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O DANDISMO DE ARTHUR BISPO DO ROSÁRIO: A VIDA COMO OBRA DE ARTE - Etevaldo S. Cruz

Etevaldo S. Cruz

o DANDISMo DE ARTHUR BISPo Do RoSÁRIo: A vIDA coMo oBRA DE ARTE1

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Na introdução de Devemos ser uma obra de arte ou vestir uma: O Dandismo como Medium-de-Refexão na Arte (2016), Angélica Adverse destaca dois aspectos a serem considerados quando abordamos uma análise sobre o Dandismo. O primeiro, diz a autora, corresponde ao caráter incerto de sua origem e genealogia; um outro ponto diz respeito à dinâmica de sua condição, ou seja, as insurgências cíclicas e fragmentadas. Sob outros aspectos, para compreendermos o Dandismo é necessário atentar para suas sublevações em devir (2016), ou seja, suas manifestações nos interstícios da história, no interior das diferentes formas culturais onde ele emerge como uma potência antagônica. Posto essas considerações, nos interessa uma aproximação desta noção e verifcar como seus sentidos foram sendo reconfgurados ao longo dos tempos, de modo que nos permita friccionar, a partir de uma abordagem contemporânea, com o estilo de vida do artista sergipano Arthur Bispo do Rosário.

1 As discussões travadas neste artigo, correspondem a noções preliminares que serão discutidas na tese de doutorado, onde a abordagem, em uma perspectiva mais ampla, analisa as dimensões do Estilo, Dandismo, Aparência e Escultura-de-si como elementos aglutinadores da gestualidade e a da presença de Arthur Bispo do Rosário.

A dimensão Dândi é pouco destacada ou nem abordada nos estudos sobre o artista. Dessa forma, a partir de uma mirada contemporânea, lançando mão do relato de José Castello (2009) e da entrevista de Arthur Bispo do Rosário para Hugo Denizart, em ‘O prisioneiro da passagem’ (1982), este artigo busca sublinhar algumas características Dândi(s) na vida do artista sergipano, contribuindo como mais um vetor de análise e abordagem sobre Bispo do Rosário; estas características estão circunscritas em dois vetores indissociáveis: o atitudinal e a reinvenção da aparência como formas de ser e estar no mundo. A escolha por estas fontes não é desinteressada. O relato de Castello destaca a potência da aparência e altivez de Bispo a partir da recepção da presença que se impõe ao olhar do jornalista, ou seja, como o mesmo fora surpreendido pelo espetáculo da aparição daquele homem, naquelas circunstâncias. O flme, por sua vez, revela o próprio personagem falando de si, dando-se a ver diante da câmera. Ambas as fontes trazem em comum a aparência e o corpo como catalisadores da performance em cena. Isso nos permite compreender esses fragmentos sugestionáveis como uma ressignifcação bispiana da estética Dândi, tanto no cuidado da aparência, quanto nas condutas para transformar sua vida em uma obra de arte.

Todavia, é importante frisar, como já sublinhado por Adverse (2016), que dada a fsionomia movente, a genealogia do Dandismo é de difícil apreensão linear e monolítica na história. Em vista disso, ao destacar a condição de inacabamento do Dandismo, a autora retoma alguns elementos que brevemente acionaremos ao longo do texto. Ela destaca alguns movimentos quanto ao surgimento do Dandismo. Primeiramente, muitos autores credenciam o surgimento do movimento Dândi às dinâmicas urbanas entre França e Inglaterra do século XVII. Assim, como destaca a autora, “alguns ingleses acreditam que o Dandismo foi uma infuência da cultura francesa dos salões representada pelas personagens do l’honnête homme ou das Précieuses” (ADVERSE, 2016, p. 85), por exemplo. Esta compreensão, segundo ela, apontava para o entrelaçamento, ao modo estoico, de aperfeiçoamento moral, através das leituras, escri-

tas e mediações que esmeravam o espírito a ponto de transformar as ações dos indivíduos em manifestações de prudência, equilíbrio e sabedoria.

Desse modo, Adverse (2016) lança mão do Mapa da Ternura de François Chaveau, com o objetivo de mostrar como os primeiros traços do ideal de homem elegante estavam presentes nesta cartografa dos processos a serem perseguidos para que seja dominada a arte da sedução. O mapa revela a fsionomia de uma boa conduta moral que deve ‘estilizar’ as ações e os gestos do sujeito moderno. Conforme a autora, é possível uma aproximação da cartografa da ternura com a noção que anima os exercícios morais do Dândi em suas técnicas de aprimoramento.

O mapa, segundo Adverse (2016), se confgura como lugar utópico do homem ideal, pois, enquanto itinerário, ele oferece as pistas prescritivas como o indivíduo deve se guiar no processo de reinvenção de si, em um projeto criativo de aprimoramento dos sentidos, que, por sua vez, são compartilhados de forma sensível através do afeto. Portanto, “a elegância estaria relacionada aos modos e à partilha das sensibilidades a partir de uma topografa imaginária dos afetos” (ADVERSE, 2016, p. 86), que, transformando as atitudes masculinas, estas seriam demonstradas no entorno social.

Ao tratar desse aspecto que corresponde à noção de arte de viver, Adverse (2016) assinala que esta arte de viver aponta para o aspecto sensível do Dandismo no que diz respeito ao dar-se a ver em público. Em outras palavras, estamos diante da dimensão estética e comunal do Dândi que perpassa os modos de apresentação do corpo, mas sobretudo, a conjugação moral e espacial dessa apresentação em caráter atitudinal com e para o outro. Essa é uma das razões que inscreve a elegância no âmbito de sociabilidade, diz a autora, ao revelar que, compreendido sob essa perspectiva, o Dandismo é um gesto de comunicabilidade, embora circunscrito em potência de ruptura, enquanto performance, insere-se na comunhão de sentidos, no interior de um dado contexto.

Por outro lado, se existem concepções que compreendem o Dandismo na emergência das trocas culturais entre França e

Inglaterra, alguns pesquisadores creditam esta emergência à vida urbana de Edinburgh no fm do Século XVIII, diz Adverse (2016), ao lembrar que o étimo de origem inglesa designa os jovens integrados na vida moderna e o aparecimento das novidades nesta efervescência. Embora devamos considerar a condição incerta de suas origens, a palavra dândy remonta ao início do século XIX, na Inglaterra, e seu uso inaugural é “atribuído ao poeta Lord Byron ao nomear de Dândis, através de uma carta datada de 1813, George Bryan Brummel e seus companheiros” (CATHARINA, 2006, p. 63). Todavia, mantendo sua condição incerta e fugaz, o Dandismo se caracteriza pela adaptabilidade de suas máscaras ao longo dos anos, seja como personagem social ou literário, ou mesmo no trânsito dessas duas condições. Em ambas, o Dândi prefgura a tensão antagônica com o seu contexto sem dele se retirar. Em outras palavras, não se pode compreender o Dândi ou o Dandismo apenas por uma concepção, mas nos fuxos de sua movência e nas suas erupções ao longo do tempo2 . A movência do Dândi e Dandismo ao longo da história, do perfl negativo balzaquiano da Comédia Humana ao alcance estético e moral acentuado por Charles Baudelaire, nos permite compreender a sua condição transversal na cultura ocidental e em todas as épocas, mantendo, em todas os tempos, uma característica inalterada; a saber, a acentuação do alcance estético da existência, isto é, em suas diversas confgurações, o Dândi e o Dandismo estiveram sempre misturados ao artístico da vida, empenhando o corpo como primeira matéria para instituir novos contornos de beleza na relação com o tempo e com o espaço.

Essa é uma das razões de seus ressurgimentos intempestivos que, na nossa perspectiva, percebemos em Arthur Bispo do Rosário, através da sua insubmissão ao presente, por meio da aristocracia de espírito, prefgurada na aparência e no modo atitudinal se ser e

2 Para aprofundamento a respeito dos aspectos semânticos, recomendamos a leitura do ensaio: CATHARINA, Pedro Paulo Garcia Ferreira. As muitas faces do dândi. In: Luiz Edmundo Bouças Courtinho e Latuf Isaias Mucci (Orgs.) Dândis, estetas e sibaritas. Rio de Janeiro: Confraria do Vento e Faculdade de Letras da UFRJ, 2006, p. 62-69.

estar no mundo. Em outras palavras, em sua força desafadora das formas, na transfguração da trivialidade, a partir de uma autonomia diante da experiência-limite na qual esteve imerso. Portanto, a insurgência de Bispo reúne a capacidade de se perceber no mundo, refetindo, de modo prático e imaginário, como reposicionar-se através da remodelação da aparência; mas, sobretudo, sem estar limitado a ela, ou seja, uma remodelação para a amplitude do eu onde se cruzam a estética, ética e a beleza.

BISPODÂNDI: A ESCULTURADESI

Nossa compreensão está circunscrita, como dissemos, em uma perceptiva “contemporânea”, tal como proposto por Renata Pitombo Cidreira (2016), em suas análises a respeito da reelaboração da estética Dândi exercida por alguns grupos da comunidade de Brazzaville, na República Democrática do Congo: “les sapeurs”, que, através de suas roupas exuberantes, acessórios coloridos e combinações inusitadas, demarcam uma maneira de expressão estabelecendo novos contornos de beleza e aparência, reconfgurando formas e modos de aparecer.

Cidreira (2016), através de suas análises sobre a potência do vestir ou do pôr-se em cena, assinala uma perspectiva que nos permite compreender a estética Dândi dos Les sapeurs como um gesto insubmisso contra a precariedade das circunstâncias e que, ao se afrmar como uma poética gregária, revela a força de comunhão que a composição da aparência efetiva em torno de uma insurgência através do vestir, mas sobretudo, do modo de se pôr em cena também para o outro. Assim, podemos dizer que os Les sapeurs, tal como os Dândis do século XIX, deslocados de seu tempo, protestam e se posicionam antagonicamente contra o presente sem dele se descolar.

Nas palavras de Cidreira (2016), a estética Dândi dos Les Sapeurs “propicia que estes homens descubram na beleza e na ‘composição da aparência’ uma possibilidade de sobrevivência e, mais do

que isso, a possibilidade de uma existência potente” (CIDREIRA, 2016, p. 377) 3 do corpo e suas formas de aparecer.

Ao propor a acentuação do gesto Dândi de Bispo, sublinhamos a teatralização da composição de si e os vetores de sentidos que operam na poética do fazer aparecer “o não-ser ao ser na presença”4 , como possibilidades de transfguração da experiência existencial, cujo domínio reside na potência de artisticidade da “escultura-de-si” ao instituir novas convergências visuais para o corpo e como este se impõe ao olhar do outro. Portanto, na estilização, cujo étimo latino evoca a técnica de forjar impressões, traços ou volumes visíveis em uma dada superfície maleável5. O corpo para o Dândi torna-se, assim, a primeira matéria que a escultura-de-si pode revelar no entrelaçamento da força e da forma como expressividade entre atores sociais. Para Jose Castello (2009), a forma da apresentação de si de Bispo, na ocasião da entrevista acompanhada de Walter Firmo, causou-lhe espanto pela força atitudinal daquela presença. Diz Castello (2009):

O Bispo é, segundo as normas eclesiásticas, um padre na plenitude se seu sacramento. É também uma peça que, no jogo de xadrez, só pode ser movida na diagonal, isto é, que avança para os lados. Era o que eu ia encontrar em Arthur Bispo do Rosário: brilho, e não escuridão, e também movimentos tortos, que pareciam insensatos, mas, na verdade, construíam uma obra atordoante. Ao contrário de mim, o repórter que vacilava, meu entrevistado não tinha nenhuma dúvida a respeito do que estava destinado a fazer. Comportava-se impecavelmente – e, convicto, emprestava solenidade a seus atos (CASTELLO, 2009, p. 288, grifo nosso).

3 CIDREIRA, P. Renata. A potência da aparência: entrelaçamentos entre cultura, moda e arte. In: Diálogos Brasil Portugal. Anais Do II Congresso Internacional Sobre Cultura. Org. Annamaria Palacios, Edilene Matos, Joevane Sena. Salvador, 2016, p. 373-379.

4

AGAMBEN, Giorgio. O homem sem conteúdo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. 5 No Dicionário Etimológico (1982) de Antônio Geraldo Cunha, a palavra estilo segue a seguinte descrição/denominação: Estilete: punhal de lâmina fina. Do francês: stylet, derivado do italiano stiletto, de stilo ‘punhal’. Estilo: espécie de ponteiro antigamente usado para escrever sobre a camada de cera nas tábuas ‘maneira de escrever, falar’. Do latim stilus. CUNHA, da. G. Antônio. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 1ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

Em outro trecho Castello (2009) narra a experiência da “escultura” de Bispo e o aspecto teatral de seu modo de compor a aparência:

Diante de mim, sua imagem era mesmo a de um bispo: a batina bordada com inscrições sagradas, os paramentos escorrendo pelo corpo, o porte de um religioso na plenitude de seus sacramentos. Andava com o queixo erguido, como um perdigueiro; os braços, abertos em cruz, o ajudavam a suportar o peso das ombreiras, e os cabelos tempestuosos, com fios endurecidos em forma de estrela, emprestavamlhe uma aparência solene[...] Primeiro eu vi a testa quadrada, sebosa, dominada por uma meia careca absolutamente lisa, reta como um desfiladeiro, que se estendia até o alto da cabeça e lhe dava uma dignidade um pouco dramática. Do topo, saía um chumaço forte de cabelo ainda negro, grudado em borras de sujeira e gordura, um cetro natural, que dispensava coroações. Bispo vestia seu manto sagrado, que mais parecia um tapete e que trazia bordados desenhos indecifráveis, traços que evocavam vagamente um mapa astral. Em torno do pescoço, trançadas em amarelo-ouro, ombreiras largas, com seus penduricalhos, simulavam as condecorações militares. Dos ombros escorriam ainda longas tiras de cordas coloridas, que se derramavam até abaixo dos joelhos. Era, sem dúvida, uma indumentária que impunha respeito e que lhe conferia um aspecto teatral (CASTELLO, 2009, p. 290, grifo nosso).

As longas citações da narração de Castello mantêm um ponto em comum de convergência que corresponde à performatividade da aparência, somando-se ao aspecto cerimonioso do pôr-se em cena de Bispo. Nas linhas desta narrativa, a experiência de Castello deixa sublinhada a surpresa diante do personagem, cujo corpo adornado se apresentava de modo antagônico ao seu contexto.

Temos assim, portanto, uma apresentação plasmada pela condição artística de uma aristocracia do espírito, tal como um Dândi. O corpo em atitude e plasticidade parece reafrmar a unidade expressiva da experiência do Eu, engajando, ao mesmo tempo, a acentuação estética da individualidade, cujos atributos manifestam a autonomia das possibilidades inventivas da aparência, através de uma

estética da existência. E a condição comum dessa unidade expressiva que corresponde às experiências intersubjetivas que se presentifcam em nós como pertencimentos daqueles que nos antecederam, como, por exemplo, no caso de Bispo, as sentenças religiosas de um catolicismo afro-brasileiro e as sentenças militares evocadas nos adornos do Manto da Apresentação, como descritas acima nas palavras de Castello (2009).

Figura 1 – Arthur Bispo do Rosário com o Manto da Apresentação. Rio de Janeiro, 1985. Foto: FIRMO, Walter. (2013, p. 09).

O gesto Dândi de Bispo, circunscrito em seu contexto de precariedade, assinala um modo de experiência que também é posto em cena nos fragmentos sugestionáveis captados por Hugo Denizart em O prisioneiro da passagem (1982). Sob outra perspectiva, o que se propõe em relevo é a expressão de Bispo permitindo-se à teatrali-

dade e espetacularidade6 diante das câmeras, performando os rituais que são tecidos na prática cotidiana enquanto estética da existência, cuja potencialização encontra na midiatização, o terreno fértil para invenção da espetacularização.

Entre os minutos 1:58 e 5:41 do flme, em um processo intercambiável entre delírio e consciência de si, Bispo revela o projeto de sua obra como resultado efetivo para cumprir sua missão em refazer o mundo, onde não haverá diferenças, separações ou abismos, uma evidência do desejo de outro lugar, conforme seu projeto. Contudo, o que nos interessa nesse trecho é a transversalidade do devir do corpo que se afrma pelo ritmo das respostas, onde o gestual revela sobre o modo de pôr-se em cena transcendendo o enunciado. Bispo responde a Denizart vestindo seu Manto da Apresentação, indumentária solene, reveladora exibição do espetáculo da aparência. Luciana Hidalgo (2012), ao seu turno, destaca esse momento do pôr-se em cena de Bispo como:

O efeito na tela é um registro singular de Bispo, pleno em sua soberania, seguro nas respostas às perguntas consistentes, muito bem conduzidas (...). Absoluto em seu universo, no Manto da Apresentação, Bispo respondia às questões de Hugo. A câmera entrava e saía do universo de Bispo para o hospício ao redor. De volta ao protagonista, Hugo o encontrava sempre pronto, altivo. (HIDALGO, 2012, p. 65).

Sobre o contexto descrito por Hidalgo, vejamos o que o trecho do diálogo de Hugo Denizart com Bispo nos revela através da gestualidade:

Hugo: As miniaturas permitem a sua transformação? Bispo: Pois é. Hugo: Como é que permite? Bispo: Não tem a representação? Vou me apresentar corporalmente. Minha ação corporal é esse brilho que eu botei. Hugo: E essas miniaturas são representações.

6 Para aprofundamento sobre essas noções: BIÃO, Armindo. baiana: textos reunidos. Salvador: P&A Gráfica e Editora, 2009.

Etnocenologia e a cena

Bispo: É material existente na terra dos homens. Hugo: É uma representação de tudo que existe na Terra? Bispo: É, são trabalhos que existem. Hugo: E você vai se transformar em Jesus Cristo, como é que é? Bispo: Não vou me transformar não, rapaz, você está falando com ele. Tá mais do que visto. Mas pra quem enxerga; pra quem não enxerga não dá pé (HIDALGO, 2012, p. 66 grifo nosso).

Uma das características Dândi de Bispo que percebemos no flme está no caráter atitudinal diante do mundo, “pôr-se em cena”’ reunindo um projeto indissociável da moral e da estética com vistas ao alargamento do próprio eu, conjugando a imaginação e o contexto, a realidade e o sonho, em uma dinâmica de combate à trivialidade7 do presente, gesto de resistência contra a degradação. No trecho em questão, o diálogo que ora sublinhamos, tem a precedência do gesto, ou seja, o corpo se empenhando em direção à resposta com o pressuposto de que o entrevistador já saiba da plenitude daquela presença diante da câmera. O contexto, portanto, como se faz notar no flme, é a segunda matéria do processo de estilização da vida para Bispo, pois, no manicômio, a sua missão ganhava estatuto de verdade. O manicômio é parte fundamental de seu processo, considerando que ele não estava fora de sua obra e, sobretudo, porque Bispo é um crítico da instituição, ou seja, a criticidade do presente é outra característica Dândi, como salienta Adverse, ao demonstrar que o Dandismo é uma ação refexiva sobre seu tempo:

Os dândis são obras de arte cuja reflexividade configura-se pela construção e pelo devir. As irrupções do Dandismo (suas figurações ao longo do tempo) são desencadeadas pelo contínuo trabalho reflexivo imanente às obras. O Dandismo nos leva a pensar em uma outra dinâmica temporal: ele está intimamente ligado às cisões, aos cortes e às fraturas que desencadeiam os ressurgimentos. São as imagens da sobrevida que ressurgem na arte a partir das correspondências entre o passado e o presente (ADVERSE, 2016, p. 90).

7 (BAUDELAIRE, 1996, p. 46).

O devir Dândi não anula a totalidade existencial de fsionomia institucional que Charles Baudelaire destaca no ensaio O dândi (1996). O Dandismo, lembra Baudelaire, é uma instituição à margem da lei, mas com leis rigorosas para aqueles que a ele se submetem. Nesse sentido, estamos falando do alcance simbólico do Dandismo, ou seja, do que não se restringe apenas ao culto à indumentária – símbolo de distinção que coloca em cena a superioridade aristocrática do espírito do Dândi. A indumentária compõe todo um conjunto que move o Dândi em direção a “uma originalidade dentro dos limites exteriores das conveniências” (BAUDELAIRE, 1996, p. 44). Portanto, ela é parte fundamental da expressividade Dândi, que se confgura de forma indissociável como amálgama do espírito.

Para os que são ao mesmo tempo seus sacerdotes e suas vítimas, todas as condições materiais complexas a que se submetem, desde o traje impecável a qualquer hora do dia e da noite até as proezas mais perigosas do esporte, não passam de uma ginástica apta a fortificar a vontade e a disciplinar a alma (BAUDELAIRE, 1996, p. 45).

Eis como compreendemos a experiência contemporânea Dândi de Bispo: um processo de reconfguração do modo de ser, estar e aparecer no mundo, através da transformação das indumentárias que, ao transformar a matéria vestimentar, descobre o seu modo de estilizar a si mesmo, solicitando e impondo, em seu gesto de diferenciação e expressão, alinhamento do espírito com todo empenho do corpo, o comprazimento do outro. Em outras palavras, é uma atitude gregária junto àqueles que ‘”fzeram da aparência a sua razão de ser, da vida uma obra de arte” (CIDREIRA, 2012, p. 12). É o gesto de fusão entre o ser e parecer como efetivação da dinâmica existencial, entrelaçando acordos performativos, teatrais e espetaculares. Intenso comércio entre o corpo e os adornos, entre a singularidade do eu e a irradiação para o outro, através da dimensão estética que, por fm, revela o caráter transversal e histórico do Dandismo, manifestando a força de presentifcação para além dos limites temporais e geográfcos que marcam seu surgimento.

No contexto bispiano, a reinvenção da aparência era uma estratégia elementar, profundamente marcada pela estilização de si em busca da forma exitosa que encontrava, no olhar do outro, a confrmação de sua experiência expressiva, distinta e singularizada, cuja profundidade se revelava na superfície dos fardões, ricamente bordados e estruturados, dando ênfase à retidão e elegância do corpo. Ou seja, na amplifcação do eu traduzida pela extensão das indumentárias e adornos que eram impostos à visualidade. Todavia, essa retidão e exuberância da aparência, contrastantes com o contexto asilar de abandono, misturava-se ao aperfeiçoamento atitudinal, ao modo de pôr-se no mundo. Seja pelo rigoroso primor dos regimes comportamentais, pautados por estreitas disciplinas que iam das regras sobre uso das indumentárias às dietas que Bispo se submetia antes dos momentos de “produção intensa da obra”8, passando pelo cuidado com a aparência, que no fundo se revelava em desobediência às normas institucionais disciplinadoras, Bispo zelava pela sua composição da aparência. Prova disso era o gesto em transformar a roupa/farrapo em exuberantes fardões e mantos que indicavam essa insubmissão através da recomposição da aparência. Indicavam também, por seu turno, uma busca pela beleza, na reconfguração das peças ora desprovidas de graça. O desdobramento transformador das possibilidades da experiência, a partir da remodelação de si mesmo, como uma postura crítica, plasticamente política, dotada de novos sentidos de percepção e comunicação, parece nortear o gesto Dândi como movimento de afrmação da presença e instituição de novos sentidos. Por isso, é preciso considerar a gestualidade de Bispo como uma construção reveladora dos jogos performativos da exibição do eu que foram

8 Em um dos diálogos com a estagiária Rosângela, diz Bispo: “Você trata daqueles malucos naquela sala? Eles são malucos, não vai adiantar. Não dizem coisa com coisa, são sujos, não tomam banho, não têm educação. Bispo repetia-se, mencionava a passagem, esmerava-se em jejuns sazonais. Certa vez, Rosângela notou que ele não se alimentava, ficava calado, lento, abatido. Bispo: “Preciso deixar de comer para ficar todo brilhoso, dos pés à cabeça, e aguardar minha ordem. Vou ficar transparente para subir ao céu na hora da passagem” (HIDALGO, 1996, p. 165).

minimamente urdidos, cuja manifestação expõe uma pessoa com ar de segurança, simplicidade e dominação em seus gestos tal como um “Hércules desempregado”9 .

Posto como um herói em meio a decadência, Bispo manifesta, por meio de seu gesto, a condição transversal da identidade Dândi em fuxos históricos, rompendo as especifcidades que a coloca na circunscrição apenas de um dado período ou localização. Ou seja, o Dandismo de Bispo põe em tensão o contexto de sua emergência ao se impor como uma ruptura e produção de outras formas de vida. Seu Dandismo parece sugestionar esses movimentos voltados ao desafo, libertando-se “magnifcamente com elegância e ironia”, substituindo um previsível delírio desarrazoado de “mania de grandeza”, proferido por um corpo rebotado pela decrepitude, resultante do abandono do estado, por uma exuberante “perfeição de uma máscara, de uma fachada, de uma aparência” (BOLLON, 1993, p. 181).

Assim, é preciso concordar com Patrice Bollon na afrmação de que, enquanto artifício humano criado entre os humanos, a aparência nos destina à diferenciação, o que nos leva à vida compreendida como arte, retomando as palavras de Oscar Wilde a respeito de Dorian Gray, perfeitamente adequadas à atitude Dândi de Bispo do Rosário:

E, sem dúvida, para ele a Vida era, em si mesma, a primordial, a mais grandiosa de todas as artes, e, por isso mesmo, todas as outras artes pareciam ser os preparativos para a Vida. A moda, que torna a verdadeira extravagância momentaneamente universal, e o Dandismo, que, a seu modo, é uma tentativa de afirmar a absoluta modernidade da beleza, não deixavam de exercer sobre ele o seu fascínio (WILDE, 2000, p. 87).

9 É justamente essa leveza de atitudes, essa segurança nas maneiras, essa simplicidade no ar de dominação, esse modo de vestir uma casaca e de conduzir um cavalo, essas atitudes sempre calmas, mas revelando força, que nos fazem pensar, quando nosso olhar descobre um desses seres privilegiados em quem o belo e o temível se confundem tão misteriosamente: “Aqui talvez esteja um homem rico, mas, com maior probabilidade, um Hércules sem emprego”. (BAUDELAIRE, 1995, p. 52)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fm, as características que aproximam Bispo de um gesto Dândi revelam uma atitude de requinte e conquista, nos lembra Bollon, que posto entre a presença e o apagamento, a atitude de Bispo pode ainda ser compreendida como o avesso de uma vida nua, cuidado e clínica de si, revanche e enfrentamento. Escolha pela beleza da escultura de si contra o abandono e esquecimento, uma revolta através do estilo. “Essa maneira de celebrar o mundo em sua aparência, e mesmo como pura aparência, lhes servia tanto como modo de vida e de ética (...) eles concebiam a vida como uma arte” (BOLLON, 1993, p. 181).

Com isso, é preciso reconhecer o gesto estilizante de um corpo atlântico que, ao envergar-se em si mesmo, no empenho pelo estilo, também desvelava o desafo de pôr-se diante do poder com todas as suas fragilidades e potencialidades inventivas. Sua ação corporal, como disse o próprio Bispo a Denizart (1982), era “esse próprio” brilho que ele havia colocado em si. Nesta entrevista, Bispo aciona o dispositivo teatral demonstrando, através do modo de aparecer, a potência em diferenciar-se exibindo um rico conjunto de indumentárias para as câmeras. Esse gesto reafrma como sua aparição é um evento incontornável na cultura das artes brasileiras.

É bastante signifcativo seu interesse em oferecer às lentes de Denizart um personagem que despertava curiosidade e admiração ao mesmo tempo que se colocava distante e descolado daquele contexto. De outro modo, Bispo parecia conhecer a potência de sua importância e o que a composição da aparência representava como uma espécie de catalisador da coparticipação dos outros no mundo, cujo centro era seu corpo brilhoso, lugar incontornável da insubmissão e demonstração da força criativa de culto à beleza. Em outras palavras, artista de si, escultor da própria forma que, no fm, fez confuir em um mesmo acontecimento do protagonismo do corpo, as cênicas e as plásticas.

Referências

ADVERSE, Angélica. Devemos ser uma obra de arte ou vestir uma: o Dandismo como medium-de-reflexão na arte. Tese (Doutorado em Artes) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016.

BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna. Teixeira Coelho (Org.). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

BOLLON, Patrice. A moral da máscara: merveilleux, zazous, dândis, punks, etc. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.

CASTELLO, José. Arthur Bispo do Rosário: o mordomo do apocalipse. In: Inventário das sombras. Rio de Janeiro: Record, 2006.

CATHARINA, Pedro Paulo Garcia Ferreira. As muitas faces do dândi. Luiz Edmundo Bouças Courtinho e Latuf Isaias Mucci (Orgs.) Dândis, estetas e sibaritas. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2006, p. 62-69.

CIDREIRA, Renata Pitombo. Moda e Performance. In: 8º Colóquio de Moda. Rio de Janeiro, 2012. Anais eletrônicos, 2012. Disponível em: http://www. coloquiomoda.com.br/coloquio2017/anais/anais/edicoes/8-Coloquio-deModa_2012/GT08/ARTIGO-DE-GT/101417__Fashion_and_Performance. pdf. Acesso em: 22 mar. 2019.

CIDREIRA, Renata Pitombo. A potência da aparência: entrelaçamentos entre cultura, moda e arte. In: Anais do II Congresso Internacional sobre Culturas. Annamaria Palácios, Edilene Matos, Joevane Sena (Orgs.), Salvador, 2016, p. 373-379.

FIRMO, Walter. Um olhar sobre Bispo do Rosário. Flávia Corpas (Org.), Rio de Janeiro: Nau: Livre Galeria, 2013.

HIDALGO, Luciana. Arthur Bispo do Rosário: o senhor do labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.

O PRISIONEIRO DA PASSAGEM. Direção de Hugo Denizart. Brasil: Ministério da Saúde, 1982. DVD (30 min). Acervo do Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira, RJ. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=PjgP1 LYLZOU. Acesso em: 22 mar. 2019.

WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.

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