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NADA ALÉM DE FALÁCIAS: UMA ANÁLISE ARGUMENTATIVA DA SENTENÇA CONDENATÓRIA CONTRA O EX- PRESIDENTE LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
NADA ALÉM DE FALÁCIAS: UMA ANÁLISE ARGUMENTATIVA DA SENTENÇA
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1. Introdução
Este artigo procura discutir alguns pontos específicos da sentença condenatória contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva proferida pela 1a Instância da Justiça Federal (TRF) da 4a. Região. Para demonstrar que a referida decisão fere pontos fulcrais do Estado Democrático de Direito, o trabalho irá valer-se das contribuições da teoria do direito e da teoria da argumentação jurídica 66. Não há, evidentemente, qualquer pretensão de esgotar o tema, apenas busca-se oferecer ao leitor ferramentas para que este possa fazer a própria análise da decisão em comento.
2. Breves anotações sobre a teoria da argumentação
Uma das demandas históricas daqueles que temos nos dedicado ao estudo das estruturas e do funcionamento do Poder Judiciário é a necessidade de este fundamentar as suas decisões, de modo a informar os motivos (nem sempre claros) que formaram a convicção de um juiz. Sendo este um poder do Estado cuja legitimidade não vem do voto, tem, portanto, a obrigação a necessidade imperiosa de justificar, através de argumentos racionais, a suas conclusões que apresenta sejam elas quais forem. Há, assim, uma vasta literatura em um âmbito específico da teoria do direito, denominado de teoria da argumentação jurídica que se dedica justamente a fornecer elementos sobre o que seria (ou não) um argumento racional. Um argumento racional é aquele capaz de satisfazer as exigências democráticas que constituem o cerne da atuação de um poder contramajoritário, ou seja, aquele poder que tem por função precípua limitar a vontade da maioria e garantir a supremacia da Constituição 67 , como é o caso do Poder Judiciário. Inicialmente, podemos afirmar que a argumentação se constitui em um conjunto de elementos que são, basicamente, os raciocínios utilizados para compor uma teia argumentativa. Temos, desta forma, que os raciocínios – argumentos – são as razões que sustentam uma decisão. Ainda conforme a teoria da argumentação jurídica, há dois tipos de raciocínios: o indutivo e o dedutivo. Ambos são compostos por um conjunto de frases a que chamamos premissas, por uma frase a que chamamos conclusão e por uma expressão que representa a relação que se reclama existir entre as premissas e a conclusão 68. Quando estamos, então, no campo da argumentação, expressões vagas,
* Doutora em direito. Professora dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade Nacional de Direito (FND) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 66 Importante esclarecer que, pelas características deste texto, não será utilizada a obra de algum autor em particular, mas apenas as principais definições e conceitos da teoria da argumentação jurídica que se mostram necessárias neste trabalho. 67 Um poder contramajoritário é aquele que tem por função fazer frente às vontades transitórias das maiorias, assegurando um equilíbrio democrático entre mudança e estabilidade dos direitos. 68 BRANQUINHO, João. MURCHO, Desidério. GOMES. Nelson G.(org.) Enciclopédia de termos lógico/filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2006. P. 43-44.
tais como logo, então, portanto são corriqueiras e usadas vastamente. Estas locuções têm apenas a finalidade de conduzir o leitor a assumir as conclusões do emissor sem que este precise justificar claramente as suas premissas. No que toca aos argumentos propriamente ditos, é comum que estes sejam dividos em fortes e fracos; convincentes e não convincentes (quando falamos dos indutivos) e válidos e inválidos (quando falamos em dedutivos). Porém, a avaliação de todos os argumentos depende da validade das premissas. Uma premissa, por sua vez, somente pode ser considerada verdadeira ou falsa. Daqui resulta, portanto, que a conclusão de um raciocínio, para a teoria da argumentação jurídica, sempre irá sustentar-se na força de um argumento. Um argumento indutivo forte é aquele em que a conclusão tem alta probabilidade de ser verdadeira, um argumento indutivo fraco aparece quando a conclusão tem pouca probabilidade de ser verdadeira (sempre consideradas as premissas). Ocorre que para levar o receptor ao convencimento das razões vinculadas pelo uso de um determinado argumento, é preciso: (i) que este se encontre atrelado ao valor das verdades das proposições; (ii) que as premissas sejam comprovadamente verdadeiras; e, (iii) que a conclusão resulte de uma decorrência racional das partes anteriormente mencionada. Caso isto não se verifique, não há que se falar em decisão racional, mas, sim em seu oposto, naquilo que costuma denominar-se de falácias. Uma falácia é um argumento que apresenta graves deficiências e estas (as deficiências) são facilmente identificáveis em um raciocínio que se pretende interpor ao destinatário como verdadeiro. Porém, para detectar uma falácia se faz necessária uma análise do conteúdo dos argumentos utilizados. Com efeito, sem uma análise mais pormenorizada torna-se difícil, na maioria das vezes, separar um argumento verdadeiro (e racional) de um falacioso (e falso). É este trabalho que faremos a seguir, a partir de dois subterfúgios usados recorrentemente pelo julgador na sentença condenatória.
3. Nada além de falácias ou sobre o que a decisão nos diz
Ainda que seja possível afirmar que a sentença condenatória proferida contra o expresidente Luiz Inácio Lula da Silva seja uma soma de falácias, é preciso escolher alguns pontos para demonstrar esta afirmação. Assim, escolhemos dois pontos para debater com o leitor. Ambos se vinculam ao que denominamos esquizofrenia justificatória e aparecem do começo ao fim da decisão. Isto porque, para cada abuso de poder cometido ao longo do processo, apresenta, o julgador, uma justificativa (quase esquizofrênica) falaciosa. Vejamos então o primeiro exemplo. Diz a decisão no item 57 (p. 12): Os questionamentos sobre a imparcialidade deste julgador constituem mero diversionismo e, embora sejam compreensíveis como estratégia da Defesa, não deixam de ser lamentáveis já que não encontram qualquer base fática e também não têm base em argumentos minimamente consistentes, como já decidido, como visto, pelo Egrégio Tribunal Regional Federal da 4a Região. Decodificando este primeiro argumento (?) temos já uma clara desqualificação do interlocutor. Nada mais falacioso, por exemplo, do que afirmar que se trata (i) de mero diversionismo o direito de defesa; (ii) chamar de lamentáveis questionamentos amparados em liberdades básicas; e, por fim, (iii) reduzir o interlocutor a mero
reclamante, deslegitimando todos os pressupostos do Estado de direito. Há aqui uma clara inversão da argumentação que não passará despercebida a um leitor mais atendo. Isto porque, pese o juiz afirmar que a defesa desqualifica o julgador, percebemos claramente que é justamente este quem desqualifica a defesa para justificar as suas arbitrariedades. Ora, se a defesa não tem legitimidade (premissa) para o exercício de sua atividade, logo a conclusão é que seus atos são inválidos. Temos aqui um claro exemplo da substituição da verdade pelas falácias. E isto se repete (de forma similar) nos parágrafos 65; 138 e 148. Temos, portanto, na decisão em comento, que sempre que se interpela o julgador em razão de algum ato parcial ou injusto, a reposta é a desqualificação. Com efeito, ao fazer isto repetidamente, tal como denuncia a teoria da argumentação jurídica, aquele que expõem as premissas tenta ganhar ou reforçar a adesão das mentes às teses que se lhes apresentam ao assentimento 69. Através do reforço constante das suas premissas, o julgador (acredita que) vai conseguindo a adesão do seu auditório 70 . Ao final do contato com a decisão espera o juiz todos estejam certos da veracidade de seus argumentos, pois teria ele, convertido, pela repetição, as falácias em verdades. Ainda na tentativa de desvendar as falácias que atravessam a decisão, merece destaque um segundo ponto. Trata-se novamente da saga justificatória de suas arbitrariedades durante o processo, em especial, no que diz respeito à condução coercitiva do expresidente. A decisão, quando aborda este fato gravíssimo de violação de direitos, busca ser sintética com o claro objetivo, novamente, de diminuir a repercussão do abuso. Diz apenas que condução coercitiva foi medida que estava justificada no contexto e o tempo lhe deu ainda mais razão (parágrafo 76) e segue dizendo que ainda que se possa eventualmente discordar da medida, há de se convir que conduzir alguém, por algumas horas, para prestar depoimento, com a presença do advogado, resguardo absoluto à integridade física e ao direito ao silêncio, não é equivalente à prisão cautelar, nem transformou o ex-Presidente em um "preso político". Nada equivalente a uma "guerra jurídica" (parágrafo 77) Com efeito, neste caso específico, temos, por um lado, que o ex-presidente obedeceu a ilegalidade do ato do juiz, algo que, aparentemente teria “legitimado” mais um ato parcial. Este, por seu turno, ciente do arbítrio se justificou alegando que era para preservar o ex-presidente. Mas, caso isto fosse verdade, porque Luiz Inácio Lula da Silva não foi ouvido discretamente, como merece um ex-presidente? E mais, porque volta ainda o julgador à justificação? Por que tantas palavras se apenas bons argumentos já bastariam? Ora, o julgador sabe muito bem que não há discussão possível sem o ônus probatório e para fazer isto ele recorre novamente à desqualificação desta vez da violência por ele mesmo empregada. Não deixa de ser significativo que ele mesmo recorra o tempo todo a uma guerra jurídica a qual diz não reconhecer, mas que constantemente patrocinou. 4. Considerações finais
69 PERELMAN, Chaïm. Retóricas. 2a edição. Trad. De Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fortes, 1999. P. 324. 70 Auditório é a forma como a teoria da argumentação se refere aos destinatários de uma determinada interlocução.
Sabemos que são inúmeras as arbitrariedades que atravessam esta decisão. Elas vão desde a condenação sem materialidade até a corrupção sem contrapartida, porém aqui tivemos por objetivo fornecer algumas ferramentas para que, dispensando o juiz, o leitor possa construir suas premissas e chegar as suas próprias conclusões. Não é preciso ir além, ao falar e, paradoxalmente, não falar, o julgador fala por si.
. Referências ATIENZA, Manuel Rodrigues. Las razones del derecho: teorías de la argumentación jurídica. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2. reimpressão, 1997. BRANQUINHO, João. MURCHO, Desidério. GOMES. Nelson G.(org.) Enciclopédia de termos lógico/filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 803 p FERRAZ, Tércio Sampaio Jr. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 3a edição. São Paulo: Atlas, 2001. PERELMAN, Chaïm. Retóricas. 2a edição. Trad. De Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fortes, 1999. 417 P.