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1. De Caruaru para Hollywood
Capítulo 1
De Caruaru para Hollywood
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Jacarepaguá, Rio de Janeiro. Abril de 2009. Numa manhã ensolarada, tipicamente carioca, um telefone começa a tocar. Após algumas poucas chamadas, a ligação é atendida. A origem do telefonema é de uma empresa próxima daquele apartamento, localizado entre a Barra da Tijuca e Jacarepaguá: a produtora o2 Filmes. A pessoa responsável pela chamada logo se identifica. Trata-se de Rosa Fernandes, uma profissional que presta serviços à o2, empresa que possui além da sede principal, em São Paulo, uma filial no bairro Humaitá, na cidade do Rio. No comando da produtora está o arquiteto Fernando Meirelles – renomado produtor de longa-metragens como Cidade de Deus (2002). Do outro, está uma atriz pernambucana, que mora há três anos no Rio de Janeiro. Sua estada na Cidade Maravilhosa tem uma conotação muito especial. A realização do sonho que durante anos a fio acompanhou a sua trajetória de vida. É também um momento interrogativo, de surpresas. Nordestina, natural de Caruaru, a mulher de apenas 1,45m e pesando 55 kg, está prestes a receber uma das mais profícuas propostas de sua carreira profissional. Ela está em casa, cuidando dos afazeres domésticos. Um apartamento na Rua Aroazes, com dois quartos, dois banheiros, sala de TV e música, uma imensa varanda com vista privilegiada, cozinha e área de serviço. Quanto aos móveis, o espaço proporciona conforto e versatilidade. Tudo é muito projetado e agradável. No prédio: piscina, sala de ginástica, churrasqueira e campinho de futebol. Com ela, moram o esposo e seu único filho. Adepta do estilo interiorano de vida é do tipo que sempre que pode dorme cedo e levanta com o sol, a fim de tornar o dia mais produtivo. Ao acordar, cumpre um ritual sagrado: antes mesmo de escovar os dentes, tomar banho e se alimentar, canta a sua música favorita. A Natureza das Coisas, de Aciolly Neto. “Se avexe não, que amanhã pode acontecer tudo, inclusive nada”. Estes versos estão sempre na ponta de sua língua. A canção pode ser considerada a trilha sonora da vida desta mulher, simples e destemida, ingênua e corajosa, tímida e ao mesmo tempo perspicaz.
- Alô, é Prazeres Barbosa? - Sim, quem é? - Aqui é Rosa, da produtora o2 Filmes. - Como você está? - Tudo bem! - É que a gente tá produzindo um filme de Sylvester Stallone. Eu não sei se você topa, se lhe agrada muito aquele péi, péi, péi (referindo-se ao barulho provocado por tiros). - Com quem, com Sylvester Stallone? - É, uma coisa assim. A gente tá fazendo a produção e tá precisando de uma pessoa da sua idade. Quer fazer um teste? - Ave Maria, é tudo que eu quero. - Então vamos marcar. Com o endereço e todos os detalhes em mão, a primeira dificuldade seria encontrar o local dos testes. A filial da o2 no Rio de Janeiro. O desafio estava lançado. Ela iria precisar de sorte e, neste caso, de talento. Aliás, foram o talento, a experiência e a criatividade os ingredientes responsáveis pela aprovação nos dois testes que se seguiriam. Quando chegou à o2 Filmes, vários atores já estavam lá. Alguns conhecidos, pessoas envolvidas em trabalhos dos quais Prazeres integrara o elenco, a exemplo da microssérie A Pedra do Reino. Um deles, o ator Charles Paraventi, que atuou no filme Espelho D’água e estava pleiteando uma vaga na produção americana. Por dominar o inglês, ficou sendo a via dos atores brasileiros com os americanos. Prazeres não sabia como o processo iria ocorrer. A produtora foi enfática: “Nem a gente sabe o que é para fazer”. Instantes depois, a coisa mudaria. - É o seguinte: você é uma pessoa muito pobre e vêm uns caras baterem no seu marido. Vocês estão em casa, os caras batem nele e você simplesmente pede clemência, explicou a produtora. - Só que eu nem sei inglês, nem sei francês e nem sei língua nenhuma, deixou escapar uma medrosa Prazeres, percebendo que ali ninguém dava nada por ela, até então. - Não, você vai fazer do jeito que quiser.
Em seguida, perguntou à produtora qual o espaço disponível para a cena. Ela apontou. Querendo mostrar que dominava o assunto, questionou a dimensão e logo ficou sabendo que contava com todo o espaço daquela sala. Ansiosa, quis começar imediatamente. Ao som do “Preparando, pronto, ok”, deu início à gravação. “Aí o santo baixou. Eu fiz lá uma cena, como se eles tivessem me agarrando pelo pescoço, porque ela disse que eu seria sufocada. Então eu mesma fiz em mim, como se o marido tivesse ali sendo atacado. Quando terminei, ela disse: - “porra! Ninguém dá nada por tu, mulher! (risos)”. “Então, deu certo?”, perguntou Prazeres, um pouco mais calma. “Nossa, bom demais”, respondeu a produtora, avisando que agora iriam refazer a cena, focando apenas o rosto e que, por esse motivo, ela não exagerasse na estripulia. A atriz fez tudo novamente, sabendo que agora apenas a sua face estava sendo analisada, entretanto procurou manter a mesma energia com que iniciou os testes. Terminada a primeira fase, ela voltou para casa, onde aguardaria o resultado de tudo aquilo. Alguns dias depois, o telefone tocou novamente e com ele mais uma notícia positiva: Prazeres estava entre as selecionadas. Aquilo a deixou muito feliz, afinal, embora a o2 estivesse realizando os testes, a escolha das finalistas cabia ao diretor do filme, intitulado The Expendables: o ator Sylvester Stallone. A segunda etapa da seleção foi marcada no Sofitel Acuor Hotéis e Resort, localizado na Avenida Atlântica, em Copacabana – um dos redutos de Prazeres no Rio. Antes de concluir a ligação, Rosa fez uma advertência. Para surpresa e nervosismo de Prazeres, a aprovação - ou reprovação - seria determinada pelo próprio Stallone. No dia e hora marcados, ela chegou ao local. O Sofitel Rio de Janeiro, considerado um dos melhores hotéis da cidade - 388 quartos com varandas, serviços executivos especiais e uma excelente culinária. Diante da grandiosa estrutura do empreendimento, Prazeres sentiu-se um pouco insegura, mas resoluta, afinal, estava ali com um propósito. Sofregamente, subiu até o terceiro andar. Havia uma ante-sala onde as pessoas aguardavam o início dos testes. Em seguida, foram chegando
outras atrizes. A produtora também estava lá. Na tentativa de levarem alguma vantagem no processo de seleção, algumas das concorrentes diziam falar vários idiomas. Prazeres era uma das poucas que estavam caladas. Diante disso, desanimou-se ainda mais. No interior da ante-sala onde aguardava sua vez de fazer o teste, havia uma porta misteriosa. Todos diziam não saber o que estava lá dentro. Quando a maratona foi iniciada, as atrizes entraram, uma a uma, naquele lugar. A ansiedade aumentava cada vez mais. Como todas disputavam uma vaga para a mesma personagem, Prazeres decidiu ir ao banheiro e retirar as sobrancelhas (contornadas por lápis) e também o batom dos lábios. “Fui com um vestido que dá ideia de eu ser uma pessoa muito velha. Fui mais ou menos prevenida”, recorda. Os testes continuaram até que chegou a sua vez. Finalmente, saberia o que estava por trás daquela misteriosa porta. “Quando eu entrei, avistei uma mesa enorme, cercada de gringos, como se fosse passar por um júri, uma prova de fogo. E no centro, Sylvester Stallone. Eu não o vi de imediato, mas sabia que ele estava na sala”. Num local próximo a mesa, estava o ator Charles Paraventi que serviu como elo entre brasileiros e estrangeiros. Ele olhou para Prazeres e explicou como seria a seleção. Durante a cena, ela estaria atendendo em uma espécie de bar e deveria perguntar a alguém que chegasse ao local: Quieres algo señore? (Deseja alguma coisa, senhor?). Impressionada, reagiu: “Só isso?”. Charles respondeu: “Só isso. Pode dizer”. A criatividade naquele momento falou mais alto que o próprio nervosismo e insegurança que sentiu ao deparar-se com o luxo do hotel e a empáfia de outras atrizes. Um peixe fora d’água. É assim que Prazeres se sente em ambientes de luxo, formais, ao lado de pessoas esnobes. Uma sensação que certamente irá acompanhá-la pelo resto da vida. Hipocrisia social é algo que nunca calhou com ela. Prazeres deveria fazer a cena olhando para Charles. Essa era a regra. Ao mesmo tempo, estava sendo observada por todos os executivos sentados à mesa. Aos poucos, foi arriando, arriando e fitando todos os homens que ocupavam os assentos, até encontrar Stallone. Quando os seus olhos fitaram os dele, revestiu-se de uma força maior que a acompanha quando
sobe ao palco e perguntou: “Quieres algo señore?”. É bem provável que naquele momento ela tenha pensado em fazer como todas as outras. Mas optou pelo diferente. Uma atuação autêntica e ao mesmo tempo arriscada, ousada o bastante. A reação de todos aqueles homens importantes, diante da pequena mulher estarrecida, foi uma só. Impressionados, fizeram aquele gesto com a cabeça de quem está admirando algo. Os semblantes devolveram a Prazeres a confiança e acrescentaram a sua mente ainda duvidosa a certeza de que seria aprovada. Ao deixar a sala, a produtora veio em sua direção e disse que não fosse embora. Todas as atrizes já haviam ido. O próximo passo seria a gravação do filme, que recebeu o nome de Os Mercenários, na versão brasileira, distribuída pela Califórnia Filmes. E esta reservaria outras surpresas. No dia das filmagens, dois acontecimentos marcantes. Primeiro, ela ficou sabendo que iria dividir a cena com baratas (o inseto que lhe causa fobia). Ao mesmo tempo, descobriu que iria atuar com o próprio Stallone, diretor e protagonista do longa hollywoodiano. As gravações ocorreram no Largo de São Francisco da Prainha, próximo à Praça Mauá, no centro do Rio de Janeiro. Desocuparam tudo. A cena foi rodada num galpão onde a personagem vivida por Prazeres comercializava alimentos sujos. Um estabelecimento precário. Ela aprovou o figurino usado. Uma blusa meio fofa e saia larga. Durante os ensaios, outra surpresa. Stallone observou que a barata estava sem vida e ordenou que trouxessem outras. O que foi atendido prontamente. Quando soltaram os insetos, Prazeres não suportou. Os animaizinhos logo se espalharam pelo estúdio, causando pavor e histeria. Nos ensaios, ela percebeu que outro ator (que também divide a cena com Stallone) segurou uma das baratas e cochichou algo, como se estivesse pedindo para jogá-la sobre ela. Embora não entendesse perfeitamente o idioma, deduziu que essa era a intenção. Stallone não aprovou. “Foi um cara arretado, porque se ele tivesse dito ok, o ator teria jogado a barata em cima de mim. Eu nunca vou esquecer isso, porque eu jamais imaginei que fosse contracenar com uma barata. A cena acontecendo e a barata lá, sai mas não sai do prato de amendoins, e eu pedindo a Deus que
ela ficasse quieta” (risos). A cena não é extensa, deve durar pouco mais de um minuto. Entram os dois atores, Prazeres está atrás do balcão e diz: “buenas tardes señores, quieres algo?”. Adiante eles percebem as péssimas condições em que se encontram os alimentos e seguem conversando. Todavia, o fato de ser uma produção internacional confere a atriz motivos de sobra para estar satisfeita com a novidade. No intervalo das gravações, reencontrou um rapaz que havia trabalhado no filme A Máquina, por trás das câmeras. “Olhe, as maiores estrelas da Globo queriam estar no seu lugar. Então se sinta privilegiada porque você foi a escolhida”, disse, maravilhado por vê-la ali. No mesmo dia, esteve também com a atriz Gisele Itiê, que participa do longa. A proibição no sentido de não poder entrar no set portando câmera fotográfica a impediu de registrar aqueles momentos. O fato de não dominar o inglês foi um empecilho para que pudesse travar um contato maior com Stallone, mesmo assim cumprimentou-o diversas vezes, contracenou a seu lado e almoçou com toda a equipe de gravações. O convite para uma produção internacional não ocorreu por acaso. Ao longo de quase 30 anos de carreira, Prazeres Barbosa participou de vários filmes, curtas e longas metragem, regionais e nacionais, a exemplo de Espelho D’água (2001), do diretor Marcus Vinícius Cézar; As Três Marias (2002), de Aluízio Abranches, exibido no Festival de Cinema de Berlim e A Máquina (2004), de João Falcão, quando interpretou a velha Prazeres, seu principal personagem em cinema até aqui. O retorno proporcionado pela produção foi tanto que, na época, ela foi convidada para fazer um cadastro no sistema de atores da Rede Globo de Televisão, estreando, algum tempo depois, num episódio do extinto seriado A Diarista (2005). Esse histórico no cinema e também na televisão permite que produtores se familiarizem com o trabalho do artista, uma vez que estão sempre de olho em novos talentos. Daí o motivo de Prazeres ter sido convidada para participar da seleção por uma pessoa desconhecida dela, mas que conhecia o seu trabalho. Na verdade, a atriz nunca esperou que aquilo pudesse acontecer. Chegar à Globo sempre foi o seu maior sonho. Mas, participar de uma
produção americana, ao lado de um ator consagrado no mundo inteiro, estava longe de tudo que pudesse imaginar. “Eu sou uma pessoa ousada, mas não tenho noção do que fiz ou posso fazer”. As surpresas não acabaram por aí. Ao chegar a casa, às 23h, encontrou sobre a cama um presente muito especial. Uma colônia e um cartão com a seguinte mensagem: “Flor de laranjeiras para perfumar a mais nova flor de Hollywood”. O responsável pela emoção vivenciada naqueles instantes foi o jovem Vergílio Barbosa, seu filho. A homenagem completou a felicidade daquele dia inesquecível para a mulher que ao longo da vida dedicou-se a três tarefas nada fáceis – ser mãe, professora e atriz. Esta última iniciou aos 32 anos, tornando-se a dama do teatro pernambucano. A atriz mais laureada de seu Estado; principal referência das artes cênicas em Caruaru, a 130 quilômetros da capital Recife. Como professora, Prazeres experimentou em salas de aula uma trajetória marcada por altos e baixos, assim como qualquer outra. Mas nunca foi uma professora qualquer. Diretoras, colegas de profissão e ex-alunos reconhecem o diferencial da profissional que foi. Muito jovem, mesmo sem diploma, já lecionava ao lado de suas irmãs num externato criado no intuito de preparar estudantes para a prova de Admissão ao Ginásio – requisito de ingresso no curso ginasial daqueles tempos. O amor pelo ensino e pela formação de pessoas não daria a Prazeres apenas uma aposentadoria por tempo de trabalho. Foi lecionando que conheceu seu primeiro namorado, com quem se casaria e teria um filho, e começou a dar os primeiros passos no teatro dirigindo espetáculos infantis na Escola Elisete Lopes, em Caruaru. Lá, liderou diversos movimentos, que envolviam a comunidade, e criou um grupo de teatro amador que lhe garantiu acesso ao teatro local e o primeiro prêmio no segmento. Da infância pobre e do modo como foi educada, adquiriu alguns costumes e formas de enxergar o mundo, decisivos para a história de vida que construiu. Em casa, sempre assumiu o papel do homem. Administrando bem o pouco que ganhava, conseguiu manter-se a vida inteira de forma independente. Desde cedo mostrou que nasceu com talentos nada comuns para a realidade em que foi criada. No bairro São Francisco, em
Caruaru, a menina Prazeres se sobressaía entre as demais. Brincava de pastoril, teatro e escolinha, sempre liderando o grupo. Aos 10 anos, apaixonada pela programação da extinta Rádio Difusora local, decidiu participar de um programa de calouros, tornando-se uma das cantoras mirins mais requisitadas da época, por sua voz afinada. A TV Jornal do Commercio, no Recife, chegou a cotá-la para sua programação, mas a mãe não permitiu. Na adolescência, descobriu outras paixões. Sem poder tocar à frente o sonho de ser cantora, decidiu apostar no ensino. Aliás, desde criança estes eram os seus maiores sonhos: ser professora e atriz. A oportunidade de ingressar no teatro só iria se concretizar em 1982, quase de forma inesperada, quando foi convidada para integrar o recém-criado Grupo de Teatro do Sesc. Naquele momento, Prazeres enfrentava uma das piores fases de sua vida. O casamento fracassado a abalou profundamente. Depressiva, resolveu declarar guerra aos homens. Àquela altura, já havia optado por abandonar inclusive a religião protestante, que abraçara ainda na adolescência. O teatro seria o fulcro e o campo de glórias daquela jovem mãe solteira. Após um período de incertezas, ela aceitaria o convite. A decisão traria consequências ainda mais marcantes à sua trajetória. Primeiro, a notícia de que estava fazendo teatro não agradou aos familiares. Teatro naqueles tempos, embora a coisa já estivesse caminhando para a modernidade, ainda era atividade de “desocupados” e “pervertidos”. Em seguida, Prazeres conheceria o seu segundo amor, o ator Francisco Torres, que também estava com seu casamento desgastado. O romance seria a gota d’água. Separada, com um filho, fazendo teatro e namorando um homem casado. Bastou que a família ficasse sabendo da “nova” vida da filha caçula para que os elos de amizade fossem rompidos. Todos se afastaram dela. Com exceção da mãe, que sempre apoiou a filha, ainda que não concordasse com a postura desta. A situação continuaria assim por um bom tempo. Até que o sucesso do Grupo do Sesc – e de Prazeres, vale a pena citar –, transformasse de vez a vida da professora-atriz. A trajetória promissora no teatro logo a encaminharia ao cinema. E, em seguida, abriria portas na maior emissora de televisão brasileira.
A mulher, que há quase três décadas enveredou pelas artes cênicas, já passou fome, chegou a mergulhar fundo na depressão, perdeu um irmão ainda jovem de forma trágica, enfrentou o desprezo da família, inconformada com a postura adotada ao ser abandonada pelo marido, bateu de frente com pessoas que se mostraram injustas e calou em muitas ocasiões, como diante dos impropérios que ouviu ao longo da vida por tomar decisões que sempre iam de encontro ao que esperavam dela. Também fez plástica para melhorar a aparência e, após anos de relação estável com seu segundo esposo, deu-se ao luxo de viver um “romance de verão” com um rapaz mais jovem. Paralelamente, sua carreira artística é o que mais a envaidece e orgulha. Prêmios, troféus, homenagens e títulos ela possui em extensa quantidade. Uma relação espetacular. Dinheiro praticamente não ganhou com teatro. Nunca enriqueceu. O que sempre a sustentou foi a aposentadoria de professora, cujo valor não vale a pena citar. Um salário irrisório, como o que ainda hoje recebem aqueles que optam pelo ensino em escolas públicas no Brasil. Com a rara exceção de alguns filmes nacionais e trabalhos na televisão, nunca recebeu, de fato, um retorno financeiro considerável pelo trabalho como atriz. Mesmo assim, ela prossegue com o mesmo ímpeto dos tempos em que iniciou a carreira. Economista, daquelas que depositam R$10,00 numa conta poupança para garantir respaldo financeiro em casos de emergência, é muitas vezes mal interpretada nesse sentido. Mas garante que é apenas precaução. Esse traço, aliás, é compreensível por se tratar de uma pessoa que nasceu numa família cuja estrutura era paupérrima, viveu numa casa com poucos móveis e sem fartura no armário. Brinquedos, ela nunca teve. Quando ganhou sua primeira boneca, já era adolescente e o encanto havia se perdido. No Grupo de Teatro do Sesc, Prazeres encontrou as bases necessárias para alçar os vôos registrados. A estreia só aconteceu em 1984, quando estava prestes a completar 35 anos. Mas nenhuma dificuldade foi capaz de impedir o sucesso. Em seu primeiro espetáculo, A Pena e a Lei, de Ariano Suassuna, a neófita Prazeres Barbosa recebeu prêmio de melhor atriz reve-
lação num festival disputado na cidade de Arcoverde (PE). O primeiro de muitos que se seguiriam. A partir daí, ela começou a perceber que estava no caminho certo e decidiu apostar em sua carreira. Permaneceu fazendo teatro no Sesc durante dez anos, até que, em 1992, por motivos que serão tratados adiante, afastou-se da instituição. Nesse período, já estava se preparando para conquistar o direito de aposentadoria pelos anos em sala de aula. Afastada do Sesc, onde deu os primeiros passos na carreira, foi presenteada com uma Companhia de Teatro que leva seu nome – formada naquela época por alunos da Escola Elisete Lopes, onde trabalhava. Pela Companhia, estreou grandes espetáculos, apostando em novos estilos. Foi se encorajando ainda mais, a ponto de investir em monólogos ousados como Fiel Espelho Meu e Valsa nº 6. É no palco que ela se liberta, que solta seus deuses e demônios. Nos palcos, Prazeres é inteira, completa. Esquece o mundo exterior e sua preocupação gira apenas em torno da plateia. Afinal, ela tem como meta plantar uma semente em quem a assiste, uma semente capaz de germinar e provocar mudanças, reflexão. Se isso não acontecer, o espetáculo foi em vão. Dotada de uma disciplina invejável e ao mesmo tempo exagerada, é quase sempre mal compreendida em suas ações. O respeito, admiração e curiosidade gerados em torno de sua carreira – inclusive o assédio por parte da mídia – desenvolveram em alguns colegas de profissão um sentimento de antipatia por Prazeres Barbosa. De personalidade forte e contestadora, Prazeres é defensora aguerrida daquilo que considera correto e verdadeiro. Também não é de fácil convivência. Se pisarem em seus calos, ela reage imediatamente. A disparidade entre o porte físico e o talento do qual é dotada sempre foi motivo de ciumeiras. “Eu era o patinho feio, pelo qual ninguém dava nada. Porém, quando realizava meus trabalhos sempre atraía a atenção”, acredita. Prazeres sempre foi intensa em tudo o que fez. Se existe um crítico ferrenho de seu trabalho, este alguém, sem resquício de dúvidas, é ela mesma. Mulher capaz de implodir os pejorativos do ser provinciano pode sentir na pele aquela velha lógica de que para ser celebrado em seu próprio
Estado, é preciso repercutir fora dele. Se antes a atriz era vista apenas como mais uma entre tantas – apesar de sua rica trajetória nos palcos e no cinema – depois de algumas participações em novelas, seriados e importantes filmes, Prazeres não seria mais a mesma. Logo passou a ser vista como celebridade por seus conterrâneos, como se o fato de estar morando no Rio de Janeiro, o reduto dos astros da televisão, fizesse dela uma outra pessoa. E, na verdade, o fez. Os fatos narrados até aqui são apenas uma amostra da insólita vida desta mulher, que nasceu com o almejado dom da arte, da interpretação, de dar vida a personagens distintos e ao mesmo tempo tão iguais entre si, graças à incomparável mágica da atividade teatral. Prazeres nasceu atriz, o tempo apenas moldou o talento dessa artista cuja história de vida é digna de registro, a começar pela infância, quando a pequena garota já se mostrava detentora de talentos que fizeram com que ela se sobressaísse. A obstinação e a intensidade percorrem sua história do começo ao fim.