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1.3 Espaços residuais no território ferroviário
1.3 Espaços residuais no território ferroviário
Como já visto, o território é caracterizado pela apropriação antrópica sobre um espaço, a partir de ações coletivas e individuais, associadas à política, à apropriação simbólicocultural e à economia. Tais aspectos de territorialização foram intrinsecamente almejados com a construção e expansão da Sorocabana e, posteriormente alcançadas, a partir do seu aspecto colonizador e diretamente ligado à memória afetiva destes espaços.
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A estrada de ferro se consolidou como influência ao longo dos territórios em seu percurso, seja na vertente política e econômica, a partir do intuito de escoar a produção agrícola, de impulsionar a ampliação de terras cultiváveis e de fundar cidades no oeste paulista, ou na vertente cultural, ligada à memória afetiva e à história das localidades em que a Sorocabana se instalou.
No entanto, com o constante desmantelamento da Estrada de Ferro Sorocabana, a partir da metade do século XX, um processo de desterritorialização é observado ao longo do percurso da ferrovia. Ou seja, a subutilização da rede ferroviária da EFS, resultou em espaços residuais ao longo da via, principalmente nos ramais e estações desativadas a partir de 1966 e no entorno das estações ainda em funcionamento, mas que hoje são dedicadas exclusivamente ao transporte de cargas.
Estações e suas áreas adjacentes que um dia foram vívidas, com passageiros transitando diariamente, dinâmicas econômicas pujantes, arquiteturas notáveis e com forte apelo na construção da memória local, hoje são espaços esquecidos em seu contexto, deixados à margem e ao esquecimento, constituindo apenas uma cicatriz urbana ociosa.
Para ilustrar esta situação, três visitas ao território foram realizadas pelo autor. Os locais escolhidos foram o antigo Ramal de Piraju, nos municípios de Piraju e de Manduri, que possui duas estações desativadas (Estação Ataliba Leonel e Estação de Piraju), e a Estação de Ourinhos, bem como seu entorno, no município de Ourinhos (Figura 1.3.1).
A estrada de ferro se consolidou como influência ao longo dos territórios em seu percurso, seja na vertente política e econômica, a partir do intuito de escoar a produção agrícola, de impulsionar a ampliação de terras cultiváveis e de fundar cidades no oeste paulista, ou na vertente cultural, ligada à memória afetiva e a história das localidades em que a Sorocabana se instalou.
O Ramal de Piraju foi um linha secundária que ligava a linha tronco da Sorocabana a partir da Estação de Manduri, na cidade de Manduri, até a cidade de Piraju. Possuía uma estação intermediária, denominada Estação Ataliba Leonel, e tinha como ponto final a Estação de Piraju. Este ramal foi construído em parceria com a Companhia da ferrovia e a Câmara Municipal de Piraju, a fim de escoar a produção de café, pujante na região, tendo sua inauguração no ano de 1906.
Figura 1.3.1) Mapa dos locais de visita de campo (Manduri, Ourinhos e Piraju) e a cidade de São Paulo, 2021. Fonte: elaborado pelo autor, 2021.
A Estação Ataliba Leonel, localizada na Fazenda do Governo Ataliba Leonel, no município de Manduri, foi o primeiro local visitado, no dia 5 de setembro de 2021. Inaugurada em 1906 (Figura 1.3.2), juntamente à inauguração do ramal, teve sua operação mantida até 1966, quando o ramal foi desativado. Após sua desativação, seus trilhos foram removidos e seu edifício completamente abandonado, servindo apenas para descarte de entulhos e materiais ferroviários antigos sem serventia.
Figura 1.3.2) Inauguração da Estação Ataliba Leonel, 1906. Fonte: Estações Ferroviárias do Brasil, 2018.
Figura 1.3.3) Situação atual da Estação Ataliba Leonel, 2021. Fonte: do autor, 2021.
Figura 1.3.4) Situação atual da Estação Ataliba Leonel em estado de abandono, 2021. Fonte: do autor, 2021.
Figura 1.3.5) Janela trancada na Estação Ataliba Leonel, 2021. Fonte: do autor, 2021.
Figura 1.3.7) Materiais elétricos entulhados no interior da Estação Ataliba Leonel, 2021. Fonte: do autor, 2021. Figura 1.3.6) Detalhe de uma das portas da Estação Ataliba Leonel, 2021. Fonte: do autor, 2021.
Figura 1.3.8) Garrafas entulhadas na plataforma da Estação Ataliba Leonel, 2021. Fonte: do autor, 2021.
Já no dia 6 de setembro de 2021, a visita foi realizada na Estação de Piraju, na cidade de Piraju. Assim como a Estação Ataliba Leonel, as instalações ferroviárias em Piraju foram inauguradas junto ao Ramal de Piraju, em 1906. O complexo ferroviário de Piraju engloba o edifício principal (Figura 1.3.9), inaugurado dois anos após a abertura do ramal, projetada pelo arquiteto Ramos de Azevedo, e dois galpões de armazenagem.
A extensão da Sorocabana até Piraju, apesar de inicialmente ter o intuito de escoar a produção cafeeira local, posteriormente contribuiu para a chegada de migrantes e imigrantes à região, fomentando o desenvolvimento local. Além disso, nove anos após a abertura do ramal, uma linha de bondes foi instalada (Figura 1.3.10), ligando a Estação de Piraju até a cidade vizinha, Sarutaiá, a fim de transportar café e passageiros.
Como a cidade possui o Rio Paranapanema em seu território, foi necessário a construção de uma ponte metálica para os trilhos do bonde (Figura 1.3.11). A obra foi supervisionada por
Figura 1.3.9) Estação de Piraju, 1908. Fonte: Livro Sorocabana Railway, 2001. Figura 1.3.10) Bonde na cidade de Piraju, 1930. Fonte: Coleção Gilberto Polanghi in Tramz, 2007.
Kermit Roosevelt, filho do ex-presidente estadunidense Theodore Roosevelt, que por sua vez, visitou a cidade em 1913 para conhecer a obra do filho e as instalações ferroviárias da cidade (Figura 1.3.12).
Apesar da eficiência nos anos de funcionamento, a Estação de Piraju foi desativada em 1966, quando o ramal foi desativado a fim de cortar gastos da EFS. Com a retirada dos trilhos, as instalações ficaram em estado de completo abandono até 2009, quando um projeto de restauração foi iniciado por parte da administração municipal. Já no ano de 2013, o Conjunto da Estação Ferroviária de Piraju foi tombado como bem cultural de interesse histórico, arquitetônico, artístico, turístico, paisagístico e ambiental pelo CONDEPHAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo). Atualmente, o prédio principal abriga o Departamento da Educação de Piraju (Figura 1.3.13), enquanto os galpões de armazéns abrigam o Museu do Café, o Museu Histórico Constantino Leman e SENAI.
Figura 1.3.11) Ponte metálica em construção sobre o Paranapanema, 1913. Fonte: Library of Congress, 2010. Figura 1.3.12) Rooosevelt, à esquerda, na Estação de Piraju, 1913. Fonte: Library of Congress, 2010.
Figura 1.3.12) Prédio principal da Estação de Piraju, 2021. Fonte: do autor, 2021.
Figura 1.2.13) Prédio principal e plataforma da Estação de Piraju, 2021. Fonte: autor, 2021. Figura 1.2.14) Remanescente dos trilhos no entorno da estação, 2021. Fonte: do autor, 2021.
Figura 1.3.15) Entorno da Estação de Piraju, 2021. Fonte: do autor, 2021. Figura 1.3.16) Antigo galpão de armazenagem, 2021. Fonte: do autor, 2021.
Figura 1.3.17) Antigo galpão: atual prédio do Senai, 2021. Fonte: do autor, 2021.
O terceiro local visitado, no dia 11 de setembro de 2021, foi a Estação de Ourinhos, na cidade de Ourinhos, e seu entorno. Nesta cidade, a Sorocabana iniciou sua operação em 1908, com uma estação simplória (Figura 1.2.4), semelhante à Estação Ataliba Leonel. Neste momento, a ferrovia estava sob a administração da Brazil Railway Company, companhia responsável pelas ferrovias do sul do país. Sendo assim, facilitou-se a integração das linhas do sul com a Sorocabana a partir de 1915, fazendo de Ourinhos um ponto de entroncamento com a Rede de Viação Paraná – Santa Catarina.
Com a alta demanda gerada pelo entroncamento ferroviário destas linhas, uma nova estação foi construída no ano de 1926 (Figura 1.3.18), uma vez que a primeira estação já não atendia o número de carga e de passageiros. Atualmente, a primeira estação de 1908 foi restaurada e é sede do Museu Municipal Histórico e Pedagógico de Ourinhos.
Figura 1.3.18) Segunda estação de Ourinhos, 1926. Fonte: José Carlos N. Lopes in Memórias Ourinhenses, 2008.
Em 1969 uma terceira estação foi construída. Esta chegou a ser beneficiada pelo projeto de eletrificação (Figura 1.3.19), recebendo locomotivas elétricas, mas teve a infraestrutura desmantelada em 1999, assim como todo o trecho eletrificado da linha (Figura 1.3.20). Ainda hoje é possível observar ao longo da via locomotivas elétricas que foram descartadas e sucateadas pela companhia. Em 1999, após a privatização das linhas da antiga Sorocabana, além da desativação da rede eletrificada, o serviço de transporte de passageiros também foi desativado.
Diferente dos outros dois territórios visitados, a linha férrea herdada da Sorocabana em Ourinhos permanece em pleno funcionamento para transporte de cargas e possui seu percurso imerso no perímetro urbano, cruzando a cidade de leste a oeste, e conectando-se às linhas paranaenses ao sul. Aqui, a linha férrea se transforma em uma barreira urbana, dotada de espaços residuais adjacentes à estação e à ferrovia.
Figura 1.3.19) Locomotiva elétrica em Ourinhos, 1995. Fonte: Estações Ferroviárias do Brasil, 2020. Figura 1.3.20) Locomotiva elétrica abandonada em Ourinhos, 2021. Fonte: do autor, 2021.
Os espaços residuais no entorno da estação já foram grandes pátios ferroviários, usados para manobras e para estacionamento de locomotivas, mas hoje, com a diminuição da demanda do serviço ferroviário, estes espaços ferroviários urbanos se transformaram em locais de descarte de lixo ferroviário e doméstico. Para além disso, estes locais se transformaram em uma espécie de cemitério de trens abandonados pela antiga concessionária da linha, a América Latina Logística (Figura 1.3.21).
Os espaços residuais no entorno da linha férrea para além do entorno da Estação de Ourinhos, se assemelham ao que foi observado no entorno direto da estação; ademais, se configuram como uma espécie de barreira contínua entre dois lados de uma mesma cidade, dificultando a transposição e o diálogo entre ambos. Estes espaços, anteriormente territorializados com passageiros e funcionários em suas dependências durante todo o dia, hoje se transformaram em não-espaços, pois não se configuram na dinâmica cotidiana da cidade ao mesmo que não possuem identidade.
Figura 1.3.21) Esgoto a céu aberto no entorno da Estação de Ourinhos. Vê-se ao fundo os trens abandonados da ALL, 2021. Fonte: do autor, 2021.
Estas situações constituem um processo de desterritorialização dos espaços ferroviários em zonas urbanas, bem como demonstram o processo de desvalorização e sucateamento do sistema ferroviário no interior do Estado de São Paulo.
A partir desta leitura do território, podemos nomear estes espaços residuais identificados em visita de campo, de heterotopias. Heterotopias, segundo Foucault (2013, p. 19), são “utopias que têm um lugar preciso e real, um lugar que podemos situar no mapa”, ou seja, são espaços reais deixados às margens da dinâmica urbana e social.
Estando às margens da sociedade, estes espaços se constituem em um processo de desterritorialização, sendo invisibilizados e apagados do entorno em que estão inseridos, qualificados como “lugares que se opõem a todos os outros, destinados, de certo modo, a apagá-los, neutralizá-los ou purificá-los. São como que contraespaços” (FOUCAULT, 2013, p. 20).
Figura 1.3.22) Edifícios abandonados no entorno da linha férrea em Ourinhos, 2021. Fonte: do autor, 2021.
Ainda segundo o filósofo francês, “as heterotopias possuem sempre um sistema de abertura e de fechamento que as isola em relação ao espaço circundante” (FOUCAULT, 2013, p. 26). Este sistema de abertura e de fechamento pode ser observado na barreira urbana estabelecida pela via férrea no perímetro urbano. Enquanto barreira urbana, o espaço ferroviário se faz presente exclusivamente para serviços econômicos (transporte de carga), se fechando para o contexto urbano, havendo locais pontuais de abertura, como a Estação de Ourinhos, ainda que restrita a funcionários, e as transposições viárias e de pedestres ao longo da malha urbana (Figuras 1.3.23 e 1.3.24).
Portanto, observa-se o processo de desterritorialização e consequente caracterização destas áreas residuais como contraespaços, passíveis de transformação e alvo de ações projetuais neste trabalho.
Figura 1.3.23) Transposição na linha férrea no centro de Ourinhos, 2021. Fonte: do autor, 2021. Figura 1.3.24) Transposição de pedestres na linha férrea de Ourinhos, 2021. Fonte: do autor, 2021.
Figura 1.3.25) Cobertura de antigo edifício da RFFSA, 2021. Fonte: do autor, 2021. Figura 1.3.26) Barreira na via férrea em Ourinhos, 2021. Fonte: do autor, 2021.
Figura 1.3.27) Lixo ferroviário e vagões subutilizados no entorno próximo da Estação de Ourinhos, 2021. Fonte: do autor, 2021.