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2. A menina do laço branco

Capítulo 2

A menina do laço branco

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Nascida em dois de outubro de 1949, Maria dos Prazeres Barbosa foi a filha caçula do casal Antonio Inácio Barbosa e Antonina de Lima Barbosa. A pequena nasceu no Sítio Riacho da Palha, há 2 km do primeiro distrito de Pau Santo, zona rural de Caruaru. O pai havia saído para trabalhar no campo e a mãe ficara sozinha em casa. Ao sentir as primeiras contrações, dona Antonina pediu para que alguém chamasse o esposo. Naquela época, os poucos hospitais que existiam na cidade ficavam muito distantes e os recursos tecnológicos eram escassos. O marido foi a cavalo em busca de uma parteira, mas o esforço acabou sendo inútil. Quando chegaram à casa, a menina já havia nascido. O parto desassistido colocou em risco a vida de dona Antonina que com uma forte hemorragia, quase perdeu a vida. A informalidade do processo não permitiu que se anotassem as medidas da criança, mas ela nascera saudável. Seu Antonio era agricultor e cultivava café, milho, cana-de-açúcar, tomate e frutas. A família vivia daquilo que colhia. Uma parte era vendida, a outra consumida. Algumas pessoas trabalhavam para ele. Mas a vida no sítio não era nada fácil e dona Antonina decidiu aprender a costurar com a sogra, Joana Zeferina Barbosa, para ajudar a família. A sogra foi uma mãe para ela. Pediu que o filho comprasse uma máquina de braço e ensinou-a costurar. Mulher guerreira, disposta a enfrentar tudo pelos filhos, dona Antonina se preocupava com o futuro que eles teriam vivendo naquela condição. Dos 14 rebentos gerados pelo casal, criaram-se apenas nove: Maria da Paz, José Barbosa, Maria das Neves, Maria da Glória, Maria do Socorro, Maria das Mercês, Bernardo Barbosa, Fernando Barbosa e Prazeres.

“Papai tinha muitos cafezais naquela época. Eu lembro que nos finais de semana chegavam caminhonetes para pegar café, verduras. Nos domingos, era a festa das crianças. Papai dava moedas a cada um dos filhos. Nós tomávamos banho, trocávamos de roupa e ficávamos naquela expectativa, esperando o “pãozeiro” passar. Prazeres era muito novinha nessa época”, recorda Maria da Glória. Cansada da vida que estava levando e ainda traumatizada com o fato de quase ter morrido durante o parto, dona Antonina decidiu mudar-

se para a cidade. A notícia não agradou o marido. Seu Antonio trabalhava na roça e sempre foi considerado “um homem da pá virada”. A esposa sofreu muito em relação à convivência com ele. Em casa, era ela quem comandava tudo, até que um dia decidiu ir para Caruaru em busca de dias melhores para os filhos. O marido veio forçadamente. Em 1951, Prazeres tinha pouco mais de um ano e foi com toda a família morar na cidade. Passaram cerca de dois anos vivendo numa pequena casa na Rua Luiz de Carvalho, no bairro Nossa Senhora das Dores. A mãe decidiu comercializar roupas prontas num pequeno banco na Feira de Caruaru, nos arredores da Igreja da Conceição. Muitos anos depois, ela teve câncer de pele devido ao tempo em que ficou exposta ao sol naquela época. Na cidade, dona Antonina chegou a engravidar novamente, mas o parto foi complicado e o garoto não sobreviveu. Por pouco Prazeres não perdeu o título de filha caçula. O pai trabalhou como servente de pedreiro, mas, as dificuldades para criar a prole de nove filhos aumentavam a cada dia e seu Antonio Inácio decidiu ir com a família para o município de São Caetano. Lá, ocuparam uma modesta casa no Sítio Pé de Ladeira. A família numerosa, onze pessoas ao todo, morou alguns meses no local. A situação era tão precária que chegaram a passar necessidades fundamentais nesse período. Dona Antonina passou a costurar para a Camisaria de Chico Galinheiro, em Caruaru. Utilizava o trem para ir à cidade entregar as costuras. Para piorar ainda mais a situação, ela adoeceu e a família acabou retornando definitivamente a Caruaru. Desta vez, o local escolhido foi o bairro São Francisco, onde Prazeres passaria toda a infância e adolescência. De início, moraram na Rua Capitão Dandinho, depois compraram uma casa na Rua Martin Afonso, número 13, que pertence à família até hoje. Para amenizar as dificuldades, algumas irmãs de seu Antonio forneceram alimentação à família durante algum tempo. Logo cedo, todos os filhos foram encaminhados a fazer alguma coisa em nome da sobrevivência. Muito cedo mesmo. Dona Antonina acabou repassando a arte da costura para todas as filhas, inclusive Prazeres, que também costurou para ajudar no sustento da família. Maria da Paz, a primogênita, foi também a

primeira a seguir os passos da mãe. Na verdade, ela viu-se obrigada a aprender o ofício quando dona Antonina adoeceu em determinado momento. Sem experiência alguma, confeccionou as primeiras peças e acabou mostrando que tinha talento para tal. Seu Antonio foi para Caruaru no intuito de comercializar café na Feira, mas acabou perdendo as poucas coisas que tinha. Ficaram apenas com a casa. Depois, ele conseguiu emprego como guarda noturno na Prefeitura Municipal. Trabalhou ainda como fiscal da Feira de Caruaru e, por esse motivo, foi apelidado a vida inteira de ‘Seu Antonio guarda’. Os filhos também saíram em busca de alguma ocupação – apesar da pouca idade. José Barbosa, o mais velho, passou a lavar carros, próximo à igreja matriz. Bernardo Barbosa arrumava mercadorias em uma bodega e depois foi carregar frete na Feira, junto com o irmão, Fernando Barbosa. Permaneceriam assim por muito tempo. Trabalhando apenas para comer. E comiam mal. Com poucos recursos, dona Antonina costumava levar da feira apenas as sobras. Quando a situação apertava, recorria à mercearia próxima a sua casa, onde comprava alimentos para pagar no final da semana. Em determinado tempo, as dificuldades eram tão grandes que a mãe dizia já haver comido para não faltar alimento aos filhos. “Eu me lembro que mamãe comprava três pães - um francês, um crioulo e um doce – e partia-os em hóstias para que cada um pudesse comer um pedacinho. Ela partia apenas em dez, porque não precisava comer. Nós crescemos vendo isso, a partilha do não ter e fazer de conta que tem”, recorda a filha caçula. Em casa, Prazeres, a mãe e as irmãs passavam o dia costurando, fazendo acabamento, chuleando as peças e pregando botões. Naqueles tempos, a atividade era chamada costura de carregação, hoje é conhecida como sulanca. Após um período vendendo peças na Feira de Caruaru, dona Antonina passou a costurar para a Camisaria Nordestina, que pertencia ao empresário Félix Gonçalves dos Santos, um dos comerciantes mais bem sucedidos da época. Localizada na Rua Tobias Barreto - conhecida como Cafundó – a Camisaria Nordestina enviava o tecido para a residência da família Bar-

bosa. Depois de prontas, as roupas que Antonina e as filhas costuravam diariamente eram comercializadas no local. O que elas recebiam, porém, era pouco. Superando todas as dificuldades, a mãe prosseguia firme em seu propósito de dar uma vida digna aos filhos. Lutava inclusive contra as limitações físicas. Na infância, dona Antonina fora vítima de paralisia infantil parcial e só andou aos seis anos de idade, com a ajuda de suas duas irmãs, que a seguravam e faziam-na exercitar-se como num processo informal de fisioterapia. As pessoas chamavam-na preconceituosamente de ‘aleijada’ e achavam até que ela não iria casar. Antonina Vieira de Lima, filha do casal João José de Lima e Severina Vieira de Melo, nasceu em 6 de março de 1917. Perdeu a mãe antes de completar quatro anos e foi criada por madrastas. Casou-se aos 18 anos com regime de comunhão de bens, passando a se chamar Antonina de Lima Barbosa. Era uma mulher simples, da roça, que não falava sobre todos os assuntos com os filhos, mas, ao mesmo tempo, foi uma guerreira incansável. Trabalhou duro e incessantemente para sustentar os filhos, costurando numa máquina a mão. Quando as meninas completavam oito anos, ela comprava um novo equipamento, pago à prestação, com o pouco que conseguiam costurando. É notório o seu lado coruja e a sabedoria com que educou os filhos em meio às dificuldades. Fazia isso como ninguém e nunca recebeu reclamação devido ao mau comportamento de nenhum deles. Seu Antonio foi um pai presente na vida dos filhos, mas sem as reais obrigações de um chefe de família. Frequentador de baixo meretrício, viciado em jogos de azar, na época em que moravam na zona rural passava as noites jogando baralho com amigos e, ao perder as apostas, entregava a colheita, deixando a família sem nada. Por outro lado, nunca foi agressivo, nem batia nos filhos. Também não vivia assediando nenhuma moça. A mudança para a cidade permitiu que a mãe realizasse outro sonho: ver os filhos estudando. Desde cedo, Prazeres e seus irmãos tiveram que conciliar trabalho e estudo. Vendo as dificuldades, eles próprios procuraram escola. Os mais velhos incentivavam os mais novos. “Não tive-

mos infância porque viemos do sítio para Caruaru e todos começaram a trabalhar muito cedo. Mas, mesmo sendo humildes, o estudo estava em primeiro lugar. Todos tinham um meio de ajudar a família e isso foi muito bom”, afirma Maria das Mercês, irmã da atriz. O primeiro lugar onde Prazeres estudou foi na Rua Martin Afonso, a Escola de “Seu Né”, um professor paraplégico que vivia em uma cadeira de rodas. “Foi o primeiro homem a nos mostrar o mundo. Ele era aleijado, mas tinha uma palmatória que ainda batia. Nunca tivemos necessidade de apanhar com ela, mas apanhava-se”, lembra Prazeres. Quase todos os filhos estudaram nessa escola. Mercês era mais levada que os outros irmãos e quando precisou ser castigada, livrou a mão rapidamente, de maneira que a palmatória terminou acertando a perna do próprio professor. “Se você não soubesse responder a tabuada, apanharia com a palmatória. Um dia, chegou minha vez e corri para casa. Chorei muito e disse aos meus pais que não iria mais para a escola. O professor Né era muito católico e fazia todas as noites do mês de maio, um terço em sua casa”, recorda Mercês. Em seguida, Prazeres e seus irmãos foram estudar com Maria Teodora de Freitas, a dona Nininha, que morava na Praça Coronel Porto. Foi ela que encaminhou todos os filhos de dona Antonina nos estudos. Depois, mudou-se para o Recife. Adiante, Prazeres estudou com dona Rejane Cavalcanti (esposa de Lídio Cavalcanti, cordelista caruaruense). Na verdade, eram escolas informais, que funcionavam na residência dos professores, no bairro São Francisco. Passada essa fase, Prazeres Barbosa estudou um ano no Grupo Augusto Tabosa e outro ano no CNEC, até concluir o primário. Em seguida, foi estudar no Colégio Estadual de Caruaru onde cursou o Ensino Fundamental e concluiu o Magistério. Em 1973 prestou vestibular para o curso de Letras, iniciado no ano seguinte na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru (Fafica).

INFÂNCIA

Acasa da Rua Martin Afonso era muito pequena para acomodar uma família grande como a de Prazeres. Afora as máquinas de costura, uma cama de casal para todas as filhas, redes para os rapazes, a cama dos pais e uma grande mesa para cortar tecidos, não havia mais nada. Mas a casa era própria e eles não pagavam aluguel. Apesar disso, chegaram a mudar-se várias vezes. No bairro São Francisco, moraram ainda nas ruas São Mateus, Dom Pedro I e na Praça Coronel Porto. À medida que iam adquirindo condição de pagar o aluguel, sempre procuravam um espaço mais confortável para se instalarem, afinal, eram onze pessoas vivendo num espaço onde cabiam no máximo três. Mesmo tendo assumido responsabilidades muito cedo, Prazeres e seus irmãos também arranjavam tempo para brincar. Além do trabalho e da escola, os filhos eram incentivados pela mãe a serem felizes. Na infância, a menina Prazeres era muito levada. Sempre ativa, ela cantava, dançava e fazia estripulias. Suas brincadeiras preferidas eram barra-bandeira, escolinha e pastoril. As roupas eram feitas com papel crepom. Prazeres era a linha de frente. Torcedora do cordão azul vestia-se sempre como a “mestra”. A presença do rádio no dia-a-dia das famílias daquela época era muito forte. Por isso, as crianças gostavam de brincar de auditório, cantando as músicas que faziam sucesso. Prazeres sempre gostou muito de cantar. O gosto pela música foi herdado do pai, que cantava, tocava e declamava. Logo cedo, a menina se tornou fã de Núbia Lafayette. Naqueles tempos ela nem sabia o que as composições verdadeiramente queriam dizer, mas amava as vozes de Dalva de Oliveira, Carlos Alberto, Francisco Alves, Nelson Gonçalves, Cauby Peixoto. Esses eram os ídolos de Prazeres. Enquanto costuravam, dona Antonina e as filhas passavam o dia ouvindo a programação da extinta Rádio Difusora de Caruaru num pequeno aparelho da marca Pioneer. Inaugurada em 1951, a Difusora logo começou a tocar as músicas de Luiz Gonzaga, no auge da carreira, Cauby Peixoto, Emilinha Borba, Ângela Maria, Jackson do Pandeiro, Ari Lobo

e tantos outros. Os mais ouvidos na casa de Prazeres eram, sem dúvidas, Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro. Embora a televisão já tivesse chegado ao Brasil, ainda era privilégio das elites nesse tempo. Em Caruaru, além da programação radiofônica, o grande divertimento da população eram os cinemas. Existiam vários. Cine Teatro Caruaru, Cinema Santa Rosa, Cine São Jorge, Cine Bandeirantes e o Cine Irmãos Maciel. Prazeres chegou a frequentar algumas vezes, no domingo à tarde, as matinês do Cine Teatro Caruaru - que pertencia ao empresário Santino Cursino - e do Santa Rosa. As moças daquela época aproveitavam as matinês para encontrar os namorados. Ela, no entanto, ia sempre acompanhada pelas irmãs e pelos sobrinhos. Como não podiam pagar o cinema com frequencia, a diversão ficava mesmo por conta do rádio. Ouviam programas locais como Postal Sonoro, apresentado pela radialista Zélia Maria; Sociedade, comandado por Gleydes Cardim; Vesperal das Quintas, que ia ao ar nas quintas-feiras; além dos programas Festa no Palco e Expresso da Alegria, a grande audiência dos domingos. O que prendia a atenção era as rádio-novelas. As que mais marcaram aquele período foram Jerônimo: o Herói do Sertão, Além do Horizonte a Estrada Continua e O Direito de Nascer. “A gente tomava como se fosse real porque não sabia distinguir o que era ficção. Nós sofríamos com os personagens. No outro dia era aquele suspense, queríamos saber o que ia acontecer e todo mundo comentava, como se aquelas pessoas fizessem parte da nossa vida”, comenta a atriz. Na infância, Prazeres já sonhava em ser professora e atriz. Também queria muito ser cantora e aos 10 anos teve a primeira oportunidade de mostrar seu talento. Encantada com a programação da Rádio Difusora, ela foi levada pela mãe para participar do programa Expresso da Alegria, comandado pelo radialista Arlindo Silva, nas manhãs de domingo. O programa de auditório era competitivo. Ela se inscreveu, cantou e agradou à plateia e aos jurados com sua voz afinada. Alguns de seus irmãos também chegaram a cantar, mas não se destacaram tanto. “Na época, aprendi a tocar violão. Prazeres ia como caloura. Nós cantamos, mesmo

sem saber. Mas quem se destacou mesmo foi ela”, reconhece o irmão, Fernando Barbosa. Naquela época, o repertório de Prazeres era Núbia Lafayette e Dalva de Oliveira, mas, principalmente, Núbia. Ao lado de outros dois garotos, Marilene Caliupe e Joselito – este cantava as músicas do filme Dio come ti amo -, Prazeres tornou-se uma das cantoras mirins mais requisitadas da Difusora. Ela cantou ainda no Festa no Palco, transmitido no domingo à noite. Esse período marcou a história da cidade, consagrando nomes no cenário radiofônico local como Arapuã Barrocas, Ivan Bulhões, Liezid Interaminense, Clodovil Dantas e tantos outros. Como a família de Prazeres era muito grande e o salário que recebia era apenas para o sustento, os filhos mais novos aproveitavam as roupas dos mais velhos. As seis moças geralmente tinham dois vestidos: um para o dia-a-dia e outro para sair. Prazeres foi a filha que vestiu a roupa de todas as outras, porque era a caçula. Para cantar na Difusora, ela ganhou um vestido branco, usado por sua irmã Maria da Glória na formatura do colégio. Fizeram algumas adaptações e, com ele, Prazeres cantou diversas vezes no rádio. O vestido branco, com um grande laço, acabaria se tornando a sua marca registrada. Todos a conheciam como “a menina do laço branco”. Mas aquilo não a intimidava. Embora fosse sempre com o mesmo vestido, ela inovava no repertório. “Nos domingos, gostávamos de ir para a Rádio Difusora. Ganhávamos brindes quando respondíamos a perguntas. Era nossa diversão”, afirma Maria da Glória. O talento da pequena cantora foi reconhecido pela televisão da época. A TV Jornal do Commercio, canal 2, exibia programas de sucesso como os de Fernando Castelão e Florinda Rossi, que aproveitavam novos talentos do interior. Como era muito entoada e esperta, Prazeres chamou a atenção. Logo, quiseram levá-la para o Recife, mas a mãe não permitiu. A menina chorou muito. Depois desse episódio, Prazeres cantou algumas vezes na emissora, mas a vida começou a tomar outros rumos e ela continuou estudando e trabalhando. “Se eu não fosse atriz, seria cantora, caso tivesse enveredado”, revela. Nas ruas onde moraram, os filhos de dona Antonina e seu Antonio

não costumavam se envolver em confusão; afinal, passavam o dia trabalhando e depois iam para a escola. Um fato muito importante, todavia, marcou a infância de Prazeres, na época em que moravam na Rua Dom Pedro I. Uma das recomendações que a mãe sempre fazia era a seguinte: “Em hora de refeição, não se vai à casa de ninguém, para que ninguém venha na nossa”. Apesar de trabalharem muito, eles não possuíam nenhuma fartura no armário. O que os comerciantes pagavam à mãe era muito pouco. Dava apenas para sobreviver. A pulso. Certa vez uma amiguinha de Prazeres chegou num momento em que eles estavam comendo. Dona Antonina mandou que ela fosse rapidamente atendê-la, mas a garota entrou. Enquanto comiam, a menina observou tudo e depois foi embora. À noite, quando Prazeres saiu para brincar, todos sabiam que a família havia comido feijão puro. Zangada, foi brigar com ela. A confusão estava feita. As duas agarraram-se pelos cabelos e as mães precisaram intervir para acabar com a briga entre as crianças. O fato de trabalharem não impedia Prazeres e seus irmãos de frequentarem a escola, que estava sempre em primeiro lugar, afinal, eles queriam mudar de vida. Na época em que estudavam no Colégio Estadual de Caruaru, acordavam às seis da manhã e trabalhavam até às seis da noite. Tomavam banho, comiam um cuscuz sem nada e iam para a escola. Na década de 1960, Caruaru ainda era uma cidade com aspectos rurais, a maioria das ruas não era calçada e nem havia saneamento. Mas todas as noites eles estavam na escola. Dona Antonina ficava na porta de casa esperando os filhos voltarem. Às vezes, ia até o início da Praça Coronel Porto, somente para se certificar de que eles estavam retornando. Além de ver os filhos na escola, a vinda para a cidade oportunizou à jovem mãe o início de uma vida religiosa para os filhos – especialmente para a mais nova. Ainda criança, Prazeres foi crismada na Igreja do bairro São Francisco, em Caruaru. Uma cerimônia sem nenhum requinte. Nessa fase da vida, pensou em ser freira, chegando a pregar na parede de casa fotografias de atrizes vestidas a rigor. Sua vida religiosa, porém, foi desenvolvida longe da igreja católica. Grande parte dos artistas é assumidamente agnóstica.

Prazeres, não. Muito cedo começou a frequentar a igreja evangélica. Próximo à casa onde morava, existia uma congregação religiosa, mas o estilo não agradava a sua família. A gritaria nos cultos chegava a incomodá-los. Aos 12 anos, na Rua Martin Afonso, uma vizinha chamada Letícia Almeida (irmã do cantor e compositor Onildo Almeida) convidou Prazeres e sua família para assistirem ao culto na Igreja Batista. Um dia a menina decidiu ir e ficou encantada com o que viu e com a receptividade das pessoas. Lá, finalmente, poderia desenvolver os seus talentos. O “casamento” deu certo até demais. Foi na Primeira Igreja Batista de Caruaru que ela aprendeu a enfrentar o público. Participava do coral, grupo de teatro e estava sempre envolvida nas principais atividades desenvolvidas. Ocupou todos os cargos possíveis. “A igreja me deu a oportunidade de fazer isso, me desenvolveu a capacidade de falar em público, de estar em público, de fazer as coisas. A minha grande mãe de tudo é a igreja. Veja como ela foi importante na minha vida. Além da fé, ela contribuiu para o meu desenvolvimento artístico”, acredita. Engajada com os trabalhos, Prazeres começou a levar seus familiares para assistirem aos cultos, inclusive a sua mãe. Bernardo Barbosa passou muitos anos na Igreja Presbiteriana do Caiucá, chegando inclusive a ocupar o cargo de diácono. Ao passo em que quase todas as suas irmãs foram abandonando a igreja, Prazeres se firmava cada dia mais. Foi batizada, casou-se e apresentou o filho perante os membros. Lá, ela descobriu um momento belo da vida: desenvolveu o seu potencial de cantora, de professora e atriz. Monopolizava tudo. Era daquelas fiéis fervorosas, que iam para praça pública pregar o evangelho com o microfone na mão. Magra, com cabelos longos, era admirada por sua fé inabalável e pelo compromisso que tinha com a causa que havia abraçado. Ao lado de Ciron Almeida, outro jovem membro da igreja, abria o templo às cinco horas da manhã, com poucos fiéis, para orar. No ápice de sua entrega ao protestantismo, chegou a pedir a Deus para contemplar a face dEle. Queria ser provada. Era intensa em tudo o que fazia, como continua sendo até hoje. Passou mais de duas décadas assim. Sua dedicação era total em tudo que fazia.

Deixou a igreja no início dos anos 1980, quando se separou do primeiro marido. Embora ela amasse a vida cristã, estava aborrecida com o fato de as pessoas se sentirem no direito de comentar a sua vida pessoal. Nessa época, já estava envolvida com atividades artísticas na Escola Elisete Lopes e a igreja não aceitava a dedicação a trabalhos que não fossem feitos exclusivamente para ela. “O mesmo esforço que tem no teatro ela tinha na igreja, fazia tudo com muito carinho”, reconhece Maria das Neves, irmã de Prazeres. Outro fator que impulsionou a saída foi o fato de discordar de muitas das doutrinas pregadas. Uma série de acontecimentos que puseram fim a uma longa e bela trajetória. “Mas foi minha grande escola de vida, em todos os aspectos. Aprendi o que devia e o que não devia. As coisas foram acontecendo e comecei a me decepcionar. Essas pessoas da igreja também têm o mau costume de querer dominar sua vida. E eu não aceito isso. A sua fé é uma coisa, mas você querer mandar no meu cabelo, no tamanho do meu vestido, a gente sequer usava calça comprida! Você começa a perceber que aquilo não funciona”. Apesar de não estar mais na igreja, Prazeres continua alimentando a sua fé. Seu lado espiritual é muito forte. Não abre mão da crença em Deus e dos valores que absorveu ao longo dos anos em que se dedicou à prática do cristianismo. Ora todos os dias e diz acreditar que se realmente existirem céu e inferno, estará definitivamente num bom lugar. “O que freou Prazeres foi a religião. Se tivesse começado mais cedo, teria progredido muito mais. Mas ela entregou-se completamente, sequer cortava o cabelo”, opina Maria da Paz.

TRABALHO

Prazeres e suas irmãs continuavam trabalhando em casa e estudando. Quando Maria da Glória conheceu o alfaiate Armando Albuquerque, com quem casou, a família passou a costurar para os alfaiates Gerson e Esaú (este, proprietário da Alfaiataria Lins, onde Bernardo havia trabalhado). “Armando viu todo o nosso sofrimento e começou a aperfeiçoar

o trabalho delas. As coisas melhoraram um pouco. Prazeres começou a confeccionar camisas. Era um sucesso”, lembra Fernando Barbosa. Todos os filhos frequentaram escolas públicas, e eram alunos aplicados. Uns mais dotados que outros. Socorro, Mercês, Bernardo e Prazeres tiveram menos dificuldade e chegaram inclusive à graduação em nível superior. Mas os que mais se sobressaíram foi justamente Socorro, Bernardo e Prazeres; os três se tornaram professores. Desde criança, eles mostraram uma percepção e um interesse maior pelos estudos. Socorro Barbosa, por ser uma das mais velhas, era a grande incentivadora dos irmãos e foi exemplar nesse sentido. Bernardo Barbosa, por exemplo, chegou a trabalhar como ajudante de sapateiro, vendedor ambulante de cocada e de pequenos utensílios na Feira de Caruaru. Seu primeiro emprego formal foi na Camisaria Nordestina, para a qual sua mãe costurava. Nessa época, trabalhava como balconista da mesma empresa o jovem José Queiroz de Lima, que anos depois viria a ser prefeito de Caruaru. Depois, trabalhou como auxiliar na Alfaiataria Lins e, em 1965, a convite do cunhado, José Leite (casado com Maria da Paz) foi trabalhar como ajudante de carpinteiro. Fernando decidiu abandonar a Feira e foi junto. Zé Leite foi como um pai para a prole de dona Antonina e os ajudou em todos os sentidos. Pouco tempo depois, Bernardo sofreu um acidente na serra elétrica e ainda hoje carrega as marcas (três dedos de uma de suas mãos ficaram comprometidos). O fato abalou profundamente a família Barbosa. Impossibilitado de trabalhar, passou alguns meses em casa. Fernando continuou aprendendo a nova profissão. Hoje, ele sobrevive da arte ensinada pelo cunhado na adolescência. Recuperado do acidente, em 1965, Bernardo Barbosa, aos 17 anos, conseguiu um emprego na Prefeitura de Caruaru. Em 1969, tornou-se funcionário da Fundação Instituto de Administração Municipal (FIAM) extinto órgão do governo estadual que prestava assistência técnica aos municípios. Nessa época, ele foi viver em Recife com a irmã Maria da Paz, que já havia casado e morava na capital pernambucana. Em 1975, pediu demissão para lançar-se como profis-

sional autônomo. Formado em Contabilidade e em Direito, hoje é proprietário do Centro de Estudos, Pesquisa e Assessoria em Administração Municipal (Cespam) prestando consultoria técnica para as prefeituras do interior pernambucano. Da Paz, Glória e Neves não concluíram os estudos, dedicaram-se ao trabalho para ajudar a mãe a criar os filhos mais jovens. Fernando casou, foi viver em São Paulo e também não terminou os estudos. Disciplinadas, as irmãs Prazeres e Socorro sempre se reuniam para solucionar dúvidas, na residência de amigas ou em casa. Na época do Magistério, no Colégio Estadual, iam para a escola no turno da manhã e estudavam durante a tarde. No outro dia, costumavam levar questões para o professor de Matemática, o conceituado José Bione de Araújo. O grupo era liderado por Socorro, que desde cedo mostrou aptidão para o ensino. Num desses encontros, as irmãs marcaram para estudar com uma colega. Ela tinha dúvidas e pediu a Socorro para ajudá-la. Ao chegar à casa da família, a menina se negou a entrar. “Eu nunca vou esquecer. E quando Socorro chegou à escola, no outro dia, todos os colegas sabiam da pobreza de nossa família. Isso eu não perdôo”, revela Prazeres. O fato de a menina ter espalhado na rua que eles comiam feijão puro, na infância, e esse episódio ficaram registrados em sua memória. Tais lembranças deixaram nela marcas profundas de simplicidade e solidariedade. Prazeres é daquelas pessoas que se identificam com os menos favorecidos. Chora ao ver a fome massacrar seres humanos. Fala a linguagem dos que por falta de oportunidade acabam trilhando caminhos árduos. “Não é por que é pobre que você é marginal; não é por que você é pobre que não presta; que não tem visão! É falta de oportunidade, porque os que têm, não dão”, diz a atriz, com os olhos cheios de lágrimas. Mesmo sendo a caçula, Prazeres não desfrutou de privilégios. Em casa, a mãe nunca fez distinção entre os filhos. Todos eram tratados da mesma forma. Dona Antonina era uma mulher sábia e por isso dividia as tarefas. Os filhos mais velhos cuidavam dos mais novos. Maria da Glória, por exemplo, foi a ‘babá’ de Prazeres. A irmã que passava o maior tempo com ela, cuidando, ensinando ou catando piolhos. Isso fazia com que os filhos fossem

muito obedientes, tanto aos pais, quanto aos irmãos mais velhos. A pobreza da família era tão grande que nenhum deles se lembra de na infância ter ganho brinquedos. Prazeres sempre sonhou com uma boneca. Para agradar aos filhos, seu Antonio fazia bonequinhos com casca de melancia, depois do almoço. Ele retirava a parte grossa da fruta, cortava os bonequinhos e os filhos mais novos brincavam. Já adolescente, Prazeres ganhou de Maria da Glória uma boneca como a que sonhara ao longo da infância. “Mas eu já não estava mais no tempo de brincar de boneca”, conta. No final de década de 1960, com o anúncio da chegada do homem à lua, brinquedos relacionados à temática foram lançados. Os mais populares eram os homens da lua. “Meu namorado, Armando, com que casei e vivi durante 24 anos, comprou dois homens da lua, deu um para Prazeres e outro para Lucivanda (sobrinha da atriz). Um boneco pequeno. Mas você precisava ver a alegria daquelas duas crianças”, recorda Glória, sorrindo. Aos 18 anos, José Barbosa, irmão de Prazeres, continuava lavando carros. Nessa época, eles moravam na Martin Afonso e veio morar na mesma rua um homem conhecido por seu Mita, que possuía um caminhão de carga. Dedé, como era chamado pela família, praticava halterofilismo e levantamento de peso, assim que chegava do trabalho, para manter o corpo sempre musculoso. Ao constatar o porte do garoto, seu Mita o convidou para trabalhar como calunga (na gíria dos caminhoneiros, diz respeito àqueles que viajam sobre o caminhão, carregando e descarregando mercadorias). Apesar da pequena função, sair da praça onde lavava e vigiava carros representava um degrau avançado. Em casa, até então, eles só comiam feijão de corda (conhecido também como xoxa bunda), consumido naquela época apenas por famílias menos abastadas. Dedé foi trabalhar e quando voltou com o primeiro dinheiro, comprou dois quilos de feijão mulatinho. “Pronto mamãe, a partir de hoje nessa casa não entra mais feijão xoxa bunda”. Na madrugada do dia 3 de julho de 1957, a mãe o acordou diversas vezes para que ele não perdesse a hora. Dedé estava com muito sono, mas saiu para mais uma viagem. Quando retornasse, comeriam o novo feijão que dona Antonina havia colocado no fogo. O rapaz foi para o Recife, com seu Mita e uma carona – uma velha senhora que iria visitar o filho na

capital. Era a segunda viagem. Durante o trajeto, ao chegarem à descida da Serra das Russas, entre as cidades de Gravatá e Pombos, o caminhão (carregado de estopa) tentou fazer uma ultrapassagem e virou. Morreram todos. Um episódio doloroso. Se houvesse viajado na parte de cima do veículo, Dedé talvez tivesse sobrevivido, uma vez que caíram na água. Mas, nesse dia, ele foi justamente na boléia. A família soube da tragédia por volta das sete horas, quando um rapaz chegou à residência comunicando. José Barbosa morreu aos 18 anos, trabalhando. E não comeu o feijão que havia comprado para comer com a família. Já passava das 16 horas quando dona Antonina e seu Antonio chegaram trazendo o corpo do filho numa caminhonete. “Eu me lembro vagamente do fato, pois era muito pequena. Lembro que todos choravam e eu sentada na calçada pedindo 500 réis a todo mundo. Era uma moeda equivalente a 50 centavos e eu sempre pedia para comprar nêgo bom”, diz Prazeres. Esse foi um dos episódios mais marcantes na vida da pequena garota Prazeres, que mal imaginava o que o destino lhe reservaria. Em 1973, ela concluiu o Pedagógico no Colégio Estadual de Caruaru. Começava aí uma nova fase de sua história. Impossibilitada de seguir a carreira de cantora e sem que ainda houvesse travado um contato com o teatro, decidiu enveredar pelo Magistério. A nova e significante profissão, porém, começou mais cedo do que se possa imaginar. Mesmo sem possuir diploma, a menina do laço branco já se aventurava numa escola criada em sua própria casa. Iniciava-se, assim, sua paixão pela arte do ensino.

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