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PREÂMBULO
Resíduos da construção civil são testemunhos de ideias e práticas de trabalho que constituem importantes documentos para os estudos da arquitetura, da cidade, das artes, das técnicas, das profissões e suas relações com a sociedade. Representam um patrimônio cultural que precisa ser preservado, estudado e divulgado. São compostos por materiais de variadas origens, cujas especificidades exigem tratamentos distintos de salvaguarda, organização, catalogação e reciclagem de modo a permitir ampla difusão de sua memória entre todos os seres pensantes, não só apenas entre pesquisadores e interessados. Atirados a aterros ou em áreas públicas sem escrúpulos ou qualquer intuito de reciclagem, os resíduos da arquitetura e urbanismo servem tanto a pesquisa quanto a difusão da cultura técnica, artística e social brasileira. Este trabalho foi produzido sob a visão de que a arquitetura pode capacitar a população e servir como ferramenta para uma sociedade mais sustentável em todos os seus sentidos: economicamente viável, ambientalmente correta e socialmente justa.
Por sua vez, o espaço público é o ambiente do encontro por excelência. Ao mesmo tempo que se refere ao lugar físico que pertence a todos, pode ter também um sentido político, quando se refere à esfera pública, o ambiente onde se discutem temas da cidade. Essa discussão, ou melhor, a troca de ideias, ações e até olhares entre pessoas que não são de mesma origem é a gênese do que seria a vida em espaço público. Esse espaço pode ser resumido ao único espaço que resta a humanidade onde há alteridade, ou onde ela é praticada. A alteridade é a natureza ou condição do que é outro, do que é distinto. É reconhecer a sua individualidade enxergando no outro as suas diferenças, mas livre de preconceito ou juízo de valor, só o reconhecimento de diversas individualidades formando um grupo coletivo que são os habitantes deste mesmo lugar. Ainda, ao estudar os espaços públicos recaise sobre a conotação poética e política deste ambiente, que – não nos esqueçamos – é por um lado o resultado de determinada visão da sociedade na qual ele está inserido, e, por outro, também molda essa sociedade.
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O espaço público é sinônimo de disputa política, uma vez que é território neutro para a manifestação de todas as artes e vontades humanas. Este espaço não se democratiza pela supressão suscetiva de conflitos, mas talvez a simples constatação de sua existência seja o passo inicial para que pessoas diferentes usufruam de um mesmo lugar civilizadamente. A ocupação de um espaço público, físico e simbólico, remete a um ato político. Ao pensar-se em manifestações políticas na cidade de São Paulo
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1. Manifestação das Diretas Já, em 1984. 2. Manifestações contra o aumento da passagem de ônibus, em 2013. 3. Manifestação a favor da educação, em 2019.
Imagem 01:
Vale do Anhangabaú em reformas, março de 2020. somos levados diretamente para o Vale do Anhangabaú1 , para a Av. Paulista2 ou para o Largo da Batata3, todos espaços públicos de caráter transitório (multiplicidade de fluxos, usos e públicos), verdadeiros catalisadores de vida humana.
O espaço público é um verdadeiro termômetro para reconhecer a qualidade de vida de uma população. Em São Paulo, meio em que estamos inseridos, isto não seria diferente: a cidade vive uma verdadeira disputa política. Além de uma segregação no uso e na distribuição de suas áreas públicas, há uma diferença
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gritante entre o significado que esses espaços têm para as pessoas com mais ou menos poder político. O resultado é a situação que vive-se hoje: os privilegiados com acesso á áreas públicas de qualidade gozam da sua recente redescoberta, enquanto o grupo oposto usa as poucas áreas livres próximas a suas ocupações urbanas para o descarte de resíduos, principalmente o de entulhos da construção civil e demolição.
Este trabalho busca a proposição, autônoma e replicável, de uma resposta prática à segregação urbana e desigualdade de oferta e uso do espaço público na cidade de São Paulo. Entendese que está em discussão duas problemáticas nesta pesquisa: o uso do espaço público e a produção de entulho na cidade. Para cada um destes temas – lixo e espaço público – ainda existem duas aproximações, de acordo com a classe social: a classe imperante econômica e politicamente goza de recursos, mas os desperdiça (tanto as áreas públicas quanto materiais de construção civil); já a classe dominada, que sofre os efeitos da desigualdade respaldada pelas ações do Estado, vive desconexa dos poucos espaços livres públicos disponíveis nas suas adjacências e não tem acesso aos serviços públicos de coleta e gestão de resíduos.
Ao se falar de “resíduos” neste trabalho, refere-se ao descarte da construção civil, que se difere dos nomeados “rejeitos”4 por ainda poder ser reutilizado e reciclado, estendendo o seu ciclo produtivo por mais tempo. Mesmo que chamado vulgarmente de lixo, estes resíduos têm nome específico: são os entulhos excedentes de obras, e são um problema para aqueles que não podem pagar a sua correta disposição ambiental. De acordo com o Dicionário Michaelis, embora as definições encontradas sejam similares, inclusive o verbete “entulho” seja citado como sinônimo de “lixo”, e “entulho” ser mencionado como qualquer coisa inaproveitável que vai para o “lixo”, é possível compreender pelas definições que o entulho é a parte “grande” do lixo, cuja ideia está relacionada ao tamanho e a materiais volumosos.
O verbete “entulho” também se refere aos resíduos da construção civil e demolição, chamados também de RCD (Resíduos da Construção e Demolição civil), dando uma pista sobre a categorização deste tipo de resíduo. O CONAMA dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, regulamentada pelo Decreto 99.274/90. O Conselho é um colegiado representativo de cinco setores: órgãos federais, estaduais e municipais, setor empresarial e sociedade civil.
Nesta política fica mais clara a diferenciação entre os tipos de resíduos gerados pela vida humana e suas diretrizes para
4. De acordo com a resolução nº302 do CONAMA, de 2002.
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o manejo e disposição em meios urbanos. A resolução mais marcante do CONAMA é a de nº 307 do ano de 2002, na qual estabelece diretrizes, critérios e procedimentos para a gestão dos RCD, disciplinando, dessa forma, as ações necessárias de forma a minimizar os impactos ambientais. A classificação dos resíduos da construção civil no Brasil se dá através da seguinte forma:
Assim sendo, fica claro que os termos lixo e entulho também são tratados pelas normas técnicas como sendo materiais diferentes, uma vez que as próprias normas para a triagem de cada um são diferentes. Embora “lixo” e “entulho” são usados como sinônimos, o entulho – ou RCD – a que se refere este trabalho é referente a materiais da construção civil, de constituição inorgânica, e que se resume basicamente a classe A, desenvolvida pela resolução do CONAMA.
Ademais, a mesma resolução do CONAMA – e suas alterações – tornou obrigatório para todos os municípios a implantação, pelo
Resolução CONAMA 307 Art. 3°: Os resíduos da construção civil deverão ser classificados, para efeito desta Resolução, da seguinte forma:
I – Classe A – são os resíduos reutilizáveis ou recicláveis como agregados, tais como:
a) de construção, demolição, reformas e reparos de pavimentação e de outras obras de infraestrutura, inclusive solos provenientes de terraplanagem;
b) de construção, demolição, reformas e reparos de edificações: componentes cerâmicos (tijolos, blocos, telhas, placas de revestimento etc.), argamassa e concreto;
c) de processo de fabricação e/ou demolição de peças pré-moldadas em concreto (blocos, tubos, meios-fios etc.) produzidas nos canteiros de obras;
II – Classe B – são os resíduos recicláveis para outras destinações, tais como: plásticos, papel, papelão, metais, vidros, madeiras e gesso;
III – Classe C – são os resíduos para os quais não foram desenvolvidas tecnologias ou aplicações economicamente viáveis que permitam a sua reciclagem ou recuperação;
IV – Classe D – são resíduos perigosos oriundos do processo de construção, tais como tintas, solventes, óleos e outros ou aqueles contaminados ou prejudiciais à saúde oriundos de demolições, reformas e reparos de clínicas radiológicas, instalações industriais e outros bem como telhas e demais objetos e materiais que contenham amianto ou outros produtos nocivos à saúde.
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Estado, de um Plano Integrado de Gerenciamento de Resíduos (PGIRS), incluindo os da construção civil. Para mais informações sobre a situação legal da gestão de resíduos sólidos em São Paulo, vide o Anexo I “A PNRS e a PGIRS” (p.124). Este plano é voltado para os pequenos e os grandes geradores de lixo, permitindo disciplinar a atuação de todos os agentes envolvidos. Ainda, a resolução define um conjunto de áreas de manejo para os RCD e como deve ser a destinação de cada tipo de resíduo nessas áreas.
Aprofundando os temas, procura-se agir dentro de dois eixos de raciocínio que estruturam essa pesquisa: o espaço público e o lixo, mais especificamente o RCD. Para isso , a pesquisa organizase em duas partes: a primeira, de caráter histórico, teórico e técnico, procura encadear e elucidar o processo de consolidação da cidade de São Paulo até a contemporaneidade, bem como o processo passado de pesquisa técnica do autor; já a segunda parte lança a mão sobre a experimentação prática, prototipando peças prémoldadas de concreto reciclado, propondo uma possível resposta as mazelas urbanas resultantes da sua segregação urbana.
Imagem 02:
Rua Nova no Jardim Elba, bairro no extremo leste paulistano.
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Em suma, esta pesquisa busca agir prepositivamente sobre esta realidade já explanada. Em primeiro momento, tanto a reflexão sobre os processos coletivos (consolidação da cidade de São Paulo, uso do espaço urbano e recursos materiais no campo da construção civil) quanto dos individuais a esta pesquisa (levantamentos sobre a atualidade e processo de experimentação já percorridos) se faz necessária para o embasamento da seguinte etapa: a prática. Nela, propõe-se se debruçar no problema como ferramenta para sua própria solução. E se os resíduos da construção civil e demolição fossem utilizados para reativar os espaços públicos da cidade? Ainda, na proposição prática, buscase que esta solução funcione tanto no campo físico e urbano (a reativação dos espaços públicos) quanto no campo social (o fomento de práticas individuais e coletivas de economia solidária e sustentável).
Existem diversas formas de repensar as ações humanas e seus impactos sobre o planeta terra e sua biosfera, e como trabalho de conclusão de curso de arquitetura, estuda-se a construção e a cidade. Assim, tem-se como objetivo traçar um novo final, ou melhor, um novo início, para aqueles espaços e materiais que já eram considerados “fim”. Pretende-se prototipar peças para reativar o tecido urbano que nos mantém unidos com sanidade e qualidade de vida, de uma forma que o próprio repelente de atividade – o resíduo – se torna a ferramenta de reativação. Valoriza-se que o design de espaços não é só o projeto e desenho de ambientes, mas também a construção de personagens e memórias que tem como pano de fundo o espaço público. Este trabalho, além de entender o processo consumista em que estamos inseridos, busca tecer um futuro possível, quebrando este ciclo consumista.
Para isto, esta pesquisa não parte de uma discussão casual, mas gravita em uma constelação de discussões que tomam o campo de debate atual. Mais especificamente, ela é um segundo passo após um ano de pesquisa científica dentro da Escola da Cidade feita por este mesmo autor, que a frente será introduzida (CAP. 02 - INÍCIO) para compreensão do cenário total da pesquisa.