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PRIMEIRO, A BIXA É BONITA, SEGUNDO, ELA FECHA: A DIMENSÃO SENSÍVEL ATRAVÉS DAS VESTES DE TIKAL - Baga de Bagaceira Souza Campos
from Livro "O Belo Contemporâneo: corpo, moda e arte" (2019) - Renata Pitombo Cidreira (Organizadora)
Baga de Bagaceira Souza Campos
PRIMEIRO, A BIXA É BONITA, SEGUNDO, ELA FECHA: A DIMENSÃO SENSÍVEL ATRAVÉS DAS VESTES DE TIKAL
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É babado, fechação e purpurina! Entre festas, procissões e andanças pelas cidades de Cachoeira e São Félix, interior e coração do Recôncavo baiano, é impossível não se deparar com moradores tão ilustres e que compõem as belezas das cidades “irmãs”. Tikal é um deles, um senhor de 57 anos, negro, gay, que diz “viver e andar por mistério”; arrasa nas cidades com sua indumentária. Uma mistura de paetês, torços, adereços coloridos e formas próprias completam o cenário.
O ensaio, aqui apresentado, tem como objetivo ressignifcar as concepções do belo, enquanto conceito normativo e assimilacionista sobre o corpo, a partir das intersecções com a sexualidade, o gênero e a raça, convocando Tikal e as sensibilidades que suas imagens acionam no tocante à análise de suas vestes. Numa dinâmica de rompimento com o ideal de beleza, utilizamos as apreensões sensíveis que os seus modos de ser no mundo provocam levando em conta o que é/foi subjugado sobre seu corpo vestimentado e na crença de sua presença como inferiorizada e abordando, portanto, suas formas, arranjos e combinações de cores e tecidos.
A metodologia escolhida para o trabalho se desenvolve na perspectiva do encontro da fenomenologia com as determinações his-
toricizadas e sociais do seu corpo adornado para que, assim, possamos compreender as sensibilidades que nos evoca. Para tanto, será levada em conta uma breve entrevista realizada com Tikal sobre as formas, cores e texturas que compõem suas vestes e que serão apresentadas ao logo das seções deste trabalho.
Dessa forma, ver, observar, sentir e perceber tornam-se as primeiras experiências, ditas pela fenomenologia, para melhor acessar as sensibilidades que as indumentárias aqui analisadas suscitam. E para dar esse suporte, destacamos, além dos aspectos fenomenológicos (MERLEAU-PONTY, 1996), as contribuições nos campos da estética, do corpo e das vestes (MAISONNEUVE e BRUCHON-SCHWEITZER, 1999; ECO; 2004; CIDREIRA, 2005; SVENDSEN, 2010), os estudos de raça (SODRÉ, 2000; GOMES, 2002) e a intersecção entre as temáticas de gênero e sexualidade (BUTLER, 1998), tão caras à análise.
A BELEZA DE SER O QUE É
No que se refere ao ideal de beleza e levando em conta o que Lars Svendsen (2010) observa sobre as distintas características físicas e mentais entre homens e mulheres, percebemos que se tornou necessário, para a manutenção dos padrões, formas e conceitos distintos, entre ambos os gêneros, ditar para um e para o outro o que é beleza e os modos corretos de adornar-se. Desse modo, “a Beleza é vista como uma qualidade do objeto que percebemos como belo e por isso recorre-se a defnições clássicas, como ‘unidade na variedade’ ou ‘proporção’ e ‘harmonia’” (ECO, 2004, p. 275) e que, aqui, serão postas em xeque.
Seguir os padrões da beleza refere-se não somente ao corpo, mas também como o mesmo se modela e se ajusta às normas, sejam elas advindas da experiência da vestimenta, sejam elas em conformidade com os padrões comportamentais atribuídos aos gêneros. Podemos observar que entre as zombarias e olhares indesejados, as formas encontradas por Tikal no modo como se adorna assombram e questionam o que é considerado belo. Por isso mesmo, ele e seu corpo
são, por vezes, punidos, pois se trata de um corpo que não veste as regras, mas rompe com elas.
Como mencionado acima, é preciso entender que beleza não está relacionada somente aos atributos do belo no corpo, mas de como pode relacionar-se com o olhar dos outros nos aspectos das vestes, saúde, gênero, sexualidade, etc. Os autores Jean Maisonneuve e Marilou Bruchon-Schweitzer comentam que:
No ser humano, parece que são os rostos mais simétricos que obtém a preferência, tanto dos homens para as mulheres quanto das mulheres para os homens. Essas escolhas são acompanhadas de avaliações positivas quanto à beleza, a atração sexual, a saúde e a superioridade das pessoas envolvidas. Essa constatação se ancora à teoria darwiniana na medida em que a beleza (ligada à simetria) seria percebida como signo de vigor e de recursos em todos os aspectos (MAISONNEUVE e BRUCHON-SCHWEITZER, 1999, p. 16, tradução nossa).
A beleza está instaurada e é confrmada a partir do outro, e deste modo, o “olhar do outro e os signos de atração que ele nos mostra ou nos recusa, vêm, assim, a confrmar ou não a experiência do nosso espelho, fortifcando ou mortifcando a nossa imagem do corpo” (Ibid, p. 33, tradução nossa). As circunstâncias em que Tikal sente-se bem e, consequentemente belo, pelo modo como se adorna, não retira o olhar de repulsa dos outros sobre ele e de não aceitação de suas vestes, pois “aquilo que é belo é defnido pelo modo como nós o apreendemos, analisando a consciência daquele que pronuncia um juízo de gosto” (ECO, 2004, p. 275).
Outros parâmetros são estabelecidos enquanto belo, como no caso a idade, evidenciado por Tikal, ao dizer que os jovens são vistos como mais atraentes e desejáveis, localizando mais uma estigmatização. Aqui, levamos em consideração os aspectos de raça para pensarmos como o ideal de beleza para esses corpos são questionados, tomando a fenomenologia e sua contribuição sobre o olhar do outro. Segundo Muniz Sodré (2000, p. 194), a categorização, por
exemplo, de alguém belo/a, em se tratando de negros/as, é demarcado pela raça, os tornando muitas vezes sujeitos/as excêntricos/as em virtude de suas diferenças fenotípicas.
O SENTIR E O PERCEBER ATRAVÉS DOS MODOS DE VESTIR
Esta seção dedica-se a explanar os processos violentos vividos por Tikal e os seus modos de enfrentamento, diante do processo de perceber a si a partir do olhar do outro. Os gestos, movimentos, que seu corpo e vestes convocam fazem parte do seu processo enquanto ser e que nos convidam a refetir sobre a transgressão que seu corpo vestido representa na sociedade. Merleau-Ponty (1996) completa nos dizendo que:
O gesto está diante de mim como uma questão, ele me indica certos pontos sensíveis no mundo, convida-me a encontrá-lo ali. A comunicação realiza-se quando minha conduta encontra neste caminho o seu próprio caminho. Há confirmação do outro por mim e de mim pelo outro (MERLEAU-PONTY, 1996, p. 252).
A sexualidade, assim como o gênero e as roupas, são expressões sensíveis do nosso corpo no mundo, no modo como nos percebemos e somos percebidos pelo outro; assim, o sentir e o perceber são partes do processo fenomenológico. Junto a isso, os modos de encarar as vestes de Tikal a partir de uma visão que julga, condena, criminaliza, tornam-se modos tóxicos de culpabilizar o outro, que se põe numa posição de afronta aos padrões de beleza vestimentar, simétrica e coerente.
Numa aproximação com a teoria fenomenológica, Judith Butler (1998, p. 297, tradução nossa) afrma que “o gênero, quando instituído pela estilização do corpo, deve ser entendido como o modo mundano em que gestos, movimentos e normas corporais de todos os tipos constituem a ilusão de um ‘eu’ de gênero permanente”. Dessa maneira, há por parte de algumas pessoas na sociedade a concepção de que o gênero é um construto inato ao ser, e que quando
Tikal convoca outras vestes e assume publicamente sua sexualidade e brinca com o gênero masculino e feminino, ele está afrontando o “natural” e não participando das reiterações sociais destinadas aos corpos no vestir-se.
Assim, o modo como o gênero se perpetua, reiterativamente, nos demonstra que:
E se o fundamento da identidade de gênero é a repetição estilizada de atos no tempo, e não uma identidade aparentemente de peça única, então, na relação arbitrária entre esses atos, nos diferentes modos possíveis de repetição, na ruptura ou a repetição subversiva desse estilo, haverá possibilidades de transformar o gênero (BUTLER, 1998, p. 297, tradução nossa).
Inspirados pela tradição fenomenológica, compreendemos que é sendo tocado ou afetado pelo o que determinadas vestes e corpos provocam que, por exemplo, determinadas repulsas são acionadas em outros sujeitos como sinônimo de ódio. Portanto, a relação do corpo de Tikal com suas vestes pode ser pensada enquanto existência e resistência por, justamente, quebrar com as regras do que é considerado um belo ideal e instaurar um movimento de quebra nas relações com o social, pois como afrma Nilma Lino Gomes (2002, p. 49), “o cabelo e a cor da pele podem sair do lugar da inferioridade e ocupar o lugar da beleza negra, assumindo uma signifcação política”, acrescentando a essa citação as vestes no corpo de Tikal enquanto potências de beleza do sujeito.
Assim, refetir sobre essa instituição de sentido que se forma na bolha social e que, apontada pelo outro, restitui as obediências de sexualidade, raça, jovialidade para designar o que é belo, se mostra falha. É nesse sentido que podemos expressar o encontro das vestes com o social pelos caminhos fenomenológicos, considerando que “a nossa sociedade continua, ainda hoje, reproduzindo padrões de beleza, impondo certas condutas em busca da sedução e do reconhecimento do outro” (CIDREIRA, 2005, p. 35) para ser aceito.
O UNIVERSO DAS CORES DE TIKAL
Ao observar mais cuidadosamente os modos de se vestir de Tikal, nos damos conta de que há um uso frequente da imaginação, em que a presença do paetê enquanto matéria-prima se faz quase sempre presente quando o mesmo concebe um look. As roupas de Tikal realmente se sobressaem e se distanciam daquilo que nos acostumamos a ver e observar cotidianamente, e isso está intimamente ligado à sua ousadia e irreverência em usar peças, tecidos e cores inabituais, nos convocando a sair da zona de conforto.
Tikal luta para combater a discriminação tanto pelos modos como se adorna, mas também pela questão racial, evidenciando, assim, a força política no cotidiano através da exibição de um corpo que vive a beleza de si e não a padronizada pelo olhar alheio. Nesse sentido, vale destacar a percepção de Gomes ao comentar que:
Foi a comparação dos sinais do corpo negro (como o nariz, a boca, a cor da pele e o tipo de cabelo) com os do branco europeu e colonizador que [...] serviu de argumento para a formulação de um padrão de beleza e de fealdade que nos persegue até os dias atuais (GOMES, 2002, p. 42).
A proporção e simetria logo se mostram como um legado grego e não é à toa que sua relação está ligada com o fator de conformidade estabelecido socialmente. Não é por acaso que as associações do “esta cor é de menina”, “essa modelagem não é para homens” ou “brilhos, paetês, adereços são do universo feminino” são fortemente compartilhadas socialmente.
O que nos chama a atenção, ou melhor, o que nos salta aos olhos nas vestimentas do corpo de Tikal são as cores vibrantes de suas roupas. Sempre buscando combinar suas vestes com alguns acessórios e sua maquiagem. Tikal nos revela que suas roupas possuem relação com sua fé nos Orixás, e com isso nos apresenta a relação que estabelece entre as cores e sua reverência a alguns orixás. Apesar de não se preocupar muito com a combinação das cores,
Tikal nos diz que usa vermelho em referência a Yansã e o azul para saudar Ogum.
A chita1 é um dos seus tecidos favoritos, mas também podemos vê-lo com roupas que contêm muito brilho, paetês e cores diversas. Apesar de afrmar que usa coisas simples e baratas para se ornamentar, percebemos o quão ricas e potentes são suas vestes e adereços. Sobreposições de cores e combinações de tecidos ornamentam a plasticidade investida por Tikal no uso de suas vestimentas e, portanto, “as roupas reescrevem o corpo, dão-lhe uma forma e uma expressão diferente” (SVENDSEN, 2010, p. 87).
Ainda que suas criações surjam do que sente no momento, suas vestes são bem elaboradas e preocupadas com o cobrimento de cada parte do corpo, onde cada peça de roupa e adereço possuem sua importância. O turbante, por exemplo, além de signifcar a força do povo negro, é usado por ele no dia a dia; assim como Tikal não abre mão de uma maquiagem e diversos adereços que complementam suas roupas. Quando não usa o turbante, sempre procura uma peruca para fcar mais bonito, como na fgura seguinte:
1 Tecido com estampas florais coloridas bastante utilizado na moda e decoração, ou melhor, nos diversos campos do design brasileiro. Apesar de sua associação direta às composições identitárias nacionais, a chita é originária da Índia, chegando ao Brasil, sobretudo, pelas mãos dos portugueses a partir do século XVII, que a utilizavam como moeda de troca o tráfico de escravos.
Figura 1 – Tikal Fonte: Baga de Bagaceira, 2018.
Se para muitos a moda é sinônimo de busca de beleza, da harmonia das formas, cores e texturas; para alguns, não tão poucos quanto imaginamos, a moda pode ser compreendida como o retrato do excesso, do mau gosto, do ridículo (CIDREIRA, 2005, p. 32).
É pelas vestes e o corpo que as comporta que observamos as violências contra Tikal e com tudo que cada peça e suas combinatórias nos dizem, acabamos por apontar o outro enquanto sujeito que rompe com certas tradições e padrões estabelecidos em/pela sociedade. É a partir dessa concepção que leva em conta um padrão de beleza e de conduta que se legitimam determinadas violências, pela incompreensão das formas encontradas por Tikal para se auto plasmar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Temas de grande relevância e inesgotáveis na sua relação com o ser e o estar no mundo, as vestes e o corpo de Tikal nos revelam outras possibilidades de se apresentar socialmente ao mundo. Possibilidades que não esgotam os sentidos produzidos por suas vestes, na relação com o corpo e com o entorno social.
Ainda que persistam perpetuações em indicar o que é correto, simétrico, coerente, belo, etc., observamos que existem focos de resistência que promovem renovações acerca da noção de beleza e mesmo da determinação de gênero, bem como uma aceitação das questões raciais.
Tikal é um desses exemplos que se afrma enquanto um ser que rompe com a política de uma poética correta, pois apresenta as intersecções de um corpo que foge aos ideais harmônicos de sexualidade, gênero e raça.
Enquanto corpo negro, gay e que não se defne em suas vestes enquanto masculino ou feminino, Tikal questiona o que é ser, estar ou vestir-se belo. Portanto, a baixa estima localizada sobre os prismas do racismo com relação às atribuições do corpo negro necessita ser combatida por completo.
Aqui, propomos uma refexão sobre um corpo desobediente através do seu modo de ser, estar e vestir-se no mundo. Portanto, a existência de um ideal de beleza que não prioriza o corpo negro como modelo, assim como as intersecções de sexualidade e gênero desobedientes que carregam consigo, e as formas corretas de adornar-se, reproduzem uma questão posta sobre como essa imagem foi imposta por um outro corpo e sobre uma visão que mais julga do que sente.
Referências
BUTLER, Judith. Actos performativos y constituición del género: um ensayo sobre fenomenología y teoria feminista. Debate feminista, v. 18, Ciudad de México, 1998, p. 296-314.
ECO, Umberto. História da beleza. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2004.
CIDREIRA, Renata Pitombo. Os sentidos da moda: comunicação e cultura. São Paulo: Annablume, 2005.
vestuário,
GOMES, Nilma Lino. Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural? Revista Brasileira de Educação. nº 21, 2002, p. 40-51.
MAISONNEUVE, Jean. BRUCHON-SCHWEITZER, Marilou. Le corps et la beauté. Paris: PUF, 1999, p. 05-30.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução de Carlos Alberto R. de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
SODRÉ, Muniz. Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2000.
SVENDSEN, Lars. Moda: uma filosofia. Tradução de Maria Luisa X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.