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PREÂMBULO

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de extrema qualidade e ainda com uma possível vida útil pelo simples desejo, enquanto os pobres sobrevivem com o que lhes é oferecido.

Em linhas gerais, podemos concluir que, ao mesmo tempo que o espaço urbano (em especial o público) é cenário dos desmandes da aristocracia política, a sua consolidação como espaço de memória na cidade o torna agente sobre a população que o habita. Perdemos a nossa conexão com os espaços urbanos por eles terem sido um direito negado das camadas mais pobres da cidade e renegado pela elite, em momento em que o cenário urbano estava sendo determinado. Agora, quase cem anos depois do Plano de Avenidas, agonizamos sobre um território urbano pensado para a passagem, e não para o ficar.

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Este pequeno contexto de gestão de serviços públicos, neste caso a gestão integrada de resíduos sólidos, só é mais uma conceituação sobre a desigualdade na oferta de ações estatais no território. Espera-se que fique claro que esta desigualdade não foi fruto do acaso, mas sim de contínuas políticas públicas de segregação e desigualdade socioespacial em São Paulo. Este trabalho procura traçar paralelos entre duas faces deste desequilíbrio: a oferta de espaços públicos de qualidade e a oferta de políticas de gestão de resíduos.

Ao se tratar dos resíduos da construção civil e demolição, sua gestão em grandes quantidades só é aceita de modo privado, em que se terceiriza a coleta e triagem dos materiais por empresas de caçambistas com pequenos depósitos de disposição de resíduos. Se você não pode pagar o aluguel diário de uma caçamba, só se é permitida a entrega de 1m³ por munícipe por dia nos Ecopontos da cidade, isso se há algum nas proximidades da sua residência. Vide o Anexo II “O que são Ecopontos?” (p.136). Falando da democratização do acesso a pontos de disposição correta de entulho, aqueles que há até 30 ou 40 anos atrás eram vizinhos de um lixão a céu aberto ou a um aterro irregular – ou seja, viviam em meio ao lixo literalmente – ainda não têm o direito a uma coleta e disposição democrática e aceitável dos seus resíduos produzidos.

Como uma forma de ilustrar melhor o raciocínio traçado até aqui sobre o sistema de consumo de materiais de construção, foi proposto um exercício de levantamento para compreender o volume de entulho gerado atualmente (página seguinte). Durante os dias 30 e 31 de julho de 2020 (quinta e sexta feira) foi levantado

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AV. DAS NAÇÕES UNIDAS AV. CIDADE JARDIM

A B C

PONTO DE DESPEJO IRREGULAR DE ENTULHO CAÇAMBA DE 3M2 PARA ENTULHO EMPREENDIMENTO IMOBILIÁRIO EM CONSTRUÇÃO EMPREENDIMENTO IMOBILIÁRIO CONCLUIDO HÁ ATÉ 10 ANOS ATRÁS BAIRRO DO ITAIM BIBI PARQUE MUNICIPAL DO POVO

AV. FARIA LIMA

D

AV. NOVE DE JULHO

RUA TABAPUÃ

1

AV. SÃO GABRIEL

2

3

4

AV. JUSCELINO KUBITSCHEK

E F G

100 50 0 100

5

H I

350m

MAPA I CAÇAMBAS DO ITAIM BIBI

FONTES: SEHAB, SVMA, CET, levantamento de caçambas, pontos de despejo e empreendimentos imobiliários feitos pelo autor.

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o número e a localização de caçambas em uso no bairro do Itaim Bibi. Este levantamento se mostrou interessante uma vez que foi observado que durante os tempos de distanciamento social devido ao COVID-19 o número de obras no bairro aumentou, e consequentemente o número de caçambas para o despejo de entulho gerado nessas obras.

Para estruturar a base cartográfica para o levantamento, buscou-se a base de edificações disponibilizada pela SEHAB. Infelizmente, esta tem data de 2004, estando desatualizada em mais de quinze anos. Foi necessária a atualização da base, deixando evidenciados os terrenos em que houveram lançamentos nos últimos 15 anos (novos edifícios residenciais e comerciais) e os empreendimento em lançamento atualmente (em construção ou entrega). O levantamento durou dois dias pela demora em percorrer todas as ruas do bairro, além de compreender se havia ou não um fluxo diário de acréscimo ou decréscimo de caçambas, o que não foi observado. É válido citar que o processo de aluguel de uma caçamba constitui-se do pagamento – de em torno de R$300 por dia, segundo pesquisas – pelo pacote de entrega da caçamba, diária e retirada, além da correta disposição dos resíduos nos aterros oficializados pela prefeitura e com suas devidas taxas de bota-fora pagas.

Imagem 16:

Ponto de descarte irregular de entulho no 6º maior IDH da cidade de São Paulo.

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A partir da leitura do mapeamento concluído, observou-se que, apesar de ser uma região de classe média-alta, até mesmo a fronteira dos bairros Itaim-Bibi e Moema não escapa de possuir um ponto de despejo irregular de entulho, às margens da avenida Antônio de Joaquim Moura Andrade, início da avenida Juscelino Kubitschek. O ponto de despejo são os portões de entrada para uma subestação da Enel, onde a circulação de pedestres é baixa, porém a de carros é intensa, uma vez que faz parte da conexão norte-sul da cidade, sendo acesso à Av. São Gabriel e Santo Amaro.

Ainda, o levantamento chegou ao valor de 82 caçambas em todo o bairro, sua esmagadora maioria cheias, para o encaminhamento para aterros ou usinas de reciclagem na madrugada de sexta para sábado. As caçambas em sua totalidade são a de modelo que comporta 3m² de entulho, chegando à marca de 5 toneladas de lixo carregado por invólucro. É possível assim apontar que, de acordo com o levantamento feito, estavam dispostos pelas ruas do Itaim Bibi 410 toneladas de entulho pronto para ser encaminhado para o fim do seu ciclo produtivo

Imagem 17:

Interior de uma caçamba de Entulho no Bairro do Itaim Bibi, em 2020.

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13. Um processo produtivo integral refere-se ao percurso de transformação de insumos básicos em produtos finais, como a produção de cimento desde a mineração de calcário até a entrega do saco industrializado nas lojas e armazéns de construção. e energético. Essas mesmas 410 toneladas custaram em média, diariamente para a soma de seus geradores, quase 25 mil reais, só para a sua coleta e descarga em ponto permitido, e nem sempre se é certificado que o ponto de despejo é o ambiental e legalmente correto.

Em linhas gerais, a maioria do entulho observado passível de apropriação (três a cada quatro caçambas aproximadamente) era resultante de reformas internas de apartamentos. Esse entulho consistia basicamente em resíduos cerâmicos e de cimento – pias, bacias sanitárias, pisos, azulejos e paredes – além de forros de gesso e alguns mobiliários em madeira. Em menor quantidade era possível reconhecer caçambas com entulhos provenientes de reformas em conjuntos comerciais – compostos majoritariamente por placas de gesso acartonado e estruturas metálicas para forros – e de obras de construção de edifícios. Estas ultimas, eram as que possuíam um conteúdo mais diversificado, visto que as obras estavam nos mais diferentes estágios, desde a escavação do subsolo até a finalização dos acabamentos. Nas caçambas próximas a empreendimentos imobiliários em construção era possível encontrar grandes rochas descobertas em escavação e terraplenagem, restos de fôrmas de madeira, estruturas metálicas de sustentação de fôrmas, recortes de gesso, podas de árvores e a totalidade das poucas caçambas vazias encontradas, a espera de serem utilizadas.

Por fim, é válido ressaltar que é nesta última categoria de caçambas – as destinadas a resíduos de uma obra de construção de um empreendimento – que é mais recorrente a presença de lixo doméstico em meio aos resíduos já citados. A disposição de resíduos domésticos – restos de comida, papeis, papelões, plásticos e agora máscaras descartáveis – junto ao entulho dificulta sua possível triagem e reciclagem, uma vez que é complexo dividir esses resíduos, sendo uma tarefa manual e, portanto, muito onerosa para ser despendida sobre resíduos.

A reciclagem, embora demande energia para promover a triagem e reutilização dos resíduos, é uma opção econômica de recursos energéticos (e de insumos), se comparada com os processos produtivos integrais13. Seguindo este mesmo raciocínio econômico, infelizmente, mesmo que “ambientalmente corretos”, os aterros sanitários até então não tem como pré-requisito de funcionamento a triagem e reciclagem de materiais. Deste modo, o destino geral e inevitável de todos os resíduos que para um aterro são destinados é o enterro e o esquecimento, o fim do ciclo produtivo.

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Ao mesmo tempo o governo municipal propõe mais uma vez despender extensos recursos para a ressignificação de um dos espaços públicos mais marcantes da cidade: o Vale do Anhangabaú. Território característico de conflito entre o desejo dos dominantes e a apropriação dos dominados, sua reforma sem precedentes é mais um lembrete de quem está no comando. Cinco mil e quinhentos metros quadrados de superfície em materiais de 1990 – carregados de memória e significado para a população – são encaminhados para o aterro público. São lixo. Junto, a concepção de um espaço público de sua época que, por falta de zeladoria pública, dá lugar a mais um empreendimento de interesse das classes dominantes. Agora o antigo parque de acesso público cede espaço para um boulevard com shows, comércios e a possibilidade de ser completamente fechado para eventos privados duas vezes ao mês.

Imagem 18:

Vista aérea da obra do Vale do Anhangabaú, 2020.

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Imagem 19:

Entulho gerado na reforma de 2020 do Vale do Anhangabaú.

Imagem 20:

Trilhos de bonde aterrados da Av. São João reaparecem com a nova obra do vale. Ao fundo edifício da sede dos Correios.

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