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CORPO, BELEZA E ESPORTE NA IMPRENSA BAIANA: 1916-1928 - Henrique Sena dos Santos

Henrique Sena dos Santos

CORPO, BELEZA E ESPORTE NA IMPRENSA BAIANA: 1916 – 1928

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‘Dez maneiras de um emagrecimento saudável’, ‘Como conseguir uma barriga negativa em vinte dias’, ‘Dez passos para um abdômen sarado’... A lista de indicações e recomendações sobre o cuidado com o corpo e com a sua visualidade é infnita. Em igual medida, a lista dos suportes sobre os quais consumimos este conteúdo também é enorme. Desde as grandes revistas já estabelecidas, passando pelos blogs e agora, mais recentemente, as redes sociais como Instagram. Todos estes veículos nos têm algo a dizer como construir as aparências e visualidades no afã de alcançar um corpo belo e ftness. Seja na grande imprensa ou nas redes sociais, o que as unem é a constante preocupação pelo corpo dito esteticamente belo, através do cuidado com o controle alimentar ou na prática esportiva que contribuem para embutir o corpo de uma ideia de saúde. É fato que boa parte do que se consome nas mídias, sejam elas as revistas ou as redes sociais, é um conteúdo voltado para a constituição de uma certa corporeidade fundamental para a consolidação de uma determinada cultura visual.

Neste texto, gostaria de chamar atenção para o fato de que, ao contrário do que se pensa, o fenômeno da busca incessante pelo corpo belo nas confgurações da modernidade – cujo melhor

suporte e via para alcançar este ideal são as mídias – não é novo. Ele remonta aos meados do século XIX, sobretudo pela consolidação de uma cultura das aparências em franco desenvolvimento ao menos desde o século XVIII, expressa no desejo de uma nova visualidade de si como consequência do desenvolvimento de sociedade industrializada marcada pela competitividade, individualismo e pelo triunfo do liberalismo e do ideal civilizatório (SENNETT, 1988; ELIAS, 1994).

Nesta direção, com este ensaio procuro contribuir para historicizar o processo de uma nova constituição de uma nova beleza e visualidade corporal através do esporte. A partir da leitura de algumas edições de revistas ilustradas editadas e publicadas em Salvador no início do século XX, a minha intenção é oferecer ao leitor a possibilidade de perceber como o discurso de um corpo belo, saudável e atlético foi fundamental para a formação de uma imprensa moderna. Por sua vez, este mesmo campo, ao absorver novas tecnologias no âmbito da comunicação, foi determinante para que o próprio discurso do esporte e da beleza corporal tivesse uma potencialidade considerável.

Enfm, ao fnal do texto, espero que eu consiga ensaiar, ainda que de forma incipiente, a ideia de que este processo histórico aponta continuidades no modo como as mídias tradicionais e redes sociais atualmente têm na moda e nos esportes e no fenômeno ftness uma forma altamente comercial e rentável de estar em evidência. Por outro lado, os próprios personagens desta cultura corporal como editores, colunistas, blogueiros, youtubers e os digitais infuencers, em uma relação dialógica com as mais variadas mídias sociais encontram nestes uma forma de constantemente manter a pauta moderna do sonho do corpo perfeito atualizada.

AS REVISTAS REVISTANDO SALVADOR: UM BREVE PERFIL GRÁFICO

Ainda no fnal século XIX, alguns periódicos soteropolitanos davam os seus primeiros passos rumo ao processo de modernização e formação da grande imprensa local. Todavia, é a partir da década

de 1910 que a imprensa da cidade passa por substanciais mudanças quantitativas e qualitativas. Signifcativo neste momento foi o surgimento do jornal A Tarde, fundado por Ernesto Simões Filho, em 1912. O diário inovou ao apresentar uma diagramação diferenciada, introdução de fotografas, um recurso pouco utilizado até então nos jornais da cidade. Estas mudanças fzeram muito sucesso e foram incorporadas pelos outros jornais como o Diário de Notícias e o Diário da Bahia, que passaram a estampar colunas mais mundanas bem como segmentar melhor o seu conteúdo (SANTOS, 1985).

Estes jornais com conteúdo e abordagens inovadores se tornaram um espaço profícuo de debate da relação de Salvador com o novo contexto social, político e cultural. Naquele momento, a elite soteropolitana, assim como de outras capitais do país, também desejava estar em sintonia com o imaginário da modernidade cujas cidades como Paris e Londres eram as referências (COSTA, SCHWARCZ, 2000; LEITE, 1996; BARREIROS, 1997). Os editoriais de jornais como Diário de Notícias e a A Tarde discutiam a necessidade das reformas urbanas para a cidade. Por sua vez, as colunas sociais, ao noticiar as festas, os esportes, o footing e o cinema, se esforçavam para aproximar Salvador de um ideal de civilidade e modernidade europeu ou norte americano.

Por fm, alguns periódicos, numa operação de fortalecimento de uma identidade regional, discutiam a necessidade de a Bahia recuperar a importância nos destinos da nação através da modernização sócio espacial da sua capital. É nesta direção que emergem as revistas ilustradas da cidade acompanhando o surgimento de uma série de outros periódicos do gênero no Brasil como O Malho, Fon-Fon, A Cigarra, entre tantas outras que buscaram apresentar aos leitores novas possibilidades de construção de um novo espaço social moderno, bem como uma nova visualidade corporal de si (OLIVEIRA, VELOSO, LINS, 2010; MARTINS, 2010).

É possível datar a presença de revistas na capital baiana desde o fnal do século XIX. Localizamos revistas ilustradas como A Revista do Brazil, O Petiz, Revista Cívica e a Paladina do Lar no mínimo

desde 1906. Estes periódicos já ensaiavam algumas questões relacionadas às sociabilidades urbanas (Revista do Brazil, 1906–1912) ou sobre a condição feminina naqueles novos tempos (A Paladina do Lar, 1910–1917).

Entre meados da década de 1910 e o fnal dos anos 1930, que este tipo de imprensa, principalmente com as ilustradas, alcança consideráveis progressos no que tange as inovações gráfcas, iconográfcas de diagramação e tiragem. É por este caminho que os periódicos ilustrados se tornaram os principais impressos mundanos naquele momento, na Bahia e no Brasil. Em Salvador, acredito que esta mudança tenha relação com as transformações em curso na cidade. Naquela década, a cidade da Bahia experimentava uma relativa efervescência econômica, resultado do crescimento no setor do comércio. Além disso, entre 1912 e 1916, J. J. Seabra empreendeu uma série de reformas que favoreceram a constituição de novas sociabilidades muito discutidas e difundidas pela imprensa (LEITE, 1996). Esta gestão, anos mais tarde foi precedida por Francisco Góes Calmon que, entre 1924 e 1928, de certa forma continuou com as políticas urbanizadoras. É neste contexto, mais precisamente, entre 1916 e 1922, que surgiram as principais revistas ilustradas da cidade, como A Renascença (1916), Artes & Artistas (1920) e a Semana Sportiva (1921). Aqui, apresentaremos um pouco sobre a primeira e a última.

A Renascença foi fundada em 1916, por Diomedes Gramacho e José Dias da Costa, personagens ligadas à fotografa e ao cinema, atividades que traziam as marcas da modernidade. Eles aprenderam o ofício com Rodolfo Lindemann, alemão radicado em Salvador e que foi um dos principais fotógrafos da cidade, a quem fzeram questão de homenagear ao intitular a empresa que fundaram de Photografa Lindemann, destacada em seu gênero e que deu origem à revista.

A revista destinava em média 20 páginas para a publicidade de uma série de produtos e serviços, em sua maioria prometendo uma visualidade do corpo marcada pelo desejo, um corpo saudável e bem vestido. Por fazer parte de uma empresa fotográfca, A

Renascença se destacava entre as suas concorrentes por publicar uma variedade infndável de imagens sobre Salvador e suas elites, retratando os indivíduos em questão sempre como cidadãos antenados com as mudanças advindas da modernidade.

Já a Semana Sportiva foi idealizada pelos editores Celestino Britto e Mário Oliveira, personagens já conhecidos pelo envolvimento no universo esportivo da cidade através das suas presenças como sócios de clubes de futebol e remo de Salvador. Nas páginas do semanário, as práticas esportivas surgem como um fenômeno não só útil ao lazer da cidade, mas principalmente responsável por levá-la a um novo patamar de evolução racial, física e moral. Neste sentido, o tratamento que a imprensa deveria dar ao esporte tinha quer ser especial e não atrelado às colunas sociais ou meros divertimentos. Daí a necessidade de uma imprensa especializada, a única capaz de orientar o leitor no desenvolvimento atlético, belo, gracioso, funcional, enfm, correto do seu corpo (SANTOS, 2013).

Acompanhando o tímido desenvolvimento urbano da cidade, estas revistas apresentaram uma série de colunas, editorais e, principalmente, fotografas sobre como o corpo deve ser e ser visto na nova Salvador. Em outras palavras uma pedagogia da visualidade de si é empreendida por estes impressos. Como realizar e se comportar em festas, como morar e estar nos espaços públicos, as ideias de amor e casamento, entre uma série de outras indicações e concepções sobre estilo de vida estão presentes nas páginas ilustradas. Seguramente, ao menos em relação à revista A Renascença e à Semana Sportiva, o mote delas era a preocupação com a visualidade do corpo nesta nova sociedade. Neste sentido, o esporte e a educação física foram pautas primordiais para os editores destes impressos. Vejamos como as fontes falam deste universo.

UM CORPO ESPORTIVO, UMA BELEZA ATLÉTICA

Embora a presença das práticas esportivas, em Salvador, date desde o fnal do século XIX, nos anos 1920 é que ele foi, junto com o cinema, a principal forma de sociabilidade das elites locais. Naquela

década, a cidade já contava com calendários esportivos consolidados, como os campeonatos de futebol e remo. Este e outros eventos tinham como principal espaço de manifestação as praças esportivas da cidade como a península de Itapagipe, que abrigava as pugnas de remo e os campos de futebol espalhados pelos mais diversos bairros. O grande destaque fcava por conta do Campo da Graça, um estádio moderno no centro e Salvador que, ao acomodar centenas de torcedores, atuava como um grande espaço de convergência de uma cultura esportiva na cidade. Além disso, existiam algumas dezenas de clubes que não só participavam das competições, como faziam das suas sedes sociais um espaço de festas reuniões, carnavais e outras práticas como o tênis e atletismo. Enfm, toda esta efervescência fazia parte de um contexto nacional e internacional de emergência de uma cultura esportiva que tinha como principais anseios uma excitação civilizada, o cuidado higiênico e eugênico do corpo que resultaria em uma nova visualidade de si, em sintonia com as próprias mudanças visuais da cidade em decorrência das reformas urbanas (LUCENA, 2000; ELIAS, DUNNING, 1992; JESUS 1999). Para completar, o desenvolvimento de uma imprensa moderna, que tinha nas revistas ilustradas e nas imagens fotográfcas o grande carro chefe, forneceu as bases para que as mulheres e homens buscassem no desenvolvimento do corpo um modo de, assim como a cidade, ver e ser visto nos impressos. Podemos considerar que a relação entre corpo, esporte e cidade encontra um ápice na década de 1920 devido aos desdobramentos da Primeira Guerra na medida em que aquele confito exigiu da sociedade:

[...] o seu engajamento físico, em condições que rompam com a rotina do cotidiano e o consenso dos hábitos e ideias. Só desse modo elas podem vir a desempenhar um papel ativo, integrando uma força coletiva que adquire assim uma corporeidade extra-humana. Nesse desempenho físico em que o corpo é a peça central, os agentes da “ideia nova” se expõem a um intenso bombardeio sensorial e emocional, que se torna a substância enérgica em si mesma da ação, não devendo, pela lógica da sua própria economia, se desdobrar em considerações reflexivas ulteriores. Neste

sentido, não é que a ação preceda o pensamento, mas mais do que isso, ela se nutre exatamente da abstinência dele (SEVCENKO, 1992, p. 32).

A educação física, neste sentido será a pedra de toque deste processo uma vez que, para os intelectuais, consistia em no único conjunto de saberes científcos e disciplinadores capaz de dar ao corpo a beleza necessária e desejada. Por possuir os recursos modernos da comunicação de texto e imagem, as revistas ilustradas serão fundamentais na vulgarização deste saber para além das faculdades de medicina e sua linguagem altamente científca. Não raramente é possível encontrar este tipo de mensagem nas páginas dos impressos locais:

A educação física é o elemento primacial na formação das nacionalidades que desejam ser fortes para se impor ao respeito dos povos estranhos, sendo mais ainda uma circunstância de poderosa concorrência entre os que trabalham para o desenvolvimento intelectual das raças. Ser forte deve ser o ideal de todo homem (A RENASCENÇA, Salvador, nº 63, 26 de setembro de 1920, p. 39).

Em outras passagens, os editores procuram demonstrar os equívocos relacionados à visão que as pessoas tinham da educação física.

Quando se diz educação física, nem todos compreendem o mesmo. Para alguns é um meio de substituir o médico por uma prática cotidiana de movimentos mais ou menos suecos, que devem impedir a extraordinária obesidade. Para outros, é a distração cotidiana de uma hora ou de alguns instantes, que deve evitar a neurastenia. Para outros, finalmente, é o acesso às pistas de corrida, às salas de armas, à piscina, à água, com a esperança de ser um dia campeão e de entrar na glória pela cinematografia ou pelo eco diário (SEMANA SPORTIVA, Salvador, nº 41, 14 de janeiro de 1922, p. 13).

Ao buscar deslegitimar o modo como parte da sociedade se relacionava com as práticas corporais, os editores da revista buscam compartilhar junto com os médicos e higienistas o monopólio do discurso correto sobre a educação física e a sua relação com o corpo.

Tal ação parece ter uma função também comercial, pois credencia a revista a ser o suporte essencial para que se leia e se conheça a educação física com uma linguagem mais palatável. Exemplo disso é a distinção entre a ideia complexa de educação física defendida por médicos e intelectuais, jornalistas e a ideia simples seguida pela população. Enfm, para a Semana Sportiva:

O nosso ideal é mais complexo: repousa na grande fórmula de Dement: “Saúde, Beleza e Virilidade”. Beleza – a educação física é o meio, o esporte é o fim: mas nem todos podem praticar o esporte, eis porque o médico é o nosso colaborador constante. É ele que, pelos seus estudos de laboratório, pelas suas experiências físicas e químicas nos dá os limites nos quais nos podemos mover. São os estudos que nos ensinam a fazer os movimentos de compensação, para dar mesmo aos especialistas de um esporte, o desenvolvimento harmônico de todo o corpo (SEMANA SPORTIVA, Salvador, nº 41, 14 de janeiro de 1922, p. 13).

Observem que a beleza complexa do corpo deve envolver o seu desenvolvimento harmônico e este resultado só pode ser alcançado na sua relação com a educação física, que só pode ser entendida de uma forma mais didática pela leitura da revista, a melhor tradutora da linguagem científca.

Em uma sociedade cujos índices de alfabetização eram extremamente baixos, as imagens assumiam um papel central na pedagogização desta beleza corporal. Os editores buscam mobilizar amplamente os seus recursos da comunicação para publicar imagens de corpos frmes, retesados e em movimentos bruscos e ágeis. Estas imagens ocupam grande parte das páginas e na capa dos impressos. Muito comum, por exemplo, são as imagens de corpos seminus revelando o detalhe dos músculos bem trabalhados e defnidos.

BELEZA ATLÉTICA E BELEZA FEMININA

Consequentemente, a defesa de uma beleza atlética e higiênica não deveria ser indiscriminada. Pelo contrário, deveria respeitar

as diferenças dita natural entre os sexos e a constituição física e funcional dos corpos. Tal controle sobre o tipo de corpo atlético a ser alcançado afeta particularmente as mulheres. Enquanto nos homens é valorizada a virilidade, a força dos músculos, na mulher as recomendações são para a prática de esportes que ratifquem a delicadeza, graça e suavidade, entre outras características naturalizadas do corpo e beleza femininos naquele contexto.

Em uma das suas edições, ao reproduzir um artigo de um escritor espanhol com o título ‘Comprometerão os desportos a beleza e a graça feminina?’, os editores da Semana Sportiva procuram orientar e justifcar às leitoras e leitores quais as modalidades esportivas são mais importantes para o corpo e beleza femininos. O intelectual inicia questionando ‘onde e por quem, com autoridade, se disse que propaganda desportiva em todos os desportos e exercícios ao ar livre contribuíam para desenvolver a beleza do corpo feminino?’. Em seguida, ironiza ao dizer que ‘sempre queria ver o tipo de beleza de uma jogadora de foot-ball, depois de uns anos de lutas e a cara dos cientistas que lhe tivesse aconselhado aquele excelente desporto para a obtenção das formas que imortalizaram Afrodite’. Continua advertindo que caso todos os esportes fossem recomendados, ‘não faltariam, depois, ao ver esse produto de tal propaganda ‘autorizada” passear às avenidas ou “boulevards”, vozes que gritassem estridentemente: ‘o desporto está tirando a graça, o encanto e até a “coquetterie” da mulher...’ Podemos notar que a sua ideia de beleza feminina é inspirada nos estereótipos da Grécia clássica de, nas palavras dele, ‘desenvolvimento harmonioso de todas as partes do corpo’. Finalmente, conclui seu argumento defendendo que:

Nestas condições, o tipo de beleza feminina que nos convém é o que já brilhantemente defenderam os ilustres escritores que me precederam, o tipo mais apto a procriação, à função mais sublime da mulher, que tem feito a grandeza de povos os mais civilizados (...). Se de fato nos recordamos que as mulheres fortes que fazem uma raça forte; com que a fraqueza das mães começa a dos homens; que não é possível nenhum progresso social durável se a

mulher não intervém para beneficiar-se dele e ajudá-lo, mal podemos atinar com o desconhecer-se por momento o valor biológico dos geradores necessários e suficientes para obter um filho são, viável e suscetível de se beneficiar ao máximo dos efeitos da educação física. Para a mulher, pois, para a sua beleza e para a conservação de sua graça muito contribuem a ginástica sueca, as danças clássicas e a natação. Principalmente este último que é o mais adequado ao organismo feminino. É o exercício próprio para a mulher, naturalmente indicado para ela, pois além de ser um modificador do medo, emotividade peculiar ao sexo, dá-lhe o domínio de si mesmo harmonizando-lhe as formas (Revista Semana Esportiva, Salvador, Nº 117, 21 de julho de 1923).

As recomendações do intelectual são textos bastante expressivos sobre a forma como a beleza atlética do corpo feminino deve ser desenvolvida. Não necessariamente em ordem de importância, primeiro deve-se preservar no corpo atlético a feminilidade moderna, o que corresponde à um corpo esportivo delicado, gracioso. Qualquer coisa contrária a isso é extremamente maléfca à mulher, uma vez que pode masculinizar o seu corpo, algo que seria tido como antinatural. Em segundo lugar, a beleza do corpo feminino deve garantir a grande função “natural das mulheres”: sua capacidade de reproduzir e gerar flhos saudáveis, indispensáveis ao país em tempos de emergência de uma ideologia eugênica e militar que ao entender a ideia de raça enquanto a nação visava a regeneração desta. Em outras palavras, o corpo e a beleza esportivas são atravessados pelas diferenças de gênero:

Baseados na teorização darwinista de que a atividade física atuava no fortalecimento orgânico e, portanto, no aprimoramento da espécie, muitos dos discursos e práticas que circularam no Brasil do início do século XX mencionavam que o refinamento da raça estava diretamente relacionado com o fortalecimento da população. Nesse sentido, não pouparam esforços para criar condições de educar, fortalecer e aprimorar o corpo feminino branco, observado como o principal instrumento para atingir uma raça branca, representada como superior e perfeita (GOELLNER, 2004, p. 4).

Não foi à toa que os editores da Semana Sportiva constantemente reforçavam em suas páginas o desejo de ver as senhorinhas baianas praticarem modalidades esportivas que ratifcassem aquele tipo de beleza em um esforço da constituir nas meninas baianas uma cultura física, tal como ocorria em outras cidades (DEVIDE, 2004; SCHPUN, 1997). Nada mais gracioso, elegante e distinto, portanto, que o cultivo do tênis, pois dotava as moças de uma elegância que ia desde os trajes utilizados nas pugnas aos movimentos suaves com a raquete e a bola. Para os editores do seminário:

As formosas e promissoras jovens brasileiras, devem, pois, ao nosso modo de ver, lutar, com a mais absoluta das precisões, para que, dentro em breve, rivalizem, em simpatias, com o cultivamento do tênis, os demais esportes que já são comuns no Brasil. Os nossos votos e os nossos esforços não se farão recusar, cuja eficácia consiste nos atrativos que o jogo de tênis oferece, assim como, nos encantos que vulgarmente residem no belo sexto, tudo, portanto lhe sendo útil. Estamos certos que, futuramente as baianas fundarão um clube de tênis e a sua prioridade nesse particular servirá de exemplo as suas rivais dos outros estados do país, continuando a Bahia com a grande ventura de ser mãe, mais uma vez, das coisas auspiciosas e fecundas para a nossa raça (SEMANA SPORTIVA, Salvador, Nº 110, 12 de maio de 1923).

Ao longo das edições da Semana Sportiva, estes e outros textos eram acompanhados de uma série de imagens que eram dispostas em tamanhos consideráveis, geralmente ocupando uma página inteira ou mesmo a capa do semanário. As atividades esportivas mais recomendadas para o “belo sexo” eram o tênis e a natação. Na imagem seguinte encontramos uma legenda com os seguintes dizeres: ‘Lindas criaturas que realizam o encanto das praias cariocas, praticando a natação. Desenvolvem-se fsicamente e deslumbram os olhos dos enamorados da beleza’.

Figura 1 – Semana Esportiva Nº 153 – (03 maio 1924, p. 18)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mais do que concluir uma ideia, eu espero que este pequeno texto possa problematizar mais a questão de como a beleza, mais do que socialmente construída, deve ser situada historicamente, de modo que entendemos como um corpo belo hoje carrega uma série de rupturas e continuidades sobre o modo como as sociedades conceberam e concebem o corpo. Embora atualmente uma ideia de beleza do corpo pela educação física não carregue mais uma conotação eugênica e higiênica tão latente como tempos atrás, a tentativa de legislar ou monopolizar as concepções de beleza do corpo, sobretudo o das mulheres, ainda são fortemente presentes.

Por outro lado, assim como no passado, qualquer tentativa de controlar os sentidos da beleza e do corpo encontra sempre narra-

tivas contrárias, o que me faz defender que não é possível pensar o corpo e a beleza sem pensar no confito, nas tensões e circularidades que envolvem a forma como as pessoas se relacionam com estas representações e práticas. Ainda hoje, as mulheres que adotam uma beleza que defna o seu corpo fora do hegemônico ou do status quo são estereotipadas como homens ou masculinas. No entanto, o discurso ontem e hoje não tem sido capaz de impedi-las de dialogicamente pensar no seu corpo de forma relativamente autônoma. Enfm, espero que, ao pensar na historicidade do confito que envolve ter um corpo cuja beleza pode ser entendida como uma forma de resistência ao estabelecido, pode-se fortalecer um conceito de beleza mais ambivalente, dialógico e menos impositivo ou estruturalista.

Todo o debate envolvendo os discursos, representações e práticas sobre o corpo e a beleza não existe por si só, mas deve ser pensado na relação com os suportes que as dão materialidade. Problematizar sobre quem fala, aonde fala e como fala sobre o corpo e a beleza é fundamental para entender a diversidade e a tensão em torno das representações. Espero que a minha refexão de não pensar no corpo e na beleza por si, mas nas revistas que publicavam estes conteúdos naquele momento, possa ajudar a considerar historicamente as mídias atuais não como instrumentos de dominação e controle de narrativas, mas também como espaços de disputas.

Do ponto de vista político, espero que estas preocupações teóricas à luz do passado possam estimular as mulheres e os homens a continuarem buscando, na história e no cotidiano, formas múltiplas de beleza dos seus corpos. Não penso aqui no passado como um exemplo a ser seguido, mas como um conjunto de experiências que revelam que, por mais que determinados grupos ou mídias sociais tentem impor “o belo”, as pessoas sempre estarão se movimentando dentro e fora destas próprias mídias e buscando formas contra hegemônicas de ser e estar na sociedade. O fato de isso não ser uma novidade pode infuenciar a continuar a acreditar na beleza que não necessariamente seja a de O Boticário.

Referências

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COSTA, Ângela Marques da. SCHWARCZ, Lilia Moritz. 1890-1914: no tempo das certezas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

DEVIDE, Fabiano Pries. A natação como elemento da cultura física feminina no início do século XX: construindo corpos saudáveis, belos e graciosos. Movimento. n. 10, v. 2, Porto Alegre, 2004.

ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. A busca da excitação. Lisboa: Difel, 1992.

GOELLNER Silvana Vilodre. “As mulheres fortes são aquelas que fazem uma raça forte”: esporte, eugenia e nacionalismo no Brasil no início do século XX. In: Recorde: Revista de História do Esporte, Rio de Janeiro, n. 1, v. 1, 2008.

JESUS, Gilmar Mascarenhas de. Construindo a cidade moderna: a introdução dos esportes na vida urbana do Rio de Janeiro. In: Estudos Históricos, n. 23, v. 13, Rio de Janeiro, 1999, p. 17-40.

LEITE, Rinaldo Cesar Nascimento. E a Bahia civiliza-se...: ideais

de civilização e cenas de anti-civilidade em um contexto de

modernização urbana: Salvador, 1912-1916. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1996.

LUCENA, Ricardo de Figueiredo. O esporte na cidade: aspectos do esforço civilizador brasileiro. Tese (Doutorado em Educação Física) – Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000.

MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revista: imprensa e práticas culturais em tempos de República. São Paulo (1890-1922). São Paulo: Edusp, 2001.

OLIVEIRA, Cláudia de. VELLOSO, Monica Pimenta; LINS, Vera. O moderno em revistas: representações do Rio de Janeiro de 1890 a 1930. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.

SANTOS, José Wellington Aragão. Formação da grande imprensa na Bahia. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1985.

SCHPUN, Mônica Raisa. Beleza em jogo: cultura física e comportamento em São Paulo nos anos 20. São Paulo: SENAC, 1997.

SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo: sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

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