio- nem ingenii, Descartes queria apresentar "regras certas e ficeis que, sendo observa- das exatamente por quem quer que seja, tor- nem impossivel tomar o falso por verdadei- ro e, sem qualquer esforqo mental inutil, mas aumentando sempre gradualmente a ciin- cia, levem ao conhecimento verdadeiro de tudo o que se i capaz de conhecer".
Entretanto, se, na obra citada, ele ha- via chegado a enumerar vinte e uma regras e interrompera a elaboragiio da obra para evitar sua prolixidade, ja no Discurso sobre o me'todo reduz essas regras a quatro.
A raziio dessa simplificagiio i dada pel0 proprio Descartes: "Como grande numero de leis amiude so serve para fornecer pre- texto i ignorsncia e ao vicio, raziio pela qual uma naqiio regula-se tanto melhor quanto menos leis tem, desde que as observe de mod0 rigoroso, entiio eu pensei que, ao in- vSs da multidgo de leis da logica, me basta- riam as quatro seguintes, corn a condiqiio de que se decidisse firme e constantemente observi-las, sem qualquer exceqiio. "
2.. ".t, f\ pvimeira vegra do mktodo
A primeira regra, mas que tambim 6 a ultima, enquanto i o ponto de chegada, alim de ser o ponto de partida, i a regra da evi- dincia, que ele assim enuncia: "NHo se deve acatar nunca como verdadeiro aquilo que niio se reconhece ser tal pela evidincia, ou seja, evitar acuradamente a precipitaqiio e a prevenqiio, assim como nunca se deve abran- ger entre nossos juizos aquilo que niio se apresente tao clara e distintamente i nossa inteligincia a ponto de excluir qualquer pos- sibilidade de duvida."
Mais que uma regra, trata-se de um principio normativo fundamental, exata- mente porque tudo deve convergir para a clareza e a distin~zo, nas quais, precisamen- te, se da a evidincia. Falar de idiias claras e distintas e falar de idiias evidentes 6 a mes- ma coisa.
Mas qual e o ato int~lectual com o qual se alcanqa a evidcncia? E o ato intuitivo ou
EvidGncia. o principio metodico fundamental, a primeira regra do mt5todo cartesiano. A evidsncia consiste na clareza e na distingdo, as quais sao os sinais da verdade das coisas, e deriva do lumen naturale que existe em todo homem; mais precisamente, a evi- detncia ti alcan~ada mediante um ato intuitivo, que t5 "urn conceito nZio ddbio da mente pura e atenta que narce apenas da luz da raz%o e 6 mais certo que a propria de- du@o". Em tal sentido, a evidetncia se autofundamenta e se autojustifica, porque sua garantia deposita-se nZio em uma base argumentativa qual- quer, e sim unicamente na mutua transparCnria entre razao e conteu- do do ato intuitivo.
captagiio de "um conceito nHo dubio da men- te pura e atenta que nasce apenas da luz da razHo e i mais certo que a propria deduqHo".
Trata-se, portanto, de ato que se auto- fundamenta e se autojustifica, porque sua garantia nHo repousa sobre uma base qual- quer de argumentagiio, mas somente sobre a transparincia mutua entre raziio e con- teudo do ato intuitivo. Trata-se daquela idCia clara e distinta que reflete "unicamente a luz da raziio", niio ainda conjugada com outras idiias, mas considerada em si mes- ma, intuida e niio argumentada. Trata-se da idiia presente na mente e da mente aberta para a idtia sem qualquer mediaqiio. 0 objetivo das outras tris regras i che- gar a essa transparincia mutua.
f\ segMnda vegra do mktodo
A segunda regra 6 a de "dividir cada problema que se estuda em tantas partes me- nores, quantas for possivel e necessirio para melhor resolvBlo".
E a defesa do me'todo analitico, unico que ode levar a evidhcia, porque, desarti- culando o complexo no simples, permite i luz do intelecto dissipar as ambigiiidades.
Este sencial, ja C um que, momento preparatorio es- se a evidtncia C necessaria para a certeza e a intuiqio C necessaria para a evidtncia, ja para a intuiqiio C necessaria a simplicidade, que se alcanqa atravCs da de- composiqio do conjunto "em partes elemen- tares at6 o limite do possivel".
Chega-se as grandes conquistas etapa ap6s etapa, parte apos parte. Esse C o cami- nho que permite escapar is presunqosas ge- neralizaqdes. E como toda dificuldade o C porque o verdadeiro esta misturado com o falso, o procedimento analitico deveria per- mitir libertar o primeiro das escorias do se- gundo.
,A. A q~arta regra do m&todo
I lJ
Por fim, para impedir qualquer pre- cipitaqio, que C a mie de todos os er- ros, C preciso verificar cada urna das pas- sagens.
Por isso, Descartes conclui dizendo: "A ultima regra C a de fazer sempre enumera- qdes tio completas e revisdes tio gerais a ponto de se ficar seguro de nio ter omitido nada."
Portanto, enumeraqiio e revisio: a pri- meira verifica se a analise i completa; a se- gunda verifica se a sintese 6 correta.
:I A terceira regra do m&todo
A decomposiqiio do conjunto em seus elementos simples nio basta, porque apre- senta um conjunto desarticulado de ele- mentos, mas nio o nexo de coesio que de- les faz um todo complexo e real. Por isso, i analise deve-se seguir a sintese, o objeti- vo da terceira regra, que Descartes, ainda no Discurso sobre o me'todo, enuncia com as seguintes palavras: "A terceira regra C a de conduzir com ordem meus pensamen- tos, comeqando pelos objetos mais simples e mais faceis de conhecer, para elevar-se, pouco a pouco, como por degraus, at6 o conhecimento dos mais complexos, supon- do urna ordem tambim entre aqueles nos quais uns nio precedem naturalmente aos outros."
Assim, C necessario recompor os ele- mentos em que foi decomposta urna rea- lidade complexa. Trata-se de urna sintese que deve partir de elementos absolutos (ab-so- lutus) ou nio dependentes de outros, e di- recionar-se para os elementos relativos ou dependentes, dando lugar assim a um enca- deamento que ilumina os nexos do conjunto.
Trata-se de recompor a ordem ou criar urna cadeia de raciocinios que se desenvol- vam do simples ao composto, o que nio pode deixar de ter urna correspondhcia na realidade. Quando essa ordem nio existe, i preciso sup6-la como a hip6tese mais con- veniente para interpretar e expressar a rea- lidade efetiva. Se a evidincia 6 necessiria para se ter a intuiqio, o process0 do simples ao complexo C necessario para o ato dedu- tivo.
As q~catro regras tomo modelo do saber
Sio regras simples, que destacam a ne- cessidade de se ter ~lena consci@ncia dos momentos em que se articula qualquer pes- quisa rigorosa. Elas constituem o modelo do saber, precisamente porque a clareza e a distin~iio garantem contra possiveis equi- vocos ou generalizaqdes apressadas. Com tal objetivo, diante de problemas comple- xos como de fenemenos confusos. e ~reci-
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so chegar aos elementos simples, que nio sejam mais decomponiveis, para que pos- sam ser totalmente invadidos pela luz da raziio.
Em suma, para proceder com correqio C preciso repetir, a proposito de qualquer pesquisa, aquele movimento de simplifica- $20 e rigorosa concatenaqio constituido pelas operaqdes tipicas do procedimento geomCtrico.
Entretanto, o que comporta a adoqiio de tal modelo?
Pois bem, antes de mais nada e de forma geral, comporta a rejeiqiio de todas aquelas noqdes aproximativas, imper- feitas, fantasticas ou apenas verossimeis, que escapam a operaqio simplificadora considerada indispensavel. 0 "simples" de Descartes niio C o universal da filoso- fia tradicional, assim como a "intuic;iio" nio C a abstraciio. 0 universal e a abs- tracBo. dois momentos fundamentais da
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filosofia aristotClico-escolastica, sio su- plantados pelas naturezas intuiqio. " ", a simples e pela
IV. A dhvida vnetbdica e a certeza fundamental:
// cogito, ergo sum''
r Estabelecidas as regras metodicas, Descartes passa a aplica-las aos principios sobre os quais o saber tradicional se fundamentou, e como condit$o da aplicaqZio exige nao aceitar como verdadeira nenhuma assergao que esteja poluida pela dcivida. Ora, neste sentido nZio h6 setor do saber que se sustente, porque nada resiste B forqa corrosiva da dOvida, exceto a proposl~80 "penso, log0 existo", que C uma verdade imediata, intui$%o pura, graqas A dcjvida deve B qua1 percebo minha existbncia como ser pensante, e esta exis- levar a certeza tbncia C uma res cogitans, uma substdncia pensante. que e dada
A aplicaqZio das regras do mktodo leva assim B descoberta pels verdade de uma verdade que, retroagindo, confirma a validez das mes- mas regrar para qualquer saber. 0 banco de prova do novo sa- ~~f-~m'' ber, filoslfrfico e cientffico 4, portanto, o sujeito humano, a cons- ciencia racional, e em todos os ramos do conhecimento o homem deve proceder na cadeia das dedusbes a partir de verdades claras e distintas ou de principios auto-evidentes. A filosofia nao C mais, portanto, a cibncia do ser, e sim a doutrina do conhecimento, gnosiologia. Esta e a reviravolta que Descartes im- prime na filosofia.
I:, dLvida
CO~O passagem obri9at6ria, mas provis6ria, para chegar h verdade
Estabelecidas as regras do mitodo, C preciso justifica-las, ou melhor, explicar sua universalidade e fecundidade.
E verdade que a matematica sempre se ateve a essas regras. Mas quem nos autoriza a estendt-las para fora desse iimbito, delas fazendo um modelo de saber universal? Qua1 C seu fundamento? Existe uma verdade nio matematica que reflita em si as caracte- risticas da evidtncia e da distingiio e que, nio sujeita duvida de mod0 algum, possa justificar tais regras e ser adotada como fon- te de todas as outras possiveis verdades?
Para responder a essa sCrie de pergun- tas, Descartes aplica as suas regras ao saber tradicional, para ver se ele contCm alguma verdade de tal forma clara e distinta que se subtraia a qualquer razio de duvida. Se o resultado for negativo, no sentido de que, com essas regras, nio C possivel chegar a nenhuma certeza e a nenhuma verdade que tenham as caracteristicas da clareza e da dis- tingio, entio sera preciso rejeitar semelhante saber e admitir a sua esterilidade. Se, ao contrario, a aplicagio de tal regra nos leva a uma verdade indubitdvel, entio deve-se assumi-la como o inicio da longa cadeia de raciocinios ou como fundamento do saber.
A condiqio que se precisa respeitar nessa operagio C que nio C licito aceitar como verdadeira a afirmagio que esteja maculada pela duvida ou por qualquer pos- sivel perplexidade. E, para chegar a isso, basta examinar os principios sobre os quais se fundamentou o saber tradicional. Cain- do os principios, as conseqii&ncias n5o po- derio mais se manter. a) Em primeiro lugar, observamos que boa parte do saber tradicional pretende ter base na experi&cia sensivel. Entretanto, como i possivel considerar certo e indubi- tavel um saber que tem sua origem nos sen- tidos, se C verdade que estes por vezes se revelam enganadores? b) Ademais, se boa parte do saber tra- dicional se baseia nos sentidos, parte nio irrelevante do saber se funda sobre a raziio
e sobre seu poder discursivo. Ora, tambim esse principio niio parece imune a obscuri- dade e incerteza. c) Por fim, ha o saber matematico, que parece indubitavel, porque valido em todas as circunst8ncias. 0 fato de 2 + 2 = 4 i ver- dadeiro em qualquer circunst8ncia e em qualquer condiqiio. E, no entanto, quem me impede de pensar que exista "um gtnio maligno, astuto e enganador", que, brincan- do comigo, me faz considerar evidentes coi- sas que nio o siio? E aqui a duvida torna-se hiperbdica, no sentido de que se estende at6 a setores que se presumiam fora de qual- quer suspeita. 0 saber matematico niio po- deria ser uma construqiio grandiosa, baseada em equivoco ou em colossal mistificaqiio?
Portanto, niio ha setor do saber que se mantenha. A casa desmorona porque seus alicerces estiio minados. Nada resiste a for- qa corrosiva da duvida.
E evidente que nio nos encontramos aqui diante da duvida dos cCticos. Neste caso, a duvida quer levar a verdade. Por isso C chamada duvida metodica, enquanto C passagem obrigatdria, ainda que provisoria, para chegar verdade.
Descartes quer p6r em crise o dog- matism~ dos filosofos tradicionais, ao mes- mo tempo que tambim quer combater a ati- tude cktica, que se comprazia em p8r tudo
"Cogito, ergo sum". 6 o princi- pio teorico primeiro da filosofia car- tesiana, originado da duvida radical: "Do proprio fato de duvidar das ou- tras coisas", diz Descartes, "segue-se do mod0 mais evidente e certo que eu existo", porque "se v@ claramente que para pensar e preciso existir". A proposiqao "Eu sou, eu existo" e uma verdade sem nenhuma media- @o; embora seja formulada como um silogismo qualquer, a proposi- @o "penso, logo existo" nao e um raciocinio, mas intuiqao pura, ato intuitivo graqas ao qua1 percebo mi- nha existencia como ser pensante. Esta existencia e uma res cogitans, sem nenhuma ruptura entre pensa- mento e ser: a substincia pensante e o pensamento em ato, e o pensa- mento em ato e uma realidade pen- sante. em duvida sem nada oferecer em troca. E, em Descartes, i evidente o anseio pela verdade.
A negaqiio aqui remete a afirmaqiio, a duvida leva i certeza.
Absolutez veritativa da proposi~6o
Como relata Descartes no Discurso so- bre o me'todo, depois de ter posto tudo em duvida, "somente depois tive de constatar que, embora eu quisesse pensar que tudo era falso, era preciso necessariamente que eu, que assim pensava, fosse alguma coisa. E observando que essa verdade - "penso, logo sou" - era tio firme e s6lida que ne- nhuma das mais extravagantes hipoteses dos ckticos seria capaz de abala-la, julguei que podia aceita-la sem reservas como o princi- pio primeiro da filosofia que procurava".
Esta certeza nio pode ser minada de nenhum mod0 pel0 gtnio maligno, porque, ainda que exista um gtnio maligno que me engana, eu, em todo caso, devo existir para ser enganado.
Portanto, a proposiqio "eu penso, logo existo" C absolutamente verdadeira, porque ati a duvida, mesmo a mais extremada e radicalizada, a confirma.
Mas o que entende Descartes por "pen- samento"? Afirma ele nas Respostas: "Com o termo 'pensamento' eu abranjo tudo aqui- lo que existe em nos de t50 factual que so- mos imediatamente conscientes dele, como, por exemplo, todas as operaq6es da vonta- de, do intelecto, da imaginaqio e dos senti- dos siio 'pensamentos'. E acrescentei 'imedi- atamente' para excluir tudo aquilo que delas deriva; assim, por exemplo, um movimento voluntario tem como seu ponto inicial o pen- samento, mas ele proprio niio t pensamento."
, A proposi~60 "eu penso, logo existo" n60 & um raciocinio dedutivo, mas uma intuiq6o
Estamos, portanto, diante de uma ver- dade sem qualquer mediaqiio. A transparh- cia do eu a si mesmo e, portanto, o pensa-
mento em ato, escapa a qualquer duvida, indicando por que a clareza C a regra fun- damental do conhecimento e por que a in- tuiqio i seu ato fundamental. Com efeito, nesse caso a existencia ou o meu ser s6 i admitido enquanto se torna presente ao meu eu, sem qualquer passagem argumentativa.
Efetivamente, apesar de ser formulada como qualquer silogismo, "penso, logo exis- to", tal proposiqio n2o 6 um raciocinio, mas uma intui@o pura.
N5o se trata da abreviaqzo de urna ar- gumentag20 como a seguinte: "Tudo aquilo que pensa existe; eu penso, logo, existo." Trata-se simplesmente de um ato intuitivo graqas ao qual percebo minha existencia enquanto 6 pensante.
Com efeito, procurando definir a na- tureza de sua propria existincia, Descartes afirma que ela C urna res cogitans, urna rea- lidade pensante, sem qualquer corte entre pensamento e ser. A substiincia pensante 6 o pensamento em ato, e o pensamento em ato i urna realidade pensante.
Assim, Descartes chegou a um ponto firme, que nada pode p6r em discussio. Ele sabe que o homem i urna realidade pensante e est4 bem consciente do fato fundamental representado pela logica da clareza e da dis- tinqio. Desse modo, ele conquistou urna certeza inabalavel, primeira e irrenunciivel, porque relativa A propria existencia, que, enquanto pensante, revela-se clara e distin- ta. Assim, a aplicaqio das regras do mCtodo levou a descoberta de urna verdade que, retroagindo, confirma a validade daquelas regras que se encontram fundamentadas e, portanto, assumidas como norma de qual- quer saber.
"Res cogitans" e "res extensa".
Para Descartes existem apenas dois tipos de substhncias, claramente dis- tintas e irredutiveis urna a outra: a substdncia pensante (res cogitans) e a substsncia extensa (res extensa). A res cogitans e a existBncia espiritual do homem sem nenhuma ruptura entre pensar e ser, e a alma humana como realidade pensante que e pen- samento em ato, e como pensamen- to em ato que e realidade pensante. A res extensa e o mundo material (compreendendo obviamente o cor- po humano), do qual, justamente, se pode predicar como essential apenas a propriedade da extendo. dade, como no caso da filosofia tradicio- nal? N5o. Tais regras se fundamentam na certeza adquirida de que o nosso "eu" ou a consciencia de si mesmo como realidade pensante se apresenta com as caracteristi- cas da clareza e da distinpio. A partir dai, a atividade cognoscitiva, mais do que se preocupar em fundamentar suas conquistas em sentido metafisico, deve procurar a clareza e a distinqio, que sio os traqos tipicos da primeira verdade que se imp6s nossa raz5o e que devem ser a mar- ca de qualquer outra verdade. Como a nos- sa existencia enquanto res cogitans foi acei- ta como indubitavel com base na clareza e na distinqiio e niio com base em outros fun- damentos, entio toda outra verdade so po- derii ser acatada se exibir os traqos da :la- reza e da distinqio. E, para alcanqa-los, C preciso seguir o itinerario da anilise, da sin- 0 eixo da filosofia tese e da verificaqio, sabendo-se que uma ,,,&, & MaiS a ,-i&,,-ia do ser; afirmaqio com tais caracteristicas nio esta- mas a do~trina r5 mais sujeita ii duvida. Desse modo, a filosofia nio C mais a do conl\ecimento cicncia do ser, mas sim a doutrina do co- nhecimento. Assim, antes de mais nada, a filosofia se torna gnosiologia.
Aquilo que deve ser destacado 6 que, como regras do mitodo de pesquisa, a clareza e a distin@o jh estio bem fundamentadas.
Mas fundamentadas em quE?
Talvez no ser, finito ou infinito? Ou nos principios logicos gerais, que S~O tambCm principios ontologicos, como o principio de nio-contradiq20 ou o principio de identi-
E essa a reviravolta que Descartes im- prime a filosofia, que passa a se orientar no sentido de encontrar ou fazer emergir, a pro- posito de qualquer proposiqio, os dados da clareza e da distinq20, que, alcanqados, tor- nam desnecessarios outros suportes ou ou- tras garantias. Assim como a certeza de mi- nha existhcia enquanto res cogitans s6
necessita da clareza e da distingio, da mes- ma forma qualquer outra verdade nio tera necessidade de outras garantias fora da cla- reza e da distingio, imediata (intuiqio) ou derivada (deduqio).
0 centro do novo saber
k o s~jeito ~\MM?CI~O
0 banco de provas do novo saber, filo- s6fico e cientifico, portanto, C o sujeito hu- mano, a consciencia racional.
Qualquer tip0 de pesquisa devera se preocupar somente em perseguir o grau maximo de clareza e distin~iio, nio se preo- cupando com outras justificaqoes quando alcanqii-lo. 0 homem C feito assim, so de- vendo admitir verdades que reflitam tais exiaikcias.
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Estamos diante da humaniza~iio radi- cal do conhecimento, reconduzido a sua fon- te primiggnia. Em todos os ramos do conhe- cimento, na cadeia das deduqoes, o homem deve proceder de verdades claras e distintas ou de principios auto-evidentes.
Quando esses principios nio siio facil- mente identificiveis, C precis0 hipotetiza-los, seja para ordenar a mente humana, seja para fazer emergir a ordem da realidade - con- fianqa na racionalidade do real -, is vezes coberta por elementos secundirios ou pela sobreposiqio de elementos subjetivos, acri- ticamente projetados fora de nos.
Descartes, portanto, aplicando as re- gras do mCtodo, defronta-se com a primei- ra certeza fundamental, a do cogito. Esta, porCm, nio 6 apenas uma das muitas verda- des que se alcanqa atravCs daquelas regras, mas sim a verdade que, uma vez alcanqada, fundamenta tais regras, porque revela a na- tureza da conscihcia humana que, como res cogitans, C transparhcia de si para si mes- ma. Qualquer outra verdade so sera acolhi- da h medida que se adequar ou aproximar de tal evidhcia.
Tendo-se ins~irado inicialmente na cla- reza e na evidincia da matematica, agora Des- cartes destaca que as citncias matemiiticas apresentam somente um setor do saber, que sempre se inspirou em um me'todo que, ao contrario, tem dimensiio universal. De agora em diante, qualquer saber devera se inspirar nesse mitodo, porque nio se trata de mCtodo fundado pela matematica, mas que funda a matemiitica, como toda outra ciincia.
Aquilo a que esse metodo conduz e no qua1 se fundamenta C a "raziio humana" ou aquela reta raziio (bona mens) que pertence a todos os homens e que, como diz Descar- tes no Discurso sobre o me'todo, "C a coisa mais bem distribuida no mundo". 0 que C tal reta razio? "A faculdade de julgar bem e distinguir o verdadeiro do fal- so C propriamente aquilo que se chama bom senso ou razio, [e que] C naturalmente igual em todos os homens."
E a unidade dos homens 6 representa- da pela raziio bem guiada e desenvolvida.
Descartes ja explicita isso no ensaio ju- venil Regulae ad directionem ingenii, onde escreve: "Todas as diversas cihcias nada mais sio do que a sabedoria humana, que per- manece sempre una e idhtica, por mais que se aplique a diferentes objetos, nio receben- do destes maior distingio do que possa re-