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Uma soqueira e uma ameaça

– Severino Severo é um provinciano às avessas. Ou seja, pra ele, tudo o que é produzido na nossa cidade é ruim. Em compensação, ele acha bom tudo que vem de fora. Por isso, quero aqui defender os escritores da nossa cidade. Afinal, porcaria se escreve em todo lugar.

Concluída a entrevista, desliguei o gravador. – Já temos uma declaração forte – disse Tédio. – Nossa manchete será: Severino Severo é o inimigo número um da literatura.

erto da escada que dava acesso ao subsolo da livraria, um homem muito alto – que falava rapidamente, amontoando uma palavra em cima da outra – discursava para meia dúzia de ouvintes. – Ligue o gravador – comandou Tédio. – Esse cara é o Manuel Fieira, famoso autor de novelas policiais.

Fiz o que meu colega mandava. – Desde garoto eu já sonhava em ser escritor – disse o altão. – Mas tive um sério problema aos onze anos. Na quinta série, escrevi a mais bela das minhas redações sobre a primavera, mas recebi nota quatro... – Credo! – espantou-se alguém. – Quem era seu professor?

Manuel Fieira enrugou a testa e apertou os olhos, como alguém que corta cebolas, e disse: – Severino Severo. Primeiro ele elogiou muito minha redação, mas depois comentou que ela estava tão boa que devia ter sido copiada de um livro. Eu caí no choro. Naquele momento quase desisti de ser escritor...

A confissão foi cortada por um berro: – Plagiário!

Eu me voltei e vi Severino Severo ao meu lado, levantado na ponta dos pés, braço estendido, indicador espetado, bochechas vermelhas: – Se você tivesse provado, na época, que não havia copiado aquela redação, eu lhe teria dado um dez. – E como eu provaria? Só se eu mostrasse ao senhor todos os livros da cidade!

Mesmo com o professor na pontinha dos pés e com Manuel Fieira quase dobrado em dois, a distância entre as cabeças deles era grande. Mas pareciam ambos prontos para voar um ao pescoço do outro.

As pessoas que estavam por perto nem respiravam. Os dois adversários se encararam em silêncio por um bom tempo até que, de repente, depois de armar um riso mau, Manuel Fieira levou a mão ao bolso interno do paletó e pescou lá um objeto que demorei a reconhecer. Era uma soqueira de ferro, instrumento que os antigos baderneiros usavam nas brigas de rua para machucar seus adversários.

Quando o escritor de livros policiais colocou a soqueira entre os dedos, vi que nela havia sido gravado um nome: Severino. – Mesmo sem ter cursado odontologia – ameaçou Manuel Fieira –, vou arrancar seus dentes, professor. Sem anestesia. – E se eu lhe disser que não tenho mais dentes? – indagou Severino. – E se eu lhe disser que uso dentaduras postiças? – Se o senhor não tiver dentes, eu me contento em arrancar-lhe as gengivas. Mas não confio no senhor. Acho que mente. O senhor tem dentes, sim, mas apenas caninos, que servem pra estraçalhar seus alunos e os pobres escritores desta cidade.

Olhando desafiante para o homem gigantesco que tinha diante de si, o professor de português cruzou os braços e provocou: – Cão que late não morde!

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