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EDITORIAL

O INSTITUTO CIÊNCIA HOJE é uma organização sem fins lucrativos que publica as revistas Ciência Hoje e Ciência Hoje das Crianças. Conselho de administração | Marco Moriconi (UFF) – presidente, Andrea T. Da Poian (UFRJ), Diego Vaz Bevilaqua (Fiocruz) e Monica Lima (UFRJ). Conselho consultivo | Alberto Passos Guimarães (CBPF), Aldo Dutra (Inmetro), Carlos Medicis Morel (Fiocruz), Georgia Pessoa (FRM), Débora Foguel (UFRJ), Eduardo Fleury Mortimer (UFMG), Gustavo Balduino (Andifes), José Murilo de Carvalho (EGN e ABL), Nisia Trindade (Fiocruz), Reinaldo Guimarães (Uerj), Roberto Lent (UFRJ), Roseli de Deus Lopes (USP) e Walter Araújo Zin (UFRJ). Secretaria executiva e direção de redação | Bianca Encarnação Editores científicos | ciências biológicas: Andrea T. Da Poian (UFRJ) e Leandro Lobo (UFRJ); ciências exatas: Diego Vaz Bevilaqua (Fiocruz), Marco Moriconi (UFF) , Raoni Schroeder (UFRJ) e Victor Giraldo (UFRJ); ciências humanas e sociais: Carla Madureira (UFRJ) e Monica Lima (UFRJ). Revista Ciência Hoje (ISSN: 01018515) Redação | editora executiva: Bianca Encarnação; subeditora: Thaís Fernandes; editores de texto: Alicia Ivanissevich, Bianca Encarnação, Cássio Leite Vieira, Thaís Fernandes e Valquíria Daher; revisora: Laura Chaloub | e-mail: redacao.cienciahoje@gmail.com

NO FINAL DA DÉCADA DE 1970, um grupo de cientistas jovens e idealistas teve uma ideia revolucionária: criar uma revista de divulgação científica feita no Brasil, com artigos de cientistas brasileiros, editados em parceria com jornalistas, para consumo nacional. Mas, como podemos ler na entrevista histórica, em mais de um sentido, de Alberto Passos Guimarães, Ennio Candotti e Roberto Lent, há uma grande distância entre a concepção do projeto e sua produção. Eles, junto a outros cientistas, foram tenazes, acreditaram no projeto e, em 1982, foi publicado o primeiro número da revista Ciência Hoje. São 40 anos de muito aprendizado, de entender como se faz divulgação científica incluindo para o público infantojuvenil, com a Ciência Hoje das Crianças, de participação ativa em nossa sociedade, e que tiveram sua boa dose de altos e baixos, momentos dramáticos, que ameaçaram a própria continuidade da revista. Mas estamos aqui. As revistas Ciência Hoje e Ciência Hoje das Crianças se encontram renovadas

Arte | Ampersand Comunicação Gráfica | direção de arte: Claudia Fleury e Henrique Viviani; designer assistente: Laura Fleury | e-mail: ampersand@amperdesign.com.br

e mais fortes, se adaptando às novas tecnologias,

Desenvolvimento e suporte CH Digital | Loja Interativa

leitoras, um convite: celebremos juntos esses primeiros

Administrativo, assinaturas e direitos autorais | Andreia Marques (gerente de vendas), Ana Beatriz Fernandes dos Santos (assistente administrativo), Ana Paula Costa (vendedora), Ailton Borges da Silva (auxiliar de escritório), Flávia Sabina da Conceição (vendedora), Guilherme Rocha (gerente administrativo-financeiro), Heloísa Helena Goulart da Costa (assistente para direitos autorais), Nanci Ribeiro Ferreira (vendedora) e Neuza Borges da Silva (auxiliar de serviços gerais) | e-mail: contato@cienciahoje.org.br | telefone: 21 2109-8999

desenvolvendo um modelo sustentável que permita sua continuidade por décadas à frente. Então, faço aos leitores e 40 anos com a leitura desta edição especial, com artigos escritos pelos seus próprios editores e editoras científicos: Viva a ciência, viva a Ciência Hoje!

Marco Moriconi Presidente ICH

Impressão | Gráfica Aerographic Leia e assine Ciência Hoje | www.cienciahoje.org.br | R$ 165,00 (11 edições digitais) | R$ 355,00 (11 edições digitais e 11 edições impressas) | Telefone: 0800 727 8999 | WhatsApp: 21 97460-2560 *Os artigos publicados na revista refletem exclusivamente as opiniões de seus autores | **Proibida a reprodução do conteúdo (texto e ilustrações) sem prévia autorização. Endereço: Instituto Ciência Hoje | Av. Venceslau Brás nº 71, casa 27, Rio de Janeiro-RJ, 22290-140 | Fone: 55 21 2109-8999 | 0800 727 8999 | contato@cienciahoje.org.br | Ciência Hoje digital: www.cienciahoje.org.br

CAPA: AODBE STOCK

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4 | PEQUENAS E GRANDES QUESTÕES

Além do doce, salgado, azedo e amargo, existe mesmo um quinto sabor chamado umami? Felix G.R. Reyes, Unicamp

Qual o efeito negativo do flash das câmeras fotográficas em objetos expostos em um museu? Cláudia S. Nunes, IPHAN

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ARTIGO

LIBERTOS DE VOLTA À ÁFRICA Monica Lima, UFRJ

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ARTIGO

TRANSFORMAÇÕES CONFORMES Marco Moriconi, UFF ARTIGO

A CURA QUE VEM DO INTESTINO ALHEIO Scarlathe Bezerra da Costa e Leandro Lobo, UFRJ

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ARTIGO

O DESAFIO DA INCLUSÃO SOCIAL NOS MUSEUS DE CIÊNCIAS

Débora T. dos Santos e Menezes, UFRJ; Diego V. Bevilaqua, Fiocruz; Douglas Falcão, MAST

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6 | ENTREVISTA

COLUNAS

40 anos de resistência

Alberto Passos Guimarães, Ennio Candotti e Roberto Lent, fundadores da Ciência Hoje

10 | CIÊNCIA & CULTURA POP

Zumbis do mundo real Lucas Miranda, UFJF

50 | BASTIDORES DA CIÊNCIA

O núcleo do demônio Roberta Duarte, USP

54 | RESULTADOS IMEDIATOS

Geotecnologias e Bigdata: novos aliados do semiárido brasileiro Diego Sperle, Adinan Marzulo e Carla Madureira Cruz, UFRJ

58 | MULHERES NA CIÊNCIA

Uma cientista fundamental Maria Lucia Maciel (in memoriam) por Sarita Albagli, IBICT e UFRJ

60 | NA REDE/NO RÁDIO Já ouviram do Ipiranga, agora ouvem do podcast Rachel Motta Cardoso, Mast

62 | NA TELA

Estrangeiros do passado Victor Giraldo, UFRJ

13 | DESVENDANDO O COSMOS

A música da vida

Adilson de Oliveira, UFSCar 21 | GEOINFORMAÇÃO

Inteligência espacial Carla Madureira, UFRJ

29 | CONEXÃO CIÊNCIA E SAÚDE

Infecção humana controlada: o impulso ao teste de vacinas

Rodrigo Correa Oliveira, Fiocruz; Helton Santiago e Maria Flavia Gazzinelli, UFMG 36 | CAÇADORES DE FÓSSEIS

De volta pra casa: decolonização na paleontologia

Alexander W. A. Kellner, Museu Nacional 53 | CULTURA OCEÂNICA

Consumo consciente e pesca sustentável June Dias e Tássia Biazon, USP 57 | LITERÁRIA

Fabricação dos portentos Georgina Martins, UFRJ 64 | QUAL É O PROBLEMA?

A arte de contar direito Marco Moriconi, UFF

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PEQUENAS PERGUNTAS, GRANDES QUESTÕES

Além do doce, salgado, azedo e amargo, existe mesmo um quinto sabor chamado umami? Felix G.R. Reyes Faculdade de Engenharia de Alimentos, Universidade Estadual de Campinas

SIM, EXISTE. Na verdade, não é um sabor, mas sim um quinto gosto básico. Antes de tudo é preciso diferenciar gosto de sabor. Existem apenas cinco gostos: doce, salgado, azedo, amargo e umami. No caso dos sabores, há uma infinidade. Para sentirmos um gosto, precisamos apenas do paladar. Já para identificarmos os sabores, precisamos, além do paladar, do olfato. A palavra umami é de origem japonesa e pode ser traduzida para o português como algo ‘saboroso’ ou ‘delicioso’. O gosto umami foi descoberto em 1908 pelo químico japonês Kikunae Ikeda, da Universidade de Tóquio. Apesar de identificado no início do século 20, esse quinto gosto só foi reconhecido pela comunidade

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científica em 2000, quando pesquisadores da Universidade de Miami encontraram receptores específicos nas papilas gustativas. O aminoácido ácido glutâmico e os nucleotídeos inosinato e guanilato são as principais substâncias que proporcionam o umami. Queijo parmesão, tomate, cogumelos e carnes em geral têm essas substâncias em grande proporção e, por isso, apresentam de forma mais acentuada esse gosto, cujas principais características são o aumento da salivação e a continuidade do gosto por alguns minutos após a ingestão do alimento.

Publicada originalmente na CH 294, julho/2012.


Qual o efeito negativo do flash das câmeras fotográficas em objetos expostos em um museu? Cláudia S. Nunes Conservadora e Restauradora da Superintendência Estadual do Rio de Janeiro, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

O FLASH DAS CÂMERAS fotográficas, assim como a luz emitida pelas fotocopiadoras, acelera o envelhecimento de pinturas e documentos antigos. A incidência do flash, ao ser tirada uma foto, equivale ao objeto ficar exposto ao Sol por um mês. Isso acontece porque o processo utilizado para gerar a luz nessas duas fontes – câmeras e fotocopiadoras – produz grande quantidade de radiação ultravioleta. Apesar de também ser um tipo de luz, a radiação ultravioleta não é percebida pelo olho humano. Isso não a impede, no entanto, de reagir com outras substâncias, como os pigmentos das tintas empregadas em pinturas ou na escrita de documentos, que desbotam, pois suas moléculas são destruídas por essa radiação. A radiação causa ainda o amarelecimento de papéis, pois a lignina contida neles, após ser oxidada pelo ar, absorve mais ultravioleta, ficando escura e dando uma tonalidade amarela ao papel.

Publicada originalmente na CH 288, dezembro/2011.

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ENTREVISTA

CRÉDITO: FOTO MAURO BELLESA

CRÉDITO: FOTO ACERVO PESSOAL

CRÉDITO: FOTO IEA-USP

40 ANOS DE RESISTÊNCIA

Fundadores da revista Ciência Hoje, os físicos Alberto Passos Guimarães e Ennio Candotti e o neurocientista Roberto Lent relembram como tudo começou, destacam a importância do projeto na mobilização de cientistas pela abertura política, com textos que figuram até na Constituição

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O cenário era a redação de uma importante revista de divulgação científica, no 45º andar de um prédio em Nova York. Os personagens: um editor estadunidense para lá de tarimbado e um jovem cientista brasileiro que buscava conselhos para estruturar e lançar a primeira revista de divulgação científica do Brasil dali a poucos meses. “Esqueça isso!”, vaticinou o editor, e o rapaz saiu de lá desanimado, de cabeça baixa. Mas o fato é que meses depois, em julho de 1982, era lançado o primeiro número da CIÊNCIA HOJE. Curioso é que o tal editor não foi o único a decretar que era missão impossível produzir, em tão pouco tempo, uma publicação brasileira multidisciplinar escrita por cientistas para o público em geral. Boa parte da comunidade científica nacional nem acreditava que o projeto passaria daquele número 1 lançado na 34ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Quarenta anos depois, nesta entrevista, os físicos Alberto Passos Guimarães e Ennio Candotti e o neurocientista Roberto Lent (aquele mesmo desapontado em NY), fundadores da revista junto com o geneticista Darcy Fontoura de Almeida (1930-2014), contam como nasceu a ideia do projeto ao final dos anos 1970, ainda na ditadura militar, da sua importância na luta pela redemocratização e para uma transformação da SBPC e da política científica do país. Relembram também muitos dos cientistas e intelectuais essenciais para o projeto ir à frente – não sem muitos tropeços, crises e ameaças de extinção –, dando frutos como a Ciência Hoje das Crianças, o Jornal da Ciência e a análoga argentina da publicação, a Ciencia Hoy. Valquíria Daher Jornalista ICH

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ENTREVISTA

CIÊNCIA HOJE_ Como nasceu a ideia de fazer uma revista de divulgação científica em plena ditadura militar?

ROBERTO LENT_ Em 1976, eu me tornei secretário regional da SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência] no Rio de Janeiro, e havia um sentimento juvenil em nós todos de luta contra a ditadura militar. Uma das coisas que fizemos foi uma série de conferências chamada “Ciência às Seis e Meia”, em que chamávamos pesquisadores para falar para o que acreditávamos ser um grande público, no auditório da Academia Brasileira de Ciências, mas, na verdade, eram umas 20 ou 30 pessoas, entre estudantes e outros colegas interessados no assunto. Vejo isso como o começo da nossa própria sensibilização para a importância O MUNDO ESTAVA SE da divulgação científica. Criamos então, no âmbito da Secretaria Regional TRANSFORMANDO, E ESTÁVAMOS DANDO A NOSSA PEQUENA da SBPC no Rio, um grupo para avaliar a possibilidade de criar uma reCONTRIBUIÇÃO. ESSE MOVIMENTO FOI vista de divulgação científica. A Scientific American era, de certo ponto de ESSENCIAL PARA CRIAR O CLIMA QUE vista, o modelo. Depois, eu fui para o exterior para fazer o pós-doc, e o JUSTIFICOU TODOS OS SACRIFÍCIOS, Ennio me sucedeu como secretário regional da SBPC no Rio, em 1979. AS NOITES MAL DORMIDAS E OS Foi ele quem, realmente, viabilizou a criação da revista, anos depois. EnESFORÇOS NECESSÁRIOS PARA CRIAR nio teve uma persistência admirável de tornar aquilo perene, mas a ideia UMA REVISTA, MOVENDO MONTANHAS começou com o grupo de jovens que tinha vontade de levar ciência para Ennio Candotti o grande público. ALBERTO PASSOS GUIMARÃES_ Minhas lembranças são um pouco diferentes das do Roberto, e vejo um protagonismo maior dele nessa história. Como primeiro secretário regional da SBPC do Rio, ele não se limitou a cobrar dos sócios, que era o esperado. Criou uma diretoria, da qual faziam parte Reinaldo Guimarães, Ennio Candotti, Mirian Limoeiro e eu. Nós nos reuníamos no bar do “Manel” (no campus da Praia Vermelha da UFRJ) e, logo, conseguimos uma sala num prédio ali ao lado, que era do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (a casa 27, que anos mais tarde se tornou sede da CH). Essa diretoria regional passou a ser uma entidade com uma ambição muito maior e realizou uma série de ações, como o “Ciência às Seis e Meia” e muitas outras conferências. Além dessa ligação, Roberto e eu éramos vizinhos em Laranjeiras e nos encontrávamos constantemente para conversar, estudar música e falar outras abobrinhas. Em 1978, tivemos uma conversa sobre divulgação científica. Desde a adolescência, eu era leitor do físico e divulgador George Gamow (1904-1968) e, esporadicamente, da revista Scientific American, criada em 1845, bem anterior à nossa (risos). Mais tarde, ele me surpreendeu, anunciando que tinha feito uma proposta de uma revista de divulgação científica. Começamos a reunir um grupo de pessoas interessadas, e, em fins de 1978, chegamos ao documento “Ciência Hoje – uma revista de divulgação científica”, que distribuímos entre os membros da comunidade científica, com surpreendente grau de concordância das pessoas, que viam na divulgação científica também uma maneira de buscar adeptos, e fazer propaganda da ciência e buscar apoios dos governos para a ciência. Apesar disso tudo, o projeto não avançou na época. ENNIO CANDOTTI_ Eu acrescentaria que se juntaram vários projetos de jovens participativos daquele tempo, que podemos chamar de resistência. Eu tinha acabado de chegar da Itália, onde, em 1973, vivi em Milão, trabalhando com a Sapere, uma revista de divulgação científica muito engajada politicamente. E voltei para o Brasil com o todo o gás para pensar em divulgação científica. Na época, Roberto e Alberto estavam, de fato, pensando em algo semelhante, e se juntaram várias correntes tanto de divulgação científica como de interdisciplinaridade, o que é algo que acho muito importante. Os irmãos e antropólogos Otávio e Gilberto Velho (1945-2012), o médico e geneticista Darcy Fontoura de Almeida (1930-2014), o historiador José Murilo de Carvalho… Tivemos vários aportes de cientistas sociais e de jovens pesquisadores de diferentes áreas. O clima político era favorável a essas manifestações porque havia resistência, havia oposição, havia contra quem trabalhar. 8 | CH 389 | JULHO 2022


CH_ O contexto político então teve grande peso na criação da revista…

EC_ Sem dúvida. Como Roberto e Alberto mencionaram, o passo central pode ter sido quando Roberto assumiu a Secretaria Regional da SBPC do Rio, iniciando um movimento que juntava gente de ciências, de divulgação, de política, desafiando também a SBPC a se renovar e a participar ativamente do movimento pela redemocratização. A SBPC era um tanto parada, centrada em São Paulo e dominada pelo físico Oscar Sala (1922-2010), um santo nome, pessoa muito querida, mas, na época, um entrave ao engajamento da SBPC nos movimentos pela redemocratização. O Sala era muito cauteloso e nos puxava as orelhas sempre que achava que estávamos fazendo alguma coisa que não era própria para SBPC. E nós não ouvíamos, fomos para frente e politizamos a SBPC. Sim, politizamos, essa é a palavra correta, tanto que, poucos anos depois, em 1979, mudamos o estatuto da SBPC para que ela tivesse dimensões nacionais, com participação de base mais ativa dos com secretários regionais e dos sócios. O mundo estava se transformando, e estávamos dando a nossa pequena contribuição. Esse movimento foi essencial para criar o clima que justificou todos os sacrifícios, as noites mal dormidas e os esforços necessários para criar uma revista, movendo montanhas. CH_ Depois de toda essa movimentação, como, de fato, se deu o lançamento da revista em 1982? Como vocês se prepararam?

RL_ Eu estava nos Estados Unidos fazendo pós-doc entre 1979 e 1982. O Ennio me ligou e disse: você precisa investigar aí o que os americanos estão fazendo de revista de divulgação científica. Eu lembro que fui a uma [redação], do grupo Time-Life, no 45º andar de um arranha-céu em Nova York, acho que em março de 1982. Não sei como consegui ser recebido pelo editor e expliquei a ele que estávamos criando uma revista [de divulgação científica no Brasil] e queríamos lançá-la em julho. Ele morreu de rir, me perguntou qual era a pauta, e eu não sabia. APG_ Você contou que ele respondeu “forget it”... [“esqueça”, traduzido do inglês] RL_ “Forget it”. Exatamente. E voltei de lá todo desanimado. Contei essa história para o Ennio, que já estava a todo vapor com o Lynaldo Cavalcanti (então presidente do CNPq), com quem ele conseguiu dinheiro para fazer o número zero. Na reunião da SBPC daquele ano, em Cam-

REINALDO GUIMARÃES, membro do conselho editorial do Instituto Ciência Hoje e professor do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada da UFRJ “Por que a CIÊNCIA HOJE apareceu em 1982, de onde veio aquela inspiração? Em 1982, a política científica brasileira mais institucionalizada era muito nova e muito recente O CNPq havia sido fundado em 1951, menos de 30 anos antes. Foi um momento em que a produção científica brasileira apareceu com muita força. O regime militar já estava em frangalhos, e isso estimulou também muito esse tipo de iniciativa. A comunidade científica estava empoderada para fazer coisas. Havia ainda o papel que a SBPC exercia naquele final dos anos 1970 e 1980 tanto na política científica como na política mesmo. Acho que tudo isso contribuiu para a criação de uma revista de divulgação feita no Brasil e assinada por cientistas brasileiros. Havia as revistas estrangeiras, mas isso era uma novidade aqui. No início, houve uma repercussão muito grande, e a revista teve um papel fundamental na divulgação científica, ainda que seja difícil de medir. Claro que certos acontecimentos com uma dimensão social muito grande têm um impacto maior. A pandemia de covid-19, por exemplo, fez com que a divulgação científica no Brasil e no mundo tivesse um impulso enorme, mas a Ciência Hoje cumpriu e cumpre um papel poderoso nessa história. E mais: hoje há esse personagem de divulgador científico, e acho que a Ciência Hoje teve um papel importante em formar gente dessa categoria.”

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ENTREVISTA

pinas, começamos a colher assinaturas. Eu já estava de volta, e tivemos uma oposição ferrenha da Carolina Bori (pesquisadora e psicóloga, 1904-2004). Ela dizia: “Como que vocês estão pedindo dinheiro para fazer assinatura se só têm o suficiente para publicar o número zero? A revista vai morrer!”. APG_ É preciso lembrar que foi dois anos antes disso, em 1980, que o projeto começou a se mover. A SBPC, então presidida pelo físico José Goldemberg, criou uma comissão para estudar a criação de uma revista de divulgação, com Darcy [Fontoura], José Reis, Henrique Krieger e eu. O grupo reuniu-se no Rio algumas vezes e fez contatos com editoras, especialmente com a Nova Fronteira; foi feito um modelo da revista. FinalÉ PRECISO LEMBRAR QUE O GOVERNO, mente, em 1982, surgiram as condições que viabilizaram o início do proESPECIALMENTE ATRAVÉS DO SERVIÇO jeto: o CNPq concedeu 10 mil cruzeiros, o suficiente para o primeiro NACIONAL DE INFORMAÇÕES (SNI), número. O então presidente da SBPC, Crodowaldo Pavan (geneticista, PRESSIONAVA AS EMPRESAS ESTATAIS 1919-2009), se entusiasmou com a ideia. E a diretoria da SBPC indicou A NÃO CONTRIBUÍREM COM ANÚNCIOS os quatro editores que iriam dirigir a revista: Darcy, Ennio, Roberto e eu. Alberto Passos Guimarães Um conselho editorial com nomes de diferentes estados foi criado. EC_ Pavan estava do nosso lado, mas o Sala não. Dizia que devíamos passar um tempo na Scientific American. Mas fizemos e, na reunião anual, vendemos 10 mil exemplares do número zero e ainda fizemos uma segunda edição. APG_ A revista foi um sucesso notável na reunião anual. Eu me lembro de muitas pessoas olhando e não acreditando naquela coisa bonita, feita no Brasil. Era uma surpresa mesmo. Apesar disso, me lembro de ter ido a Belo Horizonte participar de um evento para apresentar a revista e levei referências de revistas que pararam no número 1. Há infinitas revistas que brilharam uma única vez. Naquele momento, apesar de já termos conseguido dinheiro para um segundo número com a Finep, nós éramos candidatos a esse grupo seleto de revistas (risos). EC_ Acreditar que a revista não continuaria era uma reação muito própria de quem desconhecia que o nosso motor era político. Nós estávamos participando de um movimento de resistência e de afirmação da comunidade científica na construção da abertura. Naquele mesmo ano, lembram que houve o atentado do Riocentro? Estávamos em um momento muito sensível da política local e achávamos que a comunidade científica poderia e deveria participar com uma certa presença. CH_ A revista sofreu com a censura ou algum tipo de pressão do regime militar?

APG_ Na busca por anúncios das empresas estatais, encontramos pressões contrárias: é preciso lembrar que o governo, especialmente através do Serviço Nacional de Informações (SNI), pressionava as empresas estatais a não contribuírem com anúncios. Somente recentemente vimos materiais publicados pelo SNI divulgando entre os órgãos do governo a notícia do lançamento da CH! EC_ O Lynaldo levou um puxão de orelhas por ter financiado a revista, mas ele desconversava. Dizia que era uma questão de divulgação científica, que era preciso fazer. Sim, o SNI observava, mas o Golbery (do Couto e Silva, 1911-1987, um dos criadores do SNI e ministro do governo militar) conhecia o pai dos irmãos Velho e até assinou a revista. Tínhamos uma xerox do cheque assinado por ele (risos). Havia contradições. Respeitavam o que estávamos fazendo, mas nos observavam por estarmos militando por uma abertura mais avançada do que aquela que eles queriam ver realizada. Mas não sofremos censura. Esse clima não ocorria mais em 1982, só com grupos localizados como o do Riocentro, mas já estavam sendo isolados. Claro que com o atentado, tivessem obtido sucesso, a história poderia ser diferente, só que a bomba estourou no colo deles. Mas esse contexto é importante porque sem esse motor, esse engajamento, não teríamos alcançado a mobilização da comunidade científica em uma linha alternativa à da centralização paulista da SBPC. Pavan estava conosco e, no país, estava se preparando a abertura para 1985. Lembro que em 1984, publicamos o número sobre a Amazônia. E era um texto denso.

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CH_ Como já mencionaram aqui, o projeto de criar a Ciência Hoje teve oposição por haver conflito de forças na SBPC. Podem falar mais sobre isso?

APG_ A impressão que eu tenho é que esse conflito entre a SBPC centralizada em São Paulo e a SBPC com sedes no Brasil todo estava no pano de fundo sim. Mas, com o nascimento de Ciência Hoje, demos um passo tão grande que se abriu um horizonte tão mais amplo que essa discussão, que, apesar de não ter desaparecido, perdeu muito do sentido, porque tínhamos no conselho [editorial] representantes do Brasil todo, e que vinham às nossas reuniões. Além disso, a partir de 1985, passamos a ter sucursais, porque, como a sede ficava no Rio, a tendência era ter muitos autores daqui. As sucursais garimpavam autores em outros estados, o que deu um toque mais nacional, principalmente as sucursais de Belo Horizonte e Recife. RL_ Outro aspecto também é que, da mesma forma que a SBPC era centralizada em São Paulo, a Academia Brasileira de Ciências era centralizada no Rio. Então havia uma divisão do poder na comunidade científica. Acho que a existência da Ciência Hoje contribuiu muito para quebrar essa polarização dentro da comunidade científica e abriu o caminho para uma aliança entre essas duas entidades, que hoje funcionam com muita sintonia. São muito combativas juntas, pela democracia, pela política científica de Estado, e isso começou um pouco na nossa época. EC_ Eu só queria registrar que, em 1979, a mudança do estatuto da SBPC foi o passo-chave. Fomos até às seis horas da manhã, atravessamos uma noite, para mudar esse estatuto e dar ao conselho uma presença nacional, ser eleito por regiões, e não eleito só pelos mesmos nomes. Isso deu força às regionais. Ainda hoje há resistência ao conselho por representação regional. É incrível que passados 30, 40 anos as mesmas pessoas que naquela época se opunham à mudança do estatuto na direção ainda existam. Foi uma virada importante. CH_ Ter cientistas escrevendo para um público leigo foi um desafio? Ainda é? E a participação dos jornalistas?

APG_ Foi um lento aprendizado: muitos membros da comunidade científica, ao apoiar o projeto, viam imediatamente que era importante ter uma linguagem adequada ao público não especializado. Muitos especialistas desenvolveram essa capacidade de comunicação. A divulgação científica no Brasil não tinha um peso importante, destacando-se o trabalho pioneiro de José Reis (biólogo, 1907-2002). Chamava a atenção também, e negativamente, que o noticiário sobre ciência fosse principalmente baseado em telegramas de agências estrangeiras, descrevendo sempre desenvolvimentos alcançados em países estrangeiros, especialmente no mundo desenvolvido. Mas, hoje, cresceu muito o número de cientistas que escrevem para o grande público, em parte por contribuição da Ciência Hoje. E tanto dentro da Ciência Hoje e nos outros órgãos, a interação com os jornalistas foi vital. O número de cursos de informação e de divulgação científica explodiu nas últimas décadas, mudou muito esse quadro. E acho que demos uma contribuição para isso. Internamente, havia essa interação entre cientistas e jornalistas. EC_ Há três etapas. A primeira: a hipótese de que cientistas escrevam diretamente para o leitor, ou seja, do produtor ao consumidor, tinha a meta de dar à divulgação científica uma outra dimensão, que não estava sendo explorada na divulgação científica feita por jornalistas. Nunca fomos contra os jornalistas, pelo contrário. Nós, simplesmente, ocupamos outra raia, outra faixa que o jornalista não ocupava. Eu vou dar um exemplo: cientistas podem dizer que não sabem; jornalistas não podem. Ou o jornalista escreve aquilo que sabe ou não escreve. Enquanto que ao cientista é permitido colocar dúvidas no texto: “Olha, até aí vai, mas depois eu não sei…” Outro ponto: sempre tivemos o cuidado de recolher artigos dedicados a pesquisas em curso ou pesquisas avançadas. Evitávamos publicar artigos de revisão. APG_ Sim, a gente queria que os pesquisadores se colocassem dentro dos artigos. EC_ Desde o início tivemos dois jornalistas: o Argemiro Ferreira e o Sérgio Flaksman. Sérgio reescrevia os artigos redigidos de forma um tanto azeda pelos cientistas, e o Argemiro dava um tom mais dinâmico e mais jornalístico.

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ENTREVISTA

APG_ Mas é verdade que havia alguns cientistas que não toleravam isso, não queriam que mexessem e pronto. RL_ Uma coisa importante é que conseguimos construir uma área de convívio e de compartilhamento entre cientistas e jornalistas porque as práticas das duas categorias são diferentes por natureza. Não que um seja ruim ou o outro bom, mas, por exemplo, os tempos dos jornalistas são muito diferentes dos tempos dos cientistas. Os cientistas escrevem e reescrevem uma coisa para sair em três meses. O jornalista tem que escrever algo para ficar pronto em duas horas. E a gente conseguiu, dadas as características da revista, que era mensal, uma mediação, uma intermediação interessante do cientista com o jornalista. Outro aspecto é a linguagem, obviamente. O cientista escreve duro, técnico, difícil de compreender, e o jornalista quer o contrário. E a revista proporcionou um ambiente de tolerância, vamos dizer, com as manias dos dois lados. Do ponto de vista da comunidade científica, isso foi muito importante porque permitiu que o cientista compreendesse que o jornalista não é ruim porque tem que terminar um texto em duas horas, é da natureza do trabalho dele. Assim também, o jornalista aprendeu que o cientista tem um tempo. É como o Ennio disse, ele pode dizer não sei. Isso significa o seguinte: eu vou verificar e, para eu verificar, preciso de uns quatro ou cinco dias para olhar a literatura correspondente. E o jornalista não pode esperar. Essa dicotomia, o convívio desses dois personagens, eu acho que foi um ganho que tivemos com a Ciência Hoje. Depois apareceram várias outras revistas, a da Fapesp, as institucionais, a Superinteressante… Isso acentuou um pouco a compreensão dos cientistas de que eles tinham que se debruçar sobre essa tarefa de divulgar ciência. E aí apareceram cientistas escrevendo em vários lugares. O pioneiro foi o José Reis, que todos nós conhecemos, mas depois vários outros nomes começaram a se dedicar a escrever para a grande imprensa ou revistas de público amplo. E eu acho que a Ciência Hoje foi pioneira nessa direção, de como juntar as duas partes e criar um produto administrável. CH_ A revista chegou a ter uma edição com tiragem de 55 mil exemplares, mais do que alguns jornais diários impressos hoje. Ciência atraía tanta atenção?

APG_ Havia poucas alternativas à época ou ausência de alternativas. A revista era única e atraía muita atenção. Mas minha resposta é que isso foi um mistério, um milagre. Também havia o prestígio social da SBPC, que cresceu muito nos anos de contestação e no final da ditadura. EC_ Tínhamos revistas com grandes tiragens. Eram enviadas às bancas, em um grande sacrifí­cio, com a volta de um número grande de exemplares. Uma equação que hoje seria tratada de outra forma. Mas não tínhamos mesmo muita competição. A [editora] Abril tentou lançar uma revista e fracassou, acho que era uma adaptação da Discovery. A Superinteressante veio para substituí-la depois.

CRÉDITO: FOTO ZÔ GUIMARÃES

JOSÉ MONSERRAT FILHO, integrante do primeiro conselho editorial da revista e editor do Jornal da Ciência “O Brasil não tinha, naquela época, uma revista de ciência. A revista tinha novidades importantes como ter os próprios cientistas escrevendo, o que na época era muito raro. A CIÊNCIA HOJE foi um dos meios para promover as ideias da comunidade científica, que era muito desunida e não tinha organização – isso começou a mudar naquela época. O Jornal da Ciência [lançado em 1985] foi uma iniciativa minha. Eu propus ao Ennio Candotti a criação de uma espécie de um boletim que cresceu, depois, para ser um jornal. Foi muito bom. Exerceu um grande papel na SBPC. Era mais simples de fazer e chegava mais rapidamente às pessoas do que a revista.”

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CH_ Então a revista teve força em meio ao processo de redemocratização?

EC_ Era 1984, e havia um movimento pelas diretas crescendo, pela redemocratização. A Ciência Hoje estava na linha de frente dos manifestos pró-democratização. A revista estava bastante engajada, era objeto de atenção e de militância. E tinha a marca da SBPC, que, naquela época, graças a nossa interferência (e a Ciência Hoje contribuiu muito para isso), foi levada a participar desse movimento pela redemocratização. Está escrito nas páginas da revista, basta ver os números de 1983 e 1984, que são bastante engajados no processo que estava ocorrendo. Nós queríamos que a ciência tivesse um espaço no novo governo. E de fato se criou o Ministério de Ciência e Tecnologia. Não quero dizer que foi o resultado da nossa pressão AS DUAS REVISTAS – CIÊNCIA HOJE ou da Ciência Hoje, mas a nossa gota de colaboração foi dada e articuE CIÊNCIA HOJE DAS CRIANÇAS – NO lada, e com detalhes que queríamos colocar no programa de governo – ÂMBITO GLOBAL DA EDUCAÇÃO SÃO apesar do José Sarney, já que nossas negociações tinham sido com o APENAS INSTRUMENTOS. É PRECISO Tancredo Neves (1910-1985). Também é relevante a participação da SBPC FAZER UMA SÉRIE DE COISAS NA EDUCAÇÃO QUE NÃO PASSAM PELAS e da Ciência Hoje na Constituinte de 1988. Capítulos inteiros da ConstituiREVISTAS ção vieram da Ciência Hoje, eu tive oportunidade de escrever sobre isso recentemente. São trechos inteiros. Meio ambiente escrito pelo Angelo Roberto Lent Machado (médico e entomologista, 1934-2020, editor da sucursal de Minas Gerais); capítulo sobre índios, a violência, o papel da mulher... Tudo aquilo estava nas páginas da Ciência Hoje e foi quase que transcrito para Constituição. Tudo foi preparado regionalmente, com aportes de Pernambuco, do Pará, no Rio Grande do Sul, de Minas Gerais... O capítulo da C&T na Constituição e a permissão para criação de fundações de amparo à pesquisa foram bandeiras levantadas pela Ciência Hoje. CH_ Podem falar sobre a criação da Ciência Hoje das Crianças? Havia quem achasse que cientistas escrevendo para crianças não daria certo?

EC_ Há várias versões. A oficial é de que a revista foi criada e não se deu muita atenção aos que não queriam. A versão alternativa é que Gian Calvi (ilustrador, 1938-2016) e eu éramos leitores, quando pequenos, do Corriere dei Piccoli, um um tabloide que formou os pequenos na Itália. Então pensamos em fazer um Corriere dei Piccoli, e ter um bem-sucedido ilustrador infantil era chave. Alguns artigos eram uma adaptação dos textos escritos para a Ciência Hoje. E deu certo. APG_ Uma pessoa do nosso círculo, gente do bem, do nosso meio, quando viu essa proposta do Ennio, deu uma gargalhada, tão fora isso parecia do nosso mundo. Eu, pessoalmente, acho que a criação da Ciência Hoje das Crianças foi o momento mais importante da história da Ciência Hoje, depois da fundação da CH. Mas muitas pessoas sérias voltadas à divulgação acharam a ideia absurda. Fato é que a CHC ampliou muito o alcance das nossas publicações, nos deu material para ser usado diretamente no ensino e, acima de tudo, estimulou desde cedo o interesse por ciências em crianças em todo o Brasil. EC_ Hoje de manhã, nesta mesma sala que estou no MUSA (Museu da Amazônia, em Manaus), uma arqueóloga, colaboradora de bastante tempo, me confessou que cresceu lendo Ciência Hoje das Crianças. Ela ficou eufórica quando eu disse que tinha participado da criação da revista. É muito bonito saber que isso tem acontecido de fato, com testemunhos de pessoas que foram influenciadas. Isso funcionou. Para além disso, a Ciência Hoje das Crianças se tornou mensal em um momento em que a Ciência Hoje estava para falir. Ela foi uma invenção para criar um produto que o Ministério da Educação poderia comprar em número muito grande e, de fato, comprava um milhão de cópias para todas as escolas por ano. Com isso, tivemos um superávit suficiente para salvar o projeto Ciência Hoje e transitar por aquela época muito difícil da política financeira do país, num cenário de hiperinflação.

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ENTREVISTA

CH_ O Brasil ainda enfrenta muitos desafios na educação. Como veem as revistas nesse contexto?

RL_ As duas revistas – Ciência Hoje e Ciência Hoje das Crianças – no âmbito global da educação são apenas instrumentos. É preciso fazer uma série de coisas na educação que não passam pelas revistas. Elas são instrumentos que vão contribuir com o que se precisa fazer na educação. E, para isso acontecer, você precisa ter uma sintonia entre a edição das duas revistas e os gestores de educação. A gente se aproximou disso quando vendia (a Ciência Hoje das Crianças) para o FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), mas não me lembro de ter havido nenhum diálogo propriamente de conteúdo entre as partes. Seria muito interessante que essa política fosse englobada por uma discussão crítica, que os educadores se comunicassem com a gente. A inserção de um projeto de divulgação científica na educação depende de haver uma interação ativa entre os gestores, propositores de políticas públicas, com a produção das revistas, que são instrumentos, uma parte do processo, mas não todo. EC_ Concordo plenamente. Eu lembraria aqui que vivemos uma transição entre um sistema tradicional de educação e um novo sistema que ainda não surgiu com clareza, mas mudou completamente a forma como se realiza a divulgação científica e as relações entre o que se descreve e a realidade. A mediação virtual é uma glória e uma tragédia. Não sabemos ainda muito bem como lidar com isso. Vamos ver se nos próximos anos a gente consegue se renovar e acompanhar os tempos. RL_ Eu diria que o projeto Ciência Hoje tem que multiplicar suas formas de atuação. Devemos ter uma agressividade, uma ousadia maior no uso de mediadores digitais, de momentos e de ferramentas digitais para divulgar a ciência. Queiramos ou não, as crianças a partir de seis anos de idade estão usando celular, mesmo que seja o dos pais. CH_ Para terminar, o que a Ciência Hoje representa ou representou para vocês?

RL_ Eu me realizei muito com a Ciência Hoje. E me diverti. Eu diria que foi uma grande diversão, e, quando a gente se diverte se sentindo útil, é a melhor coisa do mundo. Acho que contribui para juntar pessoas, juntar colegas, o projeto é bonito – haja dopamina! – e é reconhecido. Acho que tivemos um papel histórico, não só pela implantação de um projeto de divulgação científica, mas de contribuição com a redemocratização do Brasil depois de uma ditadura de quase 20 anos. Também contribuímos para colocar a ciência como uma alternativa estratégica para o desenvolvimento do país, e isso é muito bom individualmente.

CRÉDITO: FOTO ZÔ GUIMARÃES

Otávio Velho, antropólogo, foi editor científico da Ciência Hoje e membro do Conselho Diretor do Instituto Ciência Hoje “A CIÊNCIA HOJE foi e continua sendo fundamental para a divulgação científica no país. Quando foi lançada, há 40 anos, não havia nenhuma revista desse tipo no Brasil, e até hoje continua a ser uma publicação muito importante. É difícil a relação entre os cientistas e o grande público. A revista consegue fazer isso muito bem. Uma das virtudes da CIÊNCIA HOJE foi juntar gente das mais diversas áreas. Conseguir essa multidisciplinaridade é raro. Eu, como cientista social, fico particularmente muito feliz e grato por ter me juntado a colegas de outras áreas. Fui um dos pioneiros na fundação da revista. Até hoje me lembro quando Roberto Lent foi ao Museu Nacional, onde eu trabalhava, me convidar para participar da então iniciada Secretaria Regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). A partir desse trabalho na regional, veio a ideia da revista. Lá, fiz amizades muito importantes, que mantenho até hoje. Então, a CIÊNCIA HOJE, para mim, foi importante em todos os sentidos”.

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FOI MUITO FORTE. FOI A FASE MAIS DOLOROSA QUE VIVI EM CIÊNCIA HOJE. DOLOROSA PARA MIM E PARA TODA A EQUIPE. TIVEMOS QUE INTERROMPER A PRODUÇÃO DAS REVISTAS IMPRESSAS, E CHEGAMOS A DEMITIR 2/3 DO NOSSO PESSOAL

Alberto Passos Guimarães

APG_ É um grande prazer, uma grande realização e um grande orgulho. É isso. EC_ Eu dividiria em três partes a resposta. Primeiro, é simpático ouvir de pessoas que se formaram lendo a Ciência Hoje e a Ciência Hoje das Crianças, confirmando que estávamos plantando sementes em terra fértil e que foi oportuno. Segundo, participar de um momento importante na vida política do país, particularmente o período pré-Constituinte. Foi muito curiosa a impressão que eu tive depois de ler os textos que, na época, nós não associávamos direito à Constituinte. Mas lendo, vejo que criamos um caldo em que todas essas questões foram tratadas e, muitas vezes, transcritas para a Constituição. E terceiro, é uma questão talvez mais pessoal: se tivesse que repetir a experiência, em vez de usar a terceira marcha e chegar a 60 quilômetros por hora, eu usaria a segunda marcha e ficaria a 20 quilômetros por hora. Os sacrifícios pessoais e familiares foram vorazes, vendo de longe, após 40 anos. RL_ Mas aí a Ciência Hoje não existiria porque foi graças a esse seu acelerador que a coisa toda aconteceu. Essa coisa de, para vencer a crise, fazer um projeto maior ainda.

CH_ Foram mencionadas algumas crises pelas quais o projeto passou. Alberto esteve à frente do ICH durante sua mais grave crise financeira, houve medo de que CH e CHC acabassem? E o que significa ver o projeto vivo?

APG_ Hoje fui escrever aqui anotações sobre essa pergunta a respeito da crise que nós pas­ samos e me deu uma emoção muito forte. Eu mal consigo falar agora, me vêm lágrimas nos olhos. Foi muito forte. Foi a fase mais dolorosa que vivi na Ciência Hoje. Dolorosa para mim e para toda a equipe. A crise surgiu quando o MEC parou de comprar as revistas que eram vendidas para distribuição em todas as escolas; dentro desse programa chegamos a vender 35 milhões de Ciência Hoje das Crianças. Tivemos que interromper a produção das revistas impressas, e chegamos a demitir 2/3 do nosso pessoal; a dívida do instituto chegou a alguns milhões. Conseguimos sair do buraco devido à dedicação dos/as funcionários/as que se organizaram para terceirizar o trabalho. E foi fundamental a iniciativa da CAPES de incluir nossas publicações no Portal de Periódicos; a criação do Projeto Ciência Hoje digital, para o Município de Osasco, a partir de 2017, permitiu finalmente pagarmos as dívidas e retornarmos gradualmente à vida normal. EC_ Isso transcende a emoção justa de Alberto, mas eu posso acrescentar que nunca foi diferente. A quantidade de vezes em que estávamos para fechar foi muito grande. Infelizmente, não vivemos em um ambiente em que se cumprem os acordos, em que se valoriza algo extraordinário como aquilo que está sendo feito na Ciência Hoje ou em outros projetos. RL_ Ainda bem que tínhamos 30 anos quando começamos… CH_ Não podemos deixar de falar de Darcy Fontoura, que também figura como um dos fundadores da Ciência Hoje…

RL_ Foi constante no projeto todo como um protagonista ativo desde o início. Além disso, ele tinha um conjunto de amizades entre artistas plásticos muito grande, e nós conseguimos, por exemplo, que o Carlos Scliar (1920-2001), um artista de primeira linha, ilustrasse alguns números da revista de graça. EC_ Ele era a ponte entre a geração que nos precedeu, apesar de não ser tão mais velho do que nós. Mas ele tinha o contato com uma geração um pouco mais velha, e ele foi muito importante para nos dar cobertura junto a esses interlocutores. RL_ Faltou a gente fazer a pergunta do que o Alberto significou para a Ciência Hoje. Nesses últimos anos, foi a sobrevivência, o renascimento, a perseverança. g CH 389 | JULHO 2022 | 15


DE VOLTA PRA CASA: DECOLONIZAÇÃO NA PALEONTOLOGIA Alexander W. A. Kellner_ Museu Nacional/ UFRJ Academia Brasileira de Ciências

A

primeira ilustração de um fóssil brasileiro foi publicada no livro Viagem pelo Brasil, dos naturalistas alemães Johann B. von Spix (1781-1826) e Carl F. P. von Martius (1794-1868). Ambos fizeram parte da comitiva da arquiduquesa austríaca Maria Leopoldina (1797-1826), quando ela veio para o país devido ao seu casamento com D. Pedro I. O material ilustrado em 1823 pode ser identificado como uma arcada de um mastodonte (parente distante extinto dos elefantes) do Pleistoceno (há aproximadamente 12 mil anos) e um peixe dos depósitos cretáceos (110 milhões de anos) da bacia do Araripe, no Nordeste brasileiro.

Ao longo dos anos, tanto durante o período colonial quanto depois da independência do Brasil, diversos outros pesquisadores estrangeiros visitaram o território nacional, interessados em desvendar as riquezas do novo mundo. Durante suas pesquisas, encontraram significativo material paleontológico, que acabou sendo levado para fora do país. Mas o mundo mudou e, graças à ação de muitos pesquisadores, o Brasil passou a ter várias instituições para abrigar essas riquezas, que evidenciam a diversificação da vida no tempo profundo. Hoje, a comunidade de paleontólogos, apoiada por pesquisadores e pessoas de diversas partes do mundo, tem procurado despertar a atenção para que fósseis relevantes não deixem mais o

país e as principais peças que já não estão mais aqui sejam trazidas de volta. Trata-se de uma espécie de decolonização da paleontologia, um movimento de repatriação de exemplares importantes que tenham sido retirados do Brasil à revelia, impedindo o enriquecimento da cultura e da pesquisa brasileiras.

A proteção da lei Não são poucos os exemplares brasileiros importantes que se encontram depositados no exterior. Dinossauros, pterossauros, insetos, peixes e plantas – a maior parte retirada de forma duvidosa do território nacional e, às vezes, com uma aparente conivência do órgão fiscalizador – foram descritos ao longo de décadas e enriquecem museus estrangeiros, principalmente na Europa e na América do Norte. Os depósitos brasileiros mais afetados são os encontrados na bacia do Araripe, curiosamente, de onde provém um daqueles dois primeiros fósseis brasileiros ilustrados. O motivo principal é a riqueza do material dessa região: numeroso, diversificado e, sobretudo, muito bem preservado, o que encanta pesquisadores e públicos em todo o mundo. No entanto, se, em determinado momento histórico, a saída de material paleontológico poderia encontrar alguma justificativa (mesmo que passível de questionamento), o mesmo não ocorre nos dias de hoje. A legislação vigente no Brasil regula o trabalho com fósseis no país e dispõe sobre sua proteção, com destaque para o Decreto-Lei n.º 4.146, publicado em 1942, durante o governo de Getúlio Vargas. De forma simplificada, como, pela Constituição Federal, os bens encontrados no subsolo pertencem à União, todos que queiram fazer extração de fósseis necessitam de uma autorização da Agência Nacional de Mineração, com exceção dos pesquisadores que estejam vinculados a uma instituição de pesquisa e ensino. A aranha fóssil Cretapalpus vittari, encontrada em rochas de 115 a 120 milhões de anos na bacia do Araripe, foi devolvida ao Brasil e agora está depositada no museu de paleontologia em Santana do Cariri, no Ceará CRÉDITO: FLAVIANA LIMA


CAÇADORES DE FÓSSEIS

Portanto, a maior parte dos fósseis brasileiros que se encontram fora do país é ilegal e pode ser objeto de apreensão ou de ações judiciais para repatriação. Apesar dessa situação irregular, fato é que muitos paleontólogos estrangeiros, talvez até por desconhecimento, continuam a publicar a descrição de novas espécies fósseis brasileiras com base em exemplares retirados ilegalmente do país e depositados no exterior.

O caso do dinossauro Ubirajara: um divisor de águas O que pode ser considerado o maior avanço dos últimos anos em relação à situação dos fósseis irregulares ocorreu após a descrição de um novo dinossauro procedente da bacia do Araripe, que havia recebido o nome de Ubirajara. Devido a questões éticas e legais, a revista Cretaceous Research, onde a nova espécie havia sido descrita por pesquisadores estrangeiros, retirou o trabalho de publicação, depois de uma análise criteriosa. Contribuiu para essa atitude da revista a enorme pressão de paleontólogos brasileiros e do público em geral, a partir das redes sociais (#UbirajarabelongstoBrazil), e a ação firme da Sociedade Brasileira de Paleontologia. Esse fato, até então inédito, fez com que diversas revistas científicas passassem a se preocupar com os aspectos legais dos fósseis brasileiros antes de aprovarem publicações sobre eles. O mesmo ocorreu com pesquisadores do exterior, que passaram a se preocupar com sua própria reputação. Após o caso do Ubirajara, dois novos episódios de repatriação acabaram ocorrendo, ambos com material da bacia do Araripe. O primeiro foi o da aranha Cretapalpus vittari, descrita em homenagem à cantora Pablo Vittar. Os pesquisadores envolvidos na descrição, quando alertados, não apenas devolveram o fóssil, como também 35 outros exemplares que estavam em uma instituição nos Estados Unidos. O segundo episódio envolveu um crânio do pterossauro Tupandactylus imperator, cuja descrição foi apenas aceita por uma revista após a devolução do exemplar ao Brasil. Iniciativas como essas enchem de esperança os que estão no front da luta para que peças importantes sejam devolvidas ao país.

Controvérsias e soluções Para certos pesquisadores, os fósseis devem ser considerados bens minerais e, dessa forma, poderiam ser minerados e comercializados. Há também alguns poucos que defendem que fósseis que estejam fora do país, mesmo que ‘exportados’ ilegalmente, contribuem para a divulgação de sua região de origem, podendo gerar alguma van-

O crânio do pterossauro Tupandactylus imperator, encontrado em rochas de 115 a 120 milhões de anos na bacia do Araripe, foi devolvido ao país e hoje está depositado no Museu de Ciências da Terra, no Rio de Janeiro CRÉDITO: RAFAEL COSTA DA SILVA

tagem econômica, como fomento do turismo local. Há ainda aqueles que defendem a inclusão obrigatória de pesquisadores brasileiros nos estudos de fósseis do Brasil depositados no exterior. Essa, no entanto, é uma ideia para lá de controversa, pois coloca as parcerias científicas como moeda de troca para ‘regularizar’ fósseis. A meu ver, tais posições são equivocadas e caminham na contramão das iniciativas para a recuperação de material importante fora do país. Felizmente, não representam a maioria dos paleontólogos brasileiros. Apesar das grandes dificuldades pelas quais passa a ciência brasileira, fato é que, ao longo de décadas, o Brasil tem investido na formação de recursos humanos para a pesquisa paleontológica, com inúmeras bolsas de pós-graduação, recursos para projetos e abertura de vagas em centros de pesquisa, particularmente nas universidades federais. Claro que ainda há muito por fazer, sobretudo em termos de obtenção de investimentos expressivos para atividades de campo, como coleta e preparação de novos exemplares. Mas a realidade é que o país reúne diversas instituições com possibilidade não apenas de abrigar exemplares, como também – e sobretudo – de desenvolver pesquisa científica relevante. Diante desse cenário, a Sociedade Brasileira de Paleontologia deveria ser mais proativa, sobretudo esclarecendo a situação ilegal dos fósseis depositados fora do país e promovendo campanhas de conscientização junto à comunidade internacional. g CH 389 | JULHO 2022 | 17


CIÊNCIA E CULTURA POP

ZUMBIS DO MUNDO REAL

Muito além dos filmes de terror, animais infectados com microrganismos parasitas podem perder o controle de seu corpo e viver escravizados e sem vontade própria Lucas Mascarenhas de Miranda Físico e divulgador de ciência no canal Ciência Nerd Universidade Federal de Juiz de Fora

OS FILMES DE ZUMBIS se consolidaram como um subgênero cinematográfico, dentro do gênero de terror, no final da década de 1960, com o lançamento de A noite dos mortos-vivos (1968), do cineasta norte-americano George Romero (1940-2017). O sucesso foi tão grande que a fórmula vem sendo repetida até os dias de hoje. Nesse período, surgiram filmes com diferentes explicações para a origem dos zumbis (desde as mais mágicas e esotéricas até as mais científicas e tecnológicas). Também foram variadas as características físicas atribuídas a esses seres (uns são mais lentos e estúpidos, outros são mais rápidos e espertos). Mas o que parece ser uma constante é que o zumbi representa um ser escravizado, um indivíduo sem qualquer vontade própria. Um ser morto, mas encarcerado

em um corpo animado, que existe com a única finalidade de se alimentar e se reproduzir. Você pode achar que não há nada no mundo real que se assemelhe a essa descrição. Mas a verdade é que seres zumbis podem ser muito mais reais do que você imagina.

Formiga-zumbi Se uma formiga está caminhando e pisa em um esporo de um fungo, seus dias podem estar contados. Descoberto pelo naturalista britânico Alfred Russel Wallace (18231913), o fungo Ophiocordyceps unilateralis é conhecido por transformar formigas em verdadeiros zumbis. Ao entrar em contato com a formiga, o esporo do fungo invade seu organismo e se multiplica em várias novas células, que se alimentarão do inseto sem causar sua morte. Durante uma ou duas semanas, a formiga segue exercendo suas funções no ninho, embora apresentando movimento trêmulo e errático, escalando e caindo de arbustos, devido a convulsões, como descrevem pesquisas científicas.

Os filmes de zumbis são um subgênero de grande sucesso no cinema. Algumas características desses seres podem ser encontradas em animais infectados por parasitas CRÉDITO: DIVULGAÇÃO

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Formiga morta pelo fungo Ophiocordyceps CRÉDITO: ADOBE STOCK

Em certo momento, as células do fungo se comunicam quimicamente com o cérebro da formiga, obrigando-a a subir em uma planta e morder firmemente uma folha. Em seguida, o parasita termina de matar sua hospedeira e coloniza seu corpo completamente. Depois de alguns dias, o fungo faz brotar da cabeça da formiga uma estrutura denominada ascocarpo (que popularmente chamamos de cogumelo). Essa estrutura irá produzir e liberar novos esporos, transformando o solo em um campo minado para novas formigas. Como relatam pesquisadores, em algumas áreas, é possível encontrar mais de 26 cadáveres de formigas por metro quadrado. Nesses cemitérios, a maior parte das formigas mortas está a 25 centímetros de altura do chão, em locais onde a temperatura e a umidade favorecem a produção e dispersão dos esporos. Nos últimos anos, o Ophiocordyceps ficou ainda mais famoso graças à franquia de jogos The last of us. No game, que se passa em um mundo pós-apocalíptico, existe um fungo capaz de infectar uma pessoa e, depois de certo tempo, atingir seu cérebro. Diferentemente do que acontece com as formigas, o fungo do jogo realmente assume o controle do cérebro do indivíduo, deteriorando sua racionalidade, seus sentidos e até sua forma física.

Caracol-zumbi e sua fantasia de lagarta Se um dia você encontrar um caracol com as duas antenas maiores bem mais espessas e coloridas do que geralmente são, é bem provável que esse molusco esteja sendo parasitado por um platelminto chamado Leucochloridium paradoxum. Quando o caracol ingere as fezes de um pássaro infectado, os ovos do verme eclodem dentro dele. As larvas, então, se desenvolvem até o estágio de esporocisto e se dirigem para a antena do animal (também chamada de tentáculo ocular). O esporocisto é uma estrutura que se assemelha a uma bolsa longa e inchada que produz esporos em seu interior. Desse modo, a antena do caracol, que geralmente é fina e de uma cor discreta, dá lugar a uma bolsa comprida, espessa, com faixas coloridas e que pulsam, pelo movimento das larvas que a habitam. Essa transformação parece ser um caso de mimetismo agressivo, no qual o parasita faz com que o caracol se assemelhe a uma lagarta ou animal similar. Pesquisas mostram que o golpe final do Leucochloridium é exercer uma espécie de controle mental sobre o caracol e levá-lo a se posicionar em uma região bem iluminada e aberta (algo que o molusco jamais faria espontaneamente). Por CH 389 | JULHO 2022 | 19

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CIÊNCIA E CULTURA POP

se assemelhar a uma lagarta, o caracol vira presa fácil de um pássaro, que é o hospedeiro definitivo do platelminto e onde ele poderá concluir seu ciclo reprodutivo e iniciar novamente o pesadelo dos caracóis.

Gafanhoto kamikaze Se um grilo ou gafanhoto ingerir um inseto infectado com larvas do verme Paragordius tricuspidatus, ele servirá de hospedeiro temporário para esse verme. Nesses artrópodes, o P. tricuspidatus se desenvolverá até seu último estágio, que precisa ocorrer na água. Para alcançar a água, o parasita exerce um controle sobre o gafanhoto, fazendo-o buscar e saltar na água, sem pensar duas vezes. O gafanhoto se afoga e o verme, finalmente, consegue se libertar do antigo hospedeiro e se reproduzir.

Caracol infectado pelo platelminto Leucochloridium CRÉDITO: ADOBE STOCK

Parasita silencioso Uma das zoonoses mais comuns em todo o mundo é a toxoplasmose. Essa doença é causada pelo protozoário Toxoplasma gondii, que tem como hospedeiros definitivos os gatos e outros felinos, mas pode infectar outros animais, incluindo o ser humano, por meio da ingestão de alimentos e água contaminados. A toxoplasmose também pode ser transmitida da mãe para o feto através da placenta. Estima-se que mais da metade da população brasileira possua a doença, que pode permanecer assintomática por toda a vida do indivíduo. Os que mais sofrem com ela são as pessoas com baixa imunidade, as que passam por tratamento quimioterápico contra o câncer, as recém-transplantadas e as gestantes. Nos casos mais graves, a toxoplasmose pode provocar lesões oculares, microcefalia, hidrocefalia, alterações motoras, entre outros sintomas. Existe uma curiosa relação entre esse protozoário e o cérebro. Na Universidade de Oxford (Reino Unido), pesquisadores descobriram que ratos infectados pelo microrganismo perdem o medo do odor de gatos e podem até se sentir atraídos por um feromônio (hormônio associado à sexualidade) presente na urina dos felinos. Com isso, os ratos se expõem mais a esses predadores e, por consequência, são mais facilmente predados. Graças a essa manipulação cerebral, o rato serve de veículo para que o Toxoplasma chegue a seu hospedeiro definitivo. 20 | CH 389 | JULHO 2022

Além de zumbificar os ratos, há fortes evidências de que esse protozoário provoque alterações mentais em seres humanos. Nas últimas décadas, muitas pesquisas vêm mostrando que a toxoplasmose pode ser um importante fator de risco para algumas doenças psiquiátricas, como a esquizofrenia, a bipolaridade, a doença de Alzheimer, a depressão, a epilepsia, entre outras. Por se tratarem de doenças multifatoriais, é difícil dizer o real papel da toxoplasmose no desenvolvimento delas, mas só o fato de haver correlação entre essas enfermidades e a presença do Toxoplasma, já é um grande alerta vermelho e um indicativo de que precisamos de mais pesquisas na área.

Apocalipse zumbi? Por sermos uma espécie bastante complexa, é muito difícil que um microrganismo seja capaz de assumir o controle do nosso corpo e nos forçar a agir de maneiras estranhas e que facilitem o desenvolvimento e a reprodução desse parasita. Mas seres capazes de causar danos ao nosso cérebro (e provocar alterações importantes no nosso comportamento e até na personalidade) não são nada fictícios. Por isso, recomendo sempre a leitura do texto ‘Será que a humanidade sobreviveria a um apocalipse zumbi?’, publicado na edição 349 da Ciência Hoje. Lá, você terá uma ideia de como a humanidade poderia se preparar no caso de esse apocalipse acontecer. g


GEOINFORMAÇÃO

ADIVINHA ONDE ESTOU!

Carla Madureira Cruz_Departamento de Geografia Instituto de Geociências, Universidade Federal do Rio de Janeiro

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im, é possível viajar e conhecer lugares sem sair de casa. Eu, particularmente, prefiro sair, mas isso nem sempre é possível. Existem limitações individuais e situações que impõem soluções criativas de mobilidade. Recentemente passamos por um longo período assim, o da pandemia. E foi durante a quarentena que o desenvolvedor estadunidense Paul McBurney Jr. criou um projeto chamado City Guesser, para ajudar as pessoas a fugirem do tédio e ainda se sentirem viajando. Conhece?

No endereço https://virtualvacation.us/guess você pode acessar este projeto e entrar no jogo de adivinhação da cidade que está sendo apresentada por meio de fotos ou vídeos. Imagina poder usar vários símbolos e aspectos culturais que possam servir de dicas para identificar a cidade que está sendo filmada! O sistema utiliza imagens obtidas a partir do terreno, como se você mesmo estivesse caminhando pelas ruas da cidade. O participante faz suas tentativas de marcação através de um mapa, no qual é possível navegar com zoom e perceber detalhes através de outro ponto de vista, fundamental para a linguagem cartográfica, o de cima! As dicas podem ser muitas e diferentes. Aparecem na forma de construções clássicas, estações de trem ou metrô, eventualmente bandeiras, placas de identificação, vestimentas, tipos de carros etc. O exercício é viciante, principalmente se é feito em grupo com o apoio da internet ou ainda com amigos reunidos fisicamente. Esse recurso em sala de aula promete! Além do exercício de buscar dicas que sejam importantes no processo de identificação/reconhecimento de um

lugar, vários padrões podem ser ressaltados durante o exercício, de modo a reforçar a importância dos aspectos culturais e estruturais de um país ou cidade. Mas o jogo exige uma definição mais precisa do lugar em questão, por isso a leitura do mapa em associação direta com a paisagem urbana que está sendo apresentada é fundamental. Entender os elementos relevantes de uma área e sua posição no espaço possibilita que, em um nível maior de detalhe, seja identificado o lugar que está sendo percorrido com maior precisão. Afinal, sua pontuação final depende da distância entre o lugar correto e o que você indicar! E quem não quer dizer ‘bingo’? Para iniciar, é possível selecionar a abrangência (ou limites) da área que deverá ser buscada, ou o grau de dificuldade das dicas. O recorte de busca pode ser um determinado país, um continente ou até o globo inteiro! O negócio é tentar ir fechando a área de busca cada vez mais aproveitando bem as dicas. Entender as relações topológicas e as formas de representação espacial de elementos como rios, pontes, grandes edificações, estações de trem etc., é o que realmente ajuda na navegação e na pontaria final. As formas de exploração do jogo podem ir além da adivinhação, pois é possível explorar a comparação entre diferentes lugares a cada rodada. Por fim: que tal participar desta construção colocando seus próprios vídeos à disposição? Enquanto nos deslocamos, podemos pensar nesta brincadeira de gato e rato e tentar também filmar dicas para que outros descubram onde estivemos. Para isso, basta fazer upload no Youtube com o título ‘City Guesser Video’, incluindo o nome da cidade. Agora lá vai a minha dica para você: coloque um pin no globo para marcar os lugares que visitar! g

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Celebração da Epifania, aspectos do desfile - 8 de janeiro de 1995 - Porto Novo, Benim (2) FOTO MILTON GURAN / LABHOI/UFF

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LIBERTOS DE VOLTA À ÁFRICA Durante o século 19, libertos africanos e seus descendentes viajaram em direção à África desde diferentes regiões das Américas. Por muito tempo, acreditou-se que, no Brasil, o único ponto de partida era Salvador, Bahia. Pesquisa, iniciada depois da descoberta de um documento ao acaso, revela que o Rio de Janeiro também foi um importante porto desse caminho de volta. A investigação, ainda em curso, ampliou as informações sobre as motivações e as condições que marcaram a história do “retornados”. Monica Lima

Laboratório de Estudos Africanos (LEAFRICA) Instituto de História Universidade Federal do Rio de Janeiro

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o dia 11 de maio de 1836 saíram do porto do Rio de Janeiro em direção à Costa da Mina, litoral ocidental da África, numa barca de nome Maria Adelaide, 234 pretos e pretas libertos – o que, no vocabulário da época, era o mesmo que dizer que essas pessoas eram africanas. Uma parte desse grupo viajava sem acompanhante, outros com a família. No livro da Polícia da Corte em que constam as saídas de navios com a relação de passageiros brasileiros e estrangeiros, a lista de nomes desses homens e mulheres que voltavam para seu continente de origem vinha numa folha azul solta, à parte. O registro feito no próprio livro só fazia referência ao número total de libertos, trazia o nome do mestre da embarcação e de outro passageiro, um português, que viajava acompanhado por seu filho menor. Encontrar esse documento numa tarde dedicada à pesquisa no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, em busca de informações sobre a movimentação de mercadorias que eram transportadas do Brasil para a África durante o século 19, foi um daqueles momentos da vida de uma historiadora em que o acaso oferece um presente. Não sem razão os arquivos históricos causam tanto fascínio: as caixas amareladas e os conjuntos de do-

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MUITAS VEZES, NA PROCURA POR DETERMINADAS INFORMAÇÕES, SÃO ENCONTRADOS DADOS OU PISTAS QUE NÃO ESTAVAM SENDO INVESTIGADOS, E ISSO PODE MUDAR TUDO. TEM ATÉ UM NOME PARA ISSO: SERENDIPIDADE


cumentos embrulhados em papel pardo podem sempre surpreender com seu conteúdo e revelar histórias até então desconhecidas. Muitas vezes, na procura por determinadas informações, são encontrados dados ou pistas que não estavam sendo investigados, e isso pode mudar tudo. Tem até um nome para isso: serendipidade. A surpresa ao ler o documento não era relativa ao retorno de libertos do Brasil para a África no século 19. Isso já se sabia – havia uma bibliografia, não exatamente abundante, mas conhecida por quem estuda a história africana desse período. A novidade era encontrar um retorno dessa natureza a partir do porto do Rio de Janeiro. Até então, somente havia notícias dessas viagens a partir do porto de Salvador. As conexões entre a Bahia e a Costa da Mina, a presença de uma comunidade de brasileiros estabelecida naquele litoral pelo menos desde fins do século 18, a existência de comerciantes com representação nos dois lados do oceano e até mesmo vínculos da administração colonial portuguesa, unindo a capital baiana e fortalezas no Golfo do Benin, explicavam esse destino dos retornos. Mas nada até então havia sido pesquisado sobre as rotas do chamado refluxo do tráfico a partir das terras cariocas. A pesquisa começou com essa descoberta, e as perguntas que dela desdobraram – não há nada melhor, para uma investigação histórica, do que o surgimento de novas questões a serem indagadas às fontes. O tema inicial das mercadorias em trânsito atlântico deu lugar a um projeto sobre os retornos de libertos do Brasil à África no século 19, incluindo os grupos que partiram do porto do Rio de Janeiro. A consulta a muitos conjuntos documentais em diferentes arquivos, em diversos países, trouxe novos dados e ainda mais perguntas.

Praia de Uidá, Benim, 1994 FOTO MILTON GURAN / LABHOI/UFF

Os retornados

Durante o século 19, libertos africanos e seus descendentes partiram em direção à África desde diferentes regiões das Américas, em especial saindo do Brasil. Esses movimentos migratórios vinham ocorrendo mesmo antes, no século 18, mas em menor número e como parte de trajetórias principalmente individuais. Já no século 19, os retornos a partir do Brasil muitas vezes se fizeram de forma coletiva, em embarques de grupos numerosos de africanos, entre os quais muitos partiam acompanhados de membros de suas famílias e de pessoas próximas e na mesma condição. A história desses retornos e das pessoas neles envolvidas está documentada em diversas fontes de época, tais como os livros com controle de movimentação portuária, registros de passaporte, notícias de jornal que anunciavam as partidas dos libertos, relatos de viagem, contratos firmados entre grupos de retornados e capitães de navio e diferentes tipos de correspondência – de autoridades e particulares. E também nas evidências, que chegam aos tempos atuais, da presença das comunidades que foram se formando no continente africano a partir dos retornos e que marcaram sua identidade com base em experiências atlânticas e da diáspora nas Américas. Os libertos que volta| 389 | JULHO 2022 | 25

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ram para a África a partir do Brasil no século 19 construíram identidades referenciadas na cultura brasileira: uso da língua portuguesa abrasileirada/africanizada, nomes e sobrenomes, hábitos, religiosidade católica e até mesmo as festividades. Em sociedades africanas com marcadores identitários vinculados ao parentesco reconhecido a partir de um ancestral comum, além de idiomas e cosmologias religiosas, os retornados, que não compartilhavam esses elementos, formaram as bases de seu pertencimento à comunidade que criaram naquilo que viveram e aprenderam no Brasil. Nessa elaboração, ressignificaram inclusive a memória da escravidão, retirando o sofrimento e a dor do eixo constitutivo dessa experiência. Valorizaram os conhecimentos que acumularam e tudo que conseguiram alcançar, inclusive a chance de voltar. O antropólogo Milton Guran, brasileiro responsável pela mais detalhada pesquisa até hoje existente sobre a comunidade de retornados conhecida como os agudás do Benin, chamou esse processo de “bricolagem da memória”. Diversos outros estudos foram realizados, ao longo da segunda metade do século 20, sobre o tema dos retornos de libertos à África e, em sua maioria, apresentaram como ponto de partida a existência de grupos de retornados na costa ocidental africana, os quais chamam a atenção pela forma como se constituíram e pela maneira como se colocaram nas sociedades locais. Os grupos conhecidos como agudás no Benin, os tábon de Gana e Togo ou os brasileiros da Nigéria resultam dos processos de formação dessas comunidades e assim são nomeados por seus integrantes. Aliás, existem até hoje e acionam esse passado histórico para se identificar como parte de um mesmo grupo.

Casa da Família Amaral. Preparação para o desfile de véspera da missa de celebração do N. S. do Bonfim - 21 de janeiro de 1995 - Porto Novo, Benim FOTO MILTON GURAN / LABHOI/UFF

A história que a História contava

A produção historiográfica, até o início do século 21, vinha demonstrando maior preocupação com as comunidades tal como se constituíram na costa ocidental africana do que com o processo de retorno em si. O encontro com os grupos que reivindicavam uma herança brasileira na África, celebrando o Senhor do Bonfim, o bumba-meu-boi e o Carnaval, e cantando em português, fascinou gerações de pesquisadores. Os estudos voltaram-se para as dinâmicas de formação dessas identidades e sua relação com o mundo atlântico e com o tráfico de africanos escravizados. Por sua vez, a dimensão demográfica desses retornos, a constituição dos grupos que realizaram as viagens, suas motivações ao longo do tempo e as condições para a realização das viagens foram relativamente pouco abordadas, ainda que presentes. Identificar esses aspectos demanda pesquisa sobre vários tipos de fonte em diversos arquivos nas diferentes margens do oceano, para se tentar obter as informações e estabelecer as relações entre elas. Investigações dessa natureza podem iluminar aspectos até então pouco visíveis no tratamento do tema. Um deles é a presença de redes sociais de parentesco, vínculos religiosos e dependência entre os grupos de retornados, a partir da descoberta de conexões entre eles. Tais dados somente podem ser obtidos por meio do cruzamento das informações de diferentes fontes. Elas incluem desde as listas dos embarques até as informações pessoais dos viajantes que possam ser localizadas em registros de casamento, batismo e inventários, ou em documentos da polícia local. De outra parte, os contratos de viagem que os grupos mais numerosos de retornados firmavam com os capitães de navio que os levariam de volta à África e suas exposições de mo26 |

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A Rota dos Escravos - fevereiro de 1995 Uidá, Benim FOTO MILTON GURAN / LABHOI/UFF


tivos para pedir apoio nessas empreitadas podem revelar as condições das viagens e os conteúdos das justificativas elaboradas com fins de se conseguir solidariedade. Os retornos de libertos do Brasil para a África Ocidental no século 19 foram tratados pela historiografia durante certo tempo como um processo com caráter geral semelhante durante seu período de realização. Havia uma narrativa muito marcada pelo caráter quase compulsório, ou pelo menos indesejado, desses movimentos de volta à África. Os grupos teriam decidido regressar após o endurecimento de todas as formas de controle sobre a circulação e o trabalho de africanos, fossem alforriados ou cativos, bem como das punições frente a qualquer sinal de insurgência, em especial após aprovação da lei de 1835 – conhecida como “lei nefanda”, que estabelecera pena capital para vários casos. O retorno, portanto, seria uma saída para os libertos africanos, vigiados, perseguidos, considerados potencialmente perigosos por sua liberdade de movimentação. Essas pessoas não tinham os direitos de todos os cidadãos livres no Brasil e, sendo negros, tinham que provar o tempo todo sua condição de libertos.

Novas fontes, outras histórias

A pesquisa iniciada com a descoberta da lista de libertos da barca Maria Adelaide trouxe alguns outros aspectos às análises sobre esses retornos à África. Um deles é a existência de fases distintas nos movimentos migratórios: a partir do século 18 até aproximadamente a década de 1820, em que funcionam as conexões por meio do tráfico atlântico de africanos escravizados e se caracterizam por viagens de pequenos grupos sendo, sobretudo, individuais; a partir de 1830, em especial após 1835, em grupos maiores e motivadas por perseguições e condições mais restritivas impostas aos libertos no Brasil; depois da extinção do comércio escravista no Brasil, em grupos tanto numerosos como pequenos, apresentando razões que revelam tanto a intenção de instalarem-se na costa | 389 | JULHO 2022 | 27

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africana numa posição privilegiada (na qualidade de parceiros dos novos interesses europeus), como o desejo de regresso com motivos pessoais e religiosos – neste último caso, com a possibilidade de ir e, eventualmente, voltar. Essas migrações com motivações religiosas foram especialmente estudadas por uma pesquisadora radicada na Bahia chamada Lisa Castillo. Já os projetos de retorno enunciando estratégias para constituírem no continente africano grupos de apoio no combate ao tráfico atlântico de escravizados e na promoção do chamado comércio lícito foram trazidos por esta pesquisa iniciada pelo registro de embarque da barca Maria Adelaide. A predominância do enfoque das pesquisas sobre as comunidades de retornados do Brasil no Golfo do Benin também levou a uma redução na identificação dos lugares de partida e destino. O porto de Salvador foi, sem dúvida, o lugar de embarque majoritário durante todo o período das viagens a partir do Brasil, porém, do Rio de Janeiro, partiram diversos navios levando grupos de africanos e seus descendentes ao continente na mesma época. E os locais para onde se dirigiam não se restringiram à costa ocidental africana, mas também ao litoral da região Congo-Angola. Além dos libertos do Maria Adelaide, na pesquisa foram encontrados outros retornos numerosos a partir do porto do Rio de Janeiro. Em 1840, o brigue Feliz Animoso partiu da cidade levando 30 pretos libertos, passando pela Costa da Mina (África Ocidental) e Benguela. E, em 1851, outro brigue, de nome Robert, levou 63 pessoas africanas libertas, numa viagem que ainda iria passar por Salvador para recolher outros passageiros. O grupo de libertos firmou um contrato detalhado com o capitão do navio, transcrito por dois missionários quacres estadunidenses no Rio de Janeiro, que haviam sido contatados para verificar o compromisso do capitão da embarcação. Uma correspondência de 14 de agosto de 1851, guardada nos arquivos do Foreign Office britânico, trouxe uma fonte de diferente tipo e preciosa: a carta de um grupo que se autodefinia como “libertos congo”, que solicitava apoio para voltar à África, mais exatamente para Cabinda (África Centro-Ocidental), e apresentava suas razões e compromissos relativos a esse retorno. Este documento foi encontrado por outra historiadora que, sabendo do trabalho em curso, o enviou (obrigada sempre, Beatriz Mamigonian) para esta pesquisadora. Esta correspondência, assinada pelo líder do grupo, o liberto Joaquim Nicolau de Brito, constituiu importante fonte para trazer outros aspectos: o retorno como projeto e em diálogo com as transformações no mundo atlântico em meados do século 19. A pesquisa segue em processo, e ainda há muito o que se conhecer sobre os caminhos que tornaram possível a organização dessas viagens do lado de cá do oceano. Sabemos que no Brasil nunca houve apoio oficial a esses retornos, diferentemente do que houve em outras regiões das Américas. Os que voltaram a partir do Brasil em retornos voluntários construíram suas condições para empreender a volta à África. São histórias extraordinárias, de pessoas que nos fazem relembrar a força dos projetos coletivos de nossos antepassados. g

Senhora da Família Martins - 1995 - Cotonu, Benim FOTO MILTON GURAN / LABHOI/UFF

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LEIA

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DAVIES, P. J. Plant Hormones. 3ª edition. Springer, Dordrecht. 802 p., 2010. KERBAUY, G.B. Fisiologia Vegetal. 2ª edição. Guanabara Koogan, 446 p., 2012. LARCHER, W. Ecofisiologia Vegetal. Editora APGIQ, 550 p., 2000. MELO, H. C. Plantas: Biologia Sensorial, Comunicação, Memória e Inteligência. 1ª edição. Editora Appris, 365 p., 2021. RAVEN, P.H.; EICHHORN, S.E.; EVERT, R.F. Biologia Vegetal. 8ª edição. Guanabara Koogan, 867 p., 2014. TAIZ, L.; ZEIGER, E. Fisiologia Vegetal. 5ª edição. Artmed, 719 p., 2013.


CONEXÃO CIÊNCIA E SAÚDE

COMO UMA BACTÉRIA PODERÁ NOS PROTEGER DA DENGUE? Luciano A. Moreira_ Instituto René Rachou >

Fundação OswaldoCruz | World Mosquito Program Brasil

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ma vez por semana, um veículo com as palavras ‘Saúde Fiocruz’ estampadas no capô passa na minha rua, e um tubo cheio de mosquitos é aberto, começando um ciclo para proteger o nosso bairro. No início, achamos estranho, pois como se consegue reduzir a incidência de doenças transmitidas por mosquitos, como dengue, Zika e Chikungunya, liberando mais mosquitos? Esse é o método Wolbachia, um projeto inovador que utiliza uma bactéria muito comum no ambiente – a Wolbachia – e que, quando presente no mosquito Aedes aegypti, impede que os vírus se repliquem nele, reduzindo a chance de transmissão dessas doenças. A intenção é que os Aedes aegypti liberados se reproduzam com os já existentes no ambiente, gerando, aos poucos, uma nova população de mosquitos, todos com Wolbachia.

O método Wolbachia integra o World Mosquito Program (WMP), que está presente em 11 países e trabalha para proteger a população das doenças transmitidas por mosquitos (as chamadas arboviroses), sendo conduzido no Brasil pela Fundação Oswaldo Cruz, com apoio do Ministério da Saúde. O método é seguro, natural, autossustentável e sem fins lucrativos e apresenta potencial para alcançar impacto significativo na saúde pública em áreas endêmicas para esses vírus. O projeto se inicia quando as equipes do programa interagem com a população e instituições parceiras para difundir informações sobre a iniciativa e promover o engajamento da comunidade onde ela será implementada. Nessa etapa, são aplicadas pesquisas que evidenciam o entendimento e a aceitação da população local sobre o método. Além disso, é constituído um comitê local – chamado Grupo Comunitário de Referência – que acompanha todas as ações realizadas na localidade, e são abertos canais de comunicação com a população, por telefone, e-mail e mídias sociais. As ações de engajamento são complementadas por um projeto-satélite, denominado Wolbito na Escola, que dissemina conteúdos relacionados ao manejo ambiental e controle de vetores, incluindo um e-book para professores com material para várias faixas de idade.

Somente depois desse processo e da aprovação da população é que as liberações de mosquitos são iniciadas. Elas ocorrem durante cerca de quatro a seis meses em determinado bairro, e podem ser realizadas por meio da soltura de mosquitos adultos com Wolbachia ou da instalação de dispositivos contendo ovos de mosquitos com a bactéria. Para saber se os Wolbitos (nome dado aos mosquitos com Wolbachia) estão se estabelecendo no bairro, são instaladas armadilhas para ovos ou mosquitos adultos em casas ou estabelecimentos comerciais e, pelo menos uma vez por mês, o material coletado é testado por técnicas moleculares para checar a prevalência de Wolbachia. A partir daí, podemos inferir sobre a redução de casos naquela localidade que recebe o método. Em parceria com os municípios, realizamos análises das incidências de arboviroses, com base no histórico de casos das localidades, e comparamos com os dados após a implementação do método. E já estamos colhendo bons frutos. Dados da cidade de Niterói, no Rio de Janeiro, mostraram que houve redução de 69% na incidência de casos de dengue e 56% nos casos de Chikungunya em áreas que receberam os Wolbitos. Esses resultados são corroborados por dados de um estudo controlado realizado em uma cidade da Indonésia que concluiu que áreas onde foram liberados mosquitos com Wolbachia tiveram uma redução de 77% no número de casos de dengue e de 86% nas hospitalizações causadas pela doença. Hoje o método Wolbachia já está presente em cinco municípios do Brasil – Rio de Janeiro, Niterói, Belo Horizonte (MG), Campo Grande (MS) e Petrolina (PE) –, com o objetivo de proteger cerca de três milhões de habitantes das doenças transmitidas pelos mosqu­itos. Esperamos, cada vez mais, poder trazer essa inovação para mais cidades do Brasil e, juntamente com outras estratégias de controle, reduzir o impacto que as arboviroses têm na população brasileira. Mas também é importante que cada um continue a fazer seu dever de casa, para evitar a presença de criadouros de mosquitos, e converse com seus vizinhos para que, juntos, possamos diminuir a incidência dessas doenças. g CH 389 | JULHO 2022 | 29


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TRANSFORMAÇÕES CONFORMES

De mapas e água a ímãs e partículas... as vastas aplicações de uma poderosa ferramenta matemática

Haveria semelhanças entre um mapa-múndi, os estados da água, a magnetização de ímãs e a teoria de cordas, proposta de descrição do mundo microscópico? O denominador comum é a possibilidade de eles serem estudados pelas chamadas transformações conformes, ferramenta matemática poderosa que tem ajudado cien­tistas a entender fenômenos que, aparentemente diversos, guardam similaridades entre si. A utilidade dessa linguagem está em descobrir e entender o que é conservado quando sistemas físicos sofrem transformações. Marco Moriconi

Instituto de Física Universidade Federal Fluminense

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Q

uando pedimos ajuda para chegarmos a um destino, frequentemente, recebemos instruções do tipo: “Siga em frente; logo depois da padaria, vire à direita e continue; depois, vire na primeira à esquerda...”. A razão para termos instruções assim é simples: para navegarmos em qualquer lugar, precisamos saber, literalmente, como nos orientarmos. É fundamental sabermos os ângulos para virarmos em pontos cruciais (no caso, padaria, esquina…). Esse modo de navegar vale tanto para um bairro quanto para a Terra. Para o globo terrestre – na ausência de pontos de referência simples, como padarias e esquinas –, criamos um sistema de coordenadas que nos permite localizar um ponto na superfície do planeta. Esse sistema é formado por arcos de círculo que vão de um polo a outro – os meridianos, que nos dão a longitude de um ponto – e por círculos que cortam a Terra paralelamente ao plano da linha do equador – daí, o nome de paralelos, que nos dão a latitude. Imagine um meridiano como sendo um grande arco de círculo que pode girar, como uma porta de banco, pelo eixo que passa pelos polos. Tomando como ponto de referência o meridiano que passa pelo Observatório Real de Greenwich (Inglaterra), o meridiano primário, medimos o ângulo que temos que girar para passarmos por um ponto qualquer do globo. Esse ângulo é medido de 0o a 180o no sentido oeste-leste e de 0o a 180o negativos no sentido oposto. Esse ângulo é a longitude do ponto. Como todos os pontos em um mesmo meridiano têm a mesma longitude, precisamos de mais informação – obtida a partir da latitude. De modo semelhante, a latitude é medida pelo ângulo que temos que ‘subir’ ou ‘descer’ em relação ao plano equatorial. Esse ângulo é positivo e vai de 0o a 90o no sentido que leva ao Polo Norte e negativo (de 0o a - 90o) em sentido ao Polo Sul. Com essas duas informações, podemos encontrar qualquer ponto do planeta. Mas como os navegadores usam essa informação? Historicamente, essa informação tinha que ser impressa em uma folha de papel – mais modernamente, pode ser mostrada em uma tela de vídeo –, para facilitar sua visualização e seu transporte. O problema que surge aqui é que a superfície da Terra é, em boa aproximação, uma esfera, mas uma folha de papel ou tela são planas. Como podemos passar a informação de uma superfície para a outra, preservando os ângulos entre curvas que se cruzam?

Projeção estereográfica

Seguindo o exemplo das instruções para o deslocamento em um bairro, gostaríamos de ter um mapa que nos orientasse, preservando ângulos entre curvas, do mesmo modo que usamos o “vire à direita” ou “vire à esquerda”. Para isso, é importante entender o que é um ângulo entre duas curvas, pois, normalmente, pensamos em ângulos entre segmentos de linha reta. Para entender um ângulo entre curvas em uma superfície qualquer, podemos usar a ideia de que, ‘vista de muito perto’, uma superfície curva pode ser aproximada por um plano. Quando analisamos um campo de futebol, não nos preocupamos com a curvatura da Terra, por exemplo. Dizemos que estamos analisando as curvas localmente. Desse ponto de vista, a definição de ângulo é a que usamos normalmente (ou seja, entre segmentos de 32 | CH 389 | JULHO 2022

Figura 1. Projeção estereográfica CRÉDITO: CEDIDO PELO AUTOR

COMO PODEMOS PASSAR A INFORMAÇÃO DE UMA SUPERFÍCIE PARA A OUTRA, PRESERVANDO OS ÂNGULOS ENTRE CURVAS QUE SE CRUZAM?

QUANDO ANALISAMOS UM CAMPO DE FUTEBOL, NÃO NOS PREOCUPAMOS COM A CURVATURA DA TERRA, POR EXEMPLO


Figura 2. América invertida, obra de Torres-García, de 1943 CRÉDITO: WIKIMEDIA COMMONS

linha reta), e isso nos permite definir o ângulo entre duas curvas quaisquer. Transformações geométricas que preservam os ângulos entre curvas são tão importantes que merecem nome especial: transformações conformes. O modo de pô-las em prática é razoavelmente simples: apoie uma esfera em um plano e ‘sente-se’ no polo norte dela – ‘N’, na figura 1, onde ‘O’ é o centro da esfera, e ‘S’, o polo sul. Para um ponto qualquer na superfície da esfera (P), trace uma reta que une esse ponto ao polo norte. Essa reta irá intersectar o plano em algum ponto. Esse ponto (P’) é a projeção estereográfica do ponto P na superfície da esfera – podemos repetir esse procedimento para todos os pontos da esfera, obtendo para cada um deles sua projeção estereográfica. Em tempo: provar matematicamente que essa projeção preserva ângulos entre curvas requer um pouco mais de trabalho, e, para nossos propósitos aqui, vamos dispensá-lo, para evitar tecnicalidades. A projeção estereográfica preserva os ângulos entre duas curvas que se cruzam – como as da latitude e longitude –, mas não preserva áreas. Áreas próximas ao polo norte (tanto terrestre quando de uma esfera) ficam ampliadas. É por isso que, apesar de a Groenlândia ter área de aproximadamente 2.166.000 km2, ela parece, nos mapas planos, maior que o Brasil, com aproximadamente 8.516.000 Km. Claro que a escolha do ponto onde ‘nos sentamos’ para fazer a projeção estereográfica é arbitrária e, dependendo dela, o resultado é uma orientação e dimensão particular ao mapa-múndi. Com base na escolha desse ponto – no caso, o Polo Sul terrestre –, o artista uruguaio Joaquín Torres-García (1874- 1949) fez provocação interessante com sua obra América invertida (figura 2). CH 389 | JULHO 2022 | 33

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Figura 3. O ponto crítico da água (alto, à direita), no qual não há diferença entre as fases líquida e gasosa CRÉDITO: CEDIDO PELO AUTOR

Não bastasse a grande utilidade de uma transformação conforme em nos permitir produzir um mapa extremamente útil para a navegação, ela tem outras aplicações. Por exemplo, na descrição de fenômenos relacionados aos estados da água, a um ímã ou a partículas subatômicas, como veremos.

Transições e simetrias

Uma experiência simples do dia a dia é o que acontece com a água, à medida que ela é aquecida. Começando com gelo, ele vai derreter até se liquefazer completamente e, em seguida, evaporar. Essas mudanças são conhecidas como transições de fase. Podemos repetir esse mesmo experimento a diferentes pressões. Se ajustarmos a pressão e temperatura de maneira cuidadosa, podemos chegar a um ponto ‘mágico’ da água, no qual não há mais diferença entre vapor e líquido (figura 3). Esse é o chamado ponto crítico. Vale notar que esse ponto não acontece no dia a dia, mas em situação controlada de laboratório. Nele, coisas interessantes acontecem. Para entendermos o que se passa no ponto crítico, dois conceitos são importantes: simetria e comprimento de correlação. A simetria de um sistema é uma ação (transformação) que fazemos nele que o deixa idêntico à configuração inicial. Por exemplo, se girarmos um quadrado em 90o por um eixo perpendicular que passa por seu centro, a nova figura será idêntica à inicial. Dizemos que o quadrado é invariante por rotações de 90o. A natureza é invariante com base em várias simetrias, como a de rotação ou translação. Por exemplo, se analisarmos a estrutura cristalina do gelo – ou seja, o modo como os átomos de hidrogênio e oxigênio estão dispostos –, veremos que é possível girá-la em 60o, e o resultado permanecerá idêntico. Nesse caso, dizemos que o gelo tem simetria hexagonal – aliás, uma bela consequência dessa simetria é sua relação com flocos de neve (figura 4). As simetrias têm consequências profundas para os fenômenos naturais: elas não só implicam leis de conservação, ou seja, quantidades que não mudam com o tempo (por exemplo, a conservação da energia), mas também dão estrutura às leis da natureza. Entender quais são as simetrias de um sistema físico permite deduzir, de forma bem específica, como devem ser as possíveis soluções de dado problema. Exemplo: o fato de existir uma simetria de translação espacial no universo – ou seja, o fato de podermos 34 | CH 389 | JULHO 2022

ENTENDER QUAIS SÃO AS SIMETRIAS DE UM SISTEMA FÍSICO PERMITE DEDUZIR, DE FORMA BEM ESPECÍFICA, COMO DEVEM SER AS POSSÍVEIS SOLUÇÕES DE DADO PROBLEMA


IMAGINE LADRILHOS ENCAIXADOS DE FORMA PRECISA, COBRINDO O CHÃO. SE SOUBERMOS A POSIÇÃO DE UM DELES, SABEREMOS A POSIÇÃO DE TODOS OS OUTROS

Figura 4. A estrutura de um floco de neve se deve à simetria hexagonal dos cristais de gelo CRÉDITO: ADOBE STOCK

nos transladar de um ponto a outro do espaço, sem que as leis da natureza se alterem – é o que nos permite realizar experimentos em diferentes laboratórios. E a simetria de translação temporal é o que nos permite fazer experimentos em momentos diferentes (passado, presente e futuro). Mas há simetrias que surgem dinamicamente. Elas ‘aparecem’ ao mudarmos certos parâmetros do sistema que estamos investigando. Vejamos o caso do gelo derretendo e virando água. O número de mudanças (rotações) que podemos realizar na estrutura cristalina do gelo – deixando-a invariante – é pequeno. Mas, ao derreter completamente, devemos levar em conta a simetria da água em estado líquido, cuja estrutura tem agora uma nova simetria, diferente daquela do cristal de gelo: em vez de podermos girar apenas em 60o ao redor de certos eixos, qualquer rotação é permitida.

Comprimento de correlação

Vejamos agora o segundo daqueles dois conceitos citados como importantes: o comprimento de correlação, que dá ideia de qual a distância entre partes de um sistema que apresentam comportamentos semelhantes. Exemplo: imagine ladrilhos encaixados de forma precisa, cobrindo o chão. Se soubermos a posição de um deles, saberemos a posição de todos os outros – tecnicamente, dizemos que a posição dos ladrilhos é fortemente correlacionada, e o comprimento de correlação é grande. Mas, caso os ladrilhos não estejam bem encaixados, a análise de um deles pode nos dar a ideia incerta sobre a posição do seguinte. E, à medida que nos afastamos do ladrilho inicial, podemos perder completamente a informação de onde o próximo ladrilho deverá estar. Nesse caso, dizemos que o comprimento de correlação é finito. No caso extremo – ladrilhos simplesmente jogados um ao lado do outro –, a posição de um deles não nos diz nada sobre a dos outros. Então, o comprimento de correlação é zero. Agora, podemos voltar à questão que lançamos acima: o que simetrias e comprimento de correlação têm a ver com o ponto crítico da água? Nesse ponto, o comprimento de correlação se torna grande – tecnicamente, dizemos que ele diverge –, e o sistema não tem mais uma escala de comprimento, ou seja, mesmo pontos muito distantes entre si estão correlacionados. Surge uma nova fase da água. A consequência disso é que o sistema líquido-vapor pode ser descrito matematicamente por uma teoria que é invariante por transformações conformes. E, aqui, entra o tão importante conceito de simetria: surgem novas simetrias no sistema, a chamada invariância conforme, que nos permite estudar com precisão quantitativa o ponto crítico. Até aqui analisamos o que se passa com a água. Mas o surpreendente (e belo) é que a mesma linguagem usada para descrever o ponto crítico da água pode ser empregada para descrever o que se passa em outros sistemas físicos bem diferentes, como um ímã. Apesar de toda familiaridade que temos com ímãs – basta olhar para uma geladeira… desde os ímãs que prendem a porta até aqueles que seguram lembretes e desenhos –, a explicação de como ‘funcionam’ não é tão simples. CH 389 | JULHO 2022 | 35

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Essencialmente, um ímã é formado por ‘mini-ímãs’, que têm sua origem em propriedades dos elétrons e dos átomos em si. Sabemos que um ímã tem um polo norte e um sul, mas isso só ocorre caso os mini-ímãs estejam orientados em uma direção. Se estiverem distribuídos aleatoriamente – imagine-os como diminutas bússolas cujas agulhas apontam em várias direções –, seus efeitos se cancelam. Resultado: o ímã macroscópico não vai atrair agulhas, pregos etc. Ou seja, não será um ímã. Seria possível restaurar a magnetização, a propriedade que faz um ímã atrair outros metais? A resposta é sim. Basta reduzirmos sua temperatura, o que fará com que cada mini-ímã ‘sinta’ os companheiros em sua vizinhança e comece a se alinhar com eles – nesse caso, teríamos todas as agulhas das diminutas bússolas apontando em uma única direção. Para os ímãs, há também um ‘ponto crítico’ – no caso, temperatura crítica. Abaixo dela, o sistema se magnetiza. É nesse ponto (ou temperatura) que o comprimento de correlação se torna grande (diverge), pois mesmo mini-ímãs distantes apontam para a mesma direção. Com isso, surge uma nova simetria no sistema: sim, a invariância conforme. Apesar de os dois sistemas (transição líquido-gás na água e magnetização de um ímã) serem tão distintos, a descrição teórica dos dois é semelhante. E não só de forma qualitativa: eles têm várias propriedades matemáticas em comum, as quais variam segundo as mesmas leis. Dizemos que pertencem à mesma classe de universalidade.

Teoria de cordas

Na década de 1970, foi proposta uma ideia revolucionária segundo a qual as partículas elementares não seriam entidades pontuais, mas, sim, pequenas cordas dotadas de diferentes modos de vibração. Cada um deles corresponderia a uma partícula que observamos na natureza, como elétron, próton, fóton (partícula de luz) etc. Essa nova formulação se mostrou promissora não só por explicar a origem das diferentes partículas elementares, mas também por elucidar a existência de uma partícula que daria origem à gravidade, o gráviton. No caso da teoria de cordas, a invariância conforme também tem papel fundamental. Se uma partícula, ao se deslocar no tempo e espaço, descreve uma linha, uma corda em movimento descreve uma superfície. A partir dessas linhas e superfícies é possível calcular uma quantidade matemática chamada ação, fundamental para deduzir as equações que governam o movimento de partículas ou cordas. Em particular, existem transformações matemáticas que não alteram o valor da ação. Estas são justamente as transformações conformes. Desde o nascimento da teoria de cordas, houve avanços em seu entendimento, mas ela segue como um trabalho em andamento. Mesmo assim, esse é um caminho promissor, que pode nos levar a uma teoria que junte, em um só corpo teórico, tanto os fenômenos microscópicos, da física quântica, quanto aqueles das grandes escalas (estrelas, galáxias, buracos negros etc.), da gravidade. Ou seja, uma teoria quântica da gravidade. Mapas de nosso planeta, transições de fase da água, ímãs, gravitação quântica… Uma gama impressionante de aplicações distintas unidas por uma linguagem matemática comum, a das transformações conformes. A sensação que temos ao perceber isso é perfeitamente traduzida pelo poeta britânico William Blake (1757-1827): “Ver um mundo em um grão de areia/E um paraíso numa flor selvagem/Segure o infinito na palma da sua mão/E a eternidade em uma hora”. g 36 | CH 389 | JULHO 2022

APESAR DE OS DOIS SISTEMAS (TRANSIÇÃO LÍQUIDO-GÁS NA ÁGUA E MAGNETIZAÇÃO DE UM ÍMÃ) SEREM TÃO DISTINTOS, A DESCRIÇÃO TEÓRICA DOS DOIS É SEMELHANTE


DESVENDANDO O COSMOS

DESVENDANDO OS MISTÉRIOS DO COSMOS HÁ 40 ANOS Adilson de Oliveira_ Departamento de Física, Universidade Federal de São Carlos (SP)

O

ano era 1982. Um adolescente que morava em uma pequena cidade próxima à capital paulista tinha grande fascínio pela ciência. Havia descoberto as maravilhas da natureza por meio da fantástica viagem proporcionada pelo astrônomo norte-americano Carl Sagan (1934-1996) na série Cosmos. Aquela experiência foi tão impactante que ele criou um clube de astronomia para poder também contar para outras pessoas o quão maravilhosa e bela é a ciência.

Naquele tempo, existiam poucas revistas nas bancas que apresentassem a ciência de forma acessível. A maioria eram edições estrangeiras traduzidas para o português. Mas o adolescente encontrou uma revista brasileira que trazia a ciência ao alcance de todos e, ainda, com artigos de cientistas brasileiros. Tratava-se da Ciência Hoje! Vinte e quatro anos depois, em junho de 2006, o adolescente, que tinha virado cientista, foi convidado a contribuir para esse espaço extraordinário de disseminação da cultura científica, que sempre lhe deu liberdade para abordar qualquer tema e expressar opiniões, contando com o auxílio de dedicados editores. A cada mês, um novo desafio surge: contar sobre o fascinante mundo da física e astronomia. Muitos desses textos se tornaram material de apoio para dezenas de livros didáticos, apareceram em concursos públicos e vestibulares e foram reproduzidos em inúmeros blogues e redes sociais. Para recriar as ideias de diferentes teorias físicas – de forma que elas possam ser compreendidas, sem a necessidade de conhecimentos matemáticos sofisticados –, é preciso conhecer profundamente o tema e exercer a criatividade para conseguir aproximar leitores e leitoras do tema. No caso da teoria da relatividade restrita, do físico de origem alemã Albert Einstein (1879-1955) – baseada em dois princípios fundamentais de grande alcance e consequências –, é necessário desenvolver a intuição. Esses princípios são expressos da seguinte maneira: i) as leis da física devem ser as mesmas em todos os referenciais iner-

ciais, ou seja, para quem está ou parado, ou se movimentando com velocidade constante; ii) a velocidade da luz no vácuo (cerca de 300 mil km/s) é sempre a mesma, independentemente do referencial em que ela é observada. Como esses princípios são válidos simultaneamente, temos como consequência algo que é (muito) contraintuitivo: tanto o espaço quanto o tempo deixam de ser absolutos e se tornam relativos (daí o nome da teoria) a cada observador – em termos simples, o espaço pode se contrair, e o tempo, se dilatar. Além disso, quando se inclui a necessidade de eles também satisfazerem outros dois princípios básicos da física (conservação da energia e quantidade de movimento), surge como conclusão que massa (m) e energia (E) são equivalentes, segundo a mais famosa equação da física: E = mc2 – no caso, ‘c2’ é a velocidade da luz no vácuo elevada ao quadrado. Embora essas ideias sobre espaço e tempo possam parecer surpreendentes (ou mesmo perturbadoras), elas representam o modo como a natureza se comporta. E esse comportamento já foi comprovado uma infinidade de vezes. Por exemplo, experimentos mostram que a luz sempre tem a mesma velocidade (cerca de 300 mil km/s). Mais: aceleradores de partículas funcionam de acordo com essas ideias e têm mostrado que a compreensão da natureza está muito além do modo como a percebemos no cotidiano. Em todos estes anos, o maior retorno que já tive como divulgador da ciência foi quando um de meus alunos, ao fim de uma disciplina que eu lecionava, disse-me que tinha optado por estudar física na universidade porque tinha lido artigo de minha autoria na Ciência Hoje – e que fazia questão ser aluno daquele que lhe havia inspirado a seguir essa carreira. Essa declaração mostra o quanto é importante esse trabalho de disseminação do conhecimento científico para o grande público. Essa nobre tarefa é capaz de transformar vidas – e, como consequência, nosso próprio país. Por isso, espero que a Ciência Hoje continue desvendando os mistérios do cosmos do conhecimento por muito tempo. Vida longa e próspera para a Ciência Hoje! g CH 389 | JULHO 2022 | 37


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A CURA QUE VEM DO INTESTINO ALHEIO Os primeiros resultados significativos do chamado transplante de microbiota fecal para tratar infecções recorrentes foram publicados em 2013 nos EUA. De lá pra cá, a técnica foi aprimorada e novos estudos vieram corroborar seu sucesso. O princípio é simples: repopular o intestino do paciente receptor com microrganismos benéficos de um doador saudável. Cientistas acreditam que, no futuro, doenças crônicas, sem tratamento definido e que hoje afligem milhões de pessoas poderão ser tratadas com a ingestão de uma simples cápsula, feita de microrganismos que um dia habitaram o intestino de alguém. Leandro Araujo Lobo Scarlathe Bezerra da Costa

Instituto de Microbiologia Paulo de Góes Universidade Federal do Rio de Janeiro

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A

história dos transplantes de órgãos humanos começou na década de 1950 com transplantes de rins e progrediu rapidamente, nas décadas seguintes, para os de fígado, coração, pâncreas e pulmões. Atualmente, a medicina já contempla o transplante de órgãos artificiais ou órgãos criados em laboratório. Com todo esse progresso, pode ser uma surpresa para o leitor que, na atualidade, um dos transplantes mais promissores para o tratamento de inúmeras doenças seja o de microbiota fecal (TMF). À primeira vista, pode parecer estranho; afinal, quem gostaria de receber fezes de outra pessoa? E por que alguém faria tal procedimento? Resumidamente, a ideia por trás do transplante de microbiota fecal não é simplesmente a de transferir fezes de uma pessoa para outra, mas sim a de repopular o intestino do paciente receptor com os microrganismos benéficos que vivem no intestino do doador. Mas, para entender por que isso é importante, vamos falar brevemente sobre o conceito de microbiota.

SÃO TRILHÕES E TRILHÕES DE CÉLULAS MICROSCÓPICAS QUE VIVEM NA NOSSA PELE, BOCA, NOS INTESTINOS, ÓRGÃOS GENITAIS E ONDE MAIS CONSEGUIREM SE INSTALAR

Essencial para a saúde

Nós – e todos os seres vivos do planeta – vivemos em associação muito próxima a uma multidão de diferentes microrganismos: bactérias, vírus, archaeas, fungos e até os protozoários, que habitam os diferentes tecidos do corpo humano sem causar danos. São trilhões e trilhões de células microscópicas que vivem na nossa pele, boca, nos intestinos, órgãos genitais e onde mais conseguirem se instalar. Os mais preocupados com limpeza podem se apavorar só de pensar nessa ideia, e podem até tentar se livrar desses microrganismos, com álcool gel, sabonetes que prometem eliminar 99,99% dos germes e antibióticos, mas, mesmo assim, não terão sucesso. Ainda bem! Porque esse conjunto de microrganismos, conhecido como a microbiota humana, é essencial para nossa boa saúde! As descobertas mais recentes da microbiologia mostram que ser colonizado por uma quantidade enorme de microrganismos não é prejudicial; muito pelo contrário. Esses microrganismos ajudam na nossa digestão, produzem compostos importantes para nossa saúde (como vitaminas), estimulam nosso sistema imune e bloqueiam (por competição) o acesso de microrganismos que nos fazem mal.

Em paz com a microbiota

Nosso organismo evoluiu para conviver pacificamente com a microbiota. O que nos causa problemas não é a quantidade de microrganismos presentes, mas sua qualidade. Quando nossa microbiota sofre alterações que levam a um desequilíbrio nas populações microbianas que a compõem, dizemos que a microbiota está em ‘disbiose’. Nesses casos, podemos ser acometidos por diferentes doenças e síndromes, que podem ser leves e autolimitadas, como uma diarreia passageira, ou crônicas e graves, como a colite pseudomembranosa, a doença inflamatória intestinal, a diabetes, a asma e até doenças do sistema nervoso. Vejam o exemplo de pacientes acometidos por infecções gastrointestinais pela bactéria Clostridioides difficile. Essa bactéria causa pavor em qualquer médico ou microbiologista que trabalha na área clínica de um hospital. O C. difficile é um patógeno oportunista, quer dizer, ele espera que nossas defesas estejam baixas para causar uma infecção. Pessoas acometidas por essa bactéria podem sofrer de diarreia intensa, precisando ir ao banheiro 10 vezes ou mais por dia. Essa infecção também é acompanhada por fortes 40 | CH 389 | JULHO 2022

QUANDO NOSSA MICROBIOTA SOFRE ALTERAÇÕES QUE LEVAM A UM DESEQUILÍBRIO NAS POPULAÇÕES MICROBIANAS QUE A COMPÕEM, DIZEMOS QUE A MICROBIOTA ESTÁ EM ‘DISBIOSE’


CRÉDITO: ADOBE STOCK

cólicas, enjoos, febre e perda de apetite. Alguns casos mais graves podem evoluir para um quadro conhecido como megacolon tóxico, que pode levar à ruptura da parede intestinal com infecção generalizada e até à morte do paciente. O C. difficile pode se proteger em uma estrutura chamada esporo bacteriano – um tipo de casulo super-resistente onde a bactéria fica num estado de dormência. Esses esporos são acidentalmente ingeridos e se instalam no intestino, onde podem novamente germinar (retornar ao estado ativo). A bactéria ativa produz toxinas que causam o quadro da doença. Normalmente, a germinação e a atividade do C. difficile são controlados pela nossa própria microbiota intestinal, mas indivíduos que sofrem uma disbiose na microbiota são mais susceptíveis e acabam desenvolvendo a infecção por C. difficile.

O lado mau dos antibióticos

A disbiose intestinal muitas vezes está associada ao uso de antibióticos. Parece contraintuitivo que um antibiótico seja responsável por uma infecção, mas é fácil de entender. Quando alguém toma um antibiótico para tratar uma infecção, por exemplo, apesar do sucesso do tratamento, a medicação se espalha por todos os tecidos do corpo e, inadvertidamente, destrói parte dos microrganismos que habitam de modo pacífico o intestino, causando uma queda na população e na diversidade das espécies que ali estão. Isso abre caminho para a colonização pelo C. difficile (antes controlado pela microbiota). É mais ou menos como uma floresta incendiada. Imagine nossa microbiota intestinal como uma floresta rica e verde, cheia de árvores, arbustos e plantas de diferentes espécies. De repente um incêndio destrói a maioria dessas plantas, exceto por uma erva daninha resistente ao fogo, que começa a crescer rapidamente, tomando todo o terreno e consumindo os nutrientes da terra. O fogo é o antibiótico, e a erva daninha, o C. difficile. CH 389 | JULHO 2022 | 41

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Tratar a infecção por C. difficile com um novo antibiótico, às vezes funciona muito bem. Mas lembrem-se de que essa bactéria produz esporos resistentes! Então, em alguns casos, o novo antibiótico é inofensivo para a bactéria, o paciente desenvolve uma doença crônica e passa a ter episódios recorrentes, e cada um deles é um risco à sua vida. É aí que entra o transplante de microbiota fecal.

Transplante de microbiota fecal

Os primeiros registros escritos do uso do transplante de microbiota vêm da China, cerca de 700 anos antes da Era Cristã. Um texto chamado Cinquenta e duas fórmulas de tratamento traz detalhes da preparação do “suco dourado”, feito a partir de fezes humanas frescas ou fermentadas e usado de forma genérica para desintoxicação. Textos posteriores, no século 4, também da China, descrevem o uso de preparações contendo fezes humanas para o tratamento de diarreias graves, constipação ou dor abdominal. Na medicina moderna, o primeiro uso do transplante de microbiota fecal descrito foi uma tentativa feita pelo microbiologista norte-americano Stanley Falkow (1934-2018) na década de 1950. Falkow coletou amostras de fezes de pacientes que receberiam um tratamento com antibióticos em preparação para um procedimento cirúrgico. Apesar do sucesso da cirurgia, os pacientes constantemente reclamavam de sintomas gastrointestinais. Falkow sugeriu que os antibióticos estavam destruindo a microbiota intestinal dos pacientes e pediu para que eles coletassem fezes antes de tomar os antibióticos. Ele colocou essas fezes secas em capsulas de gelatina e produziu pílulas para que os pacientes ingerissem após a recuperação da cirurgia. O diretor do hospital descobriu o que estava acontecendo e demitiu Falkow imediatamente. Os pacientes que receberam e ingeriram essas pílulas reportaram menos problemas intestinais do que os que não as receberam; mas esses resultados nunca foram publicados. Em 1958, um grupo de cientistas liderados pelo cirurgião norte-americano Ben Eiseman (1917-2012), na Universidade do Colorado (EUA), obteve um sucesso estrondoso tratando quatro pacientes com colite pseudomembranosa grave, usando enemas (inserção de líquidos pelo ânus) com material fecal de doadores saudáveis. Outros 16 casos foram selecionados para serem submetidos ao mesmo procedimento, com uma taxa de sucesso de 94%. Em 2013, foram publicados os resultados do primeiro grande teste clínico randomizado do uso de transplante de microbiota fecal para tratamento de infecção recorrente por C. difficile nos EUA. A taxa de sucesso chegou a 80% em comparação aos 31% obtidos com o uso de antibiótico (vancomicina). Esses dados foram confirmados por inúmeros estudos e testes clínicos na década passada. Nas últimas duas décadas, diversas publicações e estudos acadêmicos vêm correlacionando e até estabelecendo relações de causalidade entre a disbiose intestinal e doenças extraintestinais. Esses estudos, somados ao marcante sucesso no tratamento da infecção recorrente por C. difficile, despertaram grande interesse da comunidade médica no transplante de microbiota fecal, e novas pesquisas e testes clínicos com alvos em outras doenças estão em curso atualmente. Tais testes estão mostrando que o transplante de microbiota fecal pode ser útil no tratamento de condições que afligem outros órgãos fora do trato gastrointestinal, como psoríase, síndrome metabólica e obesidade, arteriosclerose, esteatose hepática, encefalopatia hepática, resistência à insulina, diabetes, esclerose múltipla, doença de Parkinson, entre outras. 42 | CH 389 | JULHO 2022

EM 2013, FORAM PUBLICADOS OS RESULTADOS DO PRIMEIRO GRANDE TESTE CLÍNICO RANDOMIZADO DO USO DE TRANSPLANTE DE MICROBIOTA FECAL PARA TRATAMENTO DE INFECÇÃO RECORRENTE POR C. DIFFICILE NOS EUA. A TAXA DE SUCESSO CHEGOU A 80% EM COMPARAÇÃO AOS 31% OBTIDOS COM O USO DE ANTIBIÓTICO (VANCOMICINA)

Microbiota transplantada para o cólon do paciente


Como é o transplante?

O princípio do transplante de microbioma é muito simples: repopular um sítio anatômico do paciente receptor com microrganismos benéficos do microbioma de um doador saudável. Na prática, porém, essa técnica é complicada e requer muito cuidado. O primeiro – e crucial – passo para esse tipo de transplante é a seleção do doador. Os critérios ideais de seleção de doadores ainda não estão bem estabelecidos na literatura médica e, por questões de segurança, os candidatos são submetidos a extensos e rigorosos métodos de triagem. Os doadores devem ser saudáveis, sem doenças crônicas ou agudas, e submetidos a uma avaliação similar à usada para selecionar doadores de sangue. Além disso, os doadores passam por exames laboratoriais, como hemograma completo, bioquímica do sangue, exames de fezes e urina, e o material doado é analisado para detectar qualquer microrganismo indesejado que possa causar doença no receptor. Após essa exaustiva seleção, as taxas de elegibilidade reportadas na literatura ficam em torno de 3%. Após a coleta das fezes do doador, esse material deve ser processado. As fezes são diluídas e homogeneizadas em soluções salinas fisiológicas, com pH controlado, e o material é filtrado em gaze para remover partículas grandes, como fibras alimentares e qualquer resto de alimento não digerido. Também é adicionado um componente crioprotetor, para evitar a formação de cristais de gelo, que destroem os microrganismos ali presentes. Logo depois, esse material é armazenado em ultracongeladores a -80°C até o momento do uso. Para efetuar a transferência entre doador e receptor, o método mais usado atualmente é a colonoscopia. O colonoscópio é inserido no reto do paciente receptor até alcançar o início do intestino delgado e, à medida que é retirado, o material do doador é depositado no cólon. Outros métodos de transferência testados incluem sondas nasogástricas, enemas, supositórios e pílulas. Após o transplante, pacientes receptores são monitorados regularmente, e qualquer evento adverso é imediatamente reportado. CRÉDITO: ADOBE STOCK

Transplante de microbiota fecal

Paciente

Doador

Líquido pronto para transplante

Fezes de doador saudável

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Transplante de microbiota no Brasil

No Brasil, a infecção por Clostridioides difficile é o principal causador de diarreia associada ao uso de antimicrobianos no ambiente hospitalar, e muitos pacientes sofrem de infecção recorrente; mas, infelizmente, o transplante de microbiota ainda não está estabelecido em nossos hospitais. Em 2015, um estudo de São Paulo reportou o uso do transplante de microbiota fecal para tratar 12 pacientes com infecção recorrente por C. Difficile, obtendo uma taxa de sucesso de 90%. Um grande avanço que permitirá o estabelecimento dessa técnica no Brasil foi a criação de uma unidade de coleta de fezes no Centro de Transplante de Microbiota Fecal (FMTC), associado ao Banco de Tumores e Tecidos do Instituto Alfa de Gastroenterologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)/Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) (IAG-HC/UFMG). Esse centro foi estabelecido na última década e contou com a parceria do Laboratório de Bacteriose da Escola de Veterinária da UFMG e da Unidade de Endoscopia do IAG-HC/UFMG. A equipe do FMTC é formada por gastroenterologistas, endoscopistas, microbiologistas, biomédicos e farmacêuticos. No futuro, doadores saudáveis poderão depositar suas fezes nesse banco, que poderá realizar todos os procedimentos de triagem e análise do material para garantir a segurança do mesmo, e assim distribuí-lo para todos os hospitais do país.

Transplante em outros sítios do corpo

Recentemente, pesquisadores israelenses publicaram os resultados de um estudo exploratório, usando o transplante de microbiota vaginal (TMV) para o tratamento de vaginose bacteriana recorrente. Essa doença é causada por um desequilíbrio (disbiose) nas populações de bactérias que habitam o canal vaginal, e os sintomas podem causar grande desconforto para a paciente, como coceira intensa, queimação e desconforto ao urinar. Em muitos casos, a vaginose pode ser tratada, mas, em algumas mulheres, os sintomas retornam de forma recorrente. Nesse estudo, cinco mulheres foram tratadas com TMV, e quatro delas apresentaram sucesso em longo prazo, com remissão total dos sintomas. Apesar do pequeno número de pacientes, os resultados foram animadores e novos estudos clínicos estão em andamento.

Questões a considerar

Como todo procedimento médico, o transplante de microbiota não é isento de riscos. O fator crucial no sucesso do transplante é a seleção de um doador saudável, que não transfira microrganismos que façam mal ao receptor. Esses microrganismos podem estar num estado dormente ou em pequenas quantidades e podem passar despercebidos em testes de laboratório. Outro problema é que bactérias intestinais muitas vezes carregam genes de resistência a antibióticos, que, por sua vez, podem ser transferidos para outras bactérias na vizinhança. Os testes de triagem para seleção de doadores devem levar isso em consideração, mas, para detecção de todos os genes de resistência presentes em uma amostra, seria necessário sequenciar e analisar todo o DNA bacteriano das fezes do doador. Outra questão importante é que, apesar dos avanços no estudo da microbiota humana, muitas espécies de microrganismos que habitam nosso intestino ainda permanecem pouco estudadas, e suas atividades metabólicas e interface com a saúde humana ainda 44 | CH 389 | JULHO 2022

NO BRASIL, A INFECÇÃO POR CLOSTRIDIOIDES DIFFICILE É O PRINCIPAL CAUSADOR DE DIARREIA ASSOCIADA AO USO DE ANTIMICROBIANOS NO AMBIENTE HOSPITALAR, E MUITOS PACIENTES SOFREM DE INFECÇÃO RECORRENTE; MAS, INFELIZMENTE, O TRANSPLANTE DE MICROBIOTA AINDA NÃO ESTÁ ESTABELECIDO EM NOSSOS HOSPITAIS


CRÉDITO: ADOBE STOCK

são desconhecidas. Os benefícios do transplante de microbiota são promovidos pela transferência de uma comunidade saudável, ou seja, a mistura exata da quantidade de cada espécie de microrganismo ali presente. A grande questão é que nós ainda não sabemos ao certo qual é a receita dessa mistura e, para piorar, não parece existir uma receita universal que contemple toda a diversidade humana. Para algumas doenças, o transplante funciona muito bem, independentemente da composição da comunidade microbiana das fezes do doador. Esse é o caso da infecção recorrente para C. difficile: basta que o doador seja um indivíduo saudável para que o método atinja altas taxas de remissão. Para outras doenças, como a síndrome metabólica e a encefalopatia hepática, a composição da comunidade da microbiota do doador é um fator importante. Parece ser necessário que haja compatibilidade entre a microbiota do doador e do receptor. No futuro, técnicas avançadas de sequenciamento de DNA deverão ser utilizadas para selecionar a melhor combinação possível entre a microbiota do doador e do receptor. Existem muitas outras questões a serem respondidas para que esse tipo de transplante se torne uma prática universal. Por exemplo, os cientistas estão começando a entender o impacto dos vírus e fungos presentes no intestino para a saúde humana, assim como as consequências dessa transferência no sistema imune do receptor. Também é necessária uma padronização dos critérios de seleção dos doadores, e até um registro universal e criação de um banco de doadores, otimizado para diferentes tipos de doenças, e que permita o acompanhamento em longo prazo da saúde do doador. Muitos cientistas acreditam que, no futuro, doenças crônicas e sem tratamento definido e que hoje afligem milhões de pessoas poderão ser tratadas com a ingestão de uma simples cápsula, recheada de microrganismos que um dia habitaram o intestino de alguém. g

LEIA

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https://www.ncbi.nlm.nih.gov/ pmc/articles/PMC5479392/ https://www.scielo.br/j/ag/a/ Rm6nW4JMwJhgHy5RCMCLV5 K/?lang=en&format=pdf https://schaechter.asmblog.org/ schaechter/2013/05/ fecal-transplants-in-the-goodold-days.html https://www.scielo.br/j/eins/a/ pqSs343FWB9nybPvHW4JPYs/ ?lang=en https://www.nature.com/ articles/s41591-019-0600-6 https://www.sciencedirect. com/science/article/pii/ S0929664618305552#bib16

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O DESAFIO DA INCLUSÃO SOCIAL NOS MUSEUS DE CIÊNCIAS Com ingressos gratuitos ou de baixo custo, centros e museus de ciência brasileiros estão abertos a todos, não importa a renda, a escolaridade ou a região em que habitam, certo? Pesquisas feitas nas últimas décadas mostram que não é bem assim: a inclusão social ainda é um enorme desafio para esses espaços, e não basta estar de portas abertas para atrair, agradar e satisfazer públicos mais diversos. Mas, afinal, como esses espaços de educação não formal podem exercer o seu papel social de difusão de conhecimento? Débora Teixeira dos Santos e Menezes

Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia Universidade Federal do Rio de Janeiro

Diego Vaz Bevilaqua

Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz

Douglas Falcão Silva

Museu de Astronomia e Ciências Afins

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CRÉDITO: FOTO MARIA BUZANOVSKY/FIOCRUZ

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s centros e museus de ciência são reconhecidos espaços para a divulgação científica, capazes de proporcionar diversas ex­periên­ cias, que podem ser interativas, divertidas, sociais e afetivas. Esse CRÉDITO: JEFERSON MENDONÇA/FIOCRUZ leque de atividades e vivências estimula a curiosidade, e, claro, o aprendizado e o interesse por ciência e tecnolo­gia em diferentes contextos. Por outro lado, esses espaços têm enfrentado um de­ safio de difícil superação: a inclusão social. O perfil de seus frequentadores não representa a maior parte da população brasileira, em termos de renda e nível educacional. No Brasil, a maioria do público tem origem nas visitas escolares, mas a chamada audiência de visitação espon­ tânea (em geral, famílias e poucos adultos) vem, principalmente, de camadas privilegiadas da sociedade. Ainda que a inclusão nos espaços museológicos seja debatida e buscada há mais de quatro décadas, essa é uma realidade persistente, que reflete a estrutura social desigual da sociedade brasileira. Neste artigo, são apresentadas algumas perspectivas, pesquisas e inicia­ O professor de Sociologia da tivas como inspiração de caminhos na direção da construção de museus Universidade Federal de Minas mais inclusivos e estruturados para expandir seus benefícios científico­ Gerais Yurij Castelfranchi de-culturais a parcelas mais amplas da população. senvolveu o conceito de “cida-

A necessária “cidadania tecnocientífica”

Informação científica: por que é importante?

Desde março de 2020, a pandemia de covid-19 revelou o quanto os cuida­ dos com a saúde individual dependem, também, da comunicação e da com­ preensão pública da ciência. Em paralelo, foi notório o papel da desigual­ dade social na crise sanitária: a doença atingiu mais duramente as camadas mais vulneráveis da população e, apesar da mobilização para ações emer­ genciais, ficou claro que mudanças estruturais demandam medidas mais consistentes. 48 | CH 389 | JULHO 2022

dania tecnocientífica”. Ele defende que a ciência contemporânea está altamente entremeada nos processos sociais da atualidade. Portanto, precisamos de um novo conceito de cidadania, que inclua a participação da população nas questões técnicas e científicas, território muitas vezes considerado exclusivo de especialistas.


Capital da ciência? Entenda o conceito No Reino Unido, um grupo de pesquisadores liderados por Louise Archer, da University College London, tem proposto uma adaptação do conceito de capital do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002) aplicado ao papel da ciência na sociedade contemporânea. Bourdieu descreve as formas de capital – econômico, social, cultural ou simbólico – e como estas produzem as relações de privilégio ou subordinação na sociedade. Para o grupo britânico, a ciência constitui um importante ativo na reprodução ou superação de privilégios dentro da sociedade contemporânea, e sua distribuição equitativa dentro de uma sociedade é fundamental para superar desigualdades sociais como um processo reproduzido historicamente. Esse novo tipo de capital foi designado, pelo grupo, de “capital da ciência”, e a ampliação de seu acesso pode permitir maior equidade na sociedade, constituindo um veículo potencial para desmontar e reestruturar as atuais relações desiguais de poder.

Ainda que seja importante manter as ações direcionadas às crianças em idade escolar, a onipresença da ciência e tecnologia no cotidiano contemporâneo demanda que a educação em ciências não fique restrita à educação formal, na escola. Segundo relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e Conselho Internacional de Museus (ICOM, na sigla em inglês), os adultos representam 66% da população, portanto é relevante pensar na educação sob a dimensão da aprendizagem ao longo da vida, também buscando maior proporção do público adulto entre os visitantes. Diferentemente de outros campos, como as artes e os esportes, a ciência dispõe de poucos espaços sociais onde adultos não apenas podem continuar aprendendo, mas discutindo seus resultados e métodos. A ciência do cotidiano, que amplia a consciência do indivíduo sobre o mundo de maneira crítica e contextualizada, encontra nos centros e museus de ciências um local-chave nesse caminho para reduzir desigualdades sociais ao longo de toda a vida.

Todo esse quadro reafirmou que uma parcela grande dos indivíduos está excluída do exercício dos direitos de cidadania não só em relação a serviços públicos básicos geridos pelo Estado, mas no acesso ao conhecimento científico. Ao longo dos primeiros dois anos da pandemia, foi possível presenciar continuamente o processo científico ao vivo, susci­ tando dúvidas e incertezas, simultaneamente à colaboração entre pesquisadores e suas novas descobertas. A falta de familiarização sobre o funcionamento dessa engrenagem da produção científica, suas incertezas e debates até a construção do consenso, propiciou um ambiente no qual muitos se tornaram vulneráveis aos discursos anticientíficos e às notícias falsas. Mesmo fora dos momentos de emergência sanitária, o acesso ao conhecimento cien­ tífico é importante, e a busca por ele pode ser motivada por outras necessidades: doen­ ça crônica na família, decisões sobre carreira, papel como consumidor, cuidados com crianças, ou a vontade de se atualizar sobre debates científicos envolvendo temas rele­ vantes, como alimentos transgênicos, energia nuclear, astronomia, tecnologias etc. A co­ municação da ciência pode, portanto, colaborar para maior participação social, além de fortalecer o cidadão para tomar melhores decisões na sua vida, participar, dialogar e agir. Democratizar o acesso à comunicação científica, no entanto, não tem sido uma tare­ fa fácil, já que tantas discussões acontecem de maneira complexa e multidirecional, em especial no ambiente digital. Faz-se necessário aos profissionais e pesquisadores nego­ ciar o conhecimento com os não profissionais, além de refletir sobre por que comunicar e, principalmente, estarem preparados para responder como e o que comunicar. CH 389 | JULHO 2022 | 49

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E qual o papel dos espaços de ciência?

Museus e centros de ciência têm uma posição privilegiada para transformar a relação ci­ ência-sociedade. No mundo, estima-se que mais de 300 milhões de pessoas frequentam esses espaços a cada ano. No Brasil, temos cerca de 270 instituições desse tipo distribuídas por todas as regiões. A concentração geográfica, no entanto, ainda é uma questão: esses espaços são mais presentes nas cidades mais ricas e, dentro destas, nas áreas de alta renda ou turísticas. Mesmo quando estão fora dos bairros de elite, ainda há uma disparidade grande entre o público visitante e o perfil da população brasileira. E isso não é apenas uma percepção, muitas pesquisas apontam essa desigualdade.

Investigação no MAST

O Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), localizado na cidade do Rio de Janeiro, foi pioneiro na realização de investigações sobre o tema da inclusão social em museus de ciências. Os estudos, realizados entre 2006 e 2014, partiram do conceito de que a experi­ ência e o empoderamento são capazes de promover laços de pertencimento, identidade, além de uma relação afetiva e estética com o conhecimento científico. Em uma das pesquisas, foram convidados adultos e famílias advindas das camadas mais pobres para uma visita com mediação da equipe do museu, seguida do preenchimento de um questionário. Na ocasião, foi oferecido transporte e lanche aos participantes. Os resul­ tados revelaram boa avaliação da visita e foi constatada uma grande percepção de ganho em relação aos chamados aspectos cognitivos do empoderamento, que indicam uma per­ cepção de ganho de aprendizagem relacionada à visita. Mas, em relação aos aspectos sociais do empoderamento e a conexão com a vida cotidia­ na, a percepção de ganho foi bem menor. Propõe-se que o empoderamento desses visitantes está relacionado ao vínculo entre o que foi observado e seu cotidiano ou o aproveitamento daquela visita para a melhoria das condições de vida das pessoas. Além disso, a visita repre­ sentou a inauguração de um tipo de experiência para muitos que nunca tinham visitado um museu, o que teria valor por si. A visita, no entanto, não se repetiu de forma espontânea, conforme apontado em entrevistas realizadas mais de um ano após as visitas estimuladas. Portanto, não foi modificado um hábito social e cultural. 50 | CH 389 | JULHO 2022

CRÉDITO: FOTO MARIA BUZANOVSKY/FIOCRUZ


Análise na Grã-Bretanha

No Reino Unido, a pesquisadora Emily Dawson, do departamento de estudos de ciência e tec­ nologia da University College London, realizou visitas a museus de ciência com grupos de minorias étnicas. Seus resultados ressaltam que os indivíduos deixaram os museus ainda me­ nos propensos a repetir a experiência. Os relatos transpareceram a violência simbólica vivida nos espaços que reproduzem desvantagens sociais em vez de atuarem para rompê-las. Dawson argumenta o quanto os benefícios atribuídos aos museus de ciências não estão igualmente disponíveis para todos, pois as visitas podem reforçar desvantagens sociais para alguns visi­ tantes. Em todos os grupos, os indivíduos vivenciaram as instituições como locais indesejáveis, onde seus conhecimentos, práticas e identidade são ignorados ou desqualificados. Assim como a experiência brasileira, essa pesquisa não tinha expectativas de promover mudanças radicais nas percepções dos visitantes após a realização de apenas uma visita, mas, neste caso, eles se posicionaram contra as instituições e descartaram a possibilidade de visitá-las novamente.

Pesquisa aponta exclusão

Perfil da população X público dos museus na cidade do Rio de Janeiro

56%

No Rio de Janeiro, um consórcio de museus, o Observatório de Centros e Museus de Ciência e Tecnologia, vem realizando, desde 2005, pesquisas para estabelecer o perfil do público que visita esses estabelecimentos. O resultado, que corrobora outras pesquisas, mostra que, apesar dos esforços dessas instituições, o público que as frequenta ainda é predominantemente bran­ co, com renda acima da média e com formação de ensino superior. O Museu da Vida, instituição vinculada à Fiocruz, é um dos museus desse consórcio. O museu tem um histórico de relacionamento com seu território, predominantemente carac­ terizados por grandes complexos de favelas e comunidades socialmente vulnerabilizadas. Das instituições mapeadas, é a que tem o público que mais se aproxima da distribuição demográfica da própria cidade. Em um estudo recente, mapeou sua área de influência, com o qual estabelece relações no espaço, tempo e memória, além do diálogo com grupos sociais. A pesquisa foi realizada nas zonas central, Norte e parte da Zona Oeste da cidade, regiões de onde vem a ampla maioria do público de visitação espontânea do museu, onde habitam cerca de 56% da população da cidade. A região engloba bairros com os seis menores IDHs e inclui os cinco dos maiores complexos de favelas da cidade.

Brancos

47% Brancos

67%

Ensino Superior Incompleto ou +

4%

Ensino Superior Incompleto ou +

51%

14%

Renda 10 SM Ou +

Renda 10 SM Ou +

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CRÉDITO: MUSEUS DE CIÊNCIAS E SEUS VISITANTES – ESTUDO LONGITUDINAL 2005 – 2009 – 2013. RIO DE JANEIRO: COC, FIOCRUZ, 2017 E IBGE. CENSO DEMOGRÁFICO

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A pesquisa revelou que, para o público avaliado, a visita ao museu proporcionou ga­ nho significativo em uma série de dimensões da relação com a ciência: percepção de compreensão e conhecimento; interesse e curiosidade, e participação em atividades e eventos relacionados à ciência e tecnologia. Esse ganho se mantém nessa população, que é predominantemente vulnerável socialmente, e tem continuidade também independen­ temente da escolaridade e da faixa de renda. A pesquisa mostrou ainda que essa população é mais capaz de discernir informações falsas sobre ciência. Esses ganhos aumentam quanto maior o número de visitas ao museu. Por outro lado, quase metade da população nunca tinha ouvido falar do museu, ou seja, uma boa parte das pessoas que vivem próximas da instituição não sabe da sua existência.

Obstáculos e vontade de mudar

Cada vez mais, pesquisadores e profissionais de museus têm se preocupado com práti­cas inclusivas, mas grande parte relata não saber como começar. Dentre as investigações co­ mentadas neste artigo, há alguns pontos de consenso na direção da inclusão, como a ado­ ção de compromisso institucional de longo prazo, combinado à proatividade para iniciar um diálogo respeitoso que leve em conta os valores, as práticas, as aspirações e as moti­ vações do público. Ir ao encontro, convidar, comunicar-se com o público. Esta abordagem pode representar embates por parte da cultura institucional e do preconceito estrutural que perpassam as instituições, assim como profissionais e público, pela dificuldade que existe em se lidar com diferenças. Além disso, alguns museus e centros de ciência ainda acreditam que basta manter suas portas abertas, e isso é o suficiente para ser inclusivo com seus públicos, mesmo que suas exposições reproduzam violências simbólicas. São também conhecidas as dificuldades estruturais e limitações no tamanho das equipes que trabalham nas instituições. É importante lembrar também a relativa juven­ tude de grande parte dessas instituições em relação ao cenário mundial e a inconsis­ tência de políticas públicas na área em nosso país, aspectos que colaboram para a pre­ cariedade da estrutura de muitas delas. Para contornar essas limitações, é indicada a realização de parcerias de longo prazo com ONGs do território, por exemplo. Esse movi­ mento é considerado essencial para viabilizar o diálogo, tanto para acesso ao público quanto para a contextualização da experiência que será encontrada no museu. A con­ tratação de profissionais que vivam no território também foi uma importante ação men­ cionada por funcionários e pesquisadores. Outro ponto relevante é que grande parte das atividades cotidianas migraram para o meio digital, um ambiente que segue excludente para o público em vulnerabilidade so­ cial, seja por questões de acesso, conexão, dispositivo, seja pelas mesmas questões cul­ turais ou de identidade que excluem os pobres dos museus de ciências. Faz-se urgente repensar políticas públicas de longo prazo para a divulgação da ciência e tecnologia, especialmente aquelas direcionadas ao público em vulnerabilidade socioeconômica. Os últimos anos, marcados pela pandemia da covid-19, nos trazem a demanda por um novo contrato social entre o campo científico e a sociedade. O escancaramento dos impactos na saúde das iniquidades sociais, o uso político da desinformação como estra­ tégia de mobilização social e a demanda por maior envolvimento da população nas questões científicas nos apresentam um contexto de mudança necessária. Nesse pano­ rama, cabe aos centros e museus de ciência se reafirmarem como espaços democráticos, refletirem sobre seu histórico excludente e como suas representações poderiam traduzir violências simbólicas. Ao mesmo tempo, repensar as práticas imbuídas do racismo es­ trutural, reafirmando o compromisso de atuarem como um espaço de acolhimento, di­ álogo e debate, no lugar de simplesmente propagar informações e conteúdos sobre uma ciência distante da realidade da maioria da população. g 52 | CH 389 | JULHO 2022

LEIA

+

BOURDIEU, P. Os três estados do capital cultural. In: CATANI, Maria Alice (Org.). Escritos de Educação. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. p. 71–79. CASTELFRANCHI, Y. Por que comunicar temas de ciência e tecnologia ao público? (Muitas respostas óbvias... mas uma necessária). In: MASSARANI, Luisa (Org.). Jornalismo e ciência: uma perspectiva iberoamericana. 1. ed. Rio de Janeiro: Museu da Vida, COC, FIOCRUZ, 2010. p. 13–22. CASTELFRANCHI, Y, Notícias Falsas na Ciência, https:// cienciahoje.org.br/artigo/ noticias-falsas-na-ciencia/ CENTROS e museus de ciência do Brasil: 2015. Rio de Janeiro: ABCMC, Casa da Ciência, Museu da Vida, 2015. il. MUSEUS de ciência e seus visitantes: estudo longitudinal - 2005, 2009, 2013 / Sonia Mano, Sibele Cazelli, Andréa Fernandes Costa, José Sergio Damico, Loloano Claudionor da Silva, Wailã de Souza Cruz, Vanessa Fernandes Guimarães. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz / Casa de Oswaldo Cruz/ Museu da Vida, 2017. Instagram Science Capital Brasil, https://www.instagram. com/sciencecapitalbrasil/


LITERÁRIA

FABRICAÇÃO DOSPORTENTOS Georgina Martins_ Curso de Especialização

em Literatura Infantil e Juvenil, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro > Escritora de livros para crianças e jovens

U

ma das crenças do século 6 da nossa era propagava que a Terra era quadrada, tendo como parâmetro o Tabernáculo de Moisés. Sua descrição seria a de uma gaiola onde estavam encerrados o Sol, a Lua e todos os astros. No entanto, outras formas de representar a Terra foram surgindo com o tempo: oblíquas, triangulares, ovais ou semicirculares, e vários mapas foram criados para dar conta dessas representações. Qualquer uma era possível, desde que estivesse abalizada pelas escrituras sagradas. Em conformidade com o pensamento de que a Terra era quadrada, o ocidente medieval acreditava que nos confins do planeta habitavam raças fabulosas, seres que não se podia definir como homem ou animal. Relatos de historiadores, viajantes, poetas, clérigos enfeixavam esses seres em listagens maravilhosas. Até mesmo Cristóvão Colombo dizia que “nos quatro lados, nossa Terra é habitável por uma terra des­ conhecida”. Essa afirmação decorria da dificuldade em representar o planeta, uma vez que os mapas medievais não o ajudavam. No entanto, o navegador, já intuindo a esfericidade do planeta, o representava em forma de pera, supondo que o paraíso ficava na par­te superior, logo abaixo da haste da fruta, e por ser o ponto mais elevado não fora atingido pelo dilúvio. Em seu diário da descoberta da América, ele jurou ter avistado três sereias saltarem sobre o mar, “mas elas não eram bonitas como se diziam, pois tinham cara de homem”. Esse diário foi visto pelo escritor colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014) como o primeiro livro do realismo mágico, porque muitas das descrições de Colombo nada deviam aos enredos dos contos maravilhosos. Quando contemplado com o Prêmio Nobel de Literatura, em 1982, García Márquez escreveu um discurso que pode ser considerado material fundamental para enten-

dermos a nossa realidade, e também o que muitos críticos de literatura (alguns de forma pejorativa) chamaram de realismo mágico. No discurso, que deixou a Academia Sueca de Letras abismada, o laureado dá conta de que o insólito e o maravilhoso de sua produção literária tinham como pano de fundo a barbárie latino-americana – daí o título A solidão da América Latina. A crença do europeu na existência de monstros e toda sorte de seres maravilhosos que, em geral, habitavam um lugar desconhecido, não colonizado, servia para justificar a inferioridade, a incivilidade e a necessidade de cristianização dos outros, como ocorreu na descoberta do novo mundo, no continente africano e nas Índias. Até mesmo o grande naturalista francês Conde de Buffon (1707-1788), que influenciou as teoria evolucionistas de Darwin e Lamarck, registra em sua monumental obra História Natural que, na fronteira dos desertos da Etiópia havia um povo chamado de acridófago ou comedores de gafanhoto. Tratava-se de um povo negro, muito magro e muito ligeiro nas corridas, e que, na primavera, se alimentava do tal inseto; o que até então não seria inverossímil, tampouco preconceituoso, não fosse o fato de, por conta desta alimentação, nascerem-lhes na pele insetos alados que se multiplicavam, provocando uma insuportável comichão que levava à morte. Os tais gafanhotos começavam a devorar o ventre, o peito e até os ossos do infeliz hospedeiro. Buffon reproduz essa história dos relatos de viagem do famoso navegador inglês Francis Drack (c.1540-1596) – corsário e traficante de escravos –, que, em sua viagem ao redor do mundo, conheceu esse povo. O mais incrível deste relato é que Buffon, apesar de achar a história um tanto extraordinária, afirma que ela não lhe parece de todo inverossímil. Diferente da maioria dos viajantes, Buffon era um intelectual. Formou-se em Direito e dedicou-se aos estudos de Matemática e Medicina, assim como vários outros naturalistas. Essas suas qualificações contribuíram para abalizar, disseminar e fixar o preconceito e o genocídio cometido contra os povos colonizados. g CH 389 | JULHO 2022 | 53


BASTIDORES DA CIÊNCIA

A MOLÉCULA INDISPENSÁVEL À VIDA

As descobertas do bioquímico brasileiro Leopoldo de Meis tiveram um papel fundamental na compreensão do mecanismo de funcionamento da enzima ATP-sintase para sintetizar o ATP, a molécula-chave nas conversões de energia nas células dos seres vivos. O entendimento do processo foi premiado com o Nobel de Química em 1997

Andrea T. Da Poian Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis Universidade Federal do Rio de Janeiro

VIDA REQUER ENERGIA. O funcionamento de uma célula, a unidade básica que compõe os seres vivos, depende de uma infinidade de reações químicas ocorrendo simultaneamente de forma extremamente organizada (figura 1). Essas reações são responsáveis pela conversão da energia retirada do ambiente – da luz ou dos alimentos –, que será usada nas diferentes funções necessárias para manter a vida, como a transmissão dos impulsos nervosos ou a contração muscular. No centro das conversões de energia que ocorrem nas células, está uma molécula-chave: o ATP (adenosina trifosfato), que funciona como um ‘repositório transitório de energia’. Para termos uma ideia, se calcularmos o consumo de energia por um ser humano em repouso – a chamada taxa metabólica basal –, chegamos ao valor de 1,2 Watts por quilograma (W/kg). Isso é 6 mil vezes maior que o fluxo de energia no Sol! E, para manter essa taxa metabólica, uma pessoa quebra e ressintetiza em média 120 kg de ATP por dia! Não é à toa que entender o mecanismo pelo qual diferentes formas de energia são transformadas dentro das células sempre foi motivo de fascínio ao longo da história da ciência. E são muitos os cientistas agraciados com o prêmio Nobel por suas descobertas relacionadas ao metabolismo energético. Alguns exemplos são o químico alemão Eduard Buchner (1860-1917), o médico alemão Otto Meyerhof (1884-1951), o fisiologista e médico alemão Otto Warburg (1883-1970), o fisiologista húngaro Albert Szent Györgyi (1893-1986), o casal de médicos tcheco-americanos Carl (1896-1984) e Gerty Cori (1896-1957), o médico e bioquí54 | CH 389 | JULHO 2022

mico alemão Hans Krebs (1900-1981), o bioquímico teuto-americano Fritz Lipmann (1899-1996), o químico britânico Peter Mitchell (1920-1992), o médico e bioquímico argentino Luis Leloir (1906-1987) e o químico norte-americano Paul Boyer (1918-2018).

O âmago da bioenergética A premiação de Paul Boyer é emblemática por desvendar o que podemos considerar o âmago da bioenergética: o mecanismo usado pela enzima ATP-sintase para sintetizar o ATP a partir da reação entre ADP (adenosina difosfato) e fosfato. Em 1997, Boyer dividiu o prêmio com o químico britânico John E. Walker, que foi responsável por decifrar a estrutura tridimensional da enzima, e com o químico dinamarquês Jens Skou (1918-2018), pela descoberta da enzima Na+/K+-ATPase). A proposta de Boyer para o funcionamento da ATP-sintase foi extremamente engenhosa, mas demandou um longo caminho, no qual, por vezes, certezas tiveram que ser desfeitas para que novas possibilidades pudessem ser enxergadas. Por duas décadas, Boyer e outros bioquímicos – incluindo os norte-americanos Britton Chance (1913-2010) e David Green (1910-1983), o húngaro Lars Ernster (19201998), o polonês Efraim Racker (1913-1991) e o australiano Edward Slater (1917-2016) – procuraram exaustiva e obstinadamente uma molécula contendo uma ligação de alta energia com grupos fosfato, capaz de transferirfosfato para a molécula de ADP, formando ATP, o que parecia ser o mecanismo para a síntese dessa molécula. Entretanto, como Boyer menciona em sua autobiografia: “A natureza não projeta seus sistemas para nos facilitar a descoberta de como eles funcionam”. O abandono da ideia do composto de ‘alta energia’, juntamente com vários avanços nas determinações de estruturas de proteínas, permitiu que Boyer abrisse sua mente para novas ideias, levando-o à proposta da ‘hipótese conformacional’.


Figura 1. O esquema representa o conjunto das principais vias metabólicas que ocorrem nas células. Cada bolinha corresponde a uma reação química CRÉDITO: EXTRAÍDA DA BASE DE DADOS KEGG PATHWAY . DISPONÍVEL EM: HTTPS://WWW.GENOME.JP/PATHWAY/MAP01100

Boyer propôs que mudanças na estrutura da enzima, ou seja, no formato do sítio catalítico onde os reagentes (ADP e fosfato) estavam ligados, criavam um ambiente mais favorável à formação da ligação química entre as duas moléculas, resultando na síntese de ATP. Mas como isso ocorreria? O mecanismo ainda não estava completo.

A peça que faltava Nesse ponto da história, entra um personagem inusitado: o bioquímico Leopoldo de Meis (1938-2014), uma figura extraordinária da ciência brasileira. Filho de italianos, De Meis nasceu no Egito e passou sua infância em Nápoles. Quando tinha 9 anos, sua família mudou-se para o Brasil. Aqui, ele se formou em medicina e se tornou um dos cientistas mais importantes do país. Com uma enorme produção científica, muitos alunos orientados e prêmios acumulados, teve também uma intensa

atuação ao levar a ciência para alunos e professores da educação básica e ao aproximar a ciência da arte, gerando livros em quadrinhos, peças de teatro e vídeos de grande riqueza criativa. Enquanto Boyer buscava compreender como as mudanças na estrutura da ATP-sintase criavam as condições que levavam à síntese de ATP, De Meis, em seu laboratório no Rio de Janeiro, trabalhava no mesmo tema aplicado a outro sistema, a Ca2+-ATPase, enzima importante no transporte de cálcio durante a contração muscular. Boyer havia chegado à inesperada conclusão de que a ligação de ‘alta energia’ do ATP poderia se formar sem uma entrada externa de energia, contradizendo o que se acreditava até então. Os dados de De Meis mostravam que a chave para a compreensão dessa aparente contradição estava em mudanças na chamada ‘atividade da água’, ou seja, na energia envolvida na solvatação (interação com as moléculas CH 389 | JULHO 2022 | 55

>


BASTIDORES DA CIÊNCIA

Mitocôndria Baixo pH + Alta concentração de H

Espaço entre-membranas +

+

2H

2H

+

2H

Citocromo c

Figura 2. Fragmento extraído de Energy, life and ATP, discurso proferido por Paul Boyer ao ganhar o prêmio Nobel de Química em 1997. O trecho em destaque diz: “Fatores que promovem a formação do ATP nos sítios catalíticos da miosina e F1-ATPase, incluem provavelmente uma ligação muito forte do ATP à enzima e, como sugerido por De Meis, a baixa atividade da água”

I

NADH

ATP ADP + Pi

NAD

Matriz

+

2H

Alto pH Baixa concentração de H+ +

H2O

2H + 1 2O2

+

2H

IV

H

+

IV

56 | CH 389 | JULHO 2022

III

Q +

ATP-sintase

FAD + + 2H

CRÉDITO: WIKIMEDIA COMMONS

de água) de determinada molécula. A convergência de ideias entre os dois trouxe Boyer ao Rio de Janeiro na década de 1970. De Meis e Boyer trabalharam juntos nessa questão e continuaram colaborando à distância depois da volta de Boyer aos Estados Unidos. Em seu discurso ao receber o prêmio Nobel, Boyer reconhece a importância da sua colaboração com De Meis (figura 2). Embora o mecanismo enzimático da ATP-sintase proposto por Boyer fosse correto, o processo geral de síntese de ATP através da respiração celular (mais precisamente, a fosforilação oxidativa) só pôde ser completado quando a ‘hipótese conformacional’ de Boyer foi conciliada à revolucionária ‘hipótese quimiosmótica’ de Peter Mitchell. Em resumo, hoje sabemos que a energia dos nutrientes que comemos é guardada nas células na forma da molécula de ATP por meio das seguintes etapas: No metabolismo dos nutrientes, elétrons que fazem parte dessas moléculas são retirados e transportados através da membrana interna da mitocôndria (figura 3), gerando uma corrente elétrica. Ou seja, podemos dizer que a energia química dos alimentos é convertida em potencial elétrico. Essa energia elétrica serve para transportar íons hidrogênio (H+) do interior da mitocôndria (chamado matriz mitocondrial) para o espaço entre as membranas interna e externa da mitocôndria, gerando energia potencial decorrente da diferença de quantidade de íons hidrogênio nos dois compartimentos adjacentes (matriz e espaço entre as membranas mitocondriais). Finalmente, a passagem dos íons hidrogênio que estavam aprisionados no espaço entre as membranas mitocondriais de

2e-

+

H2O

2H + 1 2O2

Ciclo de Krebs

FADH 2

II

III

Q

2e-

Citocromo c

+

2H

Figura 3. Processo de fosforilação oxidativa na mitocôndria. Complexos formados por proteínas presentes na membrana mitocondrial interna transportam elétrons provenientes da oxidação dos nutrientes até o oxigênio, que é, então, convertido à água. O transporte de elétrons está associado ao bombeamento de íons hidrogênio (H+) para o espaço entre as membranas mitocondriais interna e externa, gerando um gradiente de pH. As passagens dos H+ pela ATP-sintase causa mudanças conformacionais, levando à remoção da água do sítio catalítico da enzima, favorecendo a síntese de ATP. A energia do gradiente de H+ serve para a liberação do ATP na matriz mitocondrial CRÉDITO: HTTP://EN.WIKIPEDIA.ORG/WIKI/IMAGE:ETC2.PNG

volta para a matriz através da ATP-sintase promove mudanças conformacionais na enzima, que, em última análise, expulsam a água do sítio catalítico onde se encontram o ADP e o fosfato, tornando a síntese de ATP uma reação energeticamente favorável. Mais uma vez aqui, podemos lembrar Leopoldo de Meis. Quem poderia imaginar que esse complexo mecanismo bioquímico poderia ser convertido em arte? Pois Leopoldo propôs a alunos da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) uma inusitada missão: convidou-os para passar um período em seu laboratório ‘respirando’ bioquímica. A partir dessa experiência, os estudantes deveriam produzir um filme sobre as conversões de energia na mitocôndria durante a fosforilação oxidativa. O resultado vale muito a pena de ser visto! O link a seguir leva à terceira parte do vídeo, que representa artisticamente a fosforilação oxidativa: https://youtu.be/JORhTOC1kos. g


NA REDE NO RÁDIO

DEBAIXO DO TAPETE DA CIÊNCIA

Criado pela Nav Reportagens, o podcast Ciência suja se propõe a apresentar histórias que envolvem fraudes, má interpretação de modelos científicos e uso equivocado de resultados de pesquisa Raoni Schroeder Instituto de Química, Universidade Federal do Rio de Janeiro

O RESQUÍCIO de homem moderno que vive em nós clama por uma ciência salvadora, que trará de outro plano a solução para os males que nos afligem. Quando esse homem moderno abraça o nosso primitivo, aquele que luta de maneira cega pela sobrevivência, fica fácil esquecermos que a ciência passa fundamentalmente pela escolha de um método adequado e pela validação por uma comunidade bem treinada e atenta aos detalhes imprescindíveis. A ciência é uma construção social, praticada por seres humanos. Ao contrário de como gostaria o velho Descartes, somos razão e emoção coabitando um mesmo corpo, de maneira indissociável. Quando deixamos de lado os princípios básicos que estabelecemos para a prática científica, aqueles que permitem o aproveitamento de seus potenciais benefícios, essa ciência pode ser tornar beeem “suja”, e o discurso científico se traveste de algo extremamente nocivo. É com o nome de Ciência suja, sem eufemismo algum, que o podcast criado pela produtora Nav Reportagens se propõe a apresentar histórias que envolvem fraudes, má interpretação de modelos científicos e uso equivocado de resultados de pesquisa ainda pouco explorados.

A pílula mágica O assunto do primeiro episódio, intitulado “A farsa da pílula do câncer”, abre a temporada de maneira magistral. Em uma conversa um pouco mais informal – aquela velha conversa de bar com os amigos –, boa parcela da população resolveu comprar a briga da pílula mágica, foi justamente quando a coisa começou a “dar ruim”. Se hoje olhamos atônitos os absurdos feitos em prol do uso da cloroquina durante a pandemia de COVID-19, devemos lembrar que o buraco já foi ainda mais fundo. A fosfoetanolamina sequer havia passado pelos testes pré-clínicos e sua produção era feita em um laboratório universitário, carente dos elementos mais básicos para a pro-

dução de um fármaco. Assistiu à série Breaking Bad? Como ex-funcionário de uma indústria farmoquímica, eu poderia afirmar sem grandes ressalvas que a metanfetamina de Walter White era produzida em condições muito mais dignas no que diz respeito a controle de processo e garantia da qualidade. A primeira temporada do podcast parte de seis episódios que se iniciam com a fosfoetanolamina e, na sequência, permeiam assuntos como a eugenia, a indústria de tabaco, os preconceitos enfrentados pelos portadores de AIDS, até chegar à intrigante saga dos antivacina e aos comportamentos catastróficos adotados por políticos durante a pandemia. Na sequência, uma série de debates na forma de mesacasts completa a temporada, trazendo assuntos de interesse não só para o grande público, como também para aqueles que habitam o universo acadêmico – destaque para ‘o mercado da ciência’ e ‘mulheres na ciência’.

Pegada investigativa Ciência suja tem o apoio do Instituto Serrapilheira, é bem ambientado e seu conteúdo é passado de forma clara e instigante. Além disso, a pegada de jornalismo investigativo ajuda a prender ainda mais a atenção do ouvinte. Entrevistas variadas complementam o cenário, como no episódio sobre eugenia, que conta com a participação de José Renato Kehl, neto de Renato Kehl, um dos ícones do pensamento eugenista no Brasil. José Renato, que nada tem a ver com as ideias do avô, traz histórias e documentos que ajudam na compreensão da personalidade de Renato. Ademais, figuras ativas na ciência brasileira são presença constante, como o químico Luiz Carlos Dias, a microbiologista Natalia Pasternak e a biomédica Helena Nader, atual presidente da Academia Brasileira de Ciências. Diria que, com uma bela produção, Ciência suja contribui para melhor compreensão dos processos científicos e dos potenciais malefícios não só da ciência malfeita, mas daquela divulgada de maneira imprecisa e irresponsável. g CH 389 | JULHO 2022 | 57


MULHERES NA CIÊNCIA

UMA CIENTISTA FUNDAMENTAL A socióloga Maria Lucia Maciel dedicou a carreira à ciência brasileira e ao seu papel no desenvolvimento do país, sendo também fundamental no conselho administrativo do Instituto Ciência Hoje, que vem, através de sua amiga pessoal e colega de profissão Sarita Albagli, prestar esta homenagem

Sarita Albagli Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação IBICT e Universidade Federal do Rio de Janeiro

FILHA DE DIPLOMATA e duas vezes casada com diplomatas, Maria Lucia Maciel, nossa querida Luca, nasceu em Londres, na Inglaterra, em 1946, e viveu em diversos países. Com uma trajetória de pesquisa e ensino de ciência e tecnologia, ela contribuiu para a consolidação dessa linha no Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília, onde cursou a graduação e, também, atuou como docente, de 1985 a 2000. Na UnB, foi ainda editora da Revista Sociedade & Estado. Seus estudos de pós-graduação aconteceram no exterior: o mestrado na Universidade Livre de Bruxelas (1981) e o doutorado na Universidade Paris VII (1986), ambos em sociologia.

C&T e inovação local Em seu pós-doutorado no Istituto di Studi sulla Ricerca Scientifica (1991-1992), Luca se debruçou sobre a experiência de desenvolvimento da chamada Terceira Itália, evidenciando a inovação como uma síntese entre mudanças tecnológicas e sociais. Situada ao nordeste do país, a região distinguiu-se da polarização entre o norte mais desenvolvido e o sul menos dinâmico, com arranjos produtivos formados por empresas, universidades, governos e organizações locais da sociedade civil. Da pesquisa, resultou o livro O Milagre Italiano: caos, crise e criatividade (Editora Paralelo 15, 1996). Foi na sua vinda para o Rio de Janeiro, em 2000, como pesquisadora visitante do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiros, que conheci Luca. Ambas participávamos da RedeSist – Rede de Pesquisa em Arranjos e Sistemas Produtivos e Inovativos Locais, 58 | CH 389 | JULHO 2022

coordenada pelos colegas e amigos Helena Lastres e José Eduardo Cassiolato. Ali transitamos nos anos 2000 a 2003, provocadas, por nossos parceiros economistas, a trazermos aportes da sociologia para o campo de estudos da inovação local, que o grupo então capitaneava no país. Nossa primeira parceria acadêmica foi em trabalho sobre o conceito de capital social e sua aplicabilidade aos arranjos produtivos e inovativos locais, como ambientes de aprendizado e inovação. Tratamos de relativizar uma perspectiva fundada na associação entre capital social e a ideia de confiança, derivada dos trabalhos do cientista político estadunidense Robert Putnam. Ele, autor responsável por popularizar o conceito, atribuía-lhe papel explicativo para diferentes níveis de engajamento cívico e de cooperação social, vistos como atributos cruciais nas dinâmicas de inovação local. Sob inspiração de Luca, nosso foco recaiu em ressaltar o caráter agonístico do conceito, a partir da contribuição seminal do francês Pierre Bourdieu (1930-2002), em cunhar o termo, relacionando diferentes tipos de capital a distintos recursos de poder.

Um laboratório interdisciplinar Em 2003, já como professora do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política na mesma universidade, fundamos o Laboratório Interdisciplinar sobre Informação e Conhecimento (Liinc). A proposta era promover o diálogo interdisciplinar para tratar de agendas e temas emergentes nas formas e dinâmicas de produção, circulação e apropriação da informação e do conhecimento em sua relação com os processos de transformação em diferentes dimensões. Em 2005, lançamos o periódico científico Liinc em Revista, que aglutinou contribuições de diferentes áreas do conhecimento em torno de dossiês temáticos transversais, logrando alçar-se aos extratos superiores na avaliação de periódicos.


CRÉDITO: SARITA ALBAGLI

Nesse percurso, Luca, então Pesquisadora de Produtividade do CNPq, mobilizou sua ampla rede de conhecimento e reconhecimento entre seus pares das ciências sociais, atuantes no campo dos estudos sociais da ciência, tecnologia e inovação, no país e no exterior, além de alunos em iniciação científica, mestrado e doutorado. No Liinc, esteve à frente da organização de seminários internacionais que se constituíram em marcos no debate de novas agendas e questões nesses campos, resultando em publicações de livros, capítulos de livros, artigos em periódicos científicos e trabalhos apresentados em congressos, dentro e fora do país. Seu olhar privilegiava o papel da ciência e tecnologia nas agendas de desenvolvimento e suas implicações para desiguais posições no cenário internacional, em circuitos crescentemente globalizados, advogando por uma perspectiva brasileira e latino-americana e por uma abordagem necessariamente interdisciplinar da questão. Sua preocupação dirigia-se para o reconhecimento da crescente privatização da ciência e de seu viés mercadológico.

Ativista pela ciência Luca foi também uma ativa militante em favor da ciência brasileira, mobilizando esforços e adesões para a causa, com expressiva atuação para o fortalecimento da

Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), tendo contribuído para o debate dos temas da ciência, tecnologia, educação e direitos humanos no processo de elaboração da Constituição de 1988. Empenhou-se para abrir espaço e reconhecimento das temáticas da ciência e tecnologia no campo da sociologia brasileira, a partir de suas especificidades no país, em fóruns tradicionais de comunicação científica da área, como a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) e, especialmente, a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), juntamente com colegas, amigas e amigos, como Fernanda Sobral, Maíra Baumgarten, Tamara Benakouche, Tom Dwyer, entre outros. No Instituto Ciência Hoje, integrou o conselho administrativo por 15 anos, dedicando-se a um dos temas que lhe eram mais caros, a divulgação científica e seu papel na interlocução entre ciência e sociedade. Desde 2010, era docente credenciada no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação, desenvolvido pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) em associação com a Escola de Comunicação da UFRJ. Luca faleceu em outubro de 2019, deixando dois filhos e quatro netos, e uma legião de saudosos colegas, alunos, amigos e familiares. g CH 389 | JULHO 2022 | 59


RESULTADOS IMEDIATOS

GEOTECNOLOGIAS E BIGDATA: NOVOS ALIADOS DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO

Pesquisadores brasileiros mostram que a sinergia entre satélites, big data, índices de vegetação e temperaturas superficiais pode ajudar a planejar e gerir recursos naturais do semiárido e da Caatinga, bem como prevenir danos irreversíveis a esses ambientes Diego Sperle Adinan Marzulo Carla Madureira Cruz Departamento de Geografia Universidade Federal do Rio de Janeiro

O SEMIÁRIDO BRASILEIRO é a porção mais seca do Brasil, com chuvas irregulares que podem demorar meses para cair. Neste ambiente, aparentemente inóspito, prospera um bioma exclusivamente brasileiro, a Caatinga. Tanto as plantas quanto os animais da Caatinga são adaptados à escassez sazonal de água, que ocorre todos os anos, mas que, às vezes, é prolongada por fenômenos climáticos. A vegetação dessa região tem uma característica peculiar: a perda de folhas quando há um longo período sem água disponível. Sem as folhas, as plantas ganham aspecto esbranquiçado – daí, vem a origem da palavra Caatinga (‘mata branca’, em tupi-guarani). Mas basta chover para a vegetação recuperar em pouco tempo suas folhas. Esse bioma (figura 1) tem inúmeras espécies endêmicas – ou seja, que só ocorrem nele –, além de ser sensível à intervenção humana. A desertificação está entre os principais perigos que os impactos ambientais no semiárido podem gerar. Por esse motivo, é fundamental monitorar o estado da vegetação e as atividades humanas nessa região, para poder planejar e gerir os recursos naturais, bem como prevenir danos ambientais irreversíveis. Um dos grandes aliados dos pesquisadores nessa tarefa são satélites que geram imagens da superfície da Terra, a partir das quais é possível fazer mapeamentos. Mas o semiárido brasileiro e a Caatinga são tão dinâmicos e peculiares que novas abordagens devem ser usadas. 60 | CH 389 | JULHO 2022

Figura 1. Limite políticos do semiárido (laranja) e sua localização no território brasileiro (amarelo) CRÉDITO: ELABORADO PELOS AUTORES/SUDENE (2017)/IBGE (2021)/GOOGLE SATELLITE

Novas abordagens Entre essas abordagens, está o uso de grande quantidade de dados sobre o planeta, o chamado Big EO Data – EO, sigla, em inglês, para Observação da Terra. Com essas informações, é possível entender dinâmicas sutis, aproveitando o grande volume de dados disponíveis. Plataformas como o Google Earth Engine (GEE) permitem que o processamento desses dados seja feito com o uso simultâneo de computadores, por meio de processamento em nuvem. Isso permite que grande volume de dados seja processado em tempo bem inferior se comparado ao de apenas uma máquina. Esse panorama tem contribuído para pesquisas em todo o mundo, abrindo oportunidades para que as análises fiquem cada vez mais complexas, graças ao volume de dados massivo.


Esses novos caminhos contribuem para que o semiárido seja estudado por outra perspectiva, possibilitando melhores tomadas de decisão, bem como o monitoramento das secas, dos impactos ambientais, das mudanças climáticas, do desmatamento, entre outros fenômenos. A figura 2 mostra exemplo da média de temperatura diária para todo o semiárido brasileiro por período de 20 anos. O gráfico é baseado em médias móveis, mostrando os ciclos de aumento e diminuição da temperatura. Vemos que os valores menores e maiores para a temperatura superficial são coincidentes, respectivamente, com as estações úmidas e secas. Mas, ao longo do tempo, percebemos variações nessas médias que formam padrões associados a secas prolongadas na região. Por exemplo, o período de 2012 a 2017 (área em vermelho no gráfico), foi marcado por seca extrema, influenciada pelo fenômeno El Niño, o qual, como era de se esperar, gerou aumento nas médias de temperatura. No gráfico, a linha pontilhada destaca o aumento da temperatura média mínima naquele período de seca. Isso sugere que a temperatura de superfície pode ser usada como parâmetro complementar aos dados de chuvas para o monitoramento, a identificação e delimitação dos eventos de secas no semiárido.

Figura 2. Média de temperatura diária para o semiárido brasileiro (2002-2020) CRÉDITO: CEDIDO PELOS AUTORES

Figura 3. Índice de Vegetação Aprimorado (EVI) de 2002 a 2020 CRÉDITO: CEDIDO PELOS AUTORES

Outro aliado Outro aliado importante nesse monitoramento são os índices de vegetação. Mas, antes de falarmos deles, é importante relembrar que a vegetação da região é bem sensível à presença de umidade. Por esse motivo, em períodos de seca prolongada, a vegetação estará com menos folhas quando comparada a período não marcado pela seca, em uma mesma época do ano. Assim, os índices de vegetação são artifícios usados por pesquisadores que trabalham com imagens de satélite para facilitar a identificação, classificação e delimitação de áreas vegetadas. No geral, esses índices são sensíveis à presença de clorofila, que, por sua vez, está concentrada nas folhas das plantas. Seguindo essa lógica, quando a vegetação da Caatinga, por conta da escassez de água, perde suas folhas – tanto no período seco na região quanto no de secas prolongadas –, encontramos valores mais baixos desses índices. Há diversos índices de vegetação. Em nosso trabalho, empregamos o EVI (sigla, em inglês, para Índice de Ve-

getação Aprimorado). Na figura 3, é possível observar as variações desse índice no semiárido ao longo de 20 anos de dados obtidos por sensoriamento remoto orbital. Quanto mais úmido o período, maiores são os valores do EVI. Usando mais uma vez o período 2012-2017 como exemplo, podemos observar (área verde em destaque no gráfico) que os valores médios máximos desse intervalo são inferiores aos de outros anos.

Contribuição importante Esses resultados mostram que é possível associar dados de temperatura superficial e índices de vegetação, para conseguir entender as dinâmicas sazonais do semiárido – como é o caso das secas. Nesse contexto, vale enfatizar que é difícil definir, com precisão, o começo e o fim do fenômeno da seca. Portanto, é importante contribuir para delimitar de forma mais precisa esses períodos críticos. Espera-se que, com a ajuda dessa abordagem metodológica (baseada em dados gratuitos), uma modelagem programada em ambiente de processamento aberto – a qual pode ser alimentada por longos períodos de observação – possa ressaltar possíveis mudanças no padrão de ocorrência desses fenômenos e indicar áreas críticas que demandam ações emergenciais. g CH 389 | JULHO 2022 | 61


NA TELA

ESTRANGEIROS DO PASSADO

Com trama baseada em viajantes do tempo que passam a viver no mundo atual, série norueguesa traz reflexões sobre imigração em massa, conflitos culturais e a relação das sociedades com suas próprias histórias

Victor Giraldo Programa de Pós-Graduação em Ensino de Matemática Programa de Pós-Graduação em Educação Universidade Federal do Rio de Janeiro

AS VIAGENS NO TEMPO têm sido um tema recorrente na produção audiovisual recente em ficção científica, constituindo enredos centrais tanto em filmes para o cinema como em séries produzidas ou disponibilizadas por serviços de streaming. As histórias dessas obras propõem diferentes formulações para as estruturas das linhas de tempo percorridas nas viagens temporais, bem como diferentes formas de lidar com os paradoxos causados pelas possíveis violações de relações de causalidade (que acontecem quando se interfere em um evento do passado, podendo provocar mudanças no futuro). Além 62 | CH 389 | JULHO 2022

disso, essas histórias discutem, em diferentes graus de profundidade, várias questões existenciais, filosóficas e sociais envolvidas com o deslocamento temporal e com o próprio conceito de tempo. Esse é o caso da série Beforeigners, produção norueguesa com duas temporadas concluídas, lançadas em 2019 e 2021. A história, ambientada na Oslo contemporânea, tem início com um episódio bizarro: pessoas começam a aparecer ‘do nada’ nas águas da baía que banha a cidade. O fenômeno se torna frequente e logo se entende que aquelas pessoas foram transportadas do passado, sem explicação aparente (pelo menos em um primeiro momento). Mais precisamente, os imigrantes do tempo (como passam a ser chamados na trama) chegam sempre de três épocas específicas, na mesma localização geográfica: século 19, era viking e pré-história. A narra-


tiva então passa a se desenvolver em torno de dois personagens centrais: o policial Lars Haaland (Nicolai Cleve Broch) e a imigrante temporal da era viking Alfhildr Enginsdottir (Krista Kosonen), que também se torna policial no presente.

Questões atuais Apesar do apego explícito (e chato) aos conhecidos e desgastados clichês das séries policiais estadunidenses (como os estereótipos do ‘policial honesto injustiçado’ e do ‘policial corrupto’), Beforeigners provoca algumas reflexões interessantes sobre as viagens no tempo e as relações das pessoas e da sociedade com sua própria história. Para começar, com o desconhecimento de uma forma de devolver os imigrantes temporais a suas épocas de origem, a integração daquelas pessoas à vida contemporânea torna-se um problema social complicado e alvo de acalorados debates sobre políticas públicas. É a essa questão que o título em inglês da série faz alusão – Beforeigners é um neologismo feito da junção de before (antes) e foreigners (estrangeiros), ou seja, algo como ‘estrangeiros do passado’. Com evidentes paralelos com algumas das mais efervescentes questões do ‘mundo real’ de hoje, como colonização, imigração em massa e conflitos culturais, a trama se complexifica sobre um pano de fundo traçado por questões éticas e políticas fulcrais, tais como: De quem é esta terra? Quem pode estar neste lugar? A

quem cabe o rótulo de ‘estrangeiro’? Nesse sentido, dentre os imigrantes do passado, há aqueles que querem preservar suas tradições, bem como aqueles que se esforçam para dissipá-las em prol de um engajamento no ‘caminho do progresso’. Em contrapartida, dentre os nativos do presente, há aqueles que defendem o banimento radical dos recém-chegados, assim como aqueles que desconstroem suas próprias identidades sociais a partir do contato com outras culturas. Mais do que isso, desenham-se na narrativa disputas amplas em torno de qual visão de mundo e quais valores morais são legitimados nas sociedades contemporâneas – e por que o são. Além disso, com os entrelaçamentos entre as linhas do tempo, aos poucos revelam-se relações surpreendentes entre os personagens da história. Explicações sobre o que está por trás dos deslocamentos temporais também vão aos poucos se encaixando ao longo dos episódios. A partir das diversas questões que atravessam a trama da série, constrói-se uma metáfora por meio da qual o passado e a história – que, por vezes, parecem ocultos, mas estão sempre à espreita, sob a superfície do presente, tensionando suas estruturas – podem emergir, se materializar e se projetar no presente. As duas temporadas de Beforeigners estão disponíveis no Brasil no serviço de streaming HBO Max. Sem dar spoiler, digo apenas que o final da segunda temporada indica a intenção de continuidade para uma terceira. g CH 389 | JULHO 2022 | 63


QUAL É O PROBLEMA?

A ARTE DE CONTAR DIREITO

Marco Moriconi_ Instituto de Física,

Universidade Federal Fluminense

P

roblemas de contagem são fascinantes, por serem tão simples de propor e, ao mesmo tempo… poten­ cialmente difíceis de resolver, exigindo boa dose de criatividade. Além disso, frequentemente são apresentados na forma de historinhas, do tipo: ‘João tem cinco camisas e três calças; de quantas maneiras...’ ou ‘em uma urna, te­ mos bolinhas azuis, brancas e verdes; de quantos modos...’, o que dá a eles uma ‘concretude’ atraente.

Todo problema de contagem exige cuidado em não deixarmos algum elemento de fora e nem contarmos um elemento mais de uma vez. Por exemplo, se, em uma turma, contamos quantos estudantes gostam de maçã e quantos não gostam dessa fruta, a soma dos dois núme­ ros tem que ser o total de estudantes da turma. Mas, se perguntarmos quantos gostam de maçã e quantos gostam de banana… Pode ser que: i) deixemos de contar algum aluno que não gosta de nenhuma das duas frutas; ii) contemos estudantes que gostam das duas frutas mais de uma vez. O chamado princípio da inclusão e exclusão é útil nes­ sas situações. Vejamos um exemplo. Quantos são os múl­ tiplos de 2 ou 3 entre 1 e 100? Uma estratégia é, simples­ mente, contar ‘na mão’ quantos são esses números. Mas isso pode ficar complicado rapidamente; podemos pular algum número, contar outro mais de uma vez... Outra maneira é contar quantos são os múltiplos de 2 nesse intervalo: 2 x 1; 2 x 2; … 2 x 50, ou seja, temos 50 múltiplos de 2 entre 1 e 100. Podemos encontrar os múl­ tiplos de 3 da mesma maneira: 3 x 1; 3 x 2; … 3 x 33. To­ tal: 33 múltiplos. Então, temos 50 + 33 = 83 múltiplos de 2 ou 3? Pare­ ce muito, não? Aqui, aparece o problema da múltipla contagem: há números que são múltiplos de 2 e 3 (por exemplo, 6). Esses números foram contados duas vezes. Como corri­ gir essa redundância na contagem? Pensemos assim: os múltiplos de 2 podem ser sepa­ rados em dois conjuntos: {múltiplos de 2 que não são múltiplos de 3} e {múltiplos de 2 que são múltiplos de 3}.

O mesmo pode ser feito para os múltiplos de 3: {múltiplos de 3 que não são múltiplos de 2} e {múltiplos de 3 que são múltiplos de 2}. Vemos que, ao somar o número de múltiplos de 2 com o número de múltiplos de 3, o conjunto de múltiplos de 2 e 3 foi contado duas vezes. E quem são os múltiplos de 2 e 3? Justamente os... múltiplos de 6, pois, se um núme­ ro é múltiplo de 2 e 3, então, é múltiplo de 2 x 3 = 6. Entre 1 e 100, os múltiplos de 6 são 6 x 1; 6 x 2; … 6 x 16. Total: 16 números. Portanto, o número de múltiplos de 2 ou 3 entre 1 e 100 é o seguinte: 50 (múltiplos de dois) + 33 (múltiplos de 3) – 16 (múltiplos de 2 e 3) = 67. Como, na primeira soma, incluímos os múltiplos de 2 ou 3 e na subtração excluímos os múltiplos de 2 e 3, fica explicado por que nosso princípio é chamado ‘inclusão e exclusão’. Esse é um princípio útil que pode ser aplicado em vários problemas. O(a) leitor(a) ficou animado(a)? Que tal um desafio? g

Desafio Quantos são os múltiplos de 2 ou 3 ou 5 entre 1 e 100? Dica: faça um ‘diagrama de Venn’ – aquele que usamos para representar conjuntos graficamente – para ajudar a entender quais números devem ser incluídos (somados) e excluídos (subtraídos).

Solução do desafio anterior Usaremos o mesmo raciocínio que no caso de três sapos e três rãs, cada um dos M sapos terá que avançar N + 1 casas, e cada uma das N rãs terá que avançar M + 1 casas. Portanto, são M(N + 1) + N(M + 1) = 2MN + M + N avanços. Cada ‘deslizada’ é um avanço de uma casa; e cada pulo, um avanço de duas casas. Como teremos MN pulos, que correspondem a avanços de duas casas, executaremos MN pulos e M + N deslizadas, totalizando, entre pulos e deslizadas, MN + M + N movimentos. CH 389 | JULHO 2022 | 64


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