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UMA PRISÃO NADA CONVENIENTE

UMA PRISÃO NADA CONVENIENTE Douglas Carvalho Ribeiro * Victor Cezar Rodrigues da Silva Costa **

A recente publicação da sentença condenatória em face do ex-Presidente Lula, prolatada pelo juiz Sergio Moro da 13ª Vara Federal de Curitiba/PR, estarreceu a comunidade jurídica que preza pelos valores democrático-constitucionais. Isso se deve não à sua rápida publicação ou ao seu dispositivo - por muitos já aguardado. O motivo do assombro diz respeito aos argumentos jurídicos utilizados para sustentar o insustentável. Na caneta do magistrado, os dispositivos legais e constitucionais assumem uma interpretação no mínimo controversa. Das 238 páginas, poderíamos listar a ermo os pontos questionáveis da fundamentação jurídica daquele documento. Escolhemos, entretanto, o tópico referente à possível prisão preventiva do exPresidente, presente ao final da sentença. A construção argumentativa para sua denegação é deveras discutível. Senão, vejamos: “Entrentanto (sic), considerando que a prisão cautelar de um ex-Presidente da República não deixa de envolver certos traumas, a prudência recomenda que se aguarde o julgamento pela Corte de Apelação antes de se extrair as consequências próprias da condenação. Assim, poderá o ex-Presidente Luiz apresentar a sua apelação em liberdade95”. O magistrado apresentou diversos motivos que supostamente ensejariam a prisão preventiva no caso sob análise. Dentre os argumentos mencionados por Moro estão: a) o fato de ter sido orientado por seus advogados na adoção de hipotéticas formas de intimidação daqueles que participam do processo direta ou indiretamente, tais como testemunhas, procuradores, jornalistas, delegados etc.; b) ter o ex-Presidente proferido declarações tidas por inadequadas pelo julgador durante o trâmite do processo, o que seria exemplificado por sua manifestação em 05 de maio de 2017, na qual afirma: "se eles não me prenderem logo quem sabe um dia eu mando prendê-los pelas mentiras que eles contam96”; c) a presumida orientação advinda de Lula no sentido de destruição de provas por parte de terceiros. Finaliza, então, o magistrado: “até caberia cogitar a decretação da prisão preventiva do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva”. Em relação ao primeiro ponto supramencionado, pode-se dizer que este se remete às queixas-crime apresentadas pelos advogados do ex-Presidente em face de Procurador da República e Delegado e de ações indenizatórias contra testemunhas e jornalistas. Decerto, os advogados de Lula tinham como objetivo resguardar a honra de uma pessoa que vive de sua imagem pública e estava sendo constantemente focalizada de forma de

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* Possui graduação (2014) e mestrado (2017) em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Email: douglascarvalhoribeiro@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6952734524834617. ** Possui graduação em Direito (2014) pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2014) e mestrado (2017) na mesma área pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: victorsilva.costa@yahoo.com.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9947142424896892. 95 Sentença disponível no link < http://estaticog1.globo.com/2017/07/12/sentenca_lula.pdf>. Acesso no dia 13 de junho de 2017. 96 Cf. notícia presente no link <http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/se-eles-nao-meprenderem-logo-quem-sabe-eu-mando-prende-los-diz-lula>. Acesso em 13 de julho de 2017.

negativa no espaço midiático. É conhecida a fama do Brasil perante os meios de comunicação internacionais no que tange à concentração e ao domínio da informação97 . Já no que tange ao segundo ponto, deve-se ter em mente que o magistrado, pela função que ocupa na administração da justiça, deve orientar seu mister jurisdicional desprovido de paixões e preconceitos pessoais, isto é, sine ira et studio98 . Nesse sentido, a mera declaração do denunciado proferida no 6º Congresso do Partido dos Trabalhadores não teria o condão de gerar efeitos jurídicos negativos em detrimento do ex-Presidente, uma vez que foi proferida em um momento de exaltação, típico dos encontros partidários. Por fim, em relação ao terceiro ponto, Moro afirma no seio da sentença proferida o seguinte: O ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva respondeu ao processo em liberdade. Há depoimentos de pelo menos duas pessoas no sentido de que ele teria orientado a destruição de provas, de José Adelmário Pinheiro Filho (itens 536-537) tomado neste processo, e ainda de Renato de Souza Duque. O depoimento deste último foi tomado, porém, em outra ação penal, de nº 5054932-88.2016.4.04.7000. Além do fato de, no momento da sentença, já estar vencida a etapa da instrução, é sabido que o sistema processual-penal brasileiro não adota a premissa da prova tarifada, o que significaria uma hierarquização no âmbito dos meios probatórios. O mero depoimento sem uma prova material que o sustente não é capaz de provar uma situação grave imputada ao sentenciado pelas testemunhas. Não havendo confirmação de fatos expressos em testemunho, o corolário in dubio pro reo deve prevalecer. Contra a obsoleta ideia de verdade real, o princípio do favor rei é uma das únicas garantias ao arbítrio e à discricionariedade do poder punitivo estatal. O artigo 312 do Código de Processo Penal prevê as hipóteses passíveis de ensejar a decretação da prisão preventiva. São elas: o distúrbio da ordem pública ou econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal. O legislador ordinário ressalta ainda a necessidade de haver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. As noções essenciais por trás de toda decretação de prisão preventiva são as de periculum libertatis e de fumus comissi delicti. Em relação ao periculum libertatis, deve-se ter mente que seu manejo no seio da dogmática processual-penal diz respeito tanto ao risco de evasão quanto aos eventuais atos danosos praticados pelo denunciado/sentenciado durante o transcurso do processo, antes ou após a sentença condenatória. No caso específico de Lula, pode-se dizer que o risco de fuga é nulo: em qualquer lugar do Brasil ou do mundo, o exPresidente seria facilmente reconhecido. Já em relação ao distúrbio às ordens pública e econômica, sua atuação política não as coloca em risco, uma vez que não há qualquer incitação ao cometimento de atos violentos, mas somente a convocação de protestos pacíficos em defesa das garantias penais-constitucionais. Sobre o fumus commissi delicti, anota Aury Lopes Jr. que este “exige a existência de sinais externos, com suporte fático real, extraídos dos atos de investigação levados a

97 Cf. notícia presente no link <https://www.cartacapital.com.br/blogs/outras-palavras/midia-ate-theeconomist-fustiga-dominio-da-globo-1388.html>. Acesso em 13 de julho de 2017. 98 Nesse sentido WEBER, Max. Economia y sociedad. Ciudad del México: Fondo de Cultura Econômica, 2002, p. 716-752.

cabo, em que por meio de um raciocínio lógico, sério e desapaixonado, permita deduzir com maior ou menor veemência a comissão de um delito, cuja realização e consequências apresentam como responsável um sujeito concreto99”. A princípio, a mera presença de sentença penal condenatória já satisfaria tal requisito. No entanto, depreende-se da instrução processual que o imóvel objeto do crime de corrupção é registrado em nome de outrem, sendo que a maioria esmagadora das testemunhas negaram a acusação. Ora, como afirmar a presença do fumus comissi delicti em tal situação? O sistema processual brasileiro consagra o princípio da presunção de inocência, de forma que, diante de fatos controvertidos, o réu tem até a última instância jurisdicional o direito de rebater as acusações contra ele apresentadas. Nota-se a ansiedade criada pela mídia de ver Lula condenado definitivamente. No entanto, isso não pode atropelar as regras normais ao jogo democrático. Vive-se no Brasil uma onda de ansiedade política geral, onde a todo o momento nos questionamos quais serão os próximos atropelos das garantias penais-processuais por parte do poder punitivo estatal. Sobre a relação entre ansiedade e política, a melhor contribuição acerca do tema talvez tenha sido a de Franz L. Neumann, jurista alemão membro do Instituto de Pesquisa Social, cuja tradição filosófica e acadêmica ficou conhecida como “Escola de Frankfurt”. Em seu artigo intitulado “Ansiedade e Política”, Neumann fundamenta seu argumento nas diversas funções que a ansiedade assume para o indivíduo, a partir do esquema psicanalítico freudiano. Afirma ele que “a ansiedade pode desempenhar muitos papéis na vida do homem, o que quer dizer que a ativação de um estado de ansiedade por meio de um perigo pode ter um efeito benéfico ou destrutivo100”. A ansiedade, por exemplo, pode desempenhar um papel de aviso para o homem, na medida em que o previne de experimentar riscos concretos advindos do ambiente exterior, entretanto pressentidos anteriormente. Há ainda uma outra modalidade de ansiedade, a chamada ansiedade neurótica, que “é produzida pelo ego com o fim de evitar, por antecipação, a mais remota ameaça de perigo101”. Segundo Neumann, essa ansiedade pode paralisar o homem, impedindo-o de tomar decisões de maneira racional. Pensando em termos políticos, uma população inteira pode estar sob os efeitos deste estado de pânico e, inconscientemente, desconsiderando o fato de que todos aqueles parâmetros que balizam um ideal de vida digna podem desaparecer em um futuro próximo. É claro que tal sentimento pode se fundamentar em um estado de calamidade ou em uma guerra de longa duração. Contudo, pode acontecer que tal sentimento seja induzido por parte das classes burocráticas hegemônicas, incutindo na população em geral um sentimento de insegurança, que no caso em questão representaria a decretação de prisão preventiva sem os fundamentos exigidos pela legislação. No âmbito da Teoria do Estado do período da República de Weimar, Hermann Heller caracterizou o Estado de Direito como a organização política orientada pela calculabilidade. Afirma Heller que “uma acepção de lei solidamente constituída, equipada com uma força adstringente dupla, deveria dominar todas as atividades

99 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 13ª edição. São Paulo: Saraiva, 2016. Epub. 100 NEUMANN, Franz. Ansiedade e Política. In: Estado Democrático e Estado Autoritário. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969, p. 302. 101 Idem, p. 301.

estatais, não somente o Poder Judiciário, mas também o Executivo. As ‘intervenções na liberdade e propriedade dos cidadãos’ seriam possíveis de agora em diante por força de lei”102 . Isso implica que a calculabilidade é uma marca essencial da técnica de poder denominada de Estado de Direito. Além disso, Heller reconhece em Montesquieu um papel decisivo na ruptura da mentalidade do Antigo Regime, marcada pela indistinção funcional entre as atividades legiferante, judicante e executiva: Sabe-se que a teoria da divisão e balanceamento dos poderes, desenvolvida por Montesquieu, marca o fundamento organizatório do Estado de Direito. Montesquieu vê na liberdade política do cidadão ‘esta tranquilidade de espírito que provém da opinião que cada um tem sobre a sua segurança’. Essa liberdade seria perdia definitivamente, caso o mesmo homem ou um mesmo grupo exercesse de forma simultânea os poderes legislativo, judiciário e executivo. O fundamento dessa opinião, advinda de um profundo conhecedor dos homens, poder ser expresso em uma afirmação sociológica dotada de validade geral: todo poder humano descontrolado sucumbe cedo ou tarde à imponderável arbitrariedade103 . Como já afirmado anteriormente, a diferenciação funcional do judiciário em relação aos poderes legiferante e executivo pressupõe a atuação do magistrado de acordo com o direito posto. Não negamos aqui que, na própria atividade judicante, há espaço para interpretação – o direito é um empreendimento eminentemente hermenêutico. Contudo, a elaboração interpretativa judicante não pode ocorrer em detrimento das garantias positivadas no ordenamento. Quando se analisa a decisão em questão, percebe-se que o juiz Sérgio Moro excede os limites da interpretação, enxergando hipóteses de cabimento da prisão preventiva onde não existem. Além disso, afirma, por outro lado, sua benevolência ao não decretar tal medida assecuratória, negando-a pela possibilidade de gerar certo trauma social. Decerto, o único trauma gerado seria a ocorrência de uma prisão preventiva sem fundamento legal. Parece-nos que a única função que a argumentação de Moro exerce em relação a esse ponto específico é a de deixar o sentenciado ansioso, dado que sua sorte pertenceria ao Judiciário, independentemente da efetiva prova de sua culpa. 104

102 HELLER, Hermann. Rechtsstaat oder Diktatur. Tübingen: Verlag von J. C. B. Mohr, 1930, p. 4. 103 Idem, p. 04. 104 Referências Bibliográficas HELLER, Hermann. Rechtsstaat oder Diktatur. Tübingen: Verlag von J. C. B. Mohr, 1930. LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 13ª edição. São Paulo: Saraiva, 2016. Epub. NEUMANN, Franz. Ansiedade e Política. In: Estado Democrático e Estado Autoritário. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969. WEBER, Max. Economia y sociedad. Ciudad del México: Fondo de Cultura Econômica, 2002.

A SENTENÇA CONTRA O EX-PRESIDENTE LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA: MAIS UM TRÁGICO CAPÍTULO DO GOLPE DE 2016 Eder Bomfim Rodrigues *

A história brasileira tem as suas particularidades. Dentre elas, é possível destacar uma situação muito interessante, qual seja, uma aparência de que o tempo no Brasil não passou e de que tudo continua do mesmo modo na sociedade e no Estado. Parece que o passado não é superado e que se vive sempre a mesma coisa ou, ainda, a mesma coisa com novos personagens, mas mantendo uma estrutura idêntica ao que já aconteceu antes. Uma espécie de déjà vu social brasileiro. Ora, o passado não se foi completamente. Ele está aí e vem deixando as suas marcas no presente. Veja-se que ainda hoje, em pleno século XXI, o país não conseguiu se livrar, definitivamente, das marcas profundas da escravidão e de uma elite retrógrada que não possui e nunca teve em mente um projeto de país soberano. Na verdade, as elites brasileiras sempre pensaram o país exclusivamente para si próprias, longe de qualquer ideia de uma independência real e de um forte processo de desenvolvimento capaz de fazer frente às principais potências no mundo. Até hoje os interesses do país e os do povo brasileiro não são os mesmos das elites, principalmente das elites econômicas, pois estas querem a continuidade de um modelo de Estado e de sociedade que remonta aos tempos do escravismo e que colocam o Brasil numa posição de subserviência ao capitalismo internacional. Diante de tudo isso é possível afirmar que “existe um vínculo de continuidade real e institucionalizado que faz com que qualquer tentativa – mesmo parcial e frágil, como as que ocorreram até agora – de romper nosso apartheid de classes desemboque em golpes de Estado e reação violenta das elites da rapina selvagem.”105 Foi assim com Getúlio Vargas, com Juscelino Kubitschek, com João Goulart e, agora, com Lula. E Luiz Inácio Lula da Silva é parte desse ambiente exatamente porque os anos de seu governo foram marcados por um processo vitorioso de inclusão social e de melhoria da qualidade de vida de milhões de brasileiros, os quais foram retirados do mapa da fome e passaram a ter dignidade e a exercer a cidadania, numa clara tentativa de fazer com que os direitos previstos na Constituição da República de 1988 fossem uma realidade. Entretanto, tudo isso parece ter gerado um grande descontentamento nas elites do Brasil, bem como na classe média que se sentia ameaçada pela ascensão social de milhões de pessoas nos Governos Lula e Dilma Rousseff. Assim, a partir de mudanças na estrutura social do país, aflorou-se o ódio de classe e as marcas da escravidão que estão conservadas no imaginário coletivo brasileiro. Nessa mesma direção, sobreveio, nos mais diversos meios de comunicação, uma campanha difamatória sangrenta e cruel contra Lula e o Partido dos Trabalhadores (PT),

* Realiza pós-doutorado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutor e Mestre em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas). Professor de Direito Constitucional, Direito Administrativo e Direitos Humanos. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC). Advogado. 105 SOUZA, Jessé. A radiografia do golpe: entenda como e por que você foi enganado. Rio de Janeiro: LeYa, 2016, p. 42-43.

responsáveis diretos pelo maior processo de inclusão, desenvolvimento e distribuição de renda para todos na história do Brasil. Com isso, passou-se à criminalização do PT, dos movimentos sociais e do próprio Lula, numa perseguição midiática, policial e judicial que parece não ter fim. O ataque cerrado da mídia manipuladora ao PT e o ataque concatenado a Lula não foram, portanto, ataques a pessoas ou a partidos específicos. Foram ataques a uma política bem-sucedida de inclusão das classes populares que Lula e o PT representam. Inclusão social essa que, malgrado todas as falhas que se possa apontar, teve significado histórico que não será esquecido.106 Dentro da lógica do déjà vu social brasileiro vê-se que o caso Lula não difere em nada de outra situação já vivenciada em terras brasileiras, a história em torno do apartamento onde residia o ex-presidente Juscelino Kubitschek, na Avenida Vieira Souto no 206, no Rio de Janeiro. Dizia-se, na época, que o mencionado imóvel era uma propriedade oculta de Juscelino e fruto de corrupção. Da mesma forma que Lula, JK teve a sua vida revirada, tendo sofrido, nesta situação, grandes injustiças a partir de falsas notícias veiculadas pela mídia. Vários jornais da época (muitos deles os mesmos de hoje) tratavam Juscelino como um criminoso e buscaram a todo custo e com muitas inverdades destruir a sua imagem e a de seu governo. Uma clara tentativa de bani-lo definitivamente da vida pública e de por fim a qualquer tentativa de uma eventual candidatura à Presidência da República. Com Luiz Inácio Lula da Silva é a mesma coisa. O passado está de volta e a velha história do apartamento de Juscelino retornou. Só que agora num apartamento para Lula, o famoso tríplex do Guarujá. Vive-se o passado no presente e em um contexto muito semelhante. Em 1964 era o Golpe Militar, agora o Golpe Jurídico-Parlamentar-MidiáticoEmpresarial de 2016. O grande objetivo que esteve e está por trás dos dois mencionados Golpes é a perpetuação das elites no poder. No Golpe de 1964, os militares foram utilizados como um meio para a manutenção e o controle do Brasil e de suas riquezas nas mãos de poucos. Em 2016, não sendo o modelo militar mais condizente, tem-se o uso do direito e do Judiciário. Dessa forma, o Poder Judiciário passou a ter um lugar de destaque na legitimação dos atos da nova ordem brasileira. Com isso, houve a substituição de uma força por outra e agora o Judiciário ocupou o lugar que no passado era dos militares. Tudo isso numa clara tentativa de se legitimar a mudança, de dar a ela e a todas as suas ações um ar de legalidade, de observância das regras de um Estado de Direito. Todavia, em ambas as situações, o Brasil mergulhou num regime de exceção, em violação aos direitos humanos e na construção de um país cada vez mais desigual. Dentro desse quadro de um Estado de exceção, mas transvestido com uma certa aparência de legalidade, instaurou-se uma caçada impiedosa a Lula, a qual vem ocorrendo com o uso deturpado de todos os instrumentos jurídicos existentes em lei, bem como em ilegalidades praticadas pelo próprio Estado e seus agentes, tais como quebras de sigilo, até mesmo de advogados, condução coercitiva, divulgação de áudios de interceptação telefônica, exposição pública, invasão da vida privada e tantas outras

106 SOUZA, Jessé. A radiografia do golpe: entenda como e por que você foi enganado. Rio de Janeiro: LeYa, 2016, p. 85.

medidas absurdas. Tem-se uma perseguição política com o uso indevido do aparato estatal e do direito, de modo a consolidar a guerra jurídica instalada contra Lula, numa clara tentativa de destruição de sua imagem, do legado de seu governo no Brasil e de suas ações no mundo. A lei tornou-se uma arma que é utilizada para aniquilar o adversário. E o Judiciário passou a atuar de forma seletiva e espetacularizada, sendo incapaz de promover um processo justo que observe os direitos e garantias fundamentais consagrados na Constituição e nos tratados internacionais de direitos humanos em que o Brasil é parte. Consequentemente, a sentença condenatória proferida contra Lula na Justiça Federal, em 12 de julho de 2017, é parte de toda essa atmosfera de Lawfare e do Estado de exceção vivenciado no Brasil. A sentença que condenou Lula é mais um capítulo do Golpe de 2016, pois ela é parte de uma tentativa de gerar um impedimento legal à sua candidatura à Presidência da República nas eleições de 2018, bem como de ser um instrumento do espetáculo, da perseguição pública e midiática. Um texto que mais parece um manifesto de ódio da direita brasileira contra Lula. Na verdade, está-se diante de uma sentença com viés eminentemente político, pois não há provas mínimas de que Luiz Inácio Lula da Silva seja o proprietário do apartamento tríplex. Não há e nunca houve registro de que Lula seja ou tenha sido proprietário do referido imóvel. Do mesmo que a acusação também não apresentou qualquer documento que demonstre tal situação. Aliás, este é um fato que já se encontra resolvido, pois já se sabe realmente quem é o legítimo proprietário do famoso imóvel que se encontra no litoral de São Paulo. Assim, a sentença do juiz de 1a instância da 13ª Vara Criminal da Justiça Federal em Curitiba é uma declaração política de perseguição, sendo o resultado de um processo penal arbitrário e próprio dos regimes de exceção. Trata-se de uma decisão que é desprovida da observância dos direitos e garantias fundamentais constantes na Constituição e dos princípios norteadores do direto penal pátrio, estando contaminada por ilegalidades, dentre elas a parcialidade do julgador e a perseguição existente desde a denúncia oferecida, em apresentação de Power Point, pelo Ministério Público Federal. Não se teve um processo penal justo, pois inúmeras provas, às quais inocentavam Lula de todas as acusações, foram juntadas aos autos e nenhuma delas foi levada em consideração pelo magistrado de 1a instância. Nem mesmo as declarações das testemunhas de defesa foram devidamente apreciadas e valoradas. O que tivemos foi uma condenação fundamentada não em provas, mas em convicções e em razões de ordem política, inclusive com o uso de reportagens veiculadas no Jornal O Globo de 10 de março de 2010. Não é concebível que uma sentença judicial dê um grande destaque para uma matéria jornalística e diga que a mesma é muito relevante como prova do caso sub judice. Não se pode condenar sem provas, levando-se em consideração apenas a convicção do julgador, uma mera suspeita, uma reportagem ou ainda uma falsa “delação premiada” de alguém que nega uma afirmação num determinado momento e em outro, após um longo período encarcerado, nega a negativa anterior, ou melhor diz tudo ao contrário apenas para agradar o juiz e o órgão de acusação, buscando com isso obter os benefícios de uma “certa colaboração com a Justiça.” Isso é nada mais nada menos do que tortura psicológica, um meio escuso de obtenção de uma informação que por sinal é falsa. E,

por incrível que pareça, a chamada “delação” do representante da OAS é desprovida de provas que sustentem qualquer coisa contra Lula. É apenas uma mera alegação sem qualquer possibilidade de constatação. No entanto, a mesma foi utilizada para condenar Lula. Mais uma vez em sua história, o Brasil é colocado numa situação de luta direta pela democracia, luta esta que tem sido uma realidade para o ex-presidente. E a sentença de julho é uma prova concreta da perseguição, de uma aversão do juiz de 1a instância a Lula e a tudo o que ele representa no Brasil e no mundo, estando em desacordo com o que dispõe os arts. 93, inciso IX (necessária fundamentação das decisões judiciais) e 95, parágrafo único, inciso III (vedação aos juízes de exercerem atividade políticopartidária). Enfim, o Estado Democrático de Direito no Brasil parece estar liquidado, pois a cada dia a sociedade assiste uma forte caminhada para o autoritarismo, para uma volta ao passado e para a desconstrução de um país que promove inclusão e é capaz de aceitar a todos. O caso Lula é similar ao caso JK, do mesmo modo que o Judiciário hoje substitui os militares no passado. No fim das contas, saem derrotadas a democracia e as liberdades. Mas, mesmo diante de todas as dificuldades, mesmo com a enorme pressão das oligarquias, das elites de mentalidade escravocrata, dos plutocratas, de uma mídia golpista, a mesma que é responsável por todas as derrocadas da democracia brasileira, espera-se que o Tribunal Regional Federal da 4a Região possa por fim às arbitrariedades e mudar este capítulo do Golpe de 2016. Que a luta pela democracia e pela observância do devido processo legal esteja no cerne de uma nova decisão a ser proferida, pois o Judiciário ainda pode mudar a história e possibilitar que milhões brasileiros voltem a sonhar com um país que respeite a Constituição e as leis. Que o povo brasileiro possa realmente ser soberano e que em 2018 as eleições aconteçam dentro da normalidade, da liberdade e sem empecilhos, pois “[...] sob o signo de uma política completamente secularizada, o Estado de direito não pode existir nem se manter sem democracia radical.”107

107 HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el Estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Trotta, 2008, p. 61.

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