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O inferno inventado pelo poeta

Manuel Fieira lançou um olhar pela volta. Havia plateia demais para que pudesse praticar um crime ali. Colocou a soqueira de volta no bolso e disse em voz baixa, mastigando as palavras: – Não, eu não vou lhe arrancar os dentes. Pensando bem, contra o senhor, é preciso tomar uma atitude mais radical.

O autor de novelas policiais virou as costas para Severino Severo e zarpou com lentos e desengonçados passos de girafa. – Atitude mais radical do que extrair os dentes, qual seria? – perguntou Tédio. E ele mesmo respondeu: – Talvez ele pretenda arrancar o coração do professor.

epois daquela cena, decidimos ir ao subsolo da livraria. Começamos a descer a escada, mas paramos no meio dela, porque num dos últimos degraus, de costas para nós, um homem recitava um poema. Era, de novo, o poeta Arno Aldo Arnaldo, ou professor Aldrovando. – Gosto do que ele escreve – murmurou Tédio. – Eu me divirto muito com as brincadeiras que ele faz com as palavras.

Olhei espantada para o meu companheiro de “jornalismo”: – Onde você lê os poemas dele? – Na edição de domingo do Correio Popular.

Encerrado o poema, cessadas as palmas, Arno Aldo Arnaldo dirigiu-se às cinco ou seis pessoas que o escutavam: – O poeta é aquele que vê o muito no pouco. O vate é aquele que encontra o tudo no nada. Com um só verso, um versinho de três palavras, um bardo pode nos revelar o mundo. A beleza

do mundo ou a melancolia do mundo. Desde menino sinto esta necessidade de dizer tudo de forma surpreendente e bela...

Nesse trecho, fui empurrada para o lado e alguém passou chispando por mim. Era Severino Severo, que cravou a mão com força no ombro do poeta e disse: – Use a boca apenas pra comer salgadinhos, Aldrovando!

Desequilibrado pelo empurrão, o poeta Arno Aldo Arnaldo desceu, tropeçando, os degraus que tinha diante de si e derrubou as pessoas que o escutavam. Só não foi ao chão porque conseguiu agarrar-se a uma estante, que quase veio abaixo. – Enquanto estiver mastigando, Aldrovando, você não dirá bobagens sobre poesia.

Quando conseguiu se equilibrar, com o auxílio da estante que oscilava, o poeta voltou seus olhos negros, que exibiam uma profunda tristeza, para Severino Severo e indagou: – Quando o senhor vai parar de me perseguir, professor? – Perseguir, você? Não, você não merece ser seguido nem perseguido. – O senhor lembra que me deu um três numa redação porque eu escrevi previlégio? – perguntou o poeta. – Até os adultos se enganam, porque previlégio é mais fácil de pronunciar do que privilégio. E, naquela época, eu era apenas um menino de seis anos no seu primeiro ano escolar! – Mentira! Você já tinha sete anos e cursava a segunda série.

Pensativo, em voz baixa, como se estivesse falando apenas para si mesmo, o poeta disse: – Saiba, professor Severino, que os poetas podem ver o futuro! Na noite passada eu sonhei que o senhor despencava de um abismo em direção ao inferno. Mas o senhor não ia pro inferno comum, aquele que só tem fogo, não. O senhor despencava até o inferno de Dante, o inferno mais terrível de todos, porque foi inventado pela imaginação de um dos maiores poetas da humanidade.

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