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II. A experiincia da derrocada da cultura da tpoca

Descartes dedicou-se com empenho a ela- boragiio dos Principia philosophiae (Prin- cipios de filosofia), obra em quatro livros compostos de artigos breves, conforme o modelo dos manuais escolasticos da tpo- ca. Trata-se de uma exposig5o compilada e sistematica de sua filosofia e de sua fisi- ca, com particular destaque para os vin- culos entre filosofia e cihcia. A obra foi pu- blicada em Amsterdam, sendo dedicada a princesa Isabel, filha de Frederico V do Pa- latinato.

Amargurado com as polEmicas com os professores da Universidade de Leida, que chegaram a proibir o estudo de suas obras, mas sem qualquer desejo de voltar para a Fran~a, em virtude da situag5o caotica em que havia caido seu pais, em 1649 Descar- tes aceitou o convite da rainha Cristina da SuCcia e, depois de entregar para impress50 os manuscritos de seu ultimo trabalho, Les passions de l'rime (As paix8es da alma), dei- xou definitivamente a Holanda, niio mais hospitaleira e agora cheia de contrastes. Ape- sar de suas graves preocupag?ies, Descartes continuou mantendo relagiio epistolar com a princesa Isabel, de grande import2ncia para o esclarecimento de muitos pontos obscuros de sua doutrina, particularmente das relag6es entre alma e corpo, do proble- ma moral e do livre-arbitrio.

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Na corte sueca, para festejar o fim da Guerra dos Trinta Anos e a paz de Vestfa- lia, Descartes escreveu La naissance de la paix (0 nascimento da paz). Mas foi bem curto o tempo transcorrido na corte sueca, porque a rainha Cristina, devido ao habit0 de ter suas conversa@es as cinco horas da manhii, obrigava Descartes a levantar-se muito cedo, apesar do clima rigoroso e da n5o muito robusta constituigiio fisica do fi- 16sofo. Assim, ao deixar a corte, em 2 de fevereiro de 1650, o fil6sofo pegou uma pneu- monia que, depois de uma semana de sofri- mentos, o levou a morte. Transportados para a Franga em 1667, seus despojos re- pousam na Igreja de Saint-Germain des PrCs, em Paris.

Postumamente, foram publicados os seguintes escritos de Descartes: o Compen- dium musicae (1650), o Trait& de l'hom- me (1664), Le Monde ou Traite de la lumiere (1664), as Lettres (1657-1667), as Regulae ad directionem ingenii (1 701) e a Inquisitio veritatis per lumen naturale (1701).

11. A e~periZocia da derrocada da cuItura da kpoca

Necessidade denovomCtodo am Em um tempo em que haviam se afirmado e se desenvolvi- com vigor novas perspectivas cientificas e se abriam novos como inicio horizontes filosoficos, Descartes percebe a falta de um metodo de nova saber ordenador e seja tambhm instrumento fundacional verdadeira-

-+ 3 1-3 mente eficaz. 0 novo mtitodo deve se apresentar como o inicio

de novo saber, e do fundamento deste saber depende a amplitu- de e a solidez do edificio que 6 precis0 construir em contraposi~rfo ao edificio aristot6lic0, sobre o qua1 toda a tradi~rfo se apdia.

Criticas A filosofia tes acena para o estado de profunda incer- e A I6c~ica tradicionais teza em que se encontrou ao tCrmino de seus estudos: "Encontrei-me tiio perdido entre tantas duvidas e erros que me parecia que,

Em um trecho autobiogr6fic0, depois ao procurar me instruir, niio alcangara ou- de reconhecer ter sido "aluno de uma das tro proveito que o de ter descoberto cada vez mais cClebres escolas da Europa", Descar- mais a minha ignoriincia."

Vejamos, em pormenor, algumas ra- z6es da sua insatisfaqio e perplexidade. No que se refere a filosofia, repetindo urna frase de Cicero, escreve ele: "Seria dificil imagi- nar algo t5o estranho e incrivel que nio tenha sido dito por algum filosofo". E em- bora a filosofia "tenha sido cultivada pe- 10s espiritos mais excelentes que ja viveram", continua Descartes no Discurso sobre o me'todo, n50 conta ainda "com coisa algu- ma da qual niio se discuta e que niio seja duvidosa". No que se refere a logics, que ele reduz i silogistica tradicional, pel0 menos mostra-se disposto a conceder-lhe valor didatico-pedagogic0 mas i logica dos dialkticos, para a qual era conduzida a silogistica, nega qualquer forga de fun- damentagiio e qualquer capacidade heu- ristica.

Portanto, at6 no melhor do seu desem- penho, a 16gica tradicional nada mais faz do que ajudar a expor a verdade, mas ado a conquista-la.

Assim, se i severo o seu juizo sobre a filosofia tradicional, ainda mais drastic0 i o juizo sobre a 16gica. E C por causa dessas profundas insatisfaq6es e de tais pontos de vista que a filosofia aprendida no colCgio de La Fkhe parece-lhe extremamente cheia de lacunas. Em urna Cpoca em que se ha- viam afirmado e se desenvolviam com vigor novas perspectivas cientificas e se abriam novos horizontes filosoficos, Descartes per- cebia a falta de urn rne'todo que ordenasse o pensamento e, ao mesmo tempo, fosse ins- trumento heuristic0 e de fundamentagio ver- dadeiramente eficaz.

Criticas ao saber mafem6tico

Alim disso, mesmo admirando o rigor do saber matemitico, ele critica tanto a arit- mCtica como a geometria tradicionais, por- que elaboradas com procedimentos que, embora lineares, niio se sustentavam em urna clara orientagio metodologica. 0 fato de suas passagens serem rigorosas e coerentes n5o significa que a aritmitica e a geometria foram elaboradas no contexto de um bom mitodo, nunca teorizado. Se permanecemos quase como que desarmados e induzidos a recomegar do inicio quando nos defronta- mos com novos problemas, a raziio disso deriva da falta de um guia capaz de nos acompanhar na soluqfo dos novos proble- mas. Com efeito, falando da geometria e da algebra, ele recorda que estas "se referem a matirias muito abstratas e aparentemente de nenhuma utilidade": a primeira, a geo- metria, "porque ligada a consideraqio das figuras"; a segunda, a aritmttica, porque "confusa e obscura" a ponto de "embara- gar o espirito".

Dai seu proposito de dar vida a urna espicie de matematica universal, isto 6, li- vre dos numeros ou das figuras, para poder servir de modelo para todo saber.

Descartes niio ode adotar a matema- tica tradicional como modelo do saber. Dor-

, . que ela niio possui mitodo unitirio. Para teorizar esse modelo, ele cr@ necessario de- monstrar que as diferenqas entre aritmitica e geometria nio sio relevantes, porque ambas se inspiram, ainda que implicitamen- te. no mesmo rne'todo.

E, com tal objetivo, traduz os pro- blemas geomCtricos em problemas algibri- cos, mostrando sua substancial homoge- neidade.

Como i que isso lhe foi possivel? Atra- vCs daquilo que se chama geometria ana- litica. e com a aual Descartes tornou a matematica mais limpida em seus princi- pios e em seus procedimentos, aplicando a ilgebra geometria, isto 6, estudando determinadas figuras com determinadas equag6es.

E este, no fundo, era o objetivo que ele se propunha, e C nesse contexto de cri- tics e de recuperag50 das ci&ncias matema- ticas que devemos ler o trecho no qual Des- cartes, ainda no Discurso sobre o me'todo, afirma querer inspirar o mitodo do novo saber na clareza e no rigor tipicos dos pro- cedimentos geomitricos: "Aquela longa cadeia de raciocinios, todos simples e fa- ceis, de que os gebmetras tim o habit0 de se servir para chegar as suas dificeis de- monstraq6es, me havia possibilitado ima- ginar que todas as coisas de que o homem pode ter conhecimento derivam do mesmo mod0 e que, desde que se abstenha de acei- tar como verdadeira urna coisa aue nio o i e respeite sempre a ordem necessaria para deduzir urna coisa da outra, ndo havera nada de tdo distante que niio se possa al- caqar, nem de tdo oculto que se ndo possa descobrir. "

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