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MEIO
Busca-se inciar esse trabalho com uma reflexão que o arquiteto Flávio Villaça fez em um artigo para a revista Estudos Avançados nº71, de que “[...] nenhum aspecto da sociedade brasileira poderá ser jamais explicado/compreendido se não for considerada a enorme desigualdade econômica e de poder político que ocorre em nossa sociedade.” (VILLAÇA, 2011, P.02). Parte-se então do pressuposto que espaço urbano da cidade mais populosa do hemisfério sul não é um dado da natureza, mas um produto do trabalho humano. Trabalho este que não foge das regras do sistema capitalista, e consequentemente também de seus abusos e desigualdades. No mais, compreende-se que a segregação espacial-urbana é uma manifestação – se não a mais importante – da desigualdade que impera na nossa sociedade.
Imagem 03:
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Jardim Público da cidade de São Paulo (atual Jardim da Luz) em 1887. Um parque de desenho romântico em meio à um cenário tropical ainda não urbanizado.
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5. Em específico a Várzea do Carmo, às margens do rio Tamanduateí e porção originária da cidade, era onde a população humilde tanto trabalhava lavando roupas como gozava de seu breve tempo livre, banhando-se. Ainda, em porções mais distantes do pequeno centro de São Paulo, as várzeas do rio Tietê e o próprio rio eram destino de lazer para aqueles que desejavam um momento em contato com a natureza e lazer aquático no rio, além da prática de esportes. 6. O principal e o primeiro deles, o Chafariz de Tebas, obra de escravo livre e inaugurado em 1788 onde escravos e serviçais se encontravam ao buscar água limpa para as casas em que trabalhavam. 7. Nota para os três largos que conformavam o “triângulo histórico” da cidade de São Paulo: Largo São Bento (1630), Largo do Mosteiro do Carmo (1594), e Largo de são Francisco (1647), além do Largo da Matriz (atual Praça da Sé) e o largo do Pátio do Colégio. Estes espaços livres eram onde toda a população da antiga vila se aglomerava em eventos religiosos como missas e procissões.
Ainda, o processo de segregação espacial-social se inicia por volta de 1850 junto a Lei de Terras no Brasil, que aponta que nenhuma porção de terra da nação deve permanecer sem dono. Lotes privados tinham um dono bem identificado – que podia pagar por ele – e os lotes públicos se tornaram propriedade do Estado e serviriam ao interesse político. A partir daí inicia-se o processo de grilagem de diversas áreas tanto urbanas quanto rurais, onde o poder econômico da classe dominante paga a melhor, mais bem localizada e maior porção de terra, ao gosto do futuro proprietário.
A importância econômica e política da cidade de São Paulo é fruto da eleição, em tempos do primeiro Império Brasileiro (18221889), da pequena vila jesuítica como capital da província, sendo subordinada politicamente a capital, no ano de 1681. A mudança administrativa fez com que os fazendeiros – monocultores detentores do capital – voltassem à cidade, e então se preocupassem com as questões da mesma. Esta elite buscava ainda, no início do século XIX, um embelezamento tanto dos prédios públicos quanto das áreas comuns da cidade, mostrando uma forte influência iluminista vinda da Europa. Agora que os ricos habitavam o espaço urbano, os edifícios públicos deveriam se apresentar à altura da sua importância, e a cidade se acondicionaria de acordo com as memórias de uma metrópole europeia, cidade qual só os ricos e poderosos sabiam como era.
Junto dessa súbita importância para a ambiência e caracterização dada para o espaço urbano sob os mandos da elite política e econômica, cresce também a importância dada para os serviços públicos. Varrição das ruas, iluminação pública, oferta de água: todos estes temas entraram no debate urbano, claro que sempre carregado pelas elites. Por isso que eram primeiro implantados em suas casas e ruas, para depois se espraiarem para os bairros menos influentes e favorecidos.
A partir desta migração das elites para residência oficial em território urbano e não mais em meio rural a cidade começa a rachar-se em duas, de acordo com o poder econômico de cada camada. A sociedade não era mais homogênea de acordo ao patriarcado e colonialismo presente, entrava e cena um verdadeiro choque de classes sociais, entre os fazendeiros ricos e o resto da população mais humilde (incluindo os servos e escravos).
O espaço público, que até o momento era resumido às várzeas dos rios5, aos chafarizes6, e largos das igrejas7, agora era local de conflito e desconforto social, onde uma elite desejava exclusividade. Como alternativa à essa realidade, uma das
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primeiras empreitadas do governo provinciano foi a construção de um Horto Botânico, em 1825, jardim botânico privado que viria a se tornar o atual Jardim da Luz.
A classe social dominante não pode ser dissociada da classe política atuante no território urbano, visto que são fatores codependentes e cíclicos: desde as fazendas de café que controlavam dinheiro e o poder político, e os donos desse poder trabalhavam por mantê-lo e enriquecer mais. Essa manutenção de poder se torna viável por meio da legislação urbanística e da atuação do Estado sobre o território, priorizando sempre os interesses da classe dominante, – social, econômica e politicamente. Essa atuação do Estado alimentou a desigualdade espacial especialmente sobre o sistema de transportes (produtor de localizações privilegiadas) e a localização dos aparelhos do estado (saneamento, saúde, educação e, em foco neste estudo, lazer).
Não bastando a desigualdade espacial conduzida pela elite política, a desigualdade de serviços públicos prestados é um fator de extrema importância para este trabalho. Ao escolherem qual bairro recebe uma nova escola, ou esgoto tratado, ou até uma intervenção urbana mais agressiva, a classe política também escolhe qual rua é varrida e em qual periodicidade. O ponto é: os bairros dos mais abastados são priorizados tanto com políticas urbanas físicas quanto por práticas públicas cotidianas. A classe política que tomou palco na cidade de São Paulo sempre buscou optar pela priorização dos seus iguais, e o campo de políticas públicas e gestão urbana não foi diferente. As camadas mais ricas da população, desde a sua primeira ocupação do espaço urbano, são priorizadas pelo seu poder econômico e consequentemente político, tendo suas necessidades atendidas pelo Estado.
Em contraponto, o Estado foi incapaz de suprir as necessidades básicas das camadas mais pobres da população desde o início da sua ação sobre o território, tratando-a sempre com descaso e como um “problema” a ser resolvido. Assim, as classes populares se submetem, até os dias atuais, ao mercado informal de solo (que segue a razão do capital e, portanto, do maior lucro), que desde seu início foi tratado com vista grossa pelo Estado. Essa informalidade urbana é composta por um conjunto de irregularidades em relação aos direitos – ambiental, urbanístico, construtivo e em relação ao direito de propriedade de terra – que em primeiro momento parecem desnecessários, mas adotados sistematicamente, refletem na cidade em que vivemos hoje.
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8. Dados da Fundação Seade, a partir de tabulação especial de Resolo. O mercado informal de solo é responsável pelos 102,670 loteamentos (até 2005)8 irregulares da cidade de São Paulo. Um grileiro produz documentos de uma área até então não formalmente urbanizada e a urbaniza, da forma mais econômica possível, não respeitando as dimensões de vias públicas, áreas verdes, recuos etc.). Depois, vende seus lotes da maneira mais lucrativa, entregando as rebarbas do loteamento para o Estado como percentual de lotes públicos para a implantação de infraestruturas. A compra de um lote irregular por parte dos menos afortunados é uma exclusão destes cidadãos da cidade Legal, onde os impostos são revertidos para o seu benefício local, construindo um pertencimento daqueles que habitam um espaço com as suas propriedades públicas.
Imagem 04:
Vista aérea da Rua Nova no Jardim Elba, bairro no extremo leste paulistano. Nota-se que o espaço verde da periferia é o mesmo que não se é possível edificar com facilidade