2 minute read
Cutucando a onça com vara curta
A turma do deixa-disso teve que entrar em ação para evitar que o professor Severino Severo partisse para cima do poeta Arno Aldo Arnaldo.
avia muita gente espalhada pelo subsolo, mas não se ouvia um ruído. Com gestos cuidadosos, as pessoas tiravam os livros das prateleiras e liam, ou fingiam ler, as orelhas e contracapas. De vez quando, temerosas, lançavam olhares por cima dos ombros. – Todos parecem assustados – comentei. – Estão com medo de Severino Severo – disse Tédio. – O velho gosta de armar barracos. Logo, logo ele vai bater boca com outras pessoas.
De repente, demos de cara com o mais famoso professor de Português da cidade, sozinho diante das prateleiras que continham os livros de Machado de Assis. – Vamos entrevistar a fera? – sugeriu Tédio. – Você não prefere dizer “vamos cutucar a onça com vara curta”? – perguntei.
Notei então que os olhos do professor estavam cravados em nós. Não podíamos mais recuar. Com o passo arrastado das pessoas que estão sendo conduzidas à força, caminhamos lentamente na direção dele.
Severino Severo tinha nas mãos uma edição de luxo de O Alienista. Paramos a uma distância que nos pareceu segura e eu perguntei: – A gente pode entrevistá-lo, professor?
– Agente? Onde está o agente? É agente policial ou agente sanitário? – A gente – falei bem devagar – somos nós. São duas ideias separadas. Primeiro vem o a, que é artigo, feminino, definido, singular, primeira letra do alfabeto e primeira entrada do dicionário. Depois vem a palavra gente: substantivo feminino que significa “pessoas em geral”. Ou seja, nós dois aqui.
Sou capaz de jurar que o cabelo do velho ficou ainda mais espetado no alto da cabeça enquanto ele disparava na minha direção um olhar que era um verdadeiro míssil verde.
Antes, porém, que ele pudesse resmungar alguma coisa, Tédio lascou: – Professor, o senhor acha que uma pessoa normal pode decorar todas as regras sobre o uso do hífen?
Severino Severo baixou o rosto e ergueu interrogativamente as sobrancelhas: – Você manga de mim, moleque? – Manga? – entrei na conversa. – O que significa essa fruta no meio da frase? – Não é fruta, bobinha! – reagiu o professor. – Também não me refiro à manga de camisa ou casaco. Nessa frase, uso o vocábulo como verbo. Você desconhece a existência do verbo mangar?
Sacudi a cabeça, pois nunca ouvira falar que existisse tal verbo.
Tédio continuou a provocar: – Professor, por que escrevemos algumas palavras com cê cedilha e outras com dois esses, já que o som é o mesmo?
Severino Severo passou a mão pelo rosto como para se limpar de alguma coisa pegajosa e rosnou: – Eu emprego o cê cedilha quando fico tão bravo quanto uma onça pisada no rabo. E utilizo os dois esses quando estou a ponto de assassinar alguém.
Assustados, Tédio e eu nos entreolhamos e, sem dizer palavra, decidimos encerrar ali mesmo a entrevista.