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DIREITO PENAL DO INIMIGO (POLÍTICO

DIREITO PENAL DO INIMIGO (POLÍTICO)

Charlotth Back *

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A sentença do juiz Sergio Moro, que condenou o ex-Presidente Lula a nove anos e seis meses de reclusão por um suposto (e não comprovado) enriquecimento ilícito, fruto de uma alegada prática de corrupção, é um exemplo claro da aplicação da doutrina do Direito Penal do Inimigo, com a finalidade de "combater a corrupção no Brasil". Essa doutrina foi criada na década de 1980 pelo jurista alemão Günther Jakobs, mas ganhou força no governo de George W Bush, após o ataque às Torres Gêmeas de 2001, e, principalmente, nas invasões norte americanas ao Afeganistão e ao Iraque. Sob o argumento de segurança nacional, de legítima defesa ou de combate ao terrorismo - o proclamado mal do século XXI - certas pessoas, por serem consideradas inimigas da sociedade ou do Estado, não deteriam todas as garantias e proteções penais e processuais penais que são asseguradas aos demais indivíduos. Em nome da defesa da sociedade, as garantias penais mínimas consagradas pelas constituições e pelos instrumentos internacionais de proteção dos Direitos Humanos, como a presunção de inocência, a vedação da condenação sem provas, o princípio da legalidade, a neutralidade do julgador, a proibição da tortura, bem como o impedimento de obtenção de provas por meios ilícitos, não se aplicam aos proclamados "inimigos da sociedade". Jakobs propõe a distinção entre um Direito Penal do Cidadão, que se caracteriza pela manutenção das normas, das garantias penais e dos limites ao poder de punição e investigação do Estado, e um Direito Penal do Inimigo, totalmente orientado para o combater os "perigos" sociais, e que permite que qualquer meio disponível, lícito ao não, seja utilizado para punir esses não-cidadãos. De acordo com Jakobs, não se trata de contrapor duas esferas isoladas do Direito Penal, mas de descrever dois polos de um só mundo e de visibilizar duas tendências opostas em um só contexto jurídico-penal. Nesse contexto, temos o Direito Penal do Cidadão, cuja tarefa é garantir a vigência da norma como expressão de uma determinada sociedade e o Direito Penal do Inimigo, ao qual cabe a missão de eliminar perigos. Ademais, no Direito Penal do Inimigo, há uma verdadeira caçada ao autor de um pretenso delito, pois o agente é punido pela sua identidade, por suas características e pela sua personalidade. Pune-se o autor, e não, a conduta delitiva em si. Assim, reprova-se a periculosidade do agente e não sua culpabilidade. A aplicação deste Direito Penal do Inimigo significa a suspensão de "certas normas" para "certas pessoas", o que sempre é justificado pela necessidade de proteger os "homens de bem", a sociedade ou o Estado contra determinadas ameaças coletivas. No pós 11 de setembro, o terrorismo passa a ser processado com leis de guerra, e seus acusados, considerados prisioneiros de guerra. O sentido garantista e limitador dos poderes punitivos do Estado, assegurado pelo Direito Penal, dá lugar à uma perseguição, na qual as leis passam a ser leis de combate, situação análoga ao que ocorreu nos regimes fascistas. As pessoas processadas criminalmente já não estão mais protegidas pela constituição ou pelos princípios mínimos dos Direitos Humanos. Aos considerados

* Pesquisadora visitante no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Portugal); Doutoranda em Ciências Jurídicas e Políticas, Universidade Pablo de Olavide (Espanha).

infratores ou contrários à ordem não se lhes aplica o Direito – combate-lhes com o Direito. A aplicação do Direito passa a ser, ao invés de protetiva, combativa e com o intuito de vencer o "inimigo da sociedade". Apesar de esta doutrina ser controversa e sujeita a críticas, a realidade nos mostra que, de fato, o Direito Penal do Inimigo tem sido aplicado de maneira sistemática em contextos de guerra - como na guerra do Iraque, e sob a justificativa de segurança nacional – como nas instalações carcerárias de Guantánamo. Esta prisão é um exemplo inequívoco de jurisdição para "combatentes irregulares" – suspeitos de terrorismo - que permite toda sorte de exceções aos princípios da persecução penal constitucional. Neste sentido, há a suspensão de direitos humanos mínimos em nome do combate ao terrorismo e da proteção da segurança nacional. Em Estados latino americanos, não atingidos pelo terrorismo, a criação do inimigo passa pelo retorno da demonização das esquerdas e pela criminalização dos movimentos sociais. Os novos golpes contra a democracia, agora travestidos de golpes jurídicoparlamentares, são um sintoma de que há uma nova ofensiva contra as conquistas sociais. Em ambos os casos, há uma inversão ideológica do Direito que passa a macular os direitos humanos ao invés de protegê-los. No contexto brasileiro, o Direito Penal do Inimigo tem sido usado na autoproclamada missão do Judiciário de "combate à corrupção". Lula e demais políticos da esquerda estão sendo tratados como verdadeiros inimigos e não como cidadãos acusados em um processo crime; ou seja, os réus aqui não são sujeitos de direito, ou mesmo alvos de proteção jurídica. São, na verdade, objetos de coação, desprovidos de direitos e da proteção jurídica mínima a que todos os seres humanos têm direito, mesmo aqueles investigados por crimes. Cabe lembrar que a utilização do Direito Penal do Inimigo no Brasil não é uma inovação do juiz Moro, uma vez que, nas operações policiais nas comunidades mais pobres e nas periferias, a regra é tratar tanto os criminosos como a população em geral de maneira equiparada a inimigos sociais. A franca utilização do Direito Penal do Inimigo na sentença do juiz Moro fica evidenciada em diversos momentos. Em primeiro lugar, falta a razoabilidade na instauração do inquérito contra Lula. O que parece aqui é que Lula está sendo investigado por conta de sua identidade política e por seu passado. Busca-se punir a possível periculosidade do agente, e não sua culpabilidade em si. Na parte final da sentença, na qual Moro considera o cargo de Lula como agravante e, portanto, justificativa para a ampliação da sua pena, o juiz, mais uma vez, recorre à pessoa do agente, e não às circunstâncias da conduta, para aplicar o Direito Penal. Deve-se lembrar que esta não é uma agravante possível ou mesmo considerável no Direito Penal brasileiro. Em segundo lugar, o julgamento de Sergio Moro se mostra totalmente parcial e pendente à condenação do réu, independentemente de qualquer prova concreta, por razões mais políticas do que jurídicas. Esse aspecto é corroborado pela conduta do próprio juiz, que vai reiteradamente à mídia fazer declarações contrárias ao réu, comparece a eventos de partidos políticos de direita e está frequente e publicamente acompanhado por adversários políticos interessados na destruição da figura política do ex-Presidente. Ademais, o juiz passa parte significativa da sentença criticando a estratégia da defesa de Lula, que alega suspeição e parcialidade do Juízo. O exPresidente tem todo o direito de se defender e de denunciar o que considera ser um

processo injusto, parcial e infundado. A defesa de Lula não pode ser criticada, nem impedida de tecer esse tipo de crítica e muito menos ser reprovada por invocar sua tese de defesa simplesmente porque o juiz considera que que isso ataca sua autoridade moral ou seu prestígio como julgador. Em terceiro lugar, apesar de a Operação Lava Jato contar com algum apelo social por conta da dita missão de "combate à corrupção", os métodos jurídicos que têm sido usados, principalmente quando se fala da investigação penal, são extremamente questionáveis face à nossa Constituição e às garantias mínimas do devido processo legal do Direito Internacional. Obtenção de delação premiada por meio de acosso, consideração na sentença de delação premiada desqualificada pelo Ministério Público Federal (responsável pela acusação), grampos em escritório de advocacia, divulgação de áudios obtidos de forma ilícita, como no caso da conversa entre Lula e a então presidenta Dilma, e a exibição pública dos acusados, configuram uma série de condutas claramente ilegais. Todos esses recursos sevem para sustentar a "convicção" do juiz para condenar o ex-Presidente Lula. Todavia, nenhuma prova, repito, nenhuma prova contundente foi apresentada na sentença para justificar a condenação - nem a escritura pública do imóvel, que está no nome da empresa OAS; nem o contrato de cessão fiduciária, que foi assinado entre a Caixa Econômica e a OAS, nenhum documento, nenhuma gravação secreta, nenhuma conta no exterior. Ademais, as testemunhas de acusação não foram em nenhum momento capazes de relacionar diretamente nem o ex Presidente nem a sua esposa com o recebimento de recursos ilícitos ou com a aquisição do triplex do Guarujá. Nota-se aqui uma clara mudança das regras do jogo processual, típica do Direito Penal do Inimigo. Um dos pilares do Direito Penal, e consequentemente, uma das garantias dos cidadãos contra a perversidade estatal, é o princípio de que a acusação tem o dever de provar o que foi alegado na inicial. Não há a possibilidade de responsabilizar alguém penalmente sem que haja uma relação direta e relevante entre o agente e o bem jurídico afetado, ou seja, sem a existência de um lastro probatório robusto e suficiente para imputar algum crime ao agente. Há que se comprovar que houve de fato uma conduta ilícita, e que esta conduta pode ser imputada ao acusado; caso contrário, existirá uma flexibilização indevida das garantias constitucionais em nome do combate à corrupção, como se este fosse o mal maior da sociedade brasileira. Por trás de um discurso pretensamente democrático e de defesa dos bens públicos, está um autoritarismo judicial dissimulado, típico de contextos de Estado de Exceção e da aplicação do Direito Penal do Inimigo. Neste último caso, o autoritarismo passa a ser mais eficiente pois consegue diluir-se e confundir-se no interior de uma proposta discursivamente democrática, que, por isso mesmo, não pode ser contraposta a nenhum outro argumento, sem que este seja considerado um "perigo aos homens de bem". De acordo com este discurso de senso comum, baseado na ideologia da "defesa social", é plenamente possível mitigar direitos e garantias fundamentais "em prol da sociedade". A colaboração evidente com a mídia, com a finalidade de criar uma mobilização popular contra Lula, e as diversas entrevistas dos procuradores da Lava Jato nos dão a certeza de que este processo passa muito distante de um processo penal jurídico; é um processo penal político e, nesse sentido, faz questão de não seguir o devido garantismo penal.

A sentença do juiz Moro é inequívoca em demonstrar o seu principal objetivo: usar todos os meios existentes, lícitos ou ilícitos, para condenar o ex-Presidente – considerado por ele e por parte do Judiciário como um inimigo que precisa ser combatido e massacrado -, ainda que para isso seja necessário macular o Direito, flexibilizar as garantias processuais, desnaturalizar os princípios constitucionais, ou seja, aplicar de forma explícita, o Direito Penal do Inimigo.

O LAMENTO DE ARISTÓTELES NA DECISÃO DO CASO DO “TRIPLEX DE LULA”: INCORREÇÕES LÓGICAS DA SENTENÇA Claudia Maria Barbosa *

A decisão que condenou o ex-Presidente suscita diversos questionamentos jurídicos envolvendo aspectos constitucionais, criminais e cíveis, a propósito dos direitos de posse e propriedade. Para além da análise jurídica, é fundamental também a análise lógica da argumentação apresentada, a qual constitui-se no objeto desse ensaio, focado na ilustração de trechos da decisão que são incorretos do ponto de vista lógico e comprometem, portanto, as conclusões obtidas. A extensão da sentença, imprópria para um documento que deveria ser compreensível à sociedade, por si só sugere, como se comprova após a leitura, a dificuldade de provarse o alegado. As 238 páginas da decisão do juiz contra o ex-Presidente, se estivessem assentadas apenas no Direito, poderiam resumir-se a poucas dezenas de páginas, nas quais conta-se os fatos, demonstra-se o nexo causal entre a conduta do agente e o resultado ilícito obtido, prova-se o alegado, fundamenta-se a decisão e estabelece-se a pena e sua dosimetria. Em Curitiba, contudo, a dificuldade era maior: diante da inconsistência das provas orais produzidas pela acusação (contradições reconhecidas pelo próprio juiz – item 587 por exemplo), enfrentando a falta de provas documentais que provem a conduta ilícita dolosa do réu, e confrontando-as às provas documentais e orais apresentadas pela defesa, que negam ter havido qualquer conduta ilícita do ex-Presidente, o magistrado inova: decide contar uma história, mas como não pode PROVAR a sua história, ele ao menos precisa PERSUADIR o leitor de que ela é verdadeira, e para tanto infere erroneamente que o fato de não haver outra história contada em detalhes, torna a sua a única verdadeira. Muito do texto jurídico é eminentemente persuasivo, na medida em que os processos pressupõem um conflito no qual as partes e o juiz procuram descrever os fatos de maneira a convencer os interessados direitos e indiretos de que “A SUA” verdade constitui-se em “A” verdade, como se fosse esta a única possível. Ciente da necessidade de se preservar a liberdade do indivíduo – direito que o liberalismo definiu como essencial ao ser humano – as constituições de vários países, assim como a brasileira, consagraram o princípio da presunção de inocência que expressa a ideia de que “todos são inocentes até prova em contrário”. Na Constituição Brasileira a redação expressa no Art. 5, LVII dispõe: “ninguém será considerado culpado até o transito em julgado de sentença pena condenatória”. Essa regra é logicamente oposta a outra que, por vezes e, infelizmente, expressa a realidade de parte da sociedade brasileira, traduzida na afirmação de que “todos são culpados até que se provem inocentes”.

* Claudia Maria Barbosa é professora titular de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e leciona Mestrado e Doutorado em Direito desta instituição.

Diferente da esfera cível, na esfera penal não basta a verossimilhança, a aparência de verdade, é preciso PROVAR, para além de uma dúvida razoável, que o acusado é culpado. A linguagem jurídica é, ela mesma, imperfeita, no sentido de que ela comunica por vezes diferentes sentidos e interpretações para termos vagos e ambíguos, e exerce distintas funções, entre elas a de informar, comunicar, convencer. Expressões como perigo iminente, força bruta e dúvida razoável são encontrados em textos normativos cujos conteúdos são delimitados fora da norma. Por isso no direito penal estabeleceu-se a principio do in dubio pro reo, segundo o qual, havendo dúvida, impõe-se a absolvição do réu. Na persuasão muitas vezes utilizam-se as falácias que, nas palavras de Warat (1985, p. 124), são “recursos argumentativos, que tendem a impor uma conclusão, não derivada logicamente, mas que logra sua aceitação por associação psicológica e emotiva”. O termo falácia deriva do verbo latino fallere, que significa enganar. Na sentença proferida nos autos da Ação Penal n. 5046512-94.2016.4.04.7000/PR, que trata do “tríplex do Lula”, o magistrado utiliza com profusão as falácias, de maneira a persuadir os destinatários diretos e a sociedade de que a construção dos fatos que ele elabora é “A” única possível, apesar da fragilidade das provas orais e da ausência de provas documentais úteis que comprovem sua hipótese. No estilo de linguagem utilizada, encontram-se lítotes, um recurso que consiste em afirmar o positivo pelo negativo, como no exemplo “não ignoro que” ao desejar expressar “eu sei que...”. Lítotes são úteis também para atenuar o pensamento, como no exemplo “Paulo não está em seu juízo perfeito”, para quem deseja afirmar “Paulo está louco”. Essa atenuação serve à ênfase dissimulada. Na decisão objeto de análise, utiliza-se de expressões escritas em profusão de forma negativa, de maneira a dissimular a fragilidade das provas que não corroboram os argumentos (premissas) utilizadas pelo magistrado. A persuasão é inimiga da lógica, mas a lógica é amiga do Direito. Uma decisão ilógica, sobretudo em matéria penal, é insubsistente e incorreta. No caso em tela, a prova dos fatos se dá muito mais por aquilo que não se prova, do que por aquilo que se pode provar, invertendo totalmente o ônus probatório, o qual, em matéria penal, recai sobre a acusação. A decisão nesta Ação Penal, embora à primeira vista possa ser persuasiva, não resiste a um exame lógico superficial, por pelo menos três motivos indicados a seguir: (i) porque não consegue demonstrar o nexo causal necessário entre o antecedente e o consequente; (ii) porque usa e abusa erradamente de um conceito de implicação lógica: se A, então B; e (iii) porque é refutada pelos princípios da não-contradição e da trivialidade que caracterizam as lógicas clássica e deôntica, conforme se demonstra a seguir, podendo ser superados, em algumas circunstâncias especiais, pela lógica paraconsistente (BARBOSA, 2005). O nexo causal em direito é o vínculo existente entre a conduta do agente e o resultado por ela produzido, ou seja, é necessário analisar e provar se determinado ato gera (produz) um específico resultado.

Em lógica o conceito de nexo causal é explicitado na ideia de implicação, cujo conceito nos impõe a seguinte regra: “Se A então B”. Ou, dito de outra forma, se A ocorre, então B ocorrerá também, necessariamente. Desse raciocínio, contudo, não decorre um outro que por vezes parece ser a sua contra-face: a construção “se não A, então não B” não é logicamente derivada da implicação. A decisão é logicamente insubsistente e fere um dos princípios essenciais da lógica clássica. A lógica clássica, de base Aristotélica, está estruturada em três leis do pensamento, expressas através do princípio da identidade, do princípio da nãocontradição e do princípio do terceiro excluído. A decisão fere de morte o princípio da não-contradição, que afirma que dois juízos contraditórios não podem ser ambos verdadeiros. Cada uma das afirmações pode ser verdadeira ou falsa, mas uma delas sendo verdadeira, a outra será falsa. O julgador no processo analisado constrói uma história e quer convencer o leitor de que ela é a única possível, logo, as demais seriam falsas. O problema desse raciocínio é que ele é incorreto. O fato de se contar uma história com premissas que se quer fazer supor serem verdadeiras, não permite concluir logicamente que todas as outras possíveis são falsas. Essa construção só se equilibra, sem sustentação, no argumento persuasivo. A característica da trivialidade, básica no raciocínio lógico, estabelece que “se em um único sistema S de lógica clássica forem derivadas duas sentenças, uma das quais sendo a negação da outra então qualquer sentença exprimível na linguagem de S pode ser derivada em S. Dito de outra forma, nas lógicas ditas clássicas em geral é válido o princípio ex falso sequitur quod libet (sic), formalmente expresso pela expressão “Se (A e (não A)) então B”, que indica que “de uma falsidade, tudo se segue”. Ou, tomando-se em consideração a ideia da contradição, “de uma contradição, qualquer coisa pode ser concluída” (BARBOSA, 2005, p. 78). Ora, conforme constata BARBOSA (2005, p. 78) “se tudo se pode concluir de uma falsidade ou de uma contradição, pode-se provar qualquer coisa, e será impossível distinguir o falso do verdadeiro, de forma que, desde o ponto de vista da lógica clássica um sistema trivial é inútil, porque, se a partir dele tudo se pode afirmar, ele não acrescenta nenhuma informação”. Por outro lado, quando a premissa de uma implicação não for verdadeira, nada pode se afirmar sobre a consequência, ou seja, não se pode dizer se a consequência é verdadeira. Para tornar visível ao leitor algumas incorreções da decisão, vamos utilizar trechos que ilustram alguns dos defeitos lógicos que a compromete e a desconstrói logicamente. Com vistas a facilitar a localização, reproduziremos na análise os mesmos números cardinais com que o magistrado apresenta a sua sequência de fatos e os utiliza em seu longo texto para localizar trechos específicos da decisão. 1. Ex falso sequitur quodlibet “587. É evidente que há diversas contradições entre os depoimentos, entre os dos acusados, entre os das testemunhas e entre os dos acusados com os das testemunhas”. “597. Apesar da prova oral não ser uníssona, há apenas uma versão dos fatos que é consistente com a prova documental já examinada no tópico II. 12.”

O raciocínio utiliza lítotes: o texto seria mais claro, por exemplo, se dissesse “Apesar de existirem provas contraditórias”, mas essa afirmação lógica, vai de encontro à aparência de verdade que se pretende dar ao discurso construído. Além disso, o discurso é falacioso: na impossibilidade de comprovar a culpa pelos testemunhos, o magistrado busca provas documentais que o corroboram. Essas, contudo, não provam a culpa do réu, no máximo estabelecem “o envolvimento” do exPresidente com os fatos como reconhece o magistrado no item 831. Então, na ausência de provas documentais e orais que provem a culpa, o magistrado inverte o raciocínio: “o réu é culpado porque não há outra narração possível para explicar os fatos.” Mas, acima de tudo, esse raciocínio é incorreto. Ao reconhecer contradições no depoimento (597), logicamente qualquer afirmação pode ser deduzida, pela trivialização do sistema. O magistrado erroneamente diz que sua versão é a única possível para explicar os fatos que ele descreve, o que pelo princípio ex falso quodlibet é incorreto. Ao contrário, havendo contradições “A e (não A)”, então qualquer sentença B pode ser inferida, contaminando a sistema de inferência. A única forma evitar a explosão e trivialização seria desconsiderar as provas contraditórias, o que parece não ter sido a intenção manifesta do magistrado. Lógicas paraconsistentes permitem superar a trivialização em alguns casos (BARBOSA 2005), mas depende de pressupostos que não se verificam na decisão prolatada. 2. Premissa não provada Uma relação de implicação lógica impõe que de um antecedente haja um consequente. Ou seja, “Se A, então B”. Contudo, se “não A”, a conclusão pode ser tanto falsa quanto verdadeira. Premissas não comprovadas, ao contrário do que quer induzir a decisão, NÃO conduzem a uma verdade não provada. Exemplos desse defeito podem ser ilustrados nos trechos abaixo: “642. Não há nenhuma dúvida de que os depoimentos de José Adelmário Pinheiro Filho e de Agenor Franklin Magalhães Medeiros são questionáveis, pois são eles criminosos confessos que resolveram colaborar a fim de colher benefícios de redução de pena. Mas isso não significa que os depoimentos não possam ser verdadeiros.” Em nome da clareza e evitando-se figuras de linguagem como os lítotes que buscam dissimular a real intenção do texto, esse item seria mais claro se dissesse: “É certo que os depoimentos de Leo e Agenor podem ser falsos, pois são eles criminosos confessos que resolveram colaborar a fim de colher benefícios de redução de pena. Mas isso não prova que são falsos”. Sim, é afirmação é verdadeira, mas também não prova que sejam verdadeiros. Os depoimentos podem ser tão falsos quanto verdadeiros porque de uma premissa que não se pode afirmar como verdadeira, não é possível afirmar-se que a conclusão é verdadeira. Ela pode ser falsa. E a possibilidade de ser falsa conduz, NECESSARIAMENTE à absolvição do réu. Tivesse o magistrado provado que eram verdadeiros os depoimentos, poderia se pensar em culpa; contudo, não há provas nesse sentido, fato

reconhecido pelo próprio magistrado no item 597 da decisão, reproduzido mais acima. Impõe-se logicamente a absolvição do Réu. 3. Falácia non-sequitur (não se segue que) Esta é um tipo de falácia no qual a conclusão não se sustenta nas premissas, onde se verifica uma violência da coerência textual. Exemplo: “O jogador é alto, então deve jogar muito bem”. Ilustra-se esse tipo de falácia nos seguintes trechos da decisão: “603. Desde o início, o que se depreende das rasuras na ‘Proposta de adesão sujeita à aprovação’, e ainda do termo de adesão e compromissos de participação com referência expressa ao apartamento 174, que, embora não assinado, foi apreendido na residência do ex-Presidente, havia intenção oculta de aquisição do apartamento 174-A, que tornou-se posteriormente o apartamento 164-A, triplex, Edifício Salinas, Condomínio Solaris, no Guarujá”. No caso, da existência de documentos – Proposta e Termo de Adesão – não se infere o desejo de ocultação do imóvel. Uma coisa não decorre logicamente da outra. Contudo, se a mera suposição pode servir de prova para a condenação de alguém, então deve servir também, com muito mais razão, para absolve-lo. Suponha-se, a título de exercício retórico e persuasivo (mesmos utilizados pelo magistrado) que a Proposta e o Termo tenham sido assinados por D. Marisa com a intenção de futuramente convencer o então Presidente a descansar na praia com a família. Não há prova que essa não possa ter sido a real intenção, frustrada pelo Presidente que entendia que ali haveria pouca privacidade para que pudessem frequentar a praia. Reitere-se ainda o fato de que os documentos referenciados afirmam uma premissa inexistente: o ex-Presidente não assina qualquer documento. Inexistem provas, ainda que circunstanciais ou meros indícios, que permitam afirmar que o ex-Presidente queria o imóvel. Muito mais verossímil parece a versão de que D. Marisa quis e pretendia, talvez, convencer seu marido após o “fato consumado”. O mesmo defeito reflete-se também nos exemplos que seguem: “828. Foi ela (D. Marisa Letícia) quem assinou os documentos de aquisição de direitos sobre apartamento, então 141-A ou 174-A, no então Residencial Mar Cantábrico, junto à BANCOOP”. “829. Mas é evidente que se tratava de uma iniciativa comum ao casal, pois a propriedade imobiliária transmite-se ao cônjuge, em regime de comunhão de bens”. Ora, do fato de D. Marisa ter assinado os documentos sozinha (e um documento não ter assinatura) NÃO se infere que a compra do imóvel fosse uma opção do casal. Tampouco se pode afirmar que o fato de a propriedade imobiliária transmitir-se ao cônjuge, PROVE que a aquisição do imóvel era um desejo do casal. O consequente não decorre do antecedente e o raciocínio é logicamente incorreto. O uso abusivo de raciocínios incorretos pretende dissimular o desprezo do magistrado por outras explicações possíveis para os fatos descritos. A leitura atenta das peças processuais e o sopesamento adequado das alegações de Léo Pinheiro (não

corroboradas pelas provas documentais apresentadas pela acusação) poderiam conduzir à explicação muito mais provável de que D. Marisa quisesse um imóvel, tivesse assinado uma Proposta de Aquisição para o apartamento Tipo, e pudesse usufruir do mesmo com seus filhos e netos, mesmo que SEM a constante presença do ex-Presidente que, como é evidente, por conta das atividades políticas, não pode estar presente muito tempo com a família. Desde o ponto de vista lógico, em frontal oposição ao que quer fazer crer o magistrado, o fato de poder existir pelo menos uma explicação alternativa demonstra ser a inferência constante da sentença, incorreta. Ressalte-se, para que não haja dúvidas, que pelo princípio da presunção de inocência, não compete à defesa do ex-Presidente provar uma narrativa alternativa à da acusação, mas cabe à acusação (ou nesse caso, ao juiz) PROVAR que a sua narrativa é correta. O juiz não faz isso, o reconhece na decisão que não prova sua tese. O que ele faz é tentar persuadir o leitor desavisado de que, na ausência de outra narrativa (que a defesa não tem obrigação de produzir), a dele se torna verdadeira. O fato de o juiz ignorar qualquer possibilidade de que a SUA verdade seja a única possível apenas faz supor (embora sem provas) a sua crença no dom da onisciência, em que se tem o conhecimento de tudo, sobre tudo, sem espaço para a contradição. E finalmente: “831. Além disso, o envolvimento direito do ex-Presidente na aquisição do bem é revelado pelo fato de ter visitado o imóvel, pelo projeto de reforma ter sido a ele submetido e principalmente pelo fato da diferença entre o preço e valor pago e ainda o custo da reforma ter sido abatido em uma conta corrente geral de propinas do Grupo OAS com o PT, tendo os créditos de corrupção que envolvia contratos celebrados com a Petrobrás durante seu mandato como Presidente da República.” Aqui, mais uma vez: os fatos descritos não conduzem à conclusão desejada pelo magistrado. Do suposto “envolvimento” não se tem como consequência necessária a “vantagem indevida” que, aliás, é um dos problemas centrais da decisão: não se provou ter havido vantagem indevida, condição necessária para que o réu fosse culpado. Conclusão Os exemplos explorados apenas ilustram aquilo que aparece como sendo constante na decisão do juiz. O magistrado já deu mostras de quão dedicado (ou obcecado) é pelo seu trabalho e da sua expertise em crimes que envolvem lavagem de dinheiro. Não é plausível supor que a fragilidade lógica de sua decisão decorra de sua incapacidade. Ao contrário, o provável é que as provas trazidas pelo Ministério Público ou provocadas pelo próprio juiz tenham sido tão insuficientes, que outra construção não poderia haver para a condenação, se não o frágil e improvável discurso dos argumentos persuasivos. Na decisão prolatada, o juiz não consegue PROVAR a culpa do ex-Presidente e tampouco estabelecer o nexo causal entre a atuação do agente e a vantagem ilícita porque, de resto, NÃO prova ter havido vantagem ilícita nem conduta do agente nesse sentido. O que faz o magistrado é construir uma versão dos fatos (uma história linear) que é consistente com a escassez de provas que ele consegue juntar.

Isso é muito pouco para condenar qualquer cidadão, e é menos ainda para condenar um ex-Presidente que teve toda a sua vida devassada para que se tentasse provar que o mesmo homem que nomeou diretores que roubaram milhões da Petrobras, se contentaria com um apartamento na praia do Guarujá. As parcas provas existentes poderiam conduzir à D. Marisa, mas provariam, na melhor das hipóteses, que ela escondia do ex-Presidente o desejo de ter um apartamento na praia, sem que o juiz pudesse comprovar ter a mesma agido para obter vantagens ilícitas. A sentença do juiz é, de resto, logicamente insustentável e NÃO PROVA a culpa do exPresidente. Ao contrário, inocenta-o porque no estado de direito, a inexistência da prova de culpa conduz à inocência.71

71 Referências BARBOSA, Claudia Maria. Direito e lógica: linguagem jurídica sob diferentes paradigmas lógicos. Curitiba, Juruá, 2005. COPI, Irving M. Introdução à lógica. São Paulo, Mestre Jou, 1978. WARAT, Luís Alberto; ROCHA, Leonel Severo e CITTADINO, Gisele Guimarães. O direito e sua linguagem. Florianópolis, Editora da UFSC, 1983. WARAT, Luís Alberto. As falácias jurídicas. Sequência. UFSC, Florianópolis, Brasil. V. 6, n. 10, 1985.

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