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O PRAZER DO BELO: NA TELA E NA APARÊNCIA - Gina Reis, Renata Pitombo
from Livro "O Belo Contemporâneo: corpo, moda e arte" (2019) - Renata Pitombo Cidreira (Organizadora)
Gina Rocha Reis Vieira & Renata Pitombo Cidreira
O PRAZER DO BELO: NA TELA E NA APARÊNCIA
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Belo, é tudo quanto agrada desinteressadamente. (Immanuel Kant)
“É difícil pintar uma moça bonita?”, questiona o mecenas de Johannes Vermeer no flme Moça com brinco de pérola (2003). Tal pergunta instiga o espectador que, a esta altura, já se encontra completamente envolvido pela bela obra de Peter Webber que nos conta uma possível narrativa do processo criativo que dá origem ao famoso quadro do artista holandês, de 1665, que nomeia a película.
A beleza, aliás, afora de modo intenso através da obra do diretor e do pintor. À princípio, poderíamos até afrmar que: É belo o flme, é bela a tela, é bela a moça, é bela a pérola. Mas se consideramos que a beleza é um sentimento que emerge diante de obras, paisagens e pessoas, a partir de uma perspectiva kantiana, concordamos que a beleza não está no flme, no quadro, na moça ou mesmo na pérola, uma vez que o belo não é uma propriedade intrínseca de um objeto, paisagem ou pessoa. O belo, como nos alerta Kant, é justamente o sentimento que nos invade quando nos defrontamos com algo ou alguém que nos suscita prazer...
O BELO COMPARTILHADO
Para Kant, o belo associa-se a uma complacência universal, necessária e desinteressada (sem fnalidade prática, instrumental ou utilitária); é, portanto, um juízo que emitimos diante de algo ou alguém, que tem uma dimensão subjetiva, embora não individual. Nesse sentido, não há como determinar previamente que um objeto será belo, a partir de determinadas características, pois não existe uma receita ou pré-requisitos para se obter um objeto belo. Enfm, não podemos determinar a beleza antecipadamente. Assim, Kant nos apresenta uma alternativa a toda uma tradição empirista, que procurava exatamente determinar a beleza a partir de “características” do objeto.
Outro aspecto importante é que embora Kant reconheça que o belo é um juízo subjetivo, o mesmo não deve ser considerado individual, pois o sentimento de beleza advém de um sentido comum (sensus comunnis) de uma comunidade que, em última instância, confgura nossos valores e padrões culturais compartilhados. Desse modo, os juízos acerca da beleza não se encontram apenas no âmbito da subjetividade; quando somos tomados pelo sentimento do belo pretendemos que todos possam perceber e sentir essa beleza e compartilhá-la; trata-se do “dever-ser” e, portanto, tem uma dimensão pública. É essa a ideia que norteia a universalidade do sentimento de beleza, que não se baseia em conceitos, mas sim em valores. Aqui nos damos conta dessa universal capacidade de comunicação de um estado de ânimo na contemplação de algo, alguém ou de uma paisagem.
Mais uma consequência das considerações kantianas é que a beleza não visa uma utilidade, um fm, embora seja conforme a fns, na medida em que obedece às próprias “leis” da obra, como diria Luigi Pareyson (2001). É uma sensação desprovida de interesse, movida pela excitação harmoniosa dos sentidos. É o sentimento de prazer que interessa na beleza! Aliás, essa associação do belo ao prazer não aparece apenas em Kant, já se anunciava nos diálogos de Platão. Como podemos constatar, a última defnição do diálogo
nos diz: “E se chamássemos belo aquilo que nos causa prazer, não qualquer espécie de prazer, mas aqueles que provêm da visão e da audição, como poderíamos defender essa opinião?” (PLATÃO apud FIGUEIREDO, 2017, p. 21).
Mobilizando as faculdades do entendimento e da imaginação num circuito dinâmico, Kant nos faz compreender que:
Para distinguir se algo é belo ou não, referimos a representação, não pelo entendimento ao objeto em vista do conhecimento, mas pela faculdade da imaginação [...] ao sujeito e ao seu sentimento de prazer ou desprazer (KANT, 1995, p. 47).
Assim, quando percebemos um objeto belo, a imaginação, uma das mais potentes faculdades sensíveis, estabelece uma associação de imagens sem que esta ligação se estabeleça por conceitos. Esse acordo livre entre as faculdades da imaginação e do entendimento não é previsível e muito menos controlável. É uma espécie de reconciliação entre o sensível e o inteligível que caracteriza o julgamento do gosto e que nos faz perceber algo como belo.
Tais questões, desenvolvidas por Kant, que hoje retomam fôlego, foram ignoradas até o Romantismo, em que a beleza era considerada a grande lei da arte. Prezando pela harmonia e perfeição, tendo em geral a imitação da natureza como referência, a arte elegeu essas características como requisitos para o reconhecimento da bela forma. Rompendo com esta tradição, os séculos XVIII e XIX acabam instaurando um outro princípio que irá conduzir as produções artísticas e que é muito bem sintetizado por Luigi Pareyson em suas refexões sobre estética: “a beleza não é lei, mas resultado da arte: não seu objeto ou fm, mas seu efeito e seu êxito” (PAREYSON, 2001, p. 182).
Para Pareyson (2001), a única lei da arte é o critério do êxito. E a obra “[...] triunfa porque resulta tal como ela própria queria ser, porque foi feita do único modo como se deixava fazer, porque realiza aquela [...] adequação de si consigo que caracteriza o puro êxito” (2001, p. 185). Segue seus próprios fns, sem buscar um fm
e por isso é desinteressada. E, nesse sentido, podemos reconhecer que Moça com brinco de pérola triunfa porque triunfa, ou seja, segue a “regra individual da obra”, como alerta Pareyson, em que o artista obedece a própria obra que está produzindo. A película tem a capacidade de exibir o processo artístico; nos mostra as tentativas, hesitações... idas e vindas na elaboração do criador e seu processo criativo até que o mesmo possa se sentir satisfeito com a obra e, na condição de espectador, diga que a mesma está concluída porque diante dela vê algo belo, uma forma fnalizada e exitosa.
Moça com brinco de pérola evidencia com maestria a articulação dinâmica entre poética e estética, ou seja, nos apresenta, por um lado, o caráter programático e operativo envolvido no fazer artístico, ao explorar o preciosismo do pintor na confecção dos materiais, dos pigmentos (malaquita, cinábrio, carvão de osso, moedor, etc.). O amarelo conseguido através da urina de vacas alimentadas com manga... O lápis-lazúli!) e ao mostrar alguns artefatos técnicos como a câmara escura; por outro, nos brinda com a reação dos espectadores, com o efeito que a obra lhes provoca. Para uns “Perfeita!”, para outros “Obscena!” E para muito poucos... “Olhou dentro de mim!”. Produção e afetação juntos e se retroalimentando na busca e no reconhecimento do êxito ou da bela forma.
A tela de 1665 tem como ponto focal um brinco de pérola, e é considerada uma das obras primas da humanidade. Retrata o rosto enigmático de uma jovem moça, num jogo de luz e sombras, produzindo um efeito de grande realismo. Podemos dizer que nos apresenta uma poética da delicadeza, que nos encanta, e que partilhamos uma experiência, a qual não podemos explicar através de conceitos científcos (como queria o racionalismo clássico), mas apenas vivenciá-la em conjunto e por isso mesmo falar sobre ela, sobre o modo como nos afeta.
Figura 1 – Moça com brinco de pérola (1665), de Vermeer. Fonte: Disponível em: https://www.mauritshuis.nl/en/explore/the-collection/artworks/ girl-with-a-pearl-earring-670/ Acesso em: 28 mar. 2019.
Ainda que diante da imagem tenhamos, cada um, um sentimento particular e íntimo, sua beleza revela concepções sobre o que compreendemos como belo. É por isso que Moça com brinco de pérola pode transcender a subjetividade particular de cada um de nós e suscitar um sentido comum. A obra desperta em nós sentimentos e emoções, mas também representações intelectuais; o que nos permite discutir a sua beleza sem, no entanto, demonstrá-la. Não se trata aqui, portanto, de tentar realizar uma decifração do quadro de Vermeer (1665) e muito menos do flme de Webber (2003). Ao contemplá-los, somos invadidos pelo sentimento da beleza e é esse sentimento que nos interessa: “a sensação vívida do belo é declarada
no olhar pela sua esplêndida serenidade, pelas feições do sorriso e muitas vezes, por um claro regozijo” (KANT, 2015, p. 36).
De certo, alguns elementos da tela nos chamam atenção. A aparência da moça é realçada por alguns detalhes fundamentais: os lábios umedecidos, o brinco de pérola, e os tecidos do turbante em tons de azul e amarelo que cobrem os cabelos. O rosto nos instiga! Esta parte visível do corpo nos revela; expõe puramente o sentido da nossa aparição fenomenal, em que há uma justifcação recíproca dos elementos de superfície. Como observa Georg Simmel (1981), o rosto sintetiza os elementos essenciais da vida do homem. “[...] ele resume por seus traços tudo que aconteceu nas profundezas da alma [...]. Graças a sua fgura um homem é compreendido por seu aspecto, antes de ser compreendido por seus atos” (p. 228).
A unidade de um rosto significa que a forma de cada parte é determinada necessariamente pela forma de cada outra, logo esta ação recíproca dos elementos situados uns ao lado dos outros é condensada na unidade da alma [...]. O sucesso do retrato, quando se compromete a fazer da figuratividade do ser humano a apresentação em si a mais harmoniosa, a mais poderosa, a mais necessária, é medida por sua capacidade de nos convencer da alma desse ser (SIMMEL, 2007, p. 83).
E esta nos parece ser a conquista de Moça com brinco de pérola, a tela corroborando o que exclama a personagem, ao contemplar o próprio rosto no quadro: “Olhou dentro de mim!”.
O PROTAGONISMO DA PÉROLA EM VERMEER
A partir da compreensão do corpo como primeira e incondicionada propriedade à ampliação da personalidade (SIMMEL, 2014, p. 69) é necessário notar o protagonismo do brinco de pérola no processo criativo evidenciado na pintura de Vermeer e na película de Webber. O virtuosismo do brinco de pérola em tais obras aguça para o potencial do adorno à composição da aparência, atraindo especial atenção e agrado para quem o usa e para o outro que aprecia.
No flme, Vermeer inicia a feitura da tela com a personagem Griet usando uma touca branca que limita a visão completa do seu rosto. Até então, as tentativas do artista à composição da sua obra mostram-se frustradas. “Preciso ver seu rosto [...]. Pegue outro pano”, afrma o pintor. Ao vê-la com seus cabelos soltos, com sua face exposta, o pintor reconhece o caminho a seguir para o êxito da sua criação. Por outro lado, para Griet, seu rubor à frente do artista a despiu completamente, personifcando no seu rosto uma expressividade reveladora de si. Ao requerer o uso da joia a Griet, Vermeer, ao que parece, apreende o sentido e o efeito daquela pérola no seu modo de formar (PAREYSON, 1993). Um ponto de luz que, em associação com o corpo, é capaz de arrebatar e guiar o olhar do outro que a admira.
Para Simmel, o adorno se torna uma propriedade particular produzindo “o alargamento do eu, a maior expansão à nossa volta, que enchemos com nossa personalidade” (SIMMEL, 2014, p. 70). O autor destaca o adorno como sendo o elemento estético capaz de sintetizar as grandes pretensões da alma e da sociedade. É importante salientar ainda que esses anseios não estão isolados, ensimesmados; mas essencialmente entrelaçados em uma esfera confituosa do “ser para si e ser para o outro”. Sendo assim, contempla-se a joia como um adorno cultural prescindível e independente, acessado de maneira incessante à constituição teatral do corpo social.
Os adornos de metais e pedras preciosas, por sua vez, são aqueles que conseguem proporcionar ao sujeito a máxima extensão do seu ego. Proporcionam uma ambiência irradiante com brilho e texturas que suscitam uma atenção sensorial sedutora e até mesmo delirante. Como relata Aldous Huxley, em Céu e inferno (2015, p. 80), a luz e a cor preternaturais1 aparecem nos relatos de todas as experiências visionárias e em todas as tradições culturais, no folclore e na religião, ilustrando paraísos e reinos mágicos. Revelam uma beleza extraordinária, difícil de ser descrita com transparência, pre
1 Preternatural, segundo Huxley (2015, p. 80), é a matéria da qual os antípodas da mente são feitos.
cisão. Essa luminosidade preternatural e intensidade da coloração e esse signifcado preternatural caracterizariam, como aponta Huxley, “Outros Mundos” e a “Era do Ouro”.
A atração humana por joias e as atribuições de virtudes terapêuticas e mágicas das pedras preciosas viriam, assim, da capacidade desses metais e pedras auto luminosos nos aproximarem, mesmo que de maneira rarefeita, das experiências transcritas em um mundo fantástico. Mesmo que seja uma atitude inconsciente, o desejo de posse de tais pedras e metais aponta para um desejo latente de ter para si algo precioso e pertencente a um “Outro Mundo”.
Para a maioria de nós, na maior parte do tempo o mundo da experiência cotidiana parece cada vez mais frágil e monótono. Mas para algumas poucas pessoas, com alguma frequência, e para um número um pouco maior, ocasionalmente, parte do esplendor da experiência visionária transborda, por assim dizer, em uma visão comum, e o universo do cotidiano é transfigurado (HUXLEY, 2015, p. 76).
Na trama cinematográfca de Webber, ao descobrir que sua criada Griet usou seu brinco de pérola ao ser pintada por seu marido, Essie exclama com raiva, indignação e ciúmes: “É verdade que ela usou minhas pérolas? Como pôde?!”. Tais emoções soam amplifcadas por esse sentido de retenção, em que a joia pode ser revelada como um objeto transportador “da mente na direção de seus antípodas, fora do Aqui cotidiano e na direção do Outro Mundo da Visão” (HUXLEY, 2015, p. 85). Para Huxley, a arte do ourives, do joalheiro é, sem dúvida, aquela que consegue induzir de maneira mais intensa o homem a tais visões, reconhecendo os metais polidos e pedras preciosas como os mais enérgicos transportadores por natureza. São essencialmente sobrenaturais.
Outro aspecto expressivo é que o quadro (datado em 1665) e o flme estão contextualizados dentro do movimento artístico Barroco (particularmente, entre 1600 a 1750); que teve apoio para sua difusão, sobretudo, da Igreja Católica, a fm de frear as ideias protestantes que cresciam após a Reforma Protestante. A arte Barroca surge,
deste modo, alicerçada em um catolicismo vigoroso, considerado, inclusive, um estilo absolutista. Na Europa, desenvolvia-se, principalmente nos Países Baixos do Norte (onde fca a Holanda hoje), a “pintura de gênero”2 – com estilo sóbrio, um belo dramático, vinculado ao real, à representação de cenas cotidianas. Entre os grandes nomes das artes que se destacaram no período está Johannes Vermeer3. É nesse cenário que nasce sua Moça com brinco de pérola.
Humanistas (e, até certo ponto, cientistas) como os do período anterior – o Renascimento – , os artistas do barroco se distinguiram dos seus antecessores porque, nessa fase, o pensamento científico e filosófico ampliou-se (ficou mais complexo, abstrato e sistemático), e, em seu âmbito, incluiu as artes, suas técnicas e reflexões, passando a fazer parte, também, do domínio do artista. (GOLA, 2008, p. 73)
A associação do período artístico à potencialidade da pérola pode ser percebida, especialmente, se recuperarmos a etimologia da palavra “barroco”. Mafesoli (1996, p. 205) a descreve como uma pérola4 irregular, assimétrica, movimento de aspecto desordenado, até de desordem, ideia de excesso de vida. Barroco como imperfeição natural, dinâmica permanente e crescimento vital. Segundo Eliana Gola, em A joia: História e design (2008, p. 74), foi precisamente no século XVII (auge do movimento Barroco), que a joalheria deixa de caminhar conforme as Belas Artes5, e passa a enfatizar seu processo
2 O período do século XVII é conhecido como Era de Ouro da Holanda. Aclamada mundialmente nas áreas do comércio, da ciência e das artes. O século XVII foi o grande século da pintura neerlandesa. Além de Vermeer, elenca-se aqui outros artistas importantes do período: Rembrandt, Willem Kalf, Adriaen van Ostade, Gerard Terborch, Albert Cuyp, Jakob van Ruisdael, Jan Steen, Pieter de Hooch, Willem van de Velde e Meindert Hobbema (VARELLA, 2019). 3 Entre as obras mais significativas de Vermeer, pode-se destacar também A leiteira, criada entre 1657e 1658. 4 A chamada pérola barroca compõe, inclusive, a variedade de pérolas naturais e cultivadas. As gemas que têm esse formato são denominadas assim por conta das suas formas dissonantes, que são também propriedades do estilo Barroco. 5 Belas Artes, no sentido estrito, associado à época, referem-se às artes plásticas: Pintura, escultura, gravura, arquitetura, etc. Entretanto, atualmente, esse sentido foi ampliado, incluindo outras expressões como a música, a dança, o teatro e o cinema.
criativo no aprimoramento das técnicas e na valorização das pedras. Conforme aponta Gola (2008, p. 74), “tal preocupação sobrepujou a expressão de conceitos intelectuais, de status, ou os de expressão política ou crenças religiosas”. A propósito, tal evidência é perceptível no flme se observarmos a caixa de joias da esposa de Vermeer, cujos exemplares que se sobressaem são aqueles em que as pérolas são os personagens principais.
No entanto, é importante destacar que esse protagonismo da pérola é notável desde os primórdios das civilizações. Segundo Dinah Bueno Pezzolo, em A pérola: história, cultura e mercado (2004, p. 40), a presença clássica do colar de pérolas, surgido no século XV, coincidiu com a idade de ouro da joalheria: “Seu uso foi difundido de tal forma que o grão-duque Cosme de Médicis (1519-1574) promulgou um decreto proibindo o uso de colares cujo valor excedesse 500 escudos”. A autora, entretanto, ressalta que a lei só foi aplicada aos cidadãos comuns, já que as nobres mulheres dos Médicis continuaram exibindo seus suntuosos fos de pérolas.
Na China antiga, a pérola representava preciosidade e pureza, uma “metáfora para o gênio escondido” (PEZZOLO, 2004, p. 13). Na Grécia, Platão usou a pérola para representar a união entre macho e fêmea em um único ser humano (hermafrodita); que, segundo o flósofo, possuiria “perfeito conhecimento do divino, e constituía, assim, uma verdadeira ‘pérola da sabedoria’” (PEZZOLO, 2004, p. 13). Realça-se ainda o simbolismo da gema orgânica – retirada do seu berço de nascimento pronta e polida – considerada uma das primeiras gemas preciosas da humanidade.
No simbolismo, em que as verdades espirituais são representadas de modo concreto, a pérola é revestida de inúmeros significados: pureza, castidade, humildade (...). A simbologia servia como suporte aos ensinamentos da Igreja. Tudo tinha um significado espiritual, e as pérolas, vistas como símbolo de pureza até então, passaram também a representar a fé no mundo católico. Os cristãos, apoiados nessa simbologia, transformaram a pérola
numa metáfora para o nascimento virginal de Cristo. Ela representava a alma pura, inocente, cheia de fé e sabedoria, alojada num corpo terrestre, cercado pelas corrupções do mundo (PEZZOLO, 2004, p. 15).
Figura 2 – O nascimento de Vênus, de Botticelli (1485), a deusa da beleza também chamada de Pérola (PEZZOLO, 2004, p. 13). Fonte: Disponível em: https://www.museusdeflorenca.com/galleria-degli-uffizi/Acesso em: 28 mar. 2019.

Com aparência de gota – formato este considerado um dos mais valiosos “com brilho intenso e jogo de cores” (BONEWITZ, 2013, p. 209) – a pérola que compõe a grande obra de Vermeer é, sem dúvida um elemento valioso, que evidencia essa poética da delicadeza que nos arrebata. Mas, ao mesmo tempo, instiga por sua resistência e poder transformador.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Faça o senhor”, solicita Griet, ao decidir furar sua orelha. Este é, decerto, o grande momento na película de Webber. A bela moça – agora, com o brinco de pérola na orelha recém furada –
deixa escapar uma lágrima. “Olhe para mim, vire a cabeça, não os ombros. Olhe para mim... Isso, assim!”, convoca Vermeer. Parecenos que é singularmente nessa sequência de gestos, evidenciados ao espectador, que se chega ao êxito da obra, à sua bela forma.
Todo o caminho percorrido em busca de um fm bem-sucedido ou de uma bela forma parte desse processo orgânico criativo de amadurecimento, que envolve percepção, revelação, projeto, tentativas e acabamento. Mas que, acima de tudo, nos motiva a sermos tomados pela experiência do belo.
Assim como a pérola, concebida em sua essência por um movimento fantástico da natureza, a moça à frente de Vermeer se mostra pronta para ser arrancada, revelada. É especialmente dessa agressão consentida que brota, pelas mãos de um “intruso”, a pérola, ou melhor dizendo, a moça. Antes incrustada na sua concha, a moça com brinco de pérola nasce junto à obra. Ela é a pérola.
E, se de fato, toda arte tem a capacidade de modifcar a perspectiva através da qual abordamos a realidade e, acrescentaríamos, a nós mesmos, pressentimos que tanto o quadro, quanto o flme nos envolvem num sentimento comum que promove algum tipo de alteração do nosso modo de estar no mundo.
Diante do flme, experimentamos o percurso de transformação e de conquista de plenitude da personagem Griet. Diante do quadro, somos arrebatados por essa força transformadora que encontra sua síntese numa imagem. Imagem que nos aguça os sentidos e nos afeta de tal forma que também, cada um de nós, é capaz de experimentar esse impulso que transmuta.
Acreditamos, desse modo, que as duas telas têm a potência de nos provocar uma reação subjetiva (mas não individual), justamente porque lhes atribuímos valor. Por isso mesmo conseguem nos confrontar com o sentimento do belo, nos provocando prazer e nos possibilitando transformação. E assim, nascemos de novo junto com as obras!
Referências
BONEWITZ, Ronald Louis. Gemas e pedras preciosas. Lizandra Magon de Almeida. Barueri: Disal, 2013. Tradução de
FERRY, Luc. Le sens du beau: aux origines de la culture contemporaine. Paris: Le Livre de Poche – Biblio Essais, 2008.
FIGUEIREDO, Virgínia. Horizontes do belo: ensaios sobre a estética de Kant. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017.
GOLA, Eliana. A joia: história e design. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008.
HUXLEY, Aldous. As portas da percepção e céu e inferno. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla; Thiago Blumenthal. São Paulo: Biblioteca Azul, 2015.
KANT, Immanuel. Observaciones acerca del sentimento de lo bello y de lo sublime. Tradução de Luis Jiménez Moreno. 3 ed. Madrid: Alianza Editorial, 2015.
KANT, Immanuel. Critique de la faculté de juger. Traduction de Alain Renaut. Paris: Aubier, GF Flammarion, 1995.
MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. Halpern Gurovitz. Petrópolis: Vozes, 1996. Tradução de Bertha
PAREYSON, Luigi. Estética: teoria da formatividade. Tradução: Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1993.
PAREYSON, Luigi. Problemas da estética. Tradução de Maria Helena Nery Garcez. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
PEZZOLO, Dinah Bueno. A pérola: história, cultura e mercado. São Paulo: Editora Senac, 2004.
PLATÃO. Hípias Maior. Flammarion, 2005. Tradução de Jean-Fraçois Pradeau. Paris:
SIMMEL, Georg. Essai sur la sociologie des sens. In: Sociologie et épistémologie. Tradution de L. Gasparini. Paris: PUF, 1981.
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SIMMEL, George. Filosofia da moda e outros escritos. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Texto&Grafia, 2008.
VIEIRA, Gina R. Reis. Um diálogo entre a cultura local e o design de moda. Dissertação de mestrado. (Programa Multidisciplinar de Pósgraduação em Cultura e Sociedade) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2017.
WAIZBORT, Leopoldo. O rosto. In: As aventuras de Georg Simmel. São Paulo: Editora 34, 2000.
Site VARELLA, Paulo. Entenda a pintura de gênero holandesa (séc. XVII) – Barroco. Arte|ref, 2012. Disponível em: https://arteref.com/movimentos/ pintura-genero-holandesa/ Acesso em: 28 mar. 2017.