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V. A existincia e o papel de Deus

ceber a luz do sol da diversidade das coisas que ilumina." Mais do que sobre as coisas iluminadas - cada uma das ciincias - t precis0 p6r o acento sobre o sol, a raz50, que deve emergir e impor sua logica e fazer res- peitar suas exigtncias. A unidade das ci&n- cias remete a unidade da raz5o. E a unidade da razfo remete unidade do mttodo.

Se a raz5o C uma res cogitans, que emerge atravis da duvida universal, a pon- to de nenhum ginio malign0 poder sitii- la e nenhum engano dos sentidos obscu- reci-la, entfo o saber deve basear-se nela e repetir sua clareza e distingao, que sfo os unicos postulados irrenuncihveis do novo saber.

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0 Eu, como ser pensante, revela-se o lugar de uma multiplicidade de ideias (atos mentais dos quais se tem percepc;Sio imediata), que a filosofia deve rigorosa- mente examinar. Para Descartes ha particularmente trQ classes de ideias: 1) as ideias inatas, que encontro em mim, nascidas junto com A existencia minha consciCncia; de tres classes 2) as ideias adventicias, que prov@m a mim de fora e me re- de ideias metem a coisas totalmente diferentes de mim; e a ideia inata 3) as ideias facticias, construidas por mim mesmo. de Deus + 3 1-5 ria, Ora, ha a entre as muitas ideias de que a conscibncia e deposith- id6ia inata de Deus, isto e, a ideia de uma substancia infinita, eterna, imutavel, independente, onisciente, e da qua1 eu mesmo e todas as outras coisas existentes fomos criados e produzidos. A ideia de Deus 6 subjetiva e objetiva ao mesmo tempo, e atesta ser inata em nbs porque produzida pelo proprio Deus.

Desse modo, o problema da fundamenta@o do mittodo de pesquisa se en- contra definitivamente resolvido, porque a evidbncia proposta de mod0 hipothti- co 6 confirmada pelo cogito, e este se torna por sua ues reforcado pela presenqa de Deus que garante sua objetividade. Deus e garante tambem de todas as verda- des claras e distintas, "eternas", que devem constituir a ossatura do novo saber; mas estas verdades, criadas livremente por Deus, sSio contingentes, e sc?o chama- das "eternas" apenas porque Deus e imutavel; elas nSio participam da essbncia de Deus, e por isso ninguem, mesmo conhecendo-as, pode afirmar conhecer os desig- nios imperscrutaveis de Deus.

0 problems da relacGo entre nossas idkias, que sGo formas mentais, e a realidade objetiva

A primeira certeza fundamental alcan- qada pela aplicaq50 das regras do mCtodo, portanto, C a conscihcia de si mesmos como seres pensantes.

A reflex50 de Descartes concentra-se agora no cogito e no seu conteudo, acossa- da por algumas perguntas fundamentais: sera que as regras do mttodo abrem-se ver- dadeiramente para o mundo e s5o adequa- das para fazer-me conhecer o mundo? E o mundo estara aberto a essas regras? Minhas faculdades cognoscitivas S~O adequadas pa- ra fazer-me conhecer efetivamente o que nio t identificavel com a minha conscihcia?

Trata-se de perguntas que postulam maior fundamentag50 da atividade cognos- citiva do homem.

Como ser pensante, o "eu" revela-se o lugar de multiplicidade de ide'ias, que a filo- sofia deve considerar com rigor.

Se o cogito i a primeira verdade auto- evidente, que outras idiias se apresentam com o carater da auto-evidincia do cogito?

Partindo dele e com idtias que, como o co- gito, siio claras e distintas, t possivel recons- truir o edifico do saber?

E mais: dado que o fundamento do saber esta na consciincia, como sera possi- vel sair dela e reafirmar o mundo externo?

Em suma, as idCias que Descartes n5o considera no sentido tradicional de essin- cias ou arquktipos do real, mas como pre- senGus reais na consciincia, tim carater ob- jetivo, no sentido de representarem um objeto, uma realidade?

E, por fim, se elas s5o indubitaveis como formas mentais, porque tenho a ime- diata percepgso delas, la como formas re- presentativas de realidades diversas de rnim sera0 elas verdadeiras, ou seja, representa- r5o uma realidade objetiva ou seriam puras fungoes mentais?

3 "Jdkias inatas", "id&ias adventiciasN e "idkias facticias"

Antes de responder a essas questties, deve-se recordar que Descartes divide as idtias em:

1) ide'ias inatas, isto 6, as que encontro em rnim mesmo, nascidas junto com a mi- nha consciencia; 2) ide'ias adventicias, isto e, as que vim de fora de rnim e me remetem a coisas intei- ramente diferentes de mim; 3) ide'ias facticias ou construidas por rnim mesmo.

Descartando estas ultimas como iluso- rias, porque quimkricas ou construidas ar- bitrariamente por rnim mesmo, o problema se restringe ent5o a objetividade das idCias inatas e das adventicias. Embora as tris clas- ses de idCias n50 sejam diferentes do ponto de vista de sua realidade subjetiva - todas as tris S~O atos mentais dos quais tenho per- cepqiio imediata -, do ponto de vista de seu conteudo elas s5o profundamente diversas.

Com efeito, se as idCias facticias ou ar- bitrarias niio constituem nenhum problema, ser5o verdadeiramente objetivas as idtias ad- venticias, que me remetem a um mundo ex- terno? Quem garante tal objetividade?

Poderiamos responder: a clareza e a distingiio. E se as faculdades sensiveis fos- sem enganadoras? Estamos verdadeiramente certos da objetividade das faculdades sensi- veis e imaginativas atravts das quais as idCias facticias chegam at6 nos, abrindo-nos para o mundo? Aquilo de que estou certo, at6 na duvida universal, t de minha existincia em sua atividade cogitativa. Mas quem me ga- rante que ela permanece valida mesmo quan- do seus resultados passam da percepg5o em ato para o reino da memoria? Estara a me- moria em grau de conserva-10s intactos, com a clareza e a distingzo originais?

Para enfrentar essa strie de dificulda- des e para fundamentar definitivamente o cariter objetivo de nossas faculdades cog- noscitivas, Descartes proptie e resolve o pro- blema da existincia e do papel de Deus.

f\ idkia inata de Deus e sua objetividade

Com tal objetivo, entre as muitas idCias de que a consciincia C depositaria, Descar- tes depara com a idCia inata de Deus que, como lemos nas Meditagoes metafisicas, C a idCia de "urna substiincia infinita, eterna, imutavel, independente e onisciente, da qua1 eu proprio e todas as outras coisas que exis- tem (se C verdade que hi coisas existentes) fomos criados e produzidos". E, a proposi- to de tal idCia, ele se pergunta se 6 pura- mente subjetiva ou se niio deve ser conside- rada ao mesmo tempo subjetiva e objetiva. Trata-se do problema da existincia de Deus, nao mais proposto a partir do mundo ex- terno ao homem, mas a partir do proprio homem, ou melhor, de sua consciincia.

Pois bem, falando dessa idcia com tais caracteristicas, diz Descartes: "E uma coisa manifesta, por luz natural, que deve haver pelo menos tanta realidade na causa eficien- te e total quanto no seu efeito: porque, de onde o efeito ode ria extrair a sua realida- de sen50 de sua propria causa, e como essa causa poderia transmiti-la ao efeito se n5o a tivesse em si mesma?" Ora, proposto tal principio, fica evidente que o autor dessa idCia que esta em rnim niio sou eu, imperfei- to e finito, nem qualquer outro ser, da mes- ma forma limitado. Tal idCia, que est5 em mim, mas nio t de mim, so pode ter por causa adequada um ser infinito, isto e, Deus.

A propria idtia inata de Deus pode pro- piciar uma segunda reflexiio, que compro- va o resultado da primeira argumentagzo.

Se a idiia de um ser infinito que esta em mim fosse minha, niio me teria eu feito per- feito e ilimitado e niio, ao contrario, um ser imperfeito, como resulta da duvida e da as- piraqiio nunca satisfeita $ felicidade e a perfeiqiio? Com efeito, quem nega o Deus criador por esse proprio fato esta se consi- derando um autoproduto. Ora, nesse caso, tendo a idCia do ser perfeito, entiio nos te- riamos dado todas as perfeiqoes que encon- tramos na idkia de Deus. E isso C desmenti- do pela realidade.

Por fim, detendo-se nas implicaq6es des- sa idCia, Descartes formula um terceiro ar- gumento, conhecido como prova ontologica. A existencia C parte integrante da essencia, de mod0 que niio 6 possivel ter a ideia (a es- sencia) de Deus sem simultaneamente admi- tir sua existencia, da mesma forma que niio e possivel conceber um triBngulo sem pensa-lo com a soma dos Sngulos internos igual a dois retos, ou como niio C concebivel uma mon- tanha sem vale. So que, enquanto do fato de niio poder "conceber uma montanha sem vale niio deriva que existam no mundo monta- nhas e vales, mas somente que a montanha e o vale, existindo ou niio existindo, niio po- dem de mod0 algum ser separados um do outro, (...) ji do simples fato de que niio posso conceber Deus sem existincia deriva que a existencia C inseparavel dele e, portan- to, que ele existe verdadeiramente". Esta C a prova ontologica de Anselmo, que Descartes retoma e a torna sua.

Ideia. Descartes da o nome de "ideias" propriamente as imagens das coisas, e as distingue das "afeiqbes" (que se fundamentam sobre necessi- dades, desejos, temores, esperangas etc.) e dos "juizos" (que pbem dis- cursivamente em confront0 duas ou mais ideias entre si e a partir daqui movem para afirmar ou negar). Alem disso, ele distingue as ideias em tr& categorias: 1) ideiasadventicias, isto e, estranhas e vindas de fora, "corno a ideia que vulgarmente se tem do sol"; 2) ideias facticias, isto e, ideias fei- tas e inventadas pelo homem, "en- tre as quais se pode pbr a que os as- trbnomos fazem do sol com seus raciocinios"; 3) ideias inatas, que nascem com o homem, inerentes a sua consciGncia, "como a ideia de Deus, da mente, do corpo, do tridngulo e, em geral, as ideias que representam as essbcias verdadeiras, imutaveis e eternas". A ideia inata de Deus, em particular, e a mais evidente e contem em si mais realidade objetiva que qualquer ou- tra: ela garante a objetividade de to- das as outras ideias inatas e das ad- venticias.

De~s cowo gcarantia

18 dca ~MM~Z;O veritativa de nossas fac~ldades

cognoscitivas

Mas por que Descartes se detem com tanta insistincia no problema da existencia de Deus, a niio ser para evidenciar a riqueza de nossa consciencia? Com efeito, nas Medi- tag6es metafisicas, ele escreve que a idCia de Dew C "corno a marca do artesiio impressa sobre sua obra, niio sendo sequer necessirio que essa marca seja algo diferente da pro- pria obra". Assim, analisando a conscihcia, Descartes se defronta com uma ideia que esta em nos, mas niio C nossa, a qual, todavia, nos permeia profundamente, como o selo do artifice sobre seu manufaturado.

Ora, se isso C verdadeiro e se C verdade que Deus, porque sumamente perfeito, 6 tam- bem sumamente veraz e imutavel, niio deve- mos entiio ter imensa confianqa em nos e em nossas faculdades, que siio todas obras suas?

Assim, a dependincia do homem em relaqiio a Deus niio leva Descartes As con- clus6es a que haviam chegado a metafisica e a teologia tradicional, isto C, ao primado de Deus e ao valor normativo de seus pre- ceitos e de tudo o que C revelado na Escritu- ra. A idtia de Deus em nos, como a marca do artesiio na sua obra, C utilizada para de- fender a positividade da realiza@o humana e, do ponto de vista do poder cognoscitivo, sua natural capacidade de conhecer o ver- dadeiro; e, no que se refere ao mundo, a imutabilidade de suas leis.

E ai que encontra derrota radical a ideia do ghio malign0 ou de uma forqa corrosi-

va que pode enganar ou burlar o homem. E isso porque, sob a forqa protetora de Deus, as faculdades cognoscitivas nio podem nos enganar, ja que, nesse caso, o proprio Deus, que C o seu criador, seria responsavel por tal engano. E Deus, sendo sumamente per- feito, n5o pode ser mentiroso.

Desse modo, aquele Deus em cujo nome se tentava bloquear a expansio do novo pensamento cientifico aparece aqui como aquele que, garantindo a capacidade cognoscitiva de nossas faculdades, estimula tal empresa.

Assim, a duvida C derrotada e o critC- rio da evidencia C conclusivamente justifi- cado. 0 Deus criador impede que se consi- dere que a criatura seja portadora de um principio dissolutivo dentro de si, ou que suas faculdades nio estejam em condiqoes de cumprir suas funqoes. Somente para o ateu a duvida nio C debelada conclusiva- mente, porque pode continuar alimentando

METAPHYSI QVE5

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duvidas sobre o que lhe C sugerido por suas faculdades cognoscitivas, ja que nio reco- nhece que tais faculdades sejam criadas por Deus, suma bondade e verdade.

5 AS verdades etevmas

Desse modo, o problema da fundamen- taqio do mitodo de pesquisa encontra-se conclusivamente resolvido, porque aquela evidincia proposta por via hipotCtica 15 comprovada pela primeira certeza relativa ao nosso cogito, e este, com as faculdades cognoscitivas, C ainda mais reforqado pela presenqa de Deus, que garante o seu carater objetivo.

AlCm do poder cognoscitivo das facul- dades, Deus garante tambCm todas aquelas verdades, claras e distintas, que o homem estiver em condiq6es de alcanqar.

Expressando a essencia dos varios se- tores do real, sio as verdades eternas que compoem a ossatura do novo saber.

Tais verdades sio eternas nio porque sejam vinculadas ao proprio Deus ou in- dependentes dele. Claro, Deus C criador ab- soluto e, portanto, responsive1 tambCm pe- las verdades ou idCias sob cuja luz criou o mundo.

Mas entio por que sio chamadas "eter- nas", essas verdades criadas livremente por Deus? Porque Deus C imutavel. Assim, aque- le voluntarismo de ascendencia escotista, que levava os metafisicos a falarem de um contingentismo radical do mundo e, portan- to, a considerar impossivel um saber uni- versal, C usado por Descartes para garantir a imutabilidade de certas verdades e, por- tanto, defender o desenvolvimento da cien- cia e garantir sua objetividade.

Ademais, como essas verdades contin- gentes e, ao mesmo tempo, eternas nio cons- tituem participaqio na essencia de Deus, ninguCm pode considerar que, corn o conhe- cimento dessas verdades, conhece os impers- crutaveis designios de Deus. 0 homem co- nhece e isso ja basta, sem qualquer pretensio de emulaqio com Deus.

E, com isso, defende-se ao mesmo tem- po o sentido da finitude da razio e o senti- do de sua objetividade. A razio do homem C especificamente humana, nio divina, mas e garantida em sua atividade por aquele Deus que a criou.

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