N°6
Novembro 2019
NINA FURUSHO LAÍS CAROL DEISIANE
Capa desta edição: Nina Satie, Por trás das minhas pálpebras, 2017. Acrílica sobre tela.
Contracapa: Carol Veiga, Kathe Kollwitz., 2019. Gravura em linóleo, técnica de matriz perdida. 42 x 59 cm,
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POESIA
LAÍS MATIAS
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FURUSHO
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CAROL VEIGA 44
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A PARTIR DE SUAS EXPERIÊNCIAS PESSOAIS E CONFRONTOS COM O ENTORNO, A ARTISTA REFLETE SOBRE SEUS PROCESSOS E, COMO ESSAS VIVÊNCIAS TEM INFLUENCIADO SUA PESQUISA, E NOVAS ABORDAGENS DENTRO DA ARTE.
POR ELA MESMA
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Falar de mim e do meu trabalho sempre
O desenho foi o ponto de partida para
parece ser um encontro com alguma des-
pensar em me dedicar às artes. Tímida,
conhecida, uma sensação que qualquer
ainda no ensino médio, desenhava em pe-
pessoa passa na hora de introduzir a si
quenos cadernos e mostrava para as ami-
mesma. Estou eu na frente do computa-
gas. Contida em meu mundo, registrava ali
dor avaliando minha história e selecionan-
meus gostos, minhas descobertas sobre
do o que pode ser relevante. Como pas-
mim e sobre o redor. Foi nessa época que
sar o que estava aqui na minha cabeça, a
me entendi como lésbica, depois de um
produção e a mistura das coisas que vivo,
longo percurso, um caminho difícil por
vejo, leio e imagino, para quem está na
não ter referências das possibilidades de
minha frente? E como isso pode conectar
amar apenas mulheres.
com outras histórias?
As questões sobre meu corpo estavam
Atualmente sou estudante de Artes Visu-
começando a ser formuladas, também foi
ais, Bacharel e Licenciatura, sou artista e
aí que comecei a expandir meus passos
educadora. Faço pintura, cerâmica, tecela-
para fora do íntimo do meu bairro, andan-
gem etc. Curiosa, circulante das ruas, dos
do por toda a cidade, conhecendo diver-
movimentos sociais, festas. Sou uma mu-
sas pessoas, presente nos debates políti-
lher lésbica e negra. Todas essas coisas
cos e em diversos eventos por São Paulo.
atravessaram minha forma de ver o mun-
A Laís dessa época teria uma surpresa de-
do e como minha imaginação e minha pro-
liciosa em ver o quanto as coisas cresce-
dução funcionam.
ram, física e conceitualmente.
LAÍS MATIAS
Abaixo: Abraço, 2015.
Como nossas andanças influenciam no que fazemos? A partir do contato com essas pessoas, conversas e referências, meus trabalhos passaram a refletir as sensações que tive após as alegrias de estar confortável com minha própria pessoa. Passei a retratar cenas do cotidiano do amor entre mulheres negras, momentos que são de afeto e carinho, particulares, curativos. Mesmo que agora o que eu faça queira ir para outro lugar, vira e mexe retorno a representar estas cenas na qual tenho bastante apreço.
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Série de desenhos de tesoura, 2019 (quando o erotismo também entra nos desenhos).
Porém isto também já não me é suficiente, quero subir mais um degrau, andar mais, alcançar algo em minha frente: acredito que falar apenas de afeto não consiga mais conter o que quero ser e o que vejo, estou a procura da força e da violência. Estou tentando retornar meu corpo e torná-lo potente. Como cenas de afeto podem ser vistas como violentas? Após parar para pensar nas notícias de 5 jovens negros baleados com 111 tiros e de outros tantos homens e mulheres negras mortas, todos “confundidos” com traficantes pela polícia por estarem comemorando um novo emprego ou portarem um saco de pipocas, mochila e guarda chuva - você pode se engajar e digitar “PM confunde” no google e ver que não são ações, assim, tão particulares, mas que pertencem a um projeto genocida no Brasil contra as populações negras e indígenas - vi que eu, uma mulher negra, poderia ser a pessoa mais doce e carinhosa do mundo que para o outro, uma sociedade branca, um policial, eu seria uma ameaça, algo a se temer. Nisso, minhas imagens se dissolvem e passam a ser mais macabras. Diluídas, o afeto e o desconforto se encontram, com a pele escura como o céu e os olhos de estrela, em jantares e momentos de descanso eu e minhas personagens fazem temer e estranhar a partir das nossas trocas de carinho. 8
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Cena de crime I.
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Junto a retratação da violência do olhar, tento retomar a história de meu povo, ponto este que acabou inserindo-me no estudo sobre arte egípcia, que por muito tempo foi vista como pertencente a uma sociedade branca e que muitos pesquisadores, como Cheik Anta Diop, tentaram retoma-la como legado negro e africano. E se tudo que estivéssemos vivendo nos impedisse de reviver as repetições das histórias antigas de nossos povos sobre ciclos da vida, esperança e renascimento? Como o mito de Osíris retornaria? Ou ainda: que paralelos posso estabelecer entre a história antiga e a história contemporânea
da população negra? São essas e tantas outras perguntas que me faço durante a execução desta minha vontade. Assim, com o tempo venho a misturar a narrativa e simbologia egípcia com o cotidiano de afeto e violência da população preta. Um trabalho que ainda está se desenvolvendo e que não sei aonde pode chegar.
À esquerda: Gorelove, 2018.
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Por fim, ao pensar em novos lugares para andar, quero sair do trabalho bidimensional e espalhar meu vigor para o espaço, agora, através do meu corpo e daquilo que também não é material: o encontro e a fala. No anseio de me ligar às questões violentas que via, refletindo também sobre as que me me atacavam, volto, mais uma vez, ao afeto. Na minha expansão para o mundo nasce o Encontros de Dejejum, projeto/trabalho este em que ofereço um momento de troca entre mim e outra pessoas negras para
conversarmos sobre arte e educação, para ouvir e contar histórias, para conhecer e me fazer conhecida entre meus pares, sendo vindos das artes ou não. Dejejum é quando nos alimentamos depois de um longo tempo sem nos alimentarmos, os encontros são alimento criativo e afetivo após muito tempo isolada em espaços exclusivamente brancos. E se você é uma pessoa negra e está lendo essa matéria, me mande uma mensagem pelo instagram! (hahaha).
COM O TEMPO VENHO A MISTURAR A NARRATIVA E SIMBOLOGIA EGÍPCIA COM O COTIDIANO DE AFETO E VIOLÊNCIA DA POPULAÇÃO PRETA. UM TRABALHO QUE AINDA ESTÁ SE DESENVOLVENDO E QUE NÃO SEI AONDE PODE CHEGAR.
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Passar por tantas ideias e linguagens é talvez o caminho da tímida Laís - que digamos começou na miudeza dos desenhos - de fazer grande sua voz enquanto se entende e entende o mundo.
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CAPA
NĂŁo acorde a sonhadora.
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PARTICIPANDO DA PRIMEIRA EDIÇÃO DA BIENAL AFRO, REALIZADA EM PORTO ALEGRE, SOB O TEMA “MULHERES (IN)VISÍVEIS”, A ARTISTA POSSUI UMA TRAJETÓRIA QUE VEM SE CONSOLIDANDO, A PARTIR DO SEU TRABALHO COM A PINTURA, ABORDANDO TEMAS COMO IDENTIDADE E O FEMININO, A PARTIR DE INVESTIGAÇÕES SOBRE SI MESMA COMO REFERENCIAL IMAGÉTICO.
POR KAMILA OLIVEIRA
“Me chamo Nina Satie. Minha trajetória como artista se iniciou em 2014, quando ingressei para o curso de Artes Visuais, na UERJ. Em 2015, ao visitar a exposição "Cuba - Ficción y Fantasía" da extinta casa Daros, tive o primeiro contato com o trabalho de uma artista negra: as colossais calco gravuras de Belkis Ayón, que retratam a mitologia da sociedade secreta cubana Abakuá, em que só é permitida a entrada de homens. Em sua linguagem imagética, uma personagem feminina é reproduzida de forma constante em meio ao universo exclusivamente masculino, a Princesa Sikán. Sua presença subverte o contexto das narrativas emblematicamente, costurada à novas camadas de significado que expressam sua própria realidade subjetiva e empírica, enquanto indivíduo, enquanto mulher negra”. Assim como Bélkis, Nina também reproduz em seus trabalhos uma figura feminina constante: sua própria imagem elevada a uma caracterização sobrenatural. Suas personagens são com ela uma só; uma espécie de alter ego, que expressa através de elementos simbólicos e arquetípicos, sua essência mais profunda. A atmosfera retratada em suas pintu-
ras pode ser vista como parte de acepções sobre seu eu mais íntimo, em alegorias que nos remetem a histórias míticas, não fazendo, contudo, nenhuma abstração, emitindo ao observador um traço que possibilita compartilhar, ao longo do trabalho, uma narrativa a partir das figurações criadas com base em questões do seu inconsciente.
À direita: No more waiting to become. It’s time to simply be. 16
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CAPA
À esquerda: Sem título. Abaixo: Sem título, 2016. Acrílica sobre papel. 29,7 x 42 cm.
“Meu universo imagético se compõe a partir de estudos da autoimagem. Reproduzo meus reflexos, literais e abstratos, em busca de uma compreensão e construção genuína de identidade, identificando os símbolos e padrões da minha própria psique, entendendo que são estruturas que se remontam constantemente, ao perpassar as mais diversas relações entre mundos internos e exteriores, nas intersecções de gênero, classe e raça. ” Existe uma preocupação na forma como suas pinturas são concebidas, levando-se em conta não apenas a composição estética, percebe-se a influência que suas referências artísticas exercem em sua poética. “Bélkis é uma das minhas maiores referências, ao lado das artistas Emma Amos, Naudline Cluvie Pierre, Ellen Gallagher, Betye Saar e Rosana Paulino”.
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Abaixo: Crystalis, 2019. Acrílica sobre tela. 40 x 50 cm. À direita: devas, 2019. Acrílica sobre tela.
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Influências como a de Naudline Cluvie Pierre, Bélkis e Betye Saar são bem evidentes, pelo uso das cores e da figura central, trazendo conceitos como o protagonismo, principalmente, no que diz respeito ao contraponto com relação ao que Pierre considera como o “dominante cânone histórico da arte ocidental”. Além disso, as imagens oníricas e projeções inconscientes, carregadas de simbolismos e mitologia pessoal, que nos remetem ao Surrealismo, característica fortemente atrelada à produção de Nina.
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Quimera, 2019. Acrílica sobre tela. 90 cm de diâmetro. À direita: Leda, 2018.
SUAS PERSONAGENS SÃO COM ELA UMA SÓ; UMA ESPÉCIE DE ALTER EGO, QUE EXPRESSA ATRAVÉS DE ELEMENTOS SIMBÓLICOS E ARQUETÍPICOS, SUA ESSÊNCIA MAIS PROFUNDA.
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À esquerda: O caos é ordem ainda indecifrada. Acrílica sobre papel. 29,7 x 42 cm.
Sua predileção em termos de linguagem artística até o momento, tem sido pela pintura, fazendo uso de técnicas como a acrílica, guache e aquarela, conferindo às obras, cores chapadas e intensas, ou suaves e fluidas, onde predominam tons entre o rosa e o azul, uma de suas marcas. Outra característica que chama a atenção no trabalho de Nina, é o fato de boa parte de suas personagens estarem de olhos fechados, o que evidencia a ideia de uma busca interna. Talvez estejam sonhando, e nestes sonhos, elementos que nos remetem à transformação, espírito e poder interior, despontam através de símbolos e arquétipos.
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Abaixo: Em busca do jardim de nossas mães, 2019. Acrílica sobre tela. 50 x 50 cm. À direita: A indescritível e solitária missão de resguardar a própria inocência, em meio às ilusões e desalentos do mundo decaído em que se habita, 2019. Acrílica sobre tela. 70 cm de diâmetro.
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CAPA
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A contribuição de sua obra, como artista emergente, é sem precedentes, tanto em termos estéticos como no que diz respeito a ideias de identidade e contexto, com referência a precedentes históricos através da sua narrativa. Explorando a per-
cepção de si mesma, ou, em outras palavras, como ela mesma coloca, sendo sua própria musa, sua própria referência.
Referências http://www.shulamitnazarian.com/artist/naudline-pierre/
Kamila Oliveira (São Paulo, 1987) é Artista Visual e bacharel em Gravura pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná.
À direita: Por trás das minhas pálpebras, 2017. Acrílica sobre tela. 28
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C
FURUSHO
VON PUTTKAMMER POR MARTA DE LA PARRA PRIETO TRADUÇÃO POR VANESSA MÚRIAS
“Parecia que… Não sabiam como é ser diferente’ ‘Eu te amo, eu te amo, eu te amo’ Isso não é apenas um desejo/verbo/tragédia copiado e colado (ctrl+c, crtl+v) cem vezes em uma folha de papel (e o fato de que não temos que escrever todas essas vezes não significa que não dói tanto quanto). Eu gosto da palavra PUTA jogada em uma folha de papel e então na cara das pessoas. Vamos transformar seus insultos em hinos, nossas feridas em armas. Não temos medo de assumir que somos diferentes, abraçamos e amamos isso. Não entendemos a “diferença” como uma massa de pessoas sem forma: sabemos que cada “diferente" é diferente, e como isso na verdade é muito mais que uma tautologia — é uma cosmologia. Vamos forçar mudanças no passado para sonhar com um novo futuro. O desejo de viajar no tempo, de amar, de sofrer, de aceitar a mim e aos outros. É isso que sussurra em meu ouvido quando vejo o trabalho de Furusho” Introdução por Ingrata Bergman, entrevistada da edição de Outubro da Galeria das Minas.
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ENTREVISTA
Consumption, 2018. Óleo sobre tela. 40 x 50 cm.
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GDM: Quando você se estabelece no sistema de arte, você se identifica tanto como pintora quanto performer. Nesse sentido, você diz que seu trabalho “apresenta suas ansiedades e frustrações sobre arte, história, sexualidade, conexão humana, e as facetas de identidade através de pintura em óleo e movimento mímico”. Você o faz “usando seu alter-ego, um personagem careca e expressivo inspirado em cartoon chamado Anchovy”. Quem é Anchovy? Pode nos dizer mais sobre essas ansiedades e frustrações que movem seu trabalho?
FVP: Anchovy é essencialmente eu. O personagem incorpora como eu sinto que aparento por dentro; um ser estranho, cômico, ansioso e sexual. A ansiedade e as frustrações que sinto vem da minha dificuldade de me conectar com as pessoas. Sou humana, tenho a vontade natural de socializar com os outros, de ser aceita por meus colegas, mas sempre senti essa desconexão dos outros. Não sei ler linguagem corporal e temperamentos, tenho que levar as pessoas no que o rosto delas diz quando me falam o que querem ou o que sentem. Me causou vários problemas ao formar relacionamentos. Definitivamente melhorou nos últimos dois anos, mas meu trabalho ainda flutua no tempo onde interagir com outros parecia tão difícil.
Eu só queria me sentir próxima de alguém, emocional e fisicamente, mas minha esquisitisse afastava as pessoas. Tive pouquíssimos amigos enquanto crescia e a maioria dos meus relacionamentos românticos foi com pessoas horríveis. Anchovy é a encarnação de querer estar próxima de alguém mas ser mantida longe, sempre fora de alcance. O humor do meu trabalho é uma tentativa de enganar as pessoas para que construam uma ponte nessa distância. As frustrações de Anchovy são daquela garota esquisita, a garota das artes, a
GDM: Todas essas questões parecem estar presentes em seu trabalho desde o começo, por exemplo em seu trabalho Dear Gustave. Não devemos nos deixar enganar
por
seu
personagem
inspirado
em
cartoon,
seu
trabalho
é
extremamente sério. É possível dizer que sua arte é fortemente política e comprometida. Você a vê assim? Você acredita que arte pode ser uma ferramenta efetiva pra atrair atenção a assuntos importantes?
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FVP: Sim, meu trabalho é político em seu cerne. Acredito que atualmente é praticamente
impossível trabalhar como artista mulher e não ser política, qualquer que seja sua posição na política. O simples ato de eu fazer arte como mulher é uma afirmação política. Gênero, expressão sexual, a alienação do outro e o mito da normalidade, esses são os temas políticos do meu trabalho. Mesmo assim, não quero pregar para aqueles que veem meu trabalho, quero que as mensagens políticas em meu trabalho permaneçam mais como uma subcorrente. Arte pode ser uma ferramenta muito efetiva para atrair atenção para questões importantes, mas acho que a efetividade depende do nível de engajamento que a peça exige dos que a vêem. Quanto mais envolvido o público é, mais as mensagens da peça ficam com ele. Eu uso humor em perfomances como uma forma de manter a atenção das pessoas. Se eu as faço rir, talvez
A Desperate Anchovy, 2017. Óleo sobre tela. 18 x 22 cm.
eu consiga fazê-las pensar sobre os temas do meu trabalho.
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GDM: Enquanto estamos no assunto de Dear Gustave, é necessário trazer a conversa seu Letters to Coubert. Não apenas foi sua declaração de artista de 2017 como também foi uma abordagem diferente — e incrível — de uma série de quadros. Um exercício incrível, no meio do caminho entre arte baseada em texto e declarações de interesse. Conte mais sobre esse trabalho. FVP: Obrigada! Dear Gustave e Letters to Coubert foram um divisor de águas no meu trabalho pra mim, onde finalmente consegui combinar humor e angústia. Sempre fui fascinada com o arquétipo da "Mulher Desprezada”, talvez porque eu fiz esse papel tantas vezes na minha vida pessoal. Eu amo explorar o que leva uma mulher a obsessão. Quanto disso deriva dos traços de sua própria personalidade tóxica e quanto disso é o resultado da manipulação da mulher pelo sujeito do seu amor? Será que o objeto de afeição está sequer ciente da manipulação? Será que a mulher está projetando essa manipulação? Quem é o culpado pela obsessão? Eu fiz Dear Gustave e Letters to Coubert da perspectiva da Mulher Desprezada, alguém que eu facilmente conseguia ver eu me tornar se eu houvesse vivido no mesmo período de Coubert. Eu estava em uma fase esquisita na minha vida, prestes a me formar na faculdade e no processo de terminar com meu primeiro 34
ENTREVISTA
À esquerda: The Things You Do to Me, from Lover's Discourse, 2016. Placa de isopor, tinta e corda luminosa. 40 x 40 cm. Abaixo: Performance Still from Door, 2018. Foto: Ricardo von Puttkammer .
namorado estável. Eu estava tentando entende onde eu me encaixava na história da arte e na sociedade. Tanto da minha vida até aquele ponto tinha sido definido pelo que os homens achavam de mim —principalmente por quão comível eu era — e aos 22 anos eu me dei conta de que eu deveria me preocupar com questões mais importantes, tipo como me tornar parte do canon da história da arte. Eu escolhi Coubert como meu objeto porque ele representa as características dos homens em minha vida: arrogante, narcisista e emocionalmente irresponsável. Minha quedinha no Coubert também espelhava minha atração por esses homens terríveis. Dear Gustave foi o
meu jeito de dizer a esses homens “olha como a sua cabeça é inflada com esse seu ego, você está ridículo”.
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GDM: Com Puppet ou qualquer outra peça em seu trabalho Sublime Connections em mente, parece que seu trabalho como pintora mudou. Embora você mantenha seus personagens cartoon e a seriedade de suas narrativas, você parece fazer suas declarações mais claras e mais radicais. Talvez seja simplesmente uma questão de dureza, enquanto Letters to Coubert pode ser mais facilmente personificado em óleo — não tanto nessas linhas — as questões que você traz em Sublime Connections não são tão fáceis de pintar. Mesmo assim, gostaríamos de falar sobre isso, mais especificamente ouvir sobre isso. O que te trouxe para essa série, para esse assunto? Você acredita, como artista, que trazer consciência é vital?
FVP: Minha série Sublime Connections parece uma instalação mais permanente na minha prática A série Coubert foi limitada a quantidade de auto-retratos que Coubert fez de si, enquanto Sublime Connections foi diretamente derivada das minhas experiencias pessoais. Meu papel como artista também transacionou de crítica para criticada. Sublime Connections é sobre a vida que alguém declarou como “outra”, como ela aparece para os outros e como ela interpreta suas interações com outras pessoas. Estou colocando minha própria vida debaixo do microscópio. Acho que é o aspecto natural do trabalho do artista trazer consciência para questões
constantemente ignoradas, mesmo que essas pareçam tão mundanas quanto como a luz aparece em uma árvore no decorrer do dia. Minha crença é que a arte é filosofia visual. Se seu trabalho é apenas um rostinho bonito e não diz nada mais profundo, então não é arte pra mim, é decoração.
MEU TRABALHO É POLÍTICO EM SEU CERNE. ACREDITO QUE ATUALMENTE É PRATICAMENTE IMPOSSÍVEL TRABALHAR COMO ARTISTA MULHER E NÃO SER POLÍTICA, QUALQUER QUE SEJA SUA POSIÇÃO NA POLÍTICA. O SIMPLES ATO DE EU FAZER ARTE COMO MULHER É UMA AFIRMAÇÃO POLÍTICA.
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Abaixo: Other Voices, 2019. Óleo sobre tela. 16 x 20 cm.
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ENTREVISTA
GDM: Algumas de suas características chave como pintora são recorrentes em seu trabalho, e as encontramos em seu trabalho como performer também. O que define uma e a outra? Onde elas convergem e onde se afastam? FVP: Meu personagem de performance, a Anchovy, originalmente começou apenas como objeto de pintura. Rapidamente me dei conta de que poderia trazer esse personagem pro mundo real usando uma máscara. A Anchovy de perfomance é um pouco diferente do de
pintura. Por exemplo, ainda estou pra fazer uma perfomance que é sexual. Minhas pinturas são extremamente sexuais, e apesar de eu ser uma pessoa muito sexual, sou cuidadosa ao trazer sexo em minha perfomance. Introduzir sexo em uma perfomance é difícil, muitas vezes o sexo domina a arte. É uma linha fina e eu ainda não tenho certeza de como balancear. É claro, Anchovy ainda é eu. Então Anchovy de perfomance ainda faz cenas de frustração e ansiedade, mas de maneiras mais cômicas: dar de cara com portas pintadas, tentar apertar um botão que diz NÃO APERTE, tentar enfiar bolo na sua boca permanentemente fechada, etc. Eu considero a Anchovy de pintura uma tragédia cômica, enquanto a de per-
fomance é uma comédia trágica.
GDM: Sua Lover’s Discourse é realmente fascinante, pode nos falar mais sobre isso?
FVP: Obrigada por mencionar Lover’s Discourse. É um trabalho mais antigo, então não chego a falar muito dele. A série é muito inspirada no livro de Roland Barthes A Lover’s Discourse, que discute a semiótica — ou linguagens nuanças — de um caso de amor. Como a maior parte do meu trabalho, a série é baseada na minha vida, as emoções que senti e as situações que vivi enquanto namorava e explorava pela primeira vez a cena de BDSM de Nova York. Estava tentando entender porque sexo e se apaixonar eram atos tão masoquistas pra mim. Desejava encontrar o meio termo entre estável e excitante. A série era o meu jeito de canalizar essas emoções em algo produtivo. Não acho que teria sobrevivido a esses anos sem a arte como escape. À esquerda: Dream Attack, 2019. Óleo sobre tela. 36 x 48 cm.
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Mama (Nipple Twist), 2018. Óleo sobre tela. 40 x 40 cm. À direita: A Wounded Anchovy, 2017. Óleo sobre tela. 32 x 38 cm.
GDM: Nos conte sobre suas influências. FVP: Sinceramente me inspiro muito para a perfomance em Rowan Atkinson, Charlie Chaplin, and Frank. Fora de performers de comédia, minha fonte de inspiração principal é o cinema noir, filmes do Expressionismo alemão e animação antiga. Amo a luz forte de filmes preto e branco antigos. O drama e o suspense realmente me pegam.
GDM: Gostaríamos de enfatizar suas influências femininas (além de queer e não-binárias). FVP: Robin F. Williams, Martha Wilson, Roland Barthes, Michelle McNamara, Linda Nochlin, Yayoi Kusama, Artemisia Gentileschi,Mona Hatoum, Sophie Calle, e Kate Gilmore. 40
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GDM: Uma série FVP: The Deuce. É sobre Nova York nos anos 70 e 80, e segue a vida de cafetões, prostitutas e donos de bares que lotavam as ruas durante aquela época. Tem personagens femininos e queer bem fortes, e não se esquiva de duras realidades que essas pessoas tiveram que enfrentar.
GDM: Algo pra ler FVP: Rat Bohemia, da Sarah Schulman. Um dos meus livros preferidos de todos os
tempos. A história gira em torno de uma exterminadora de ratos lésbica na Nova York dos anos 80 e 90 enquanto a crise de AIDS se desenvolvia ao redor dela.
GDM: Algo pra assistir FVP: Se você está procurando algo pra assistir, vai a boate Kit Kat em Berlin em um domingo a noite. Eu vi 24 atos sexuais separados por 10 dólares. É garantido que você vai achar algo interessante pra assistir lá. GALERIA DAS MINAS
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GDM: Sua atenção a identidade, queerness e arte também transcendeu sua produção de trabalho te levando recentemente a curadoria (OUTlines: A Queer Art Show). Gostaríamos de ouvir mais sobre isso.
FVP: Cara, que experiência! Aquela exposição foi muito trabalho. Eu nunca organizei uma chamada aberta antes, e a equipe da One Art Space foi incrível de se trabalhar. Foi também minha primeira vez gerenciando tantos artistas de um ponto de vista puramente curatorial. Realmente me deu uma maior apreciação por curadores em todo o mundo. Houve muito stress envolvido, mas no fim das contas a exposição alcançou o que queria, que foi mudar o foco do “esquisito” no queer. Queerness hoje é principalmente discutido no quesito sexualidade, mas Queer é um rótulo que pertence a qualquer um que saia da norma social. Estou feliz que a exposição marcou tantas pessoas.
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ENTREVISTA
À esquerda: A artista por Adrian Buckmaster.
GDM: Por último, nos conte sobre projetos futuros e secretos
FVP: Em termos de pintura, tenho um novo corpo de trabalho pra sair. Os quadros
acompanham a mesma veia de Sublime Connections, mas estou tentando aumentar o nível de desconforto que o espectador experimenta. Achei esse livro ótimo sobre o trabalho de Antoine D’Aagata e está me direcionando muito. Recentemente terminei de trabalhar no festival de artes performáticas de Nova York Art in Odd Places como curadora assistente e coordenadora voluntária. Agora que AIOP e OUTlines terminaram, estou ansiosa pra tomar alguns meses só pra pintar. Em termos de performance, não posso dar todos os detalhes, já que nada está terminado, mas há rumores de uma universidade na Europa me levar pra performa em uma conferencia
Marta de la Parra Prieto (Madrid, 1987) é artista visual multidisciplinar, bacharel em Design pela UEM Universidade Européia, Madrid (Espanha) e pela NABA Nuova Accademia di Belle Arti, Milan (Italy).
Imagens cortesia da artista GALERIA DAS MINAS
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FURUSHO VON PUTTKAMMER
Sem título. 2018. Gravura em linóleo. 21 x 29 cm.
A ARTISTA DE CURITIBA, PREMIADA NA ÚLTIMA EDIÇÃO DO PRÊMIO IBEMA, FALA SOBRE SEUS PROCESSOS COM A GRAVURA, E SUAS SÉRIES GRAVANDO POR ELAS E PRESENTE, COM TRABALHOS QUE PARTEM DO RETRATO, COMO PONTO PRINCIPAL DE SUA PESQUISA ARTÍSTICA.
POR ELA MESMA
É difícil falar sobre seu próprio trabalho. Ao mesmo tempo que acreditamos e confiamos no que produzimos, algumas vezes, podemos pensar que não estamos prontas, que nosso trabalho não está maduro. Nós, artistas mulheres, temos como matéria-prima sentimentos intensos, experiências profundas, que são subjetivas e individuais, e ao mesmo tempo são coletivas, vivenciadas por várias mulheres. Eu sou o que faço, e tudo que faço me constrói. As pessoas ao meu redor, as relações que estabeleço, os caminhos que escolho, os erros e acertos que cometo, são fragmentos de quem eu sou.
GALERIA DAS MINAS
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Ao ingressar na graduação, na Faculdade de Artes do Paraná, tive o contato com dife-
rentes linguagens visuais. A Fotografia e Pintura foram as técnicas que mais produzi nos primeiros dois anos do curso. Já em 2018, conheci a Gravura, que mudou as relações estabelecidas entre eu, minha produção e o mundo onde ambas estávamos. Já havia produzido retratos de mulheres em fotografias e pinturas, porém, ao realizar os retratos em gravura, principalmente com gravura em linóleo, percebi o poder que a face possui. Nas linhas da matriz e nos contrastes entre luz e sombra, o rosto torna-se presente, potente e transmite energia ao observador. No início, buscava os rostos na internet, sem nenhuma pretensão, necessitava produzir. Realizei gravuras de diferentes tamanhos e técnicas de gravura, desenvolvi e amadureci um modo de representar os rostos, através das linhas contínuas e também áreas planas de cor. Porém, quais significados as gravuras com fotografias alheias e rostos desconhecidos, estava gerando em mim, e nos outros? Qual importância essas imagens realmente possuíam? Estas questões foram o estopim para uma mudança em minha produção. Percebo, agora, essas gravuras como estudos para aprimorar meu processo, para experimentar as possíveis soluções gráficas, e consolidar cada etapa do processo.
À direita: Erguer-se. 2018. Serigrafia. 29 x 42 cm.
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A transformação ocorrida no retrato foi a cerca das imagens e consequentemente, das mulheres que represento. Continuo
com a gravura em linóleo, utilizando as linhas e áreas fechadas, porém, as mulheres retratadas agora são “reais”, seus nomes são reconhecíveis, elas possuem história e conquistas. Iniciei a série Gravando por elas, na qual busco, conheço e retrato mulheres que atuam em diferentes áreas do conhecimento, e que devem ser conhecidas e valorizadas. Ainda, não delimitei qual será a abrangência, em quantidade, de mulheres retratadasrealizei até o momento nove retratos- mas acredito que quanto mais retratos, maior será o impacto visual da série. Além de re-
presentar e valorizar essas mulheres, a série Gravando por elas, vem como um manifesto, a fim de apresentar mulheres, muitas vezes esquecidas, e que fizeram tanto pela sua comunidade e também pelo mundo. Não é, no mínimo, estranho conhecermos diversos homens, das mais variadas áreas, como ciência, arte, politica, esporte, entre tantas outras, e não ser capaz de citar mulheres que atuam fora de nossa área de estudo? É nesta perspectiva que busco trazer personalidades femininas, de diferentes espaços, para serem conhecidas e reconhecidas.
Käthe Kollwitz. 2019. Gravura em linóleo, técnica de matriz perdida. 42 x 59 cm. GALERIA DAS MINAS
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Abaixo: Audre Lorde (série Gravando por elas) 2019. Gravura em linóleo. 14 x 21 cm. À direita: Enedina Alves Marques (série Gravando por elas) 2019. Gravura em linóleo. 14 x 21 cm.
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CAROL VEIGA
Em outras gravuras, utilizei como referência, fotografias minhas, mas não as considero autorretratos. Utilizo meu próprio rosto para crias gravuras que possam expressar a todas as mulheres, questões individuais e que de alguma maneira,
são coletivas. Paralelo à série Gravando por elas, desenvolvi ao longo deste ano, 2019, minha pesquisa e produção para meu trabalho de conclusão de curso. Nesta pesquisa, basicamente, investiguei como as nossas emoções e sentimentos são transmitidos pelo rosto. Delimitei a produção em três retratos em gravura, de mulheres que fazem parte da minha vida, são elas Isolete Veiga, minha mãe, Eleonora Ferrari e Daniele Subtil, ambas amigas. São elas que me encorajam, das mais diversas formas, a sempre buscar o meu melhor. Encontrei em seus rostos, histórias e experiências a significação que buscava. Realizei estudos a fim de analisar qual seria a melhor maneira de produzir os retratos. Decidi pela técnica de matriz perdida, visto que este processo contribui para o estado de mutabilidade do rosto, pois, as mulheres representadas já estarão diferentes ao final da série. A matriz não poderá ser reimpressa após a finalização da gravura, ou seja, o rosto representado possuirá o registro físico e psicológico de um instante que não irá se repetir. Pela técnica de matriz perdida cada camada de impressão recebe uma cor distinta, colaborando para a ideia de volumetria e contraste nos rostos. Outra característica é que ao longo do processo, as impressões não foram encaixadas exatamente no mesmo lugar, diminuindo a quantidade de cópias, e tornando a série ainda mais pessoal.
À direita: Rita Lobato (série Gravando por elas) 2019. Gravura em linóleo. 14 x 21 cm.
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AO REALIZAR OS RETRATOS EM GRAVURA, PRINCIPALMENTE COM GRAVURA EM LINÓLEO, PERCEBI O PODER QUE A FACE POSSUI. NAS LINHAS DA MATRIZ E NOS CONTRASTES ENTRE LUZ E SOMBRA, O ROSTO TORNA-SE PRESENTE, POTENTE E TRANSMITE ENERGIA AO OBSERVADOR.
Nestas gravuras, pude empregar as cores que desejava em cada retrato. Delimitei as cores primárias por serem as cores utilizadas na impressão do sistema CMYK, neste caso, não empreguei o preto por considerar que destoaria dos tons impressos em cada gravura. Outro significado que atribuo a escolha das cores, é que através destes pigmentos, todos os outros pigmentos, no caso, tintas, são originados, por isso são denominadas primárias, nesta perspectiva, reafirmando a mulher como origem primária de todo ser humano. A definição de cor para cada retrato foi muito clara deste o início. Simplesmente, não conseguia atribuir outra cor para cada mulher.
Isolete Veiga (série Presente) 2019. gravura em linóleo, técnica de matriz perdida, 32 x 43 cm.
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Abaixo: Eleonora Ferrari (série Presente) 2019. gravura em linóleo, técnica de matriz perdida, 32 x 43 cm. À direita: Daniele Subtil (série Presente) 2019. gravura em linóleo, técnica de matriz perdida, 32 x 43 cm.
É nesta perspectiva pessoal e afetiva que nomeie a série como Presente. A palavra presente pode ser entendida como o tempo verbal do agora, algo que está ou faz parte de uma determinada situação, alguém que auxilia e orienta outrem, e ainda, aquilo que se oferece como forma de agradecimento. Todos estes significados são validos para as gravuras, e as mulheres que represento.
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CAROL VEIGA
Nossas histórias são individuais e coletivas, as dores e violências que passamos refletem em todas nós, e formam o que somos. Produzir e refletir sobre os retratos me fez ter mais empatia, tendo minhas relações afetivas reforçadas.
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POR DEISIANE BARBOSA
cotação para ter tem de pagar para ter o direito de ter tem de pagar para usufruir do direito de ter tem de pagar para desistir de ter tem de pagar para perder bruscamente tudo tem de pagar para restituir tem de pagar para não ter nada nunca tem de pagar
para nascer tem de pagar para crescer tem de pagar para reproduzir tem de pagar para envelhecer tem de pagar para morrer também não é diferente para dizer tem de pagar para provar que não disse tem de pagar para escrever tudo o que se quer tem de pagar para corrigir toda eventual rasura tem de pagar para trabalhar tem de pagar para viver ocioso tem de pagar para ter um nome na praça tem pagar para inventar pseudônimo tem de pagar para viver anônimo, inevitavelmente
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POESIA
para matar a fome tem de pagar para alimentá-la também tem para habitar tem de pagar para debandar tem de pagar para voltar com rabo entre as pernas não se engane pois paga sim para rir tem de pagar para ser feliz ora se paga para chorar irremediavelmente paga-se algum vintém para gozar tem de pagar para gozar plenamente paga-se caro para dormir de conchinha uma boa fortuna para sonhar tem de pagar com juros para iludir-se pode pagar no crédito para nascer bem tem de pagar bem para nascer mal paga-se dobrado para ser aceito tem de pagar para ser recusado paga do mesmo jeito para salvar a pele tem de pagar para perdê-la sem qualquer aviso prévio paga-se preço salgadíssimo e arde bastante
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bomba de efeito moral nº1 Papai é impossível não erguer bandeira quando em tempos de ódio esse meu corpo em movimento já é a própria bandeira hasteada / esse corpo seus gestos o modo como respira o modo como ama e como desenha a vida Papai em tempos de crise não há como passar batida se sou eu minha própria flâmula de inflamável luta / eu este jovem corpo cansado cada vez mais alvejado no entanto vivo e desejoso do gozo justo e
tão parco Papai não há como não bater de frente se estes passos que me levam seguem pruma direção avante além adiante / não me cabe caminhar caranguejo não me cabe recuar todas as casas nesse jogo sem regras Papai eu só quero ser livre sem medo eu só quero ser livre sem medo eu só quero ser livre eu só quero ser eu só quero
eu só eu e isso nunca foi pedir demais embora nos convençam do estorvo que é toda e qualquer migalha de sede existência Papai eu não peço nada demais eu juro eu só quero mesmo é respirar sem medo de ser sufocada sem medo de ser corrigida sem medo de ser castigada sem medo de estar fazendo algo
subversivamente pecaminoso subversivamente amoral subversivamente prazeroso subversivamente amoroso subversivamente lúcido subversivamente corajoso subversivamente livre Papai eu não peço nada demais eu juro Papai
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DEISIANE BARBOSA
des afia dor afiar a língua na pedra do peito afiar o peito na aspereza da língua afiar a pedra do peito na língua laminada lutar com língua e peito
devidamente cortantes tanto quanto for possível, tododia, amolar dois três quatro gumes de transespadas laborar infalíveis armamentos antiteimosia de tempos normativos e treinar-se incansável em fina tática para aplacar maciez de pedras lançadas por mero engano em nossas cabeças sobreviver por insistência de amor afiado ainda que tanto ódio nos cegue
tododia
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09 de novembro,
estou de mudança, Tereza . há quase um mês tenho dobrado as minhas lembranças em embrulhos delicados. ajunto o pó que restou das telhas, enquanto espero o caminhão chegar. arrasto os móveis, repinto as paredes com os olhos marejados. escorre pelas ripas a água da chuva que veio numa tarde de segunda-feira e foi embora após revirar minha vida à procura. ventou dentro da casa e eu estava só. o tempo caiu da estante e não se quebrou. ir. mas não há paraonde. o agora eu já não tenho desde os últimos segundos. o aqui vai respingando, caem gotas no passado. sentada na cama me despeço das vigas que suportaram o peso dos anos que me frutificaram. os dias vão repousando, empilhados, por sobre as coisas intactas, intocáveis. movo os olhos pelo que restou depois do inverno.
você já experimentou procurar-se depois de uma chuva, numa tarde de segunda-feira, Tereza? tenho habitado uma inércia rastejada: caminho devagar, me deito devagar, pedalo devagar, avisto devagar. somente a cabeça gira depressa demais por detrás dos olhos dúbios. devagar se vai caminhando a uma inconsciente permanência. às vezes canso de olhar a vida de olhos fechados. como seria habitar uma casa sem teto, Tereza? talvez fosse esta curiosidade o que atrasava a chegada repentina do caminhão. a espera não é uma vida normal. enquanto espero devagar, resisto à força da gravidade que me enlaça por dentro. devagar como uma maneira de não ser estático. devagar como um engano mal empregado.
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POESIA
enquanto vou ao fogo ferver a água do café, a vida contorna o dia, insistente, emanando uma tontura que me faz imóvel para que eu não despenque de súbito. seria esse o meu destino? abandonar a casa gasta, vibrando sozinha as raspas dos últimos ecos? como seria habitar uma casa sem teto? tenho buscado um abrigo – sorte de quem tem uma varanda tranquila e um quintal de árvores que permanecem incansáveis. para quê a mudança? paraonde espero devagar? em qual esquema cúbico amansarei as minhas angústias? só esta casa agrega bem as minhas viagens. esta casa não foi ensinada, lapidou-se com o tempo da nossa convivência. ninguém erguerá paredes similares. procuro um novo endereço. enquanto persiste a espera vagarosa do caminhão que não chega, procuro uma alvenaria capaz de desaguar minhas futuras chuvas.
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Foto: George Teles.
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DEISIANE BARBOSA
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(Os três primeiros poemas estão publicados no livro “refugos”, edição da Segundo Selo, Salvador, 2019. O quarto texto integra o livro de estreia da autora, “cartas à Tereza: fragmentos de uma
correspondência incompleta”, uma publicação independente, do ano de 2015, em Cachoeira.)
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Deisiane Barbosa é poeta, andarilha, escritora, artista visual. Nasceu em São Félix – BA e desde 1992 vive entre Cachoeira, o Povoado do Cruzeiro e à beira de várias estradas. Bacharela em Artes Visuais, pela UFRB / especialista em Estudos Literários, pela UEFS / mestranda em Artes Visuais pela UFPE. Desenvolve pesquisas e criações entre literatura, performance, videoarte e livro de artista, envolvendo a memória e narrativas de mulheres. É integrante do imuê – Instituto Mulheres e Economia. Em outubro de 2015 publicou seu primeiro volume de “cartas à Tereza: fragmentos de uma correspondência incompleta”, um ano depois produziu “desavesso”, um livro de poemas e fotografias; em 2019 lança “refugos”, livro de poemas publicado pela Editora Segundo Selo. Segue trabalhando na criação do “Inventário / da ilha \ de Tereza”, livro protagonizado por mulheres, composto por narrativas poéticas em performance, videoarte e intervenção urbana.
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ARTISTAS DESTA EDIÇÃO
Carol Veiga @carolllveiga
Deisiane Barbosa bdeisiane@gmail.com @andarilla_ @cartasatereza cartasaatereza.wordpress.com
Furusho Von Puttkammer @anchovyart https://www.anchovyart.com
Láis Matias @laixxmo laixxmo.tumblr.com
Nina Satie @ninasatie https://ninasatie.com.br
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COLABORADORAS Edição e Diagramação
Kamila Oliveira @kamioliv
Entrevista e Revisão
Marta de la Parra Prieto @iamanaesthete https://www.madsmilano.com/product-page/marta-de-la-parra-prieto https://cargocollective.com/MartadelaParra
Tradução
Vanessa Múrias @vanessamurias
Textos Carol Veiga @carolllveiga
Deisiane Barbosa bdeisiane@gmail.com @andarilla_ @cartasatereza cartasaatereza.wordpress.com
Láis Matias @laixxmo laixxmo.tumblr.com
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