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HISTÓRIA
A economia do país – e de São Paulo, em específico – cresceu em descompasso com a capacidade de gestão dos problemas gerados pelo aumento da concentração de pessoas em meio urbano. Inicia-se então uma intensificação dos conflitos dentro do tecido urbano: onde jogar os dejetos? Como lidar com a nudez nas várzeas, frente a nova moralidade pública? O que fazer com animais soltos? Todas estas questões foram títulos de atas da câmara municipal da cidade, em meio ao século XIX. O equilíbrio social anterior da cidade, baseado na estrutura patriarcal e escravocrata foi rompido, uma vez que a cidade crescia não só com população local, mas imigrante. Mauro Calliari escreve em sua tese de mestrado um comentário que ilustra bem o posicionamento da elite econômica e política, em relação ao conflito de modos na São Paulo do fim do século XIX:
A atitude da elite talvez tenha deixado de lado a construção da noção de civilidade para toda a cidade, e se deu por outra via. O caminho escolhido acabou sendo o do isolamento: a demarcação do território para as áreas de fruição burguesa foi construída a partir de vários instrumentos, com aval da legislação. (CALLIARI, 2016, P.107).
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Um ponto importante que o autor traz na sua reflexão é o respaldo legislativo às ações da elite, se tornando também um instrumento de dominação da mesma. Uma ferramenta importante para a segregação espacial na época foi o Código de Posturas, promulgado em 1875 e revisado em 1886. “Posturas”, como referido no código, fazia jus a edificação, arruamento, higiene, segurança, lazer e vida cotidiana. Dentre diversas seleções, o código proibia que as portas abrissem para fora, gritaria nas ruas, e investiu pesadamente contra os cortiços, construções ocupadas por famílias além do seu limite salubre, sendo alvo de diversas investidas “sanificadoras”. Calliari completa:
Em que pese a preocupação com as condições sanitárias, é possível também entender a lei como uma maneira de isolar as habitações mais ricas do convívio com habitantes das casas mais modestas, que, com as leis sanitárias, foram obrigados a deixar as regiões centrais onde moravam. Separadas, as classes sociais perderam as oportunidades de contatos diários, tão importantes para a consciência e respeito pela diversidade. (CALLIARI, 2016, P.108)
Pontuo aqui o Código de Posturas e a forte política governamental contra os cortiços – e consequentemente, contra a existência das rendas mais baixas em terrenos e lotes centrais da cidade – como o início da política excludente territorial da cidade de São Paulo. A partir disto e, impulsionado pelo desenvolvimento
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9. Av. São João, alargada entre 1912 e 1930, tinha um plano urbanístico de ocupação desenhado pela prefeitura, onde fachadas deveriam ser alinhadas e aprovadas pela mesma, não permitindo gabarito menor que 3 andares de altura. 10. Primeira solicitação à prefeitura para embelezamento da Várzea do Carmo é do ano de 1888. 11. A construção da segunda Estação da Luz (atual) durou de 1895 a 1901, absorvendo parte do Jardim Público da Luz. 12. De acordo com Calliari, o Positivismo prega a ciência como único viés da verdade. Com o advento do secularismo (a separação entre estado e religião), antes do sistema capitalista tomar controle das relações inter-humanas e intraespaciais, a fé na ciência era o motor das futuras potências. No caso de São Paulo, o sanitarismo e as medidas médicas de bem-estar humano e espacial eram a principal ferramenta do positivismo, também funcionando como ferramenta de desigualdade socioespacial. dos transportes da cidade (dos trens, bondes e posteriormente, os ônibus) a mancha da cidade começa a se espraiar cada vez mais. Nas porções centrais bem servidas de transporte e serviços públicos estão localizadas as moradias das elites, enquanto nos tentáculos crescentes da mancha urbana, na fronte da expansão urbana sobre a rural, as camadas pobres agonizam autoconstruindo suas casas em áreas desprovidas de infraestruturas básicas como esgoto, luz e arruamento, quem dirá de limpeza pública.
Ao mesmo tempo, no lado rico do espectro social, a classe dominante que costuma não se acomodar em sua posição de privilégio junto aos seus iguais, procura, em seu âmago, se destacar entre os mesmos. Literalmente, a falta de amparo Estatal no meio urbano fazia que, ao mesmo tempo, uns batalhassem por saneamento básico, enquanto outros podiam escolher entre mudar-se do bairro X para o Y pois este último é mais moderno e exclusivo. Essa busca das elites pela distinção socioespacial se mostra um fator determinante nas escolhas residenciais, uma vez que busca se distanciar da população mais desigual de si e se aproximar dos seus iguais, uma convenção urbana característica de todos os grupos sociais. Consequentemente, essa inovação sistemática promove a homogeneidade do produto (imobiliário ou de material de construção), gerando a busca por nova inovação, um efeito caleidoscópico.
A partir da década de noventa do século XIX, o centro da cidade vivia o início da ascensão de sua atividade, passando por inúmeros embelezamentos. A desapropriação de quarteirões inteiros com cortiços era respaldada pela política adotada pela prefeitura de ampliação de avenidas9, embelezamento de áreas públicas10, construção de estações11 e novos loteamentos. Com a proclamação da República em 1889 e a difusão dos ideais positivistas12, há a necessidade de se reforçar o papel do Estado na vida dos cidadãos, e isso se dava principalmente pela oferta de espaços de representação social dos ricos e da classe política. É neste período que as várzeas dos rios Anhangabaú e Tamanduateí são saneadas, a partir do projeto do projeto do arquiteto francês e diretor de obras públicas de Paris, Joseph-Antoine Bouvard, em 1910.
O Brasil sempre foi um país rico de recursos, tanto físicos quanto humanos. Para os tais embelezamentos no início do século XX a ação do Estado não era pontual e cuidadosa como um tipo de acupuntura urbana, focada no patrimônio histórico e cultural, mas sim do estilo tábula rasa de Haussmann, contemporâneo às remodelações paulistanas. Não importava quem habitou esse
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espaço, que histórias foram vividas ali, muito menos o tipo de piso ou os acabamentos empregados: tudo era lixo. E como todo o lixo, deveria ser transportado para longe dos olhos da elite e o novo construído no lugar não deveria dar uma pista do que antes ali existia.
No início do século XIX, o imaginário romântico das elites visualizava jardins públicos e praças como vistas na capital francesa, inglesa e até portuguesa. A título de um valor estético, o território comum das várzeas da cidade fora mutilado e superado, roubando do bioma paulistano o direito de cheia e baixa de seus rios. Ainda, era tomado das camadas populares não só o espaço público no seu caráter ambiental, mas de lazer e sociabilidade. As novas várzeas eram propriedades do Estado e espaços pensados
Imagem 05:
Visual a partir da Praça do Patriarca do primeiro Viaduto do Chá (1892-1938), no ano de 1911. No primeiro plano, a direita, vê-se o parcialmente demolido e remodelado Solar dos Barões de Itapetininga (demolido em 1912). Em segundo plano vêse o vale ocupado por pequenas casas e ao fundo, os dois teatros.
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Imagem 06:
Visual a partir da Praça do Patriarca do primeiro Viaduto do Chá (1892-1938), no ano de 1916. O Solar dos Barões de Itapetininga já se encontra demolido por conta do alargamento da Rua Libero Badaró, junto com todas as residências que davam os fundos para o córrego Anhangabaú.
para o lazer e o desfrute essencialmente burguês, desconectando este espaço público da realidade das porções mais pobres. Em 1884, a opinião higienista das elites sobre a antiga Várzea do Carmo já era compartilhada no jornal A Província de São Paulo:
[...] A várzea ali está prometendo ser um excelente auxiliar da morte se a cólera chegar até cá, o que é bem possível. Aos lados da linha de bondes fazem-se despejos e ao aterro em regra é com lixo. As exalações são incomodas na parte mais próxima da cidade, principalmente no espaço entre as duas pontes. Estão mais resguardados das imundícias e garantidos contra as tais exalações os moradores do lado do Gasômetro, porque se acham afastados dos depósitos de lixo e em melhor posição quanto à ação dos ventos. (PESTANA, 1884).
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Imagem 07:
Cartão postal veiculado em 1936 que apresenta, do ponto de vista da Rua Libero Badaró no ano de 1911, a construção do Palacete Prates nº1 (no antigo local do Solar dos Barões de Itapetininga). Em segundo plano vê-se a várzea do córrego Anhangabaú canalizado, mas ainda com algumas propriedades. Mais a fundo estão, à direita, o Teatro Municipal (1911) e à esquerda, o segundo Teatro São José (1909-1924).
Imagem 08:
Parque Anhangabaú, projeto do francês Joseph-Antoine Bouvard, na comemoração do centenário da independência brasileira (1922). O parque se conecta à Praça Ramos de Azevedo, e ao fundo vê-se a mancha arbórea da Praça da República.
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A elite sempre determinou o que é espaço público digno para a cidade ou não. Por isso cria-se jardins botânicos com espécies exóticas e aterra seus córregos e várzeas, porque repete-se aqui o que é padrão internacional, desconsiderando as especificidades do bioma tropical paulistano. O saneamento de áreas e a política higienista das elites funcionou como ferramenta de propaganda do que é “bom” ou “ruim” para a população em geral. Banhar-se e lavar as roupas nas várzeas do Tamanduateí não era digno da moral e bons costumes de uma elite que almejava os padrões parisienses de meio urbano. Ao mesmo tempo, sujeitar-se ao meio coletivo da cidade era permitir-se estar em meio á diferentes e praticar a alteridade, duas práticas que estes grupos sociais dominantes se opuseram.
Imagem 09:
Parque Anhangabaú em 1919, a partir da vista do Viaduto do Chá. No lado direito observa-se o Palacete Prates no2 - sede da prefeitura de São Paulo. Na porção central observa-se os fundos da delegacia fiscal, que tem frente para a Av. São João.
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Ainda, a classe política transvertia o “bom” e “ruim” para todos com o “positivo” e “negativo” para ela mesma. Por isso que as vias e espaços públicos eram padrão europeu, e por isso que as camadas populares não combinavam com o cenário montado. A exclusão das camadas populares do centro histórico (provido de infraestrutura urbana) e posteriormente dos bairros bem implantados na cidade foi a única política social-espacial pensada pela camada dominante para a camada dominada. Destruíase a alteridade no tecido urbano e as camadas populares eram dominadas pela quantidade de tempo despendido por elas mesmas nos trajetos entre sua casa (no bairro isolado sem infraestrutura) e seu trabalho (no bairro central regado de serviços e consumo ligados a burguesia política).
Para as elites, a política urbana do governo municipal era a de estruturação de bairros com altíssima qualidade de vida e disponibilidade de áreas públicas e verdes, mesmo que pouco fossem utilizadas por essa população que nunca teve interesse em fomentar vivências coletivas em espaço público. Ao passo que a expansão da mancha urbana sentido bairros de elite era resultado de realizações planejadas – Av. Paulista (1891), Av. Nove de Julho
Imagem 10:
Construção do túnel da Av. Nove de Julho (vetor sudoeste da cidade) no ano de 1939, sob o Belvedere Trianon e a Av. Paulista.
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(1928), bairros jardins (1910) – a sentido leste e periferia eram resultado de loteamento ilegais e irregulares frente ao Estado. Para os pobres, a ausência de políticas urbanas deixava os cidadãos sob o controle do capital e dos loteamentos irregulares altamente rentáveis para os seus idealizadores, todos os lotes vendíveis foram vendidos, sobra para a área pública e estatal as de difícil acesso, ou as de difícil construção. Temos então uma cidade em que os ricos dispõem de áreas verdes públicas não utilizadas, enquanto os pobres contam nos dedos as árvores de seu bairro.
Esta desconexão entre população e espaço nada mais é que um projeto da elite dominante para a perpetuação de sua dominação sobre as classes dominadas. Um cidadão que não se reconhece como parte de seu bairro não é um cidadão que reconhece seus vizinhos, sua comunidade. Não é um cidadão que preza por áreas públicas limpas ou acessíveis pois nunca teve isso na sua vida. É um cidadão que sempre foi acostumado a jogar lixo naquilo que não é terreno de alguém, uma pessoa imersa em um grupo onde não existe coletivo. No mais, por viver em um eterno estágio de construção e demolição (de acordo com o CAU, em 2019 somente 15% das edificações em São Paulo foi construída sob a supervisão de um profissional), o cidadão pobre está acostumado e se livrar dos seus entulhos mensais nas proximidades da sua casa (naqueles terrenos sem dono), não tendo que arcar com as despesas da disposição correta de seus resíduos.
Enquanto a urbanização dos bairros de alta classe era pautada por desenvolvimentos urbanísticos focados para o automóvel, as linhas férreas do trem e dos bondes faziam a ponte com os bairros populares, para além da Várzea do Carmo. E o transporte de massa se mostrou imprescindível para a gestão e mantimento das classes populares vivendo mal e longe do centro. A escala da cidade vai se alongando, a partir das distâncias alcançadas pela malha de bondes elétricos de 1889 até 1927, quando a proposta da empresa São Paulo Tramway, Light and Power Company projeta novos eixos de transporte rápido por bondes subterrâneos e prolongamentos por vias expressas sobre a terra. Infelizmente, esta proposta foi perdedora frente a proposta dos engenheiros municipais Francisco Prestes Maia e João Florence D’Ulhôa Cintra, o Plano de Avenidas.
Mesmo determinando que a cidade necessitava de um plano de trânsito rápido e de alta capacidade, sendo efetuado em pouco tempo com pouco dinheiro, a argumentação do plano de Prestes Maia contra o monopólio da administração das linhas de ônibus – demanda da Empresa Light em seu plano de bondes
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de alta velocidade – era inviável e até antidemocrático, uma vez que os preços das passagens subiriam e seriam destinados ao exterior, uma vez que a empresa é canadense.
O Plano de Avenidas é um marco territorial do poder público, centralizado e coordenado a um conjunto de intervenções para implantar uma estrutura “ideal”, capaz de ordenar o crescimento urbano. Óbvio que este ideal atende a imaginação desta mesma classe política que sempre se manteve no poder. O foco do plano é de crescimento, uma vez que a concepção de urbanismo de Prestes Maia era contrária a qualquer bloqueio de crescimento físico à expansão da mancha urbana. Começava-se, no início da década de 1930, a implantar um raciocínio dos espaços dedicados ao fluxo ao invés do estar.
Embora Prestes Maia referiu “descentralização” à expansão geográfica da área central catalisada pelos novos eixos de transporte, o resultado concreto do seu modelo de anéis e radiais acentuou o processo de especialização do centro, com a consequente segregação e expulsão dos tipos de programas e usos do espaço que não podiam pagar a valorização resultante
Imagem 11:
Em 1950, crianças banham-se no chafariz construído junto ao túnel da Av. Nove de Julho.
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dos melhoramentos urbanos, como habitação, comércio e lazer de baixa renda. Os fundos de vale que ainda não tinham sido sanitizados pelo Estado ainda estavam abandonados pela iniciativa privada devido às dificuldades de acesso e de ocupação. Constituíamse de áreas desvalorizadas, relativamente vazias e insalubres, por causa da relação construída com os meios aquáticos, – água vira esgoto – e pelo raciocínio permanente de despejo de resíduos em áreas públicas comuns. O Plano de Avenida aproveitou-as para, simultaneamente, sanear estes córregos e construir as avenidas de fluxo rápido.
Até os dias atuais, somos dependentes deste sistema que visa a rápida e simples implantação, com o menor despendimento de recursos e com o maior retorno aos cofres públicos. A implantação parcial do plano funcionou como uma faca de dois gumes, até mesmo para o poder público. Ao mesmo tempo que toda nova localidade criada na periferia poderia ser monetizada, gerando lucros, a repaginação de bairros inteiros no centro pós cisão, feita pelas novas avenidas, desestimulava o uso do espaço público e afastava os investimentos econômicos para uma nova centralidade da cidade.
Além disso, é válido retomar a ideia de que as elites também desproveram as camadas populares do seu direito de uso do espaço público e de noção do pertencimento. Ao expulsar os pobres da região central com medidas higienistas, os que lá restaram (no bairro do Bexiga ou Marechal Deodoro, por exemplo) testemunharam quarteirões e praças inteiras serem desmanteladas para o novo traçado das avenidas que contemplavam o transporte dos automóveis dos ricos, e do transporte público sobre rodas.
Sabe-se já que os resíduos têm papel importante na nossa – não – relação com os espaços públicos em geral e em específico na cidade de São Paulo. Até meados do início do governo militar (década de 60) o lixo dos grandes centros urbanos era desprezado pelo poder público em sua proporção e encaminhado para lixões a céu aberto e aterros privados. Este raciocínio de desprezo pode ser sobreposto até os dias atuais, uma vez que a cidade de São Paulo continua não enfrentando maior parte do lixo dentro do seu município, mas delegando para aterros sanitários em cidades vizinhas. Originalmente, os aterros privados e os primeiros aterros públicos eram terrenos livres que se localizavam, em sua maioria, às margens da mancha urbana da cidade, e quando não, em terrenos planos das antigas várzeas dos rios Pinheiros e Tietê, que já eram foco de despejos irregulares.
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Imagem 12:
Praça Marechal Deodoro, zona Oeste da cidade em 1924. Foto a partir do edifício no cruzamento entre R. das Palmeiras e R. Pirineus.
Imagem 13:
Construção da via elevada João Goulart sobre a Praça Marechal Deodoro, em 1970. Foto a partir do edifício no cruzamento da Av. São João com R. dos Pirineus.
Na década de 1970, em meio ao governo militar, entraram para a pauta populista do poder público municipal as discussões sobre questões ambientais urbanas, em específico a destinação dos resíduos sólidos, cujo volume crescera exponencialmente em função da explosão demográfica paulistana, intensificada nas décadas anteriores. É nesse contexto que surgem as propostas de construção dos primeiros aterros de São Paulo de administração pública, visando ordenar a disposição e destinação final dos resíduos urbanos, ainda que carecessem da infraestrutura sanitária dos aterros atuais.
Os primeiros aterros paulistanos a serem inaugurados foram o de Lauzane Paulista, em 1974, e o Jardim Damasceno, em 1975, ambos na franja norte da cidade de São Paulo, quase fronteira com o Parque Ecológico da Cantareira. No mesmo ano inaugurou-se o aterro Engenheiro Goulart, hoje absorvido pelo terreno do Parque Ecológico do Tietê. Na mesma linha de terrenos de várzea dos rios, em 1977 é inaugurado oficialmente o aterro do Carandiru – atual terreno da Cidade Center Norte e adjacentes –, “oficialmente” porque tem-se registro de despejos de lixo irregulares na região desde meados da retificação do Rio Tietê, no final do século XIX. No Pinheiros há o caso exemplar do antigo lixão do CEAGESP, que operou até 1989 junto aos terrenos vizinhos, onde funcionavam um outro lixão particular e um terreno público onde era depositado o material dragado do rio durante a sua retificação, que hoje dão lugar ao Parque Villa Lobos.
Todos os aterros públicos citados são considerados somente aterros, mas não “sanitários”. O que “sanitiza” um aterro são as medidas tomadas para a correta disposição dos produtos da decomposição do lixo aterrado (chorume e gás metano), que caso não atendidas podem acarretar grandes problemas, como o caso do Shopping Center Norte (aterro Carandiru), que foi fechado às pressas por dois dias no ano de 2007, quando constatou-se que o gás metano do lixo já alcançava a superfície, sendo passível de combustão e explosão. Todavia, nem todo aterro é passivo de males diretos à população, um bom exemplo é o Parque Villa Lobos que possui monitoramento completo desde a sua inauguração e até os dias atuais não foi necessária a instalação de chaminés de metano.
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Imagem aérea do terreno do Shopping Center Norte em construção (1964-1984).
Os dois primeiros aterros públicos sanitários do Município de São Paulo foram o Bandeirantes, situado no distrito de Perus (extrema zona noroeste) e inaugurado em 1979 e o São João, situado no distrito de Sapopemba (extrema zona leste), instalado em dezembro de 1992. Ambos foram dotados de manta protetora do solo, controle de efluentes e monitoramento geotécnico de gases. Atingiram sua capacidade e tiveram as suas atividades encerradas respectivamente em 2007 e 2009, inexistindo até o momento qualquer registro de contaminação em seus entornos.
Caminhando sentido à recuperação ambiental, mas por outra via, o primeiro parque de lazer instalado sobre um aterro foi na cidade de São Paulo. O depósito de lixo Raposo Tavares foi transformado em aterro em 1975 e funcionou até 1979 em um terreno que margeia a rodovia de mesmo nome, no limite oeste da cidade, quase fronteira com a cidade de Cotia. Naquele terreno, a partir de 1981 o aterro daria lugar a uma porção de cidade totalmente rearticulada a função de lazer e prática de esportes, o que se repetiria em 1995 com o Parque Villa Lobos.
A disposição final é apenas uma das atividades gerenciais ligadas ao lixo urbano. Todas as etapas – geração, acondicionamento, coleta, transporte, transbordo, tratamento e
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disposição final – apresentam problemas e dificuldades específicas, fazendo o problema se tornar sistemático e não apenas pontual.
O território urbano atual é fruto de decisões e anseios de uma classe dominante que visava se isolar das camadas mais pobres, focada em viver confortavelmente entre seus iguais. Deste modo temos historicamente o apagamento de espaços de consumo populares – em específico aqui, os de lazer e moradia – para a reafirmação das visões burguesas e elitistas de cidade. O pobre não podia mais morar no centro porque sua situação domiciliar não era salubre, então foi desapropriado para a periferia. Seu espaço de lazer, as várzeas e jardins públicos, ou foram inicialmente mutilados para atender padrões europeus de paisagem ou foram removidos para, posteriormente, para dar lugar ao espaço de fluxo dos ricos.
Imagem 15:
Capa da revista Veja São Paulo em Abril de 1988, comemorando a conquista de área para o lazer do bairro de classe média-alta da zona Oeste da cidade.
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Expulso das regiões providas de infraestrutura e serviços públicos de qualidade, o cidadão de baixa renda se sujeita a um habitat insalubre e não urbanizado, vivendo uma não-civilização, onde o seu direito à cidade (lazer, educação, saúde, saneamento e qualidade de vida no geral) é negado.
Coincidentemente, ao estudar-se a segregação espacial e social urbana entre classes ricas e pobres na cidade de São Paulo, é impossível se desvencilhar da temática dos resíduos urbanos. Lixo é fator de exclusão na sociedade, e as camadas pobres são tratadas que nem o próprio. O sistema – tanto econômico quanto administrativo político – é cíclico e movido pelo valor agregado às coisas. Ele não dá ponto sem nó. Se loteamentos são construídos cada vez mais longe do centro, com o mínimo de qualidade de vida, é porque é mais lucrativo para aqueles que estão no comando, assim como manter a população nessa situação e supri-la de infraestrutura apenas quando lhes for interessante.
Os ricos mudam constantemente de domicilio em busca de novos produtos imobiliários, ou então reformam suas casas, atendendo aos novos conceitos de “estilo” – que muitas vezes transfigura um mal gosto reacionário – buscando se destacar em seu meio. Por outro lado, os pobres nunca chegam a finalizar a casa em que vivem, visto que estão presos em um constante processo de autoconstrução e demolição. Há, nos dois extremos do espectro, a produção de resíduos oriundos da construção civil e da demolição, que na maioria das vezes têm seu tempo de vida encurtado por vontades maiores. Para os ricos, a sobreposição da moda e a obsolescência acelerada pelas tendências faz com que se reforme com muito mais velocidade; para os pobres, as contínuas reformas sem supervisão técnica são feitas de forma errônea, o que acarreta no encurtamento da vida útil dos materiais que já tem menor qualidade.
São Paulo vive, entre as décadas de 10 e de 60 do século XX uma explosão em sua escala. Explode-se sua população, e consequentemente sua mancha urbana e a quantidade de recursos – água, habitação, cultura, lixo, educação, alimentação, trabalho etc. – necessários para o seu mantimento com qualidade de vida. Até hoje vive-se os reflexos da incapacidade espacialadministrativa do Estado na cidade. Os loteamentos irregulares foram se regularizando com o tempo, mas sem sinal de pararem de existir. Ainda se segue o raciocínio de uma pós-urbanização, uma vez que a área já se encontra ocupada pela população necessitada. Após loteada, aí sim a prefeitura aparece com planos e projetos de encanamento de córregos, construção de um sistema de saneamento básico e ocupação e urbanização das áreas ainda
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não urbanizadas. Estas áreas comumente são encostas muito inclinadas ou margens de rios, onde é difícil a estruturação barata de edifícios.
Ao mesmo tempo em que a periferia é fruto de um território urbano desestruturado, a relação que se constrói frente às áreas públicas é incomparável a ética e modos da elite sobre as mesmas. Enquanto um grupo sabe que não se joga lixo na rua, o outro cresceu e vive em um bairro onde não há coleta de lixo ou tratamento de esgoto. Contudo, a elite ainda nega as áreas públicas por desconexão que ela mesma, historicamente, se propôs, alimentando então o desinteresse, comodismo e, principalmente, a reiteração do apartheid social das camadas menos abastadas, que voltam a ocupar estes espaços.
Ainda, os economicamente dominantes nunca se preocuparam com a gestão dos seus resíduos, porque isso sempre foi política pública: descartar o indesejado. Sejam rejeitos, resíduos, coisas e até pessoas, o sistema foi construído para atender às vontades e idealizações da classe política que é a economicamente mais rica. Estas e somente estas pessoas merecem áreas verdes renovadas, iluminação pública, varrição das ruas semanalmente. Já os outros, vivem meio à sujeira e perigando a falta de água para seu consumo.
Enquanto os afortunados têm os recursos para o que bem entenderem, inclusive a correta disposição de seus resíduos, os menos afortunados vivem numa condição eterna de instabilidade. Sem saber se terá dinheiro suficiente até o final do mês para pagar o aluguel, ninguém pode gastar em torno de 300 reais (1/3 do salário mínimo brasileiro) numa diária de uma caçamba para o seu entulho. A saída para o entulho daquele puxadinho feito no seu lote pro seu filho que casou? Despejar numa encosta abandonada, fruto de uma obra de infraestrutura viária malfeita nas proximidades da sua casa, ou naquele barranco ao lado de um córrego não canalizado, ou até naquele quarteirão separado há anos para uma grande obra pública de urbanização. Opta-se por degradar ainda mais aquele espaço que deveria ser de todos, mas acaba não sendo de ninguém.
Ao mesmo tempo que as classes dominantes pecam na sua produção de resíduos pelo seu excesso, as dominadas o descartam nas proximidades de sua casa, em um terreno baldio. Isto ocorre porque as populações humildes não construíram uma conexão com seu entorno e muito menos estas áreas verdes que nunca foram prioridade de investimento público. Vive-se em uma situação dicotômica gritante em que os ricos descartam produtos