A fabulosa morte do professor de Português

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Manuel Fieira lançou um olhar pela volta. Havia plateia demais para que pudesse praticar um crime ali. Colocou a soqueira de volta no bolso e disse em voz baixa, mastigando as palavras: – Não, eu não vou lhe arrancar os dentes. Pensando bem, contra o senhor, é preciso tomar uma atitude mais radical. O autor de novelas policiais virou as costas para Severino Severo e zarpou com lentos e desengonçados passos de girafa. – Atitude mais radical do que extrair os dentes, qual seria? – perguntou Tédio. E ele mesmo respondeu: – Talvez ele pretenda arrancar o coração do professor.

O inferno inventado pelo poeta epois daquela cena, decidimos ir ao subsolo da livraria. Começamos a descer a escada, mas paramos no meio dela, porque num dos últimos degraus, de costas para nós, um homem recitava um poema. Era, de novo, o poeta Arno Aldo Arnaldo, ou professor Aldrovando. – Gosto do que ele escreve – murmurou Tédio. – Eu me divirto muito com as brincadeiras que ele faz com as palavras. Olhei espantada para o meu companheiro de “jornalismo”: – Onde você lê os poemas dele? – Na edição de domingo do Correio Popular. Encerrado o poema, cessadas as palmas, Arno Aldo Arnaldo dirigiu-se às cinco ou seis pessoas que o escutavam: – O poeta é aquele que vê o muito no pouco. O vate é aquele que encontra o tudo no nada. Com um só verso, um versinho de três palavras, um bardo pode nos revelar o mundo. A beleza 34


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