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4. Teatro, prêmios e consagração

Capítulo 4

Teatro, prêmios e consagração

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OGrupo de Teatro do Sesc Caruaru foi criado em maio de 1980 através de uma oficina para iniciantes, ministrada por Severino Florêncio na antiga unidade do Sesc, localizada na Rua Mestre Pedro, próximo à estação ferroviária de Caruaru. Nessa época, o Sesc estava interessado em contratar alguém que pudesse movimentar a área teatral, a fim de montar um grupo para se apresentar em Caruaru e noutras cidades, servindo como instrumento de divulgação. A descoberta de Severino Florêncio, que dois anos antes havia iniciado sua vida artística no Teatro Experimental de Arte (Tea), foi feita pela então funcionária do Sesc, Maria Gilvaneide Vital (falecida). Ele apresentou sua proposta para a diretora da unidade, Sônia Raposo, que simpatizou com a ideia. Logo, o ator oficineiro tornou-se diretor artístico dos espetáculos montados e produzidos pelo Sesc, onde trabalha até hoje. A estrutura inicial do grupo era precária. Severino, no entanto, soube lidar muito bem com as limitações. De início, montou pequenos espetáculos como Fuga de Lampeão (criação coletiva do grupo) e Pesadelo (de Alfredo Montavani). Em 1982, estrearam a terceira montagem, Hoje a Banda Não Sai, de Severino Tavares. Foi nesse ano que Prazeres chegou ao Sesc. No final de 1981, quando foi convidada por Severino Florêncio, durante a premiação do I Feteag, Prazeres estava vivendo uma das piores fases de sua vida pessoal. Recém-separada, afastada da Igreja Batista – onde havia passado boa parte de sua vida - temia o que a família e os amigos poderiam pensar caso começasse a se dedicar ao teatro, que não era visto com bons olhos pela sociedade daquela época. Insegura, ela demorou algum tempo para aceitar o convite. Acompanhada por Erenice Lisboa, sua companheira de escola e teatro, no ano seguinte Prazeres deu um importante passo rumo à concretização de seu sonho de infância. Erenice era uma pessoa de mente aberta e muito tranquila. A sua forma de enxergar a vida foi decisiva para que Prazeres aceitasse enveredar pelo teatro. Ao passo em que a carreira como professora estava cada vez mais consolidada, a trajetória de sucesso nos palcos começaria alguns anos depois que ela decidiu atender ao chamado de Severino.

Tímida, com dificuldade para se entrosar com a equipe e totalmente desvinculada do movimento artístico, Prazeres começou a participar de oficinas, assistir a vários espetáculos e a acompanhar o grupo em suas apresentações. Adiante, montaram dois novos espetáculos: O Planeta das Crianças (de Severino Tavares) e Virgulino na Escola (de Francisco Filho). Prazeres até então não havia sido escalada para compor o elenco de nenhuma peça. Em dezembro de 1983, a unidade do Sesc Caruaru foi transferida para o bairro Petrópolis, onde funciona até os dias atuais, permitindo que as atividades artísticas fossem ampliadas. Meses antes, em nove de julho, o extinto jornal A Defesa, da Diocese de Caruaru, anunciava que após uma cuidadosa escolha de texto, “foi feita uma seleção com os atores mais experientes para compor o elenco do sexto espetáculo montado pelo Grupo de Teatro do Sesc”. Escrita por Ariano Suassuna, A Pena e a Lei foi a primeira grande montagem do grupo e marcaria a estreia de Prazeres Barbosa nos palcos. Ao abraçar a carreira artística, Prazeres enfrentou o desprezo de todas as pessoas que amava. Com exceção de sua mãe, dona Antonina, todos se afastaram dela por não aceitar a sua mudança de comportamento. Sozinha, com um filho pequeno, passou a encontrar no teatro as alegrias que a vida retirara de si até então. “Foi uma surpresa porque não imaginávamos que no seio de uma família tão pobre e dedicada ao trabalho duro, viesse a surgir uma atriz. Achava-se que quem estava envolvido em teatro eram pessoas senão na sua totalidade, mas de certa forma excluídas da convivência social”, explica Bernardo Barbosa, irmão de Prazeres. A mesma opinião é compartilhada pela irmã Maria da Paz. “Nós achávamos que uma pessoa séria, de boa índole, não devia se envolver com teatro. Eu, na verdade, não gosto de teatro. Ia apenas para prestigiála. Logo no início, diagnostiquei-a como uma boa profissional. Mas, para mim, ela nasceu para ser mestra. Caruaru perdeu uma pessoa de alto nível na área de educação. Mamãe era tão apaixonada por ela que se não gostasse de vê-la fazendo teatro, omitia”, afirma. Nessa época, trabalhava no Sesc uma psicóloga chamada Socorro, que promovia equipes de interação entre o grupo. Através de rodas de conversas, ela fazia um acompanhamento psicológico importante para que

cada um dos atores e atrizes pudesse superar perdas, angústias e separações. “Aquilo nos ajudou a sentir que não estávamos fazendo nada errado, muito pelo contrário, nós estávamos apostando nos sonhos”, afirma Prazeres. Mesmo sem contar com o apoio da família, ela disse para si mesma que iria fazer teatro. E assim o fez. A Pena e a Lei era um espetáculo com mamulengos e estreou em abril de 1984, num pequeno auditório onde hoje funciona o Teatro do Sesc. O espaço era utilizado para reuniões e festas e havia um palco de cimento. A equipe foi improvisando, colocou refletores, ornamentou a sala e convidou a plateia. A história é composta por três atos e Severino Florêncio montou o espetáculo com apenas dois. O primeiro personagem interpretado por Prazeres foi a boneca Marieta. Cerca de 70 pessoas assistiram à sua estreia no teatro. Aos 34 anos, a atriz iniciava ali uma nova história de vida que nos anos seguintes tornar-se-ia vitoriosa. Em suas primeiras apresentações, Prazeres logo conquistou o público pela desenvoltura e naturalidade em cena. Ao vê-la atuar, o teatrólogo caruaruense Vital Santos, autor da consagrada peça O Auto das Sete Luas de Barro, que conquistou em 1980, no Rio de Janeiro, o prêmio Molière de direção, reconheceu o talento da atriz iniciante. “Menina, onde era que tu estavas escondida”, disse na ocasião. Em agosto de 1984, o Grupo do Sesc Caruaru inscreveu A Pena e a Lei para participar do III Festarc (Festival de Teatro de Arcoverde), no Sertão pernambucano. A participação rendeu ao grupo três importantes troféus. Severino Florêncio foi eleito melhor diretor, a montagem recebeu troféu de melhor espetáculo escolhido pelo júri popular e a principiante Prazeres Barbosa eleita atriz revelação, recebendo o primeiro prêmio da carreira. “Discutimos em grupo por que fazer esse espetáculo. Nós queríamos continuar fazendo um espetáculo regional, que agradasse ao público, com um autor consagrado e que tinha a ver com teatro de mamulengo. Então, montamos um belo figurino, uma bela maquiagem e com poucos recursos a gente fez um espetáculo bonito e dinâmico. Prazeres atuava e dava um colorido especial à peça”, destaca Severino Florêncio. A Pena e a Lei participou ainda do projeto Vamos Comer Teatro,

promovido pela Federação de Teatro de Pernambuco (Feteape); do IV Festival de Teatro Estudantil do Agreste e do VIII Festival de Teatro Universitário de Feira de Santana (BA), em 1985, conquistando o Jalesco de Ouro como melhor espetáculo apresentado. Prazeres recebeu indicação para o prêmio de melhor atriz. A peça realizou prolongada temporada em Caruaru e visitou mais de 20 cidades do Agreste e Sertão pernambucanos. A partir daí, a atriz teve ainda mais certeza de que estava no caminho certo e decidiu investir em si própria. Além de atuar, no grupo do Sesc, Prazeres desenvolveu, ao lado de Severino, uma parceria importante na direção de elenco dos espetáculos. O fato de ser professora a ajudava a opinar acerca das pontuações que poderiam ser feitas para melhorar a cena, exprimia com facilidade algumas intenções e isso fez com que Severino passasse a acreditar ainda mais em seu talento, a ponto de lhe dar os papéis principais dos maiores espetáculos que o grupo montou ao longo dos 15 anos em que existiu. “Nossa preocupação sempre foi com a disciplina. E Prazeres sempre foi super disciplinada, muito responsável e isso me agradou”, comenta o diretor. Finda a temporada do espetáculo, a equipe se reuniu para discutir qual peça iria montar em seguida. Uma das características do Grupo do Sesc era a rotatividade de espetáculos e o caráter regionalista dos mesmos. Severino selecionava alguns textos e apresentava-os para decidirem conjuntamente qual iriam montar. Em junho de 1985, estreava no auditório da Casa de Cultura José Condé, em Caruaru, o espetáculo O Recado do Verde, de Erenice Lisboa, que até então tinha suas peças montadas apenas por Prazeres Barbosa, na Escola Elisete Lopes. O Recado do Verde é um espetáculo infantil musicado “dedicado às crianças, que são mais sinceras e reais que o adulto, pois ainda não sabem reprimir suas emoções”, dizia sua autora. A peça contava ainda com cinco músicas compostas por Abenildo Andrade. Em seu segundo espetáculo, Prazeres interpretava uma margarida. Um fato marcante aconteceu nesse período. Convidado pela direção do extinto Colégio Santo Antônio, de Caruaru, o grupo foi apresentar o espetáculo para os alunos. Uma apresentação meio conturbada, devido à

má educação de algumas crianças, mas que prosseguiu até o fim. Quando a peça acabou, a plateia foi cumprimentar o elenco. Uma menina olhou para outro garoto e comentou, referindo-se a Prazeres: “ela é uma velha”. Um pouco surpresa, a atriz respondeu afirmando que era de fato uma velha, mas que estava interpretando uma flor. “Aquilo me marcou muito pela visão da criança, porque ela assistiu ao espetáculo e ali eu era uma menina. Eu tinha 35 anos e consegui passar aquela mensagem para ela”, relembra. Essa, aliás, não foi a primeira vez que Prazeres interpretou uma personagem mais jovem. Em 1995, aos 45 anos, quando estreou Valsa nº 6, de Nelson Rodrigues, ela viveu uma menina de apenas quinze anos. “Mas as pessoas não viam a de 45, viam a de 15”, acredita. Com a peça de tema ecológico O Recado do Verde o grupo se apresentou em cidades como Recife, Arcoverde, Garanhuns, Riacho das Almas e no Festival de Inverno de Campina Grande (PB), em julho de 1985. Foi indicado como melhor espetáculo no VI Festival de Teatro de Bolso do Recife, em agosto do mesmo ano. O “recado ecológico” teve vida longa. Dois anos após sua estreia, permanecia em cartaz no Teatro João Lyra Filho, conforme nota divulgada pelo Jornal do Commercio de 03 de janeiro de 1987. Contudo, foi o único espetáculo promovido pelo Sesc através do qual Prazeres não recebeu troféu de melhor atriz. Enquanto ainda estava em cartaz com O Recado do Verde, em maio de 1986 o grupo estreou no Teatro João Lyra Filho a peça Solte o Boi na Rua, de Vital Santos. O espetáculo abordava os problemas sociais, destacando o descaso com a cultura popular, e concedeu um novo status ao grupo, permitindo a participação num circuito nacional de teatro. Em Solte o Boi na Rua, baseado na literatura de cordel, Prazeres era Amélia, uma das protagonistas do espetáculo. “Nas administrações públicas a única coisa que não é prioridade é o fazer artístico. Se você não priorizar a cultura, não levará sua cidade a lugar algum. A educação e a saúde passam primeiro pela cultura. É cultura com educação, cultura com saúde. É a cultura em primeiro lugar e as outras coisas vão sendo acrescidas. O espetáculo falava sobre isso, tudo era prioridade, menos a apresentação do Boi”, analisa Prazeres.

Com o objetivo de integrar grupos teatrais do Nordeste e CentroSul, o Departamento Nacional do Sesc promoveu entre os meses de outubro e novembro de 1987 um Circuito Nacional de Teatro. Por sugestão de Severino Florêncio, o Grupo de Teatro do Sesc Caruaru foi o primeiro da região a participar deste circuito e levou o espetáculo Solte o Boi na Rua para ser assistido por plateias de Curitiba e Ponta Grossa (PR), Rio de Janeiro, Barra Mansa e Friburgo (RJ) e Salvador (BA). Essa foi a primeira grande turnê do grupo, que a essa altura já tinha um nome consolidado. A peça foi fundamental para que Prazeres se tornasse conhecida em todo o interior de Pernambuco. Espetáculo circense pela linguagem, pela forma de apresentação e pelo cenário, Solte o Boi na Rua realizou mais de 80 apresentações, em aproximadamente 30 cidades. Participou ainda do projeto Vamos Comer Teatro em Palmares, Caruaru e Arcoverde; da I Mostra de Teatro de Garanhuns; XII Festival de Inverno de Campina Grande; I Mostra de Teatro de Caruaru e do XVII Festival de Arte de São Cristóvão (SE). O espetáculo teve boa aceitação por parte do público e da crítica e concedeu a Prazeres dois importantes prêmios de melhor atriz. O primeiro, na XII Mostra de Teatro Amador Brasileiro de Campina Grande (PB), em 1986; o outro, no IX Festival de Teatro Amador Universitário do Nordeste, realizado em novembro de 1987, na cidade de Salvador (BA). Também foi indicada ao prêmio, em agosto de 1986, durante o Festival de Inverno de Campina Grande. O sucesso garantido com o espetáculo exigiu que o próximo fosse ainda melhor, em todos os sentidos. Essa, aliás, era uma preocupação constante do grupo que quando estava em cartaz com uma peça, já se preparava para montar outra. Em suas reuniões, além das constantes oficinas – ministradas por Severino Florêncio e outros convidados – os integrantes participavam de debates e realizavam pesquisas sobre textos. Os ensaios aconteciam geralmente nos finais de semana, no próprio Sesc. Com exceção de Severino, que era funcionário do órgão e recebia remuneração pelos trabalhos desenvolvidos, nenhum dos participantes ganhava qualquer valor financeiro. Antes de montar a peça, a equipe criava

um projeto, com planilha de custos e encaminhava à direção regional do Sesc. Depois, o valor era liberado. A instituição fornecia todas as condições necessárias para a realização do espetáculo, em seguida, o grupo restituía o valor com o dinheiro apurado nas bilheterias. Também destinavam 10% do valor ao teatro e mais 10% ao autor do texto. “O trabalho era auto-financiado, o Sesc dava todo o apoio logístico que eles precisavam. Todas as peças que apresentaram sempre agradaram muito ao público e a gente tinha um retorno financeiro bom por conta disso; eram peças em sua maioria cômicas e que agradavam muito. Prazeres marcou muito no desempenho das funções dela e foi uma das pessoas que se sobressaiu no grupo pelo trabalho, pelo comprometimento, pela tenacidade, pela criatividade”, comenta Sônia Raposo, diretora do Sesc Caruaru durante 30 anos e incentivadora do grupo. Apesar de não receberem nada pelo trabalho, os atores sentiam-se satisfeitos por estarem engajados no movimento teatral, contarem com oficinas gratuitas de teatro e com a oportunidade ímpar de se apresentarem em cidades do Brasil inteiro. Além de desfrutar da possibilidade de competirem em festivais regionais e nacionais ao lado dos maiores grupos e companhias teatrais do Brasil e também do exterior. Nas temporadas promovidas pelo Sesc, viajavam com todas as despesas garantidas. Geralmente iam para um local onde existisse uma colônia da instituição e lá ficavam hospedados. “Quando tinha cachê e já havíamos pago ao Sesc, investíamos no próximo espetáculo ou fazíamos uma festa para o elenco”, lembra Severino. O dinheiro que entrava geralmente era muito pouco, mesmo assim algum tempo depois Severino fez um acordo com o Sesc para dividir percaptamente, entre todos os integrantes, o dinheiro que sobrasse após haverem quitado a dívida com o órgão. “A essa altura todos já tinham visto o espetáculo, então ‘pingavam’ algumas poucas pessoas. E era tão pouco o que sobrava que nós passávamos na lanchonete de Prezado (Cosme Soares, ator caruaruense já falecido) e comíamos um sanduíche. Mas a gente era super feliz!”, conta Prazeres. Em muitas das apresentações que fizeram no interior pernambuca-

no, o grupo contou com o apoio de uma senhora chamada Maria das Noivas, que os colocava sobre um caminhão, preparava um sanduíche de arroz para cada um e levava-os até o local da apresentação. Maria é uma religiosa, envolvida no movimento católico e possuía uma loja de venda e aluguel de vestidos de noiva em Caruaru, daí o motivo de seu nome. Amante das artes e apaixonada pelo grupo, ela viabilizou várias apresentações em igrejas e paróquias naqueles tempos. À medida que os espetáculos foram se sucedendo, a fama do grupo se espalhou rapidamente. Depois da experiência positiva de espetáculos como A Pena e a Lei e Solte o Boi na Rua, o grupo decidiu apostar em um projeto ainda mais desafiador. Seguindo a temática de montar espetáculos regionais que estivessem mais próximos da realidade local, em 1987 iniciou as primeiras leituras de A Promessa, escrita pelo pernambucano Luiz Marinho. O espetáculo de maior sucesso da carreira do grupo e que consagrou Prazeres Barbosa nacionalmente. Quando Severino Florêncio, através do Sesc, pediu autorização ao autor para montar a peça, precisou enfrentar o primeiro dos muitos desafios que se sucederiam. Exigente, Luiz Marinho disse que liberaria o texto caso pudesse indicar quem seria a intérprete de Sebastiana, protagonista do espetáculo. Isso causou um grande impacto entre a equipe, especificamente em Prazeres, que mais uma vez havia sido escolhida para protagonizar a peça. Severino então o convidou para assistir a uma leitura do espetáculo e ele se dispôs a ouvi-los. O encontro aconteceu numa sala de formato redondo localizada no Sesc Caruaru. Prazeres foi logo perguntando qual parte do texto Severino gostaria que eles lessem, a fim de que Luiz Marinho pudesse apreciar o trabalho. Em cena, ela procurou dar o máximo de si, ao lado dos outros atores que integravam o elenco. Quando terminaram, ficaram surpresos com a postura do autor. Impressionado com o que havia visto, Luiz Marinho pediu desculpas e disse que a “sua” Sebastiana estava na mão certa. Prazeres ficou muito vaidosa com tudo aquilo. Para compor a personagem, a atriz teve a oportunidade de fazer laboratório dentro da própria casa. Na época em que iniciaram os primeiros

ensaios, uma prima da família, conhecida por Nana de Zé Romeu, veio passar uma temporada na residência dos Barbosa. Caipira, criada no sítio, Prazeres viu naquela figura a imagem ideal para construir a sua personagem. Sem que ninguém soubesse, começou a observar todos os trejeitos da mulher. Procurava ver como ela comia, andava, dormia, a maneira como fazia as coisas. Uma sintonia quase que perfeita, afinal, Sebastiana era pobre, ignorante, zarolha e sequer sabia usar um vaso sanitário. A Promessa estreou no dia 1º de julho de 1988, às 21h, no Teatro João Lyra Filho e atraiu grandes plateias em suas primeiras apresentações. O espetáculo recebeu atenção especial da mídia local e regional e, durante meses, alimentou as seções de cartas à redação dos principais jornais, enviadas por quem assistiu à peça. Oito anos após sua criação e com nove espetáculos montados, o Grupo de Teatro do Sesc Caruaru foi apontado pela imprensa como o mais ativo na produção teatral da cidade naquela época. A nova montagem retratava a falta de entendimento entre o homem do campo e o homem da cidade, abordando satiricamente este tema numa linguagem regionalista. O texto valorizava o ambiente rural, seus costumes e crendices. O gestual, o sentimental e o brejeiro ganhavam uma dimensão lírica e ao mesmo tempo cômica em A Promessa, onde a sensualidade estava atrelada à malícia do “matuto”. Sebastiana, ainda que envelhecida, esbanjava vigor amoroso e sexual, a ponto de castrar acidentalmente o marido, numa mandinga de cigana. Um dos momentos mais engraçados da comédia era o depoimento prestado por ela em uma delegacia. Numa das primeiras apresentações do espetáculo, Luiz Marinho compareceu ao Teatro João Lyra Filho para assistir ao espetáculo. Quando os aplausos cessaram, o autor ficou de pé e pediu a atenção de todos os presentes. “Esse texto foi montado por muitos grupos e eu nunca tinha visto a Sebastiana que escrevi. Hoje, eu estou vendo a minha Sebastiana, aquela mulher com a simplicidade, com a pureza, eu estou vendo hoje e estou muito feliz”, disse, na ocasião. Em seguida, não conteve as lágrimas. Maria da Paz, irmã mais velha de Prazeres, também assistiu A Promessa e no final perguntou para ela o que Nana de Zé Romeu estava fazendo ali. As semelhanças eram tantas que quem conhecia aquela mulher

do sítio percebia claramente que Prazeres havia se espelhado nela para compor sua personagem. “Por onde andou, Sebastiana foi um sucesso. Ela era tão querida que certa vez uma mulher grávida veio até mim, com o marido, e disse que se o filho fosse menina iria se chamar Sebastiana, em homenagem ao personagem”, diz Prazeres. Três meses após a estreia, em outubro de 1988, o grupo participou com A Promessa do X Festival Amador e Universitário do Nordeste, em Feira de Santana (BA). A apresentação aconteceu na noite do dia 27, no Teatro Municipal, e rendeu dois troféus ao grupo caruaruense: de melhor direção, para Severino Florêncio e melhor atriz para Prazeres Barbosa. Alguns dias antes de embarcarem rumo à Bahia, apresentaram o espetáculo no Teatro do Cabo de Santo Agostinho (PE), que estava lotado. “Todo o elenco está perfeitamente situado na peça, mas o talento de Prazeres Barbosa certamente se sobressai”, dizia matéria do Jornal Vanguarda em cinco de novembro de 1988. A boa aceitação da peça, pelo público e pela crítica, fez com que o grupo continuasse encenando A Promessa no ano seguinte. Em agosto de 1989, somavam mais de 80 apresentações em diversos Estados brasileiros. O alcance do espetáculo fez com que a Direção Nacional do Sesc convidasse o grupo para participar do VI Circuito Nacional de Teatro. Dentre os 42 grupos inscritos, a equipe caruaruense foi uma das cinco escolhidas. Essa foi a segunda turnê do grupo pelo Brasil, que havia participado dois anos antes do mesmo projeto com Solte o Boi na Rua. O Circuito Nacional aconteceu entre os dias 02 e 22 de maio de 1989. Desta vez, o número de capitais visitadas foi ainda maior. A turnê foi iniciada em Salvador, onde o grupo fez duas apresentações para um público de 650 pessoas. Em Aracaju, apresentaram-se para cerca de mil pessoas. Nas duas exibições em Maceió, a peça atraiu um público de 265 pessoas. Em João Pessoa, houve uma apresentação para 500 espectadores e outra, em Guarabira (PB), para 430. Em Fortaleza, as duas últimas apresentações foram vistas por 758 pessoas. O espetáculo foi notícia nos principais jornais das cidades por onde passou. Após o êxito alcançado com a turnê, em cidades do Norte-Nordes-

te, o Grupo de Teatro do Sesc Caruaru – considerado um dos 18 melhores grupos de teatro amador do Brasil, à época – foi convidado para representar o Estado de Pernambuco no XI Festival Nacional de Teatro Amador, ocorrido entre os dias 13 e 25 de julho de 1989, na cidade de São José do Rio Preto (SP). Para participar do evento e da 1ª Paralela Nacional Competitiva de Teatro, o grupo cênico competiu com outros 97 grupos teatrais espalhados pelo País. Adiante, a equipe, formada por 13 pessoas, partiu rumo a São Paulo. A boa fama do grupo ajudava nas horas em que precisavam conseguir patrocínio para viajar. Nesse período, já não mais precisavam ir tão longe dentro de um ônibus. Foi nessa fase que muitos dos integrantes viajaram pela primeira vez de avião. Coisas hilárias aconteciam nas viagens. Josinaldo Venâncio, um dos atores, confundiu uma toalha branca, para enxugar as mãos, com uma tapioca de coco. A confusão rendeu boas gargalhadas durante o vôo. Em um dos hotéis onde ficou hospedado, o grupo passou o maior sufoco. Havia no local cofres para os hóspedes guardarem suas jóias. A turma achou aquilo interessante e depositou todas as bijuterias dentro de um dos compartimentos. Na hora da saída, foram informados de que era necessário pagar pelo serviço. A notícia agradou pouco. “A gente era tão ingênuo, que tempo bom! Eu sinto saudade desse tempo. Levávamos um monte de malas, sem necessidade. Nos divertíamos muito nessas turnês”, lembra Prazeres. A apresentação aconteceu no Teatro Municipal de São José do Rio Preto, em 21 de julho de 1989. No dia seguinte, o Diário da Região, um dos principais jornais da cidade, trazia estampado na capa chamada informando que “o público aplaudiu em pé a atriz Prazeres Barbosa, no papel de Sebastiana”. A edição do dia 23 trouxe uma crítica de Dinorath do Valle, para quem “o sustentáculo do espetáculo foi a comediante Prazeres Barbosa criando o personagem caricatural cuja graça e humor se concentram na mímica e nas dificuldades que tem em compreender a linguagem coloquial da classe média”. A aclamação fora confirmada em seguida pela comissão julgadora

do festival. No dia da premiação, representantes das vinte e cinco peças apresentadas na competição assistiram a um dos momentos mais importantes da carreira artística de Prazeres Barbosa. Aos 39 anos, em seu quarto espetáculo teatral, a atriz caruaruense recebeu um dos mais importantes prêmios do teatro amador brasileiro, ao ser eleita melhor atriz em um grande festival nacional de teatro. O troféu foi recebido das mãos da atriz Lélia Abramo (morta em 2004), que havia participado do júri. A atriz fez questão de presentear Prazeres Barbosa com o ramalhete de flores que recebeu da organização do evento. Prazeres foi aclamada por unanimidade e a plateia vibrou com tudo aquilo. O grupo voltou satisfeito para sua terra natal onde cumpriu a temporada final do espetáculo. Uma das últimas apresentações de A Promessa aconteceu no dia 26 de setembro de 1989, no auditório da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru. Em seguida, o grupo passou a se dedicar à montagem de um novo espetáculo. Nó de 4 Pernas foi ainda mais desafiador do ponto de vista da atuação para Prazeres. A peça também encerrava sua atuação no grupo do Sesc Caruaru. Escrita pelo jornalista paraense Nazareno Tourinho, Nó de 4 Pernas é uma comédia filosófica aliada ao drama e que resulta numa análise do socialismo, questionando desde o direito do trabalhador à linha progressista da Igreja Católica. Com a meta de superar – ou, pelo menos, alcançar - o êxito registrado com A Promessa, a peça estreou no dia quatro de agosto de 1990, no Teatro João Lyra Filho, em Caruaru. Após duas décadas sob a influência de temas regionalistas, o grupo começava com este trabalho a se tornar mais universalista em seus trabalhos. Protagonista da história, o padre Elias é o centro das atenções para onde convergem as tramas paralelas no espetáculo. Um falso padre, que ameaça as figuras de destaque da cidade de terem seus pecados privados tornados públicos, caso não favoreçam as “causas” da Igreja. Cabe a ele desfazer o “nó-cego” de quatro pernas que é casar dona Nazaré com o sacristão Euzébio e evitar que a mulher do prefeito, dona Iraneide, grávida do comunista Zé Pedro, saiba que o autor da gravidez da puta Ludovina,

namorada de Zé Pedro, é seu marido, o coronel e prefeito Menacê. O intérprete do padre Elias foi escolhido por Severino Florêncio, diretor do espetáculo. A escolha foi surpreendente. O padre não seria vivido por nenhum dos homens, mas por uma mulher. “Eu pensei em Prazeres como atriz fazendo o padre não pelo tipo, nem pela voz, mas pela garantia que ela passava como intérprete. No início, ela pensava até em colocar barba e bigode, mas eu queria algo sem caricatura”, destaca Severino. Na figura do padre trapaceiro, Prazeres arrancou muitas risadas e aplausos das plateias que assistiram ao Nó de 4 Pernas. Quem viu, garante que a atuação era tão segura e perfeita que ficava difícil enxergar uma mulher debaixo da batina branca usada pela personagem. Além disso, a peça parecia ter sido escrita sob encomenda para o grupo do Sesc Caruaru, como escreveu o crítico paulistano Hamilton Saraiva. Durante todos os finais de semana em que esteve em cartaz, o teatro lotou para assistir ao espetáculo. A primeira temporada foi encerrada no dia 23 de setembro de 1990, uma semana antes da prevista, para que o grupo pudesse participar do IV Congresso Pernambucano de Teatro Amador, na cidade do Recife. O evento foi realizado no Teatro Santa Isabel, entre os dias 28 e 30, e o grupo do Sesc Caruaru foi escolhido, entre os demais existentes no Estado, para apresentar Nó de 4 Pernas na abertura. O destaque de Prazeres ao dar vida ao trambiqueiro padre Elias fez com que a Associação Comercial e Empresarial de Caruaru (Acic) preparasse uma grande homenagem à atriz na noite do dia 28 de agosto de 1990, em sua sede. O evento foi transmitido pela imprensa local. Prazeres, rodeada por familiares, amigos e admiradores discursou e cantou um trecho da música Não Chores por Mim Argentina, da cantora Evita Perón. Em fevereiro de 1991, após o período carnavalesco, o grupo iniciou a segunda temporada do espetáculo em Caruaru. Bastante aguardada pela população, durou cerca de dois meses. Em seguida, foram realizadas curtas temporadas em cidades da região e outros Estados nordestinos. Em abril do mesmo ano, participaram do I Festival Nacional de Teatro do Cabo de Santo Agostinho (PE). Lá, Prazeres foi contemplada com mais um prêmio de melhor atriz.

A grande consagração do espetáculo aconteceu durante o XII Festival Nacional de Teatro de São José do Rio Preto (SP), entre os dias 12 e 23 de julho de 1991 – o mesmo que destacou Prazeres nacionalmente dois anos antes. Desta vez eles não participariam do festival competitivo, apenas da 2ª Paralela Nacional Competitiva de Teatro e viajaram mais de três mil quilômetros até chegarem à cidade. O grupo fez a abertura da mostra, que aconteceu no dia 13 de julho, num circo montado ao lado do Teatro Municipal especialmente para o evento. O jornal Diário da Região, de Rio Preto, publicou matéria, três dias após a apresentação, dizendo que Prazeres era o melhor de Nó de 4 Pernas e que o espetáculo não merecia estar na paralela competitiva e sim no festival “principalmente por ter em seu elenco uma atriz como Prazeres Barbosa, que teve a difícil tarefa de interpretar um personagem masculino, e soube fazer isso muito bem, com classe e um refinado senso de humor”. O resultado da 2ª Paralela Nacional Competitiva foi divulgado no dia 23 de julho. Com quase cinquenta pontos à frente do concorrente, o grupo do Sesc Caruaru foi o grande vencedor da competição com a peça Nó de 4 Pernas. A notícia foi destaque na Folha de São Paulo da mesma data. As novidades não pararam por aí. Além de arrematarem o prêmio máximo na categoria melhor espetáculo, em um dos três maiores festivais de teatro promovidos no Brasil, o grupo foi convidado a abrir a Mostra de Teatro de Santa Fé do Sul, situada na mesma região. Mesmo sem concorrer individualmente a nenhuma das categorias competitivas, Prazeres Barbosa foi a grande sensação do Festival Nacional de Teatro, unanimidade da crítica, júri e voto popular, caso inédito na história do evento. Sua atuação foi decisiva para que o grupo conquistasse a primeira colocação. A popularidade lhe garantiu destaque na mídia local e o primeiro contato com a Rede Globo de Televisão, abrindo as portas para a teledramaturgia, ainda que de maneira tímida. Sonaira D’Ávilla, caçadora de talentos da emissora, ficou encantada com a atuação de Prazeres e a convidou para fazer um cadastro. Prazeres gravou uma pequena entrevista onde dizia seu nome, profissão e por que fazia teatro. Em seguida, interpretou um pequeno texto. As gravações

aconteceram nos estúdios da TV Globo Noroeste Paulista. Cleonice Matias, outra integrante do grupo do Sesc Caruaru, também foi selecionada. “Levaram-nos de carro até o local e fizemos os testes em salas separadas”, diz Cleonice. Os funcionários da emissora salientaram que não se tratava de um teste, mas sim da formação de um arquivo para futuras produções. Por essa razão, Prazeres guarda poucas recordações daquele momento. “Eu nem sei como ficou. Se me perguntarem o que eu fiz lá, não saberei dizer, porque foi uma coisa muito inesperada”, explica. O cadastro acabou não trazendo nenhum resultado para a carreira artística da atriz, mas serviu para que ela acreditasse cada vez mais que havia abraçado a profissão correta. Ovacionada pela mídia após atuações de destaque em seus espetáculos e reconhecida como melhor atriz em importantes festivais de teatro brasileiro, Prazeres teve seu nome consolidado na história das artes cênicas no País. O sucesso fez com que as pessoas que haviam se afastado dela no início da carreira retomassem a amizade. “Prazeres também venceu isso e hoje é o orgulho de toda a família, que talvez não tenha compreendido os seus passos iniciais no teatro. Torcemos para que as oportunidades surjam e que ela possa a cada dia se afirmar mais no mundo que escolheu como o ideal para a sua vida”, comenta o irmão Bernardo Barbosa.

FIM DO GRUPO DE TEATRO DO SESC

Aterceira e última temporada de Nó de 4 Pernas aconteceu no mês de abril de 1992. Chegava ao fim o último dos grandes espetáculos montados pelo Grupo de Teatro do Sesc Caruaru e a parceria de dez anos com Prazeres Barbosa em seu elenco. Os motivos do rompimento nunca foram esclarecidos. Somente agora a atriz decidiu comentar o assunto. Na verdade, o grupo acabou devido a uma intervenção do próprio órgão. Em outras unidades, os atores que compunham grupos de teatro passaram a questionar o fato de não serem remunerados. Temendo que as coisas pudessem piorar ainda mais, o Sesc decidiu extinguir os grupos de teatro que mantinha, até mesmo para evitar que outras pessoas reivindicassem judicialmente um vínculo empregatício com a instituição. A formação de atores passou a ser feita através de cursos temporários. “O impacto foi grande, todos eles trabalhavam com boa vontade, sem nenhum intuito de receber na parte financeira e ficaram chocados. Mas no final aceitaram, ficaram participando de outras atividades culturais e das apresentações esporádicas que faziam no Sesc, mas sem aquela obrigação de se apresentarem”, ressalta Sônia Raposo. A saída de Prazeres, no entanto, foi motivada principalmente por problemas gerados entre a equipe. O fato de ter protagonizado os principais espetáculos montados, a consagração nos muitos festivais de que participaram e o destaque que sempre recebeu por parte da mídia não eram vistos com bons olhos por alguns colegas. “Existia dentro do próprio grupo – como existe em todas as profissões – certa competitividade. Não vou citar nomes por ser antiético, mas havia uma ciumeira em relação a mim. Era aquela pessoa por quem ninguém dava nada, mas quando fazia meu trabalho, aparecia. Isso incomoda”, confidencia Prazeres. A atriz enfrentava uma situação insustentável e o melhor a fazer era deixar a equipe. Ela poderia ter continuado com Severino Florêncio, que havia montado um novo grupo, mas quis seguir o seu próprio caminho, junto com Francisco Torres, o segundo esposo, que conheceu ao entrar para o grupo. A saída gerou muitos comentários. “As pessoas incompeten-

tes sentem inveja do outro que está acontecendo, principalmente as mulheres. E sempre houve muitas invejas, mas o tempo vai mostrando quem é quem. Quem sempre teve inveja nunca cresceu. E quem nunca deu ouvido a essa inveja e às fofocas, sempre está crescendo”, compara Francisco. Sem Prazeres no elenco, o grupo montou ainda três espetáculos: O Espantalho, de Erenice Lisboa, figurinista e sonoplasta do grupo; O Dia de Allan, escrito por Wladimir Capela; e, A Guerra dos Cupins, de Afonso Lima, com a terceira idade. Era o fim de um dos grupos de maior destaque na história do teatro caruaruense. O Sesc foi a casa que deu a Prazeres confiança como atriz e prestígio como artista. “Foram tempos de ouro. O Teatro do Sesc foi o teatro de ouro de Caruaru. Uma história rica e que as pessoas não valorizam”, define a atriz. Em 1987, Severino Florêncio criou o Grupo Arte-em-Cena, com o qual trabalha até hoje. No ano de 1991, quando estava em cartaz com a peça Nó de 4 Pernas pelo grupo do Sesc, iniciaram a montagem de Avatar, escrita por Paulo Afonso Grisolli, com direção de José Manoel. Prazeres foi convidada para compor o elenco. Era o primeiro espetáculo em que ela não seria dirigida por Severino. Outra diferença é que, nesta peça, Prazeres atuou como coadjuvante. Avatar, espetáculo místico e ao mesmo tempo ecológico, estreou em 25 de abril de 1991, às 21h, no Teatro João Lyra Filho. No elenco, Prazeres Barbosa, Maria Alves e Severino Florêncio, considerados os três melhores integrantes do grupo. Baseado numa antiga lenda dos índios canadenses, o espetáculo narra a história de um ser híbrido meio homem, pássaro e peixe, que desce a terra mudando o destino de duas mulheres: a velha e amargurada Madre e a Nora, cheia de vida e em busca da felicidade. Nesta peça, Prazeres fazia o papel da Madre, uma velha amargurada pela morte do filho, que nutria sentimentos de ciúme e rancor pela Nora (Maria Alves), personagem central da história, que se relaciona com Avatar, vivido por Severino Florêncio. A personagem fugia à característica que vinha marcando a trajetória artística de Prazeres. A partir daí, ela passou a interpretar personagens de um teatro mais erudito (embora a linha entre o popular e o erudito nas artes esteja cada vez mais dissipada).

A intensidade de Prazeres em cena tornou-se ainda mais explícita neste espetáculo. Certa noite, após apresentar-se, a atriz foi cumprimentada por um médico que lhe deu uma bronca pelo envolvimento enlouquecedor numa das cenas de maior martírio. Ele sugeriu que ela suavizasse as emoções para não correr riscos cardíacos. “Quando a dirigi em Avatar, muitas vezes me flagrei com postura de absoluta contemplação. Meu senso crítico de encenador ficava obscurecido ante a capacidade interpretativa de Prazeres”, revela José Manoel. O espetáculo era diferente de tudo o que já havia sido montado em Caruaru, até então. A equipe teve a ousadia de trabalhar um texto montado no eixo Rio – São Paulo, em 1972, com artistas profissionais; convidou um diretor de renome; correu o risco de não lotar a casa de espetáculos por apresentar-se nas quintas e sextas-feiras; além de conferir à peça retoques de uma grande produção: a encenação começava no horário marcado e era apresentada com as portas do teatro fechadas. Avatar foi uma peça sem vida longa. Em sua primeira temporada realizou pouco mais de dez apresentações em Caruaru e duas na cidade de Arcoverde (PE). Um dos principais motivos da sua não permanência nos palcos foi a complexidade do texto, considerado denso e dramático, bem diferente das montagens infantis ou adultas de temática regionalista montadas até então. “Quem assistia saia encantado com o espetáculo, a intensidade e o vigor dos atores. Mas, quando alguém perguntava se tinha gostado, respondia: gostei, mas não dá para rir. Para um público aficionado por comédia, isso era definitivo”, comenta o diretor. Hoje, mais confortável para lembrar o assunto, José Manoel cita que outro aspecto, de foro íntimo, foi os acirramentos nas relações. “Os três atores trabalhavam há 10 anos juntos. Muitos desejos, muitos quereres, muitas vaidades. A partir da metade do processo de montagem, as coisas começaram a ficar difíceis. Depois de uma bateria de ensaios, eu voltava para Recife, onde moro e, uma semana depois, retornava a Caruaru sem nenhuma segurança de como estariam os ânimos. Às vezes, tinha dúvidas se iria haver ensaio”, recorda. Para ele, havia ética e respeito entre eles, mas o carinho já não era

o mesmo. “Fazer teatro em crise de relações é difícil. Eu sofri muito nesta época e eles também, mas, quando iam para cena, era uma guerra. Uma luta entre feras. Prazeres Barbosa e Maria Alves interpretavam duas mulheres que se amavam e se odiavam. Tinha ensaios que eu chorava, escondido, vendo as duas, plenas, defendendo seu território. Era feroz. Prazeres urrava, Maria mordia os lábios e grunhia. Elas se olhavam no ringue da cena e eu estimulava, provocava, pedia ferocidade. E elas, muitas vezes, olhos nos olhos, se aniquilavam, iam à exaustão”, assume. A catarse, no entanto, que o diretor necessitava que acontecesse com as atrizes, não acontecia. “A realidade é que, entre elas, naqueles tempos, não havia espaço para conciliação. O Severino Florêncio é um ator apaixonado pelo que faz. Estar em cena, para ele, tem que ser um ato de amor. Ele também estava envolvido inteiramente na dissenção e, sem prazer, não rende na cena. Era o próprio Avatar, mas a sua construção de personagem não deslanchou. Ele não gostava de fazer o Avatar e todo o clima o desestabilizou. Muito do espetáculo dependia dele, na cena e fora dela. Desapaixonado, ele ficou burocrativo”, analisa. Maria Alves cita que houve algumas desilusões e problemas entre o grupo. “Prazeres saiu e nós permanecemos. As diferenças tinham a ver com aquilo que cada um buscava. Houve também uma desilusão por parte de Severino, que não se realizou com o personagem e cada um seguiu trilhas diferentes”. A segunda temporada, iniciada em agosto de 1991, foi estendida até o ano seguinte, somando 17 apresentações. Apesar de tudo, o espetáculo participou de importantes festivais. Entre os dias 11 e 19 de janeiro de 1992, competiu no XI Festival de Teatro Amador e Universitário do Nordeste, em Feira de Santana (BA). Um episódio curioso e que causou surpresa foi que o papel da velha, que era secundário, acabou tornando-se principal. Prazeres Barbosa recebeu prêmio de melhor atriz, tornando-se hors concurs neste festival. Em seguida, a peça foi inscrita para disputar o II Festival Nacional de Teatro e Dança de João Pessoa (PB), realizado entre os dias 17 e 26 de janeiro do mesmo ano. Vaias, gritos e protestos marcaram a entrega dos troféus, apesar de Prazeres Barbosa ter conquistado o prêmio de melhor atriz, por 77

unanimidade, e Maria Alves, prêmio de melhor atriz coadjuvante. Em fevereiro de 1992, a Federação Pernambucana de Teatro divulgou a relação dos atores destaque no ano anterior. A homenagem contemplava diversas categorias. Prazeres Barbosa foi agraciada com o prêmio de atriz destaque por seu desempenho em Nó de 4 Pernas e Avatar, conquistando o título de Melhor Atriz de Pernambuco naquele ano. A premiação aconteceu no dia 7, no Teatro do Parque, em Recife, com a presença de artistas de todo o Estado. Após a participação nos festivais de Feira de Santana e João Pessoa, o grupo apresentou Avatar no Teatro Severino Cabral, em Campina Grande (PB) e, em julho de 1992, voltou a São José do Rio Preto (SP), para competir no XIII Festival Nacional de Teatro. Não trouxeram prêmios, mas agradaram. Prazeres Barbosa recebeu indicação para melhor atriz e Avatar ficou em 5º lugar na preferência do júri popular, recebendo elogios e destaque da imprensa local. “É a única peça do Grupo que não foi filmada, quase não há fotos. Isso para mim foi sintomático. Some-se a isto as precárias condições de trabalho para os artistas de Caruaru e a falta de políticas estruturadoras para a área das artes. O espetáculo precisava de uma luz especial, de um teatro mais técnico e isso a cidade não oferecia. Tudo conspirou para a curta duração da peça, para mim, um dos melhores trabalhos que eu fiz”, reconhece José Manoel. Avatar foi visto pela última vez no dia 18 de julho de 1992, por uma plateia de 850 pessoas, no Festival Nacional de São José do Rio Preto. A partir daí, Prazeres iria se aventurar em espetáculos ainda mais desafiadores, na companhia teatral criada em sua homenagem.

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