7 minute read
Livro "O Belo Contemporâneo: corpo, moda e arte" (2019) - Renata Pitombo Cidreira (Organizadora)
from Livro "O Belo Contemporâneo: corpo, moda e arte" (2019) - Renata Pitombo Cidreira (Organizadora)
APRESENTAÇÃO
Depois da insistente negação do belo no século XX e diante da multiplicidade das intervenções expressivas da contemporaneidade, a problemática do belo tem ressurgido. A crítica que o denegava tem dado lugar a um questionamento sobre novas possibilidades do reconhecimento de novos padrões de beleza, redefnindo o seu papel nos processos de criação e fruição da atualidade. A partir desse cenário, vamos nos confrontar com essa noção e tentar apreender novas concepções da Beleza, tendo o corpo vestido ou a composição da aparência como elemento norteador das discussões.
Advertisement
Tradicionalmente, nos acostumamos a pensar a Beleza a partir de alguns princípios que a relacionam ao físico e ao visível; algo que se identifca ‘imediatamente’. No entanto, “é necessário reconhecer que os atributos de ‘imediatez’ e de ‘visibilidade’ pertencem (...) à gnosiologia pré-aristotélica (...) e restituem (...) a primazia atribuída à visão que caracteriza as primeiras formulações do problema gnosiológico no pensamento grego” (MECCHIA, 1992, p. 164). Em Platão, a beleza aparece como o que de mais visível existe: ela resplandesce de verdadeira luz entre as essências. “Só a beleza goza deste privilégio de ser a mais aparente (ekphanestaton) e a mais amável (erasmiotaton)” das essências... (PLATÃO apud AGAMBEN, 1992, p. 141). Mas, ao que parece, o paradoxo da defnição platônica de beleza é a visibilidade do invisível!
Outra forma recorrente de enquadramento do Belo se estabelece através de uma ênfase normativa, associando-o as relações de simetria, proporção e equilíbrio. Estas noções são herdeiras do pen-
samento pitagórico, ancorado numa abordagem estético-matemática do universo, sustentando que existe uma correlação entre ordenação e beleza. Para os pitagóricos a harmonia estava relacionada à exigência de simetria: equilíbrio entre duas entidades opostas que se neutralizam uma à outra. A escola pitagórica contribuiu muito para as refexões da Estética, sobretudo no que se refere a música e as artes visuais, tendo a noção de harmonia como um norteador para o reconhecimento do Belo, visando a unidade entre elementos.
Mas já antes mesmo do platonismo parece que o belo também se aproxima do campo ético, associando-se ao bom, ao agradável e mesmo ao útil. A relação entre a beleza e a verdade que aparece também em Platão parece herdeira dessa tradição. Em Aristóteles, a beleza tem relação com a perfeição e a unidade orgânica entre as partes. De todo modo, o enquadramento mais interessante sobre a questão do Belo comparece na obra de Immanuel Kant, no século XVIII. Kant não só retoma essa ambiguidade platônica entre essência e aparência, mas a reconfgura no horizonte de uma dinâmica entre saber e prazer, que se concretiza num “signifcante excedente”. Reconhece que há algo da instância da surpresa que o belo nos suscita, pois não se trata de um simples reconhecimento, mas sim “o puro remeter de uma coisa a outra coisa; por outras palavras, o seu caráter signifcante, independentemente de qualquer signifcado concreto” (AGAMBEN, 1992, p. 146).
Nas linhas que se seguem, procuramos nos debruçar, sobretudo, sobre essa surpresa, que podemos vislumbrar no corpo, na arte e na moda e nos entrelaçamentos entre esses três âmbitos expressivos.
Os textos aqui reunidos refetem o universo de discussões desenvolvidas pelo Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura (cadastrado pelo CNPq e sob a minha coordenação), especialmente no ano de 2017, a partir dos textos de autores como Umberto Eco, Christoph Turcke, Hans Ulrich Gumbrecht, Jean Maisonneuve e Marilou Bruchon-Schweitzer, Jean Galard, Arthur Danto e Lars Svendsen. Immanuel Kant, Michel Mafesoli, Alfredo Bosi, Luigi Pareyson, Georg Simmel, entre outros, também são algumas referências que auxiliaram na condução das refexões presentes neste livro.
A coletânea celebra os 10 anos de existência do Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura e traduz as inquietações da linha Corpo e expressão. Atualmente, o grupo conta com 6 docentes dos cursos de História, Ciências Sociais, Cinema, Jornalismo e Publicidade e Propaganda, da UFRB; e um total de 30 discentes de variadas áreas do conhecimento, da graduação e da Pós-Graduação da UFRB, especialmente do Programa de Mestrado em Comunicação; e do Programa Multidisciplinar em Cultura e Sociedade da UFBA. Os estudos do grupo abrangem investigações que incorporam sensibilidade crítica e teórica para os modos de experimentações e vivências corporais, em contextos diversos. As pesquisas se interessam pelas expressões visuais da corporeidade e sua interação com o universo das mercadorias e com o campo cultural-artístico; bem como a performatividade; os estudos de gênero, os modos sociais de exercício da sexualidade; a relação entre corpo, gerações e estilo de vida.
Os presentes textos são fruto de investigações acadêmicas nos vários níveis: iniciação científca, mestrado, doutorado e pós-doutorado, exibindo, assim, um ambiente de discussão, troca e descoberta contínuos em que cada pesquisador (jovem ou mais experiente) tem a possibilidade de expor suas ideias e, a partir delas, estabelecer interações pedagógicas e intelectuais intensas. Ao todo, são 12 artigos que se encontram distribuídos em três grandes eixos temáticos – Criações visuais, Pluralidades corporais e Aparências midiatizadas –, além da instigante introdução de autoria do pesquisador Monclar Valverde (professor titular do IHAC/UFBA), que esteve próximo ao grupo de pesquisa em 2017, quando da realização do seu pós-doutorado, sob a minha supervisão. Na introdução, Valverde procura elucidar a questão do belo, que aparece, inicialmente, vinculada às artes, para depois ser reconhecida em outras formas de confguração existentes na experiência cotidiana. Ele considera, assim, que o que vivemos hoje, na contemporaneidade, como resultante da fadiga poética da arte conceitual, seria algo como uma reativação poética da beleza e uma reabilitação estética do gosto.
Em Criações visuais encontramos refexões que circundam o mundo da fantasia, em que o corpo se encontra imerso nas teias da
criação e autocriação, num diálogo intenso com a dança, as artes plásticas, a pintura e o cinema, bem como com o ambiente em que habita e circula – a cidade. A beleza enigmática que há na imagem (pintura e flme) da Moça com brinco de pérola, de Johannes Vermeer, é explorada por Renata Pitombo Cidreira e Gina Reis; As investidas em modulações corporais no contexto citadino que beiram ao estranho comparecem no texto de Beatriz Pires; O imbricamento entre a arte e o corpo experimentado de forma radical pelo movimento Dândi é recuperado à luz da obra e do artista Arthur Bispo do Rosário, no texto de Etevaldo Cruz; Também a exploração do movimento em busca da beleza através da dança de Isadora Duncan é tema do texto de Hanna Rodrigues.
No eixo Pluralidades corporais, a beleza comparece distanciada de padrões clássicos, exigindo novas formas de expressão de si em corpos vestidos como nos apresenta o texto de Baga de Bagaceira, num diálogo com a sexualidade e a questão racial; Do mesmo modo, novos arranjos do corpo feminino são instituídos pelos reality shows, como explora Clécia Junqueira, analisando o fenômeno da família Kardashian; Os desfles de moda comparecem como campo de novas possibilidades corporais, apesar de conceber o corpo magro e branco como o padrão de beleza feminina, como argumenta Renata Leahy; e com as observação de Rosane Gomes sobre o lugar do corpo gordo na sociedade contemporânea e sua relação com a roupa, busca-se encontrar o belo para além de padrões estabelecidos socialmente.
As Aparências midiatizadas trazem à tona a discussão sobre a infuência da mídia na constituição de corporeidades e toda uma cultura visual. A imprensa do início do século XX ressurge como elemento de agenciamento de uma nova beleza e visualidade corporal através do esporte, como sustenta Henrique Sena; A apresentação de padrões de beleza para os corpos impostos pelas imagens das revistas de moda e as possíveis abordagens sobre o belo pela mídia especializada são debatidos por Larissa Molina; A representatividade da beleza negra feminina na publicidade das revistas, tendo a Glamour como referência, é questionada no texto de Fernanda
Barbosa; O papel da imprensa escrita para a divulgação de informações relativas ao corpo e a beleza corporal também é alvo das inquietações de Naiara Pinto, que elege a revista Boa Forma para sua análise.
Nesse escopo de investigações que transitam entre a imaginação, o cotidiano e os enquadramentos, expressos na arte, no corpo e na mídia, a beleza – sobretudo na conjunção com o universo da roupa e da moda – ressurge ressignifcada e tendo seus limites ampliados em múltiplas formas de expressão. Reconhecemos, assim como Simmel (2010) já apontava – antecipando o que se reconhece hoje –, que de um ideal de vida baseado na imanência, na harmonia e na presença, temos o reconhecimento da vida moderna como dinâmica de desproporção e, portanto, de contingência. Em nossa época, essas dinâmicas se amplifcam, e são, por vezes, acionadas conscientemente em alguns empenhos poéticos, reintroduzidas na vida cotidiana e impulsionadas pelos meios de comunicação. Dessa forma, corpo, arte e moda se entrelaçam e potencializam o efeito que a aparência produz sobre nós.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Gosto. Enciclopédia Einaudi – Criatividade e Visão. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992, p. 139-157, v. 25.
MECCHIA, R. Belo/feio. Enciclopédia Einaudi – Criatividade e Visão. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992, p. 158-176, v. 25.
SIMMEL, Georg Apud FORTUNA, Carlos. Simmel: a estética e a cidade. Tradução de António Souza Ribeiro. Coimbra, Portugal: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010.