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1.1 Território e identidade
1CONTEXTUALIZAÇÃO
1.1 Território e Identidade
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O território tem como seu anterior o espaço. O espaço se caracteriza pelo físico, que antecede a apropriação antrópica, ou seja, é o espaço em branco que preexiste às ações coletivas e individuais inseridas no campo das relações de poder e de dominação (RAFFESTIN, 1993, p. 144). Desta forma:
Ao se apropriar de um espaço, concreta ou abstratamente (por exemplo, pela representação), o ator “territorializa” o espaço. Lefebvre mostra muito bem como é o mecanismo para passar do espaço ao território: “A produção de um espaço, o território nacional, espaço físico, balizado, modificado, transformado pelas redes, circuitos e fluxos que aí se instalam: rodovias, canais, estradas de ferro, circuitos comerciais e bancários, autoestradas e rotas aéreas etc” (RAFFESTIN, 1993, p. 143).
Estas ações antrópicas no território podem ser caracterizadas por dois elementos fundamentais, sendo eles: o concreto e o simbólico. O caráter concreto está diretamente ligado ao material, ou seja, à política, à economia e ao ordenamento do espaço físico, enquanto o simbólico está associado ao sentimento de pertencimento e relações afetivas construídas a partir da subjetividade e das experiências individuais e coletivas no espaço.
Na arquitetura, o conceito de lugar equivale ao de território, onde ambos possuem o espaço como “figura fundo”. Segundo Norberg-Schulz (2006), o lugar é a junção de fenômenos concretos e simbólicos, denotando um significado de lugar para além de uma simples localização. Tais fenômenos são produtos das experimentações do espaço pelo homem, constituindo um processo de busca pelo entendimento e identificação da natureza do próprio ser.
Visualização, simbolização e reunião são aspectos do processo geral de fixar-se num determinado lugar; e habitar, no sentido existencial da palavra, depende destas funções. (NORBERG-SCHULZ, 2006, p. 453).
Além disso, o lugar “de acordo com as circunstâncias locais, possui uma identidade peculiar” (NORBERG-SCHULZ, 2006, p. 448). Esta identidade peculiar é denominada como genius loci, conceito originado na Roma antiga, que caracteriza tal identidade como o espírito do lugar, ou seja, como essência e particularidades do lugar.
Geralmente se entende o “ter lugar” num sentido quantitativo e “funcional”, com implicitações que remetem ao dimensionamento e à distribuição espacial. Mas as “funções” não são inter-humanas e similares em toda parte? É evidente que não. Funções “similares”, mesmo as mais básicas como dormir e comer, se dão de diferentes maneiras e requerem lugares que possuem propriedades diversas, de acordo com as diferentes tradições culturais e as diferentes condições ambientais. Dessa forma, [...] o lugar como um “aqui” concreto com sua identidade particular. (NORBERG-SCHULZ, 2006, p. 445).
Ainda, segundo Borges (2010, p. 2), no domínio das Ciências Sociais, o território possui três principais vertentes de análise, que se articulam entre o concreto e o simbólico, sendo estas: jurídica-política, simbólica-cultural e econômica. Enquanto jurídica-política, as relações de territorialização estão ligadas ao exercício de poder no espaço controlado e delimitado. Na vertente simbólica-cultural, o território está atrelado à apropriação afetiva de uma identidade territorial, à memória e ao sentimento de pertencimento, se caracterizando por ser um “produto da apropriação feita através do imaginário e/ou da identidade social sobre o espaço” (HAESBAERT, 2004, p. 40). Já na vertente econômica, o território se caracteriza como fonte de recursos e geração de riquezas.
Tais vertentes podem ser observadas na formação do território político brasileiro que foi estabelecido a partir de uma visão eurocentrista, baseado na dominação europeia sobre terras indígenas sul-americanas a partir do final do século XV e início do século XVI (Figura 1.1.1).
Comumente, utiliza-se o termo “descobrimento” para se referir à chegada dos portugueses às terras brasileiras, caracterizando o europeu como ator único e principal da territorialização de um espaço visto como passível de “descoberta” e exploração. A partir disso, projetos distintos se sucederam no processo de construção de uma narrativa de identidade e territorialização das terras portuguesas no Novo Mundo: de modo concreto, a partir dos tratados de delimitação de terras (Tratado de Tordesilhas e de Madrid, por exemplo) e da exploração de recursos naturais para abastecimento da metrópole; e de modo simbólico, na imposição da cultura eurocêntrica e apagamento dos grupos étnicos originários.
Figura 1.1.1) Recorte do mapa do Brasil, 1556. Fonte: GASTALDI, 1556 in Biblioteca Digital Nacional, 2003.
No entanto, estas terras já constituíam um território ocupado por povos indígenas originários (do latim indigena(ae), “natural do lugar que habita”) detentores de culturas, conhecimentos e apropriações afetivas e simbólicas do espaço, que foi dissolvido e sobreposto pelos colonos. Observa-se este processo, por exemplo, no Plano das Aldeias, também chamado de Plano Civilizador, que teve por propósito a conversão de nativos à fé cristã, encabeçado pelo padre Manuel da Nóbrega (superior dos jesuítas no Brasil Colônia), no século XVI (Figura 1.1.2). Este plano se baseava no agrupamento da população indígena nos chamados aldeamentos, a fim de catequizá-la e posteriormente ocupar suas terras, garantindo a conversão, ocupação do território e contingente de mão de obra escrava para a economia colonial.
Tal processo de conversão à fé cristã como estratégia de dominação de terras e de povos é observada desde os registros de Pero Vaz de Caminha, na expedição comandada

Figura 1.1.2) Óleo sbre tela: padres Anchieta e Nóbrega na cabana do Pindobuçu. Fonte: Benedito Calixto, 1920. Figura 1.1.3) Principais expedições bandeiristas entre os séculos XVI e XVII. Fonte: SILVA, 1949, p. 36.

por Pedro Álvares Cabral que chegou ao Brasil em 1500, o qual escreve em sua carta referente ao primeiro contato com os povos originários:
Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença. E portanto, se os degredados, que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa simplicidade. E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho, que lhes quiserem dar. E pois Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons rostos, como a bons homens, por aqui nos trouxe, creio que não foi sem causa. Portanto Vossa Alteza, que tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da sua salvação. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim. (CAMINHA, 1500).
Sendo assim, observa-se que o processo de exploração do território brasileiro se estabelece a partir da dominação portuguesa sobre os povos originários e da apropriação dos conhecimentos indígenas ligados ao território, visto que as primeiras expedições portuguesas terra adentro, partindo do litoral, se utilizaram de saberes e trilhas indígenas já estabelecidos.
Estes foram massivamente utilizados, inicialmente, pelas missões de catequização e, posteriormente, utilizados entre os séculos XVI e XVIII pelos bandeirantes, durante as violentas expedições denominadas Bandeiras Paulistas (Figura 1.1.3).
Estas expedições tinham como pontos iniciais, principalmente, as cidades de São Paulo e de São Vicente, rumo ao interior do Brasil, em busca de riquezas, ampliação do
território português sobre terras espanholas (por meio do princípio do uti possidetis4), e captura, escravização e assassinato de indígenas (Figura 1.1.4). Vale pontuar que a cidade de São Paulo era um ponto estratégico por se tratar de um ponto de entroncamento entre importantes trilhas indígenas.
Em 1627, os bandeirantes Antônio Raposo Tavares e Manuel Preto partiram de São Paulo e se utilizaram do Caminho do Peabiru, principal trilha indígena que ligava a costa do oceano Atlântico (litoral paulista, paranaense e catarinense) à costa do oceano Pacífico (território chileno), para atacar as reduções do Guairá (missões jesuítas espanholas), no atual estado do Paraná, que até então fazia parte do território espanhol. Este ataque resultou na destruição das reduções e no violento assassinato de indígenas.
O Caminho do Peabiru, bem como os caminhos abertos pelas Bandeiras, são percursos que definiram as principais vias de comunicação territorial contemporâneas no

Figura 1.1.4) Combate de botocudos em Mogi das Cruzes, 1920, Oscar Pereira da Silva, óleo sobre tela. Vê-se ao centro o personagem do bandeirante atacando indígenas. Fonte: SILVA, 1920 in acervo do Museu Paulista, 2020.
Brasil, estabelecendo um processo de palimpsesto5. As principais rodovias paulistas reproduzem esta dinâmica, como por exemplo o traçado das vias Raposo Tavares e Fernão Dias. Este processo também ocorreu com o desenvolvimento do traçado e construção das linhas ferroviárias no estado de São Paulo, como é o caso da antiga Estrada de Ferro Sorocabana.
A EFS teve sua operação iniciada em 1875, inicialmente conectando a capital da província de São Paulo até o município de Sorocaba. A demanda de sua construção se deu pela necessidade de ligar dois pontos comerciais estratégicos do território. A partir daí, a expansão da linha tronco se projetou para o oeste paulista em busca das regiões da cafeicultura já estabelecidas e, posteriormente, buscou novas terras cultiváveis no extremo oeste do estado. Segundo Darcy Ribeiro, no livro Os índios e a civilização (1996, p. 97):
Funcionando à base da existência de matas virgens, a marcha do café tornou-se uma fronteira em contínua expansão. Nos primeiros anos deste século essa fronteira já alcançava as florestas que se estendem do vale do Tietê ao vale do Paranapanema e daí ao Paraná. Até então aquelas matas só haviam sido atravessadas por bandeirantes que se dirigiam para Mato Grosso e Goiás, no preamento de escravos ou em busca de minas, ou que serviam à comunicação entre o Paraguai e São Paulo.
Até o final do século XIX, as terras da porção oeste do estado paulista eram consideradas terras pouco exploradas e despovoadas, comumente chamadas de sertão paulista (Figura 1.1.5). Com a construção da Sorocabana nesta região, uma ação de aspecto colonizador, impulsionou-se o desenvolvimento econômico, fomentando a especulação de terras próximas às estações ferroviárias recém-construídas e a consequente fundação de cidades. Conforme SOUZA (2015, p. 47):
Em 1909, o prolongamento da linha tronco já havia passado por Manduri, Bernardino de Campos, Santa Cruz do Rio Pardo, Ourinhos e atingiu Salto Grande, que corresponde ao km 472, sendo o ponto zero na capital. Em 1914 os trilhos chegam à cidade de Assis. A partir desse ponto a Companhia avançou sobre terras ainda virgens derrubando a mata, expulsando indígenas, trazendo colonos e imigrantes para o cultivo do café e semeando cidades até a fronteira com o rio Paraná.
Ao denominar o Oeste como “terrenos despovoados”, assume-se o mesmo caráter colonizador estabelecido com a chegada dos portugueses em terras brasileiras no século XVI, desconsiderando a presença e contribuição dos povos originários na construção do território. Contudo, nas matas do oeste de São Paulo e do Paraná, havia a ocupação por parte

Figura 1.1.5) Recorte do mapa da Província de São Paulo, 1886. Fonte: Arquivo Nacional, 2017. Figura 1.1.6) Recorte mapa etno-histórico do Brasil. Fonte: NIMUENDAJÚ in Portal IPHAN, 2017.

dos povos “conhecidos como Guaianá, Coroado, Bugre ou Botocudo, de língua kaigang” (RIBEIRO, 1996), que transformaram o espaço em território anteriormente à chegada dos colonizadores (Figura 1.1.6).
Apesar da negação da presença destes povos, o percurso de extensão da Sorocabana, ao buscar a cafeicultura e novas terras cultiváveis, se utiliza dos caminhos preexistentes de ligação territorial. Observa-se a coincidência das rotas indígenas, em especial o Caminho do Peabiru, com o traçado da linha ferroviária em questão (Figura 1.1.7). Embora possuam semelhanças, os percursos se diferem devido ao desenvolvimento tecnológico: enquanto os indígenas traçam caminhos baseados na caminhabilidade, a ferrovia possui recursos de engenharia para vencer obstáculos e acidentes geográficos. Sendo assim, conclui-se que a formação do território brasileiro se fundamenta na sobreposição de camadas sociais, culturais e étnicas, estabelecendo um processo de palimpsesto.
Caminho do Peabiru Trilhas secundárias Sorocabana

Figura 1.1.7) Mapa: o Caminho do Peabiru e a Estrada de Ferro Sorocabana. Fonte: MAACK, 2002, com edição do autor, 2021.