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A CONDENAÇÃO DE LULA MARCOU A TRANSIÇÃO DO ESTADO DE DIREITO PARA O ESTADO MIDIÁTICO PENAL E O NASCIMENTO DO “JUIZ AVESTRUZ”
A CONDENAÇÃO DE LULA MARCOU A TRANSIÇÃO DO ESTADO DE DIREITO PARA O ESTADO MIDIÁTICO PENAL E O NASCIMENTO DO “JUIZ AVESTRUZ”
Djefferson Amadeus *
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O salmo 37 – “Entrega o teu caminho ao Senhor; confia nele, e ele tudo fará” –, no Código Moro (CM) está traduzido da seguinte maneira: “Entrega o teu caminho ao Moro, confia nele... e a “convicção” te condenará” (salmo 37, CM).
Este é um texto duro – ou melhor – duríssimo. Afinal, a condenação de Lula, do modo como está posta, estabelece uma nova era: a idade mídia, ou seja: a transição do Estado Democrático de direito para o Estado midiático penal. Isto porque, na idade mídia, tudo – ou quase tudo, no fundo – pode (ao mesmo tempo) ser e não ser. Isto é, as palavras podem dizer (e ao mesmo tempo) desdizer. Assim, na idade mídia, o juiz pode dizer, na segunda-feira, que o “que não está nos autos não está no mundo”; e na terça-feira, por sua vez, afirmar que o “que não está nos autos não está no mundo”, salvo se se tratar de fato amplamente divulgado na mídia. Portanto, nem “boca da lei”, nem “dono da lei”; o juiz da era mídia é um “boca da opinião pública (da)”.
Benjamin, Walter. Teses sobre o Conceito da História, 1940. Disponível em file:///C:/Users/Dell/Downloads/Teses%20sobre%20o%20conceito%20de%20história.pdf. Acesso em 20.07.2017. Bretch, Bertold. A Exceção e a Regra. Disponível em file:///C:/Users/Dell/Downloads/a-excessc3a3o-e-aregra.pdf. Acesso em 23.07.2017. Foucault, Michel. Em Defesa da Sociedade, Curso no Collège de France (1975-1976), São Paulo: Martins Fontes, 1999. Freud, Sigmund. A Negação, São Paulo: Cosac Naify, 2014. Jakobs, Gunther e Meliá, Manuel C. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2007. Passos, Rodrigo Duarte F dos. Clausewitz e a Política. Uma leitura de Da Guerra. São Paulo: USP (Teses). 2005. Disponível em file:///C:/Users/Dell/Downloads/TESE_RODRIGO_DUARTE_FERNANDES_DOS_PASSOS.pdf. Acesso em 20.07.2017. Pring, George W. e Canan, Penelope. SLAPPs. Getting sued for speaking out. Philadelphia: Temple University Press, 1996. Ripoll, Leila. “A negação freudiana: fissuras na razão cartesiana e na neutralidade científica”. In Rev. Epos vol.5 no.2, Rio de Janeiro: Pepsic, 2014. Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2178-700X2014000200008. Acesso em 21.07.2017. Veiga-Neto, Alfredo. Guerras, 2014. Disponível em file:///C:/Users/Dell/Downloads/Guerras%20%2030nov14.pdf. Acesso em 21.07.2017. Werner, Wouter G. The curious career of lawfare, 43Case W. Res. J. Int'l L.61, 2010. Disponível em: http://scholarlycommons.law.case.edu/jil/vol43/iss1/4. Acesso em 20.07.2017.
* Mestre em Direito e Hermenêutica Filosófica (UNESA-RJ), bolsista Capes, pós-graduado em filosofia (PUC-Rio) e Processo Penal (ABDCONST). Bolsista Pesquisador na Coop. Social da Fiocruz. Advogado Eleitoralista e Criminalista.
O problema, porém, é que, quando isso acontece, o direito cede lugar à mídia, daí resultando, dentre outras coisas, o juiz avestruz: aquele que, para não tomar conhecimento da realidade, enfia a sua cabeça... na televisão ou nos jornais.80 Assim, se o avestruz, segundo alguns veterinários, enfia a cabeça no chão para escutar melhor a aproximação de algum inimigo, o juiz avestruz, por sua vez, põe a cabeça nos jornais e na televisão para saber o que a sua melhor amiga – a mídia – está dizendo que ele tem de fazer. Por todos, cito o Juiz Sérgio Moro que, com base em notícias de jornais (pasmem, de jornais!) tentou utilizá-las, em juízo, para buscar – em uma atuação que mais parecia a de um acusador – “provas” contra Lula. Relembremos este triste episódio: MORO: Saíram denúncias na folha de São Paulo, e no jornal O Globo de que… LULA: Dr. não me julgue por notícias, mas por provas. 81 Isto, talvez, explique por que muitos Juízes e Promotores, na era da idade mídia, façam tremendo sucesso em programas gravados, a exemplo de Moro e Dallagnol, mas, por outro lado, não façam o mesmo sucesso em audiências de instrução e julgamento. Nada mais natural – afinal, nas audiências, eles estão... “ao vivo”. Eis o motivo pelo qual, no programa do Jô Soares, que costuma receber “celebridades” ao vivo, o Promotor Deltan Dellagnol, acreditando que toda a plateia levantaria a mão favoravelmente a ele, caso perguntasse se eram apoiadores à Lava-Jato, teve que amargar uma tremenda vergonha, porque, mesmo com a assistente de palco pedindo para que os convidados levantassem a mão, apenas três ou quatro pessoas demonstraram simpatia a ele.82 Parafraseando Steiner,83 é possível afirmar que o juiz avestruz, por não ter coragem suficiente para enfrentar a opinião pública, dado ser ela a sua fonte de conhecimento, acaba não vivendo como si mesmo, mas como a mídia determina que ele viva. Por isso, ao ser criticado pelos juristas ou por qualquer um que tenha o mínimo de compromisso com a Constituição, o juiz avestruz entende as vozes que o reprovam apenas como uma manifestação de inveja. Ou seja: nos olhares de quem critica a sua covardia, por faltar-lhe coragem de enfrentar a opinião pública, o juiz avestruz só consegue enxergar uma coisa: “– Criticam-me porque queriam seus nomes estampados nas capas dos jornais. Mas só há espaço para um herói: EU!” Resultado: empurrado pelo anseio de querer ser um “herói” e, com isso, ver o seu rosto estampado nas capas dos jornais, o juiz avestruz, por conceber a vida como uma feira de vaidades, só conhece uma vergonha: a vergonha de não conseguir impressionar os meios sensacionalistas comunicação.
80 A inspiração para a criação do “juiz avestruz” veio da leitura das obras Millôr Fernandes. 81 http://www.tijolaco.com.br/blog/os-melhores-momentos-de-lula-por-edson-lenine/ 82http://www.diariodocentrodomundo.com.br/video-no-jo-dallagnol-pergunta-a-plateia-quem-achaque-a-lava-jato-vai-mudar-o-pais-e-tem-resposta-inesperada/ 83 STEINER, George. As ideias de Heidegger. São Paulo: Cultrix, 1978, p. 81
E ele age assim – muitas das vezes – sem perceber, porque sobre ele incide uma violência simbólica, isto é, uma violência que se exerce, segundo Bordieu, “com a cumplicidade tácita dos que a sofrem e também, com frequência, dos que a exercem, na medida em que uns e outros são inconscientes de exercê-la ou de sofrê-la.”84 O direito, assim, acaba sendo – para o juiz avestruz – como o ar que respiramos: fundamental, essencial, indispensável, mas ninguém presta atenção nele. Quanto a este ponto, aliás, vale rememorar que o Juiz Sérgio Moro, ao se deparar com um documento sem assinatura (portanto nulo ou inexistente, a depender da teoria que se adote), em vez de desentranhá-lo do processo, tentou utilizá-lo contra Lula, vejamos: MORO: Tem um documento aqui que fala do triplex…. LULA: Tá assinado por quem?” MORO: Hmm… A assinatura tá em branco… LULA: Então o senhor pode guardar por gentileza!85 É de se indagar o seguinte: por que – mesmo tendo ciência de que o documento não poderia ser utilizado, dado ele estar sem assinatura – o juiz Sérgio Moro ainda assim tentou utilizá-lo contra Lula? Porque a ilusão é crença – diz Eugene Enriquez – visto originar-se no amor e, por isso, faz desaparecer o prazer ligado ao trabalho do pensamento.86 Por isso Warat, como bem observou Lenio Streck, elaborou um conceito de ideologia muito próximo ao de paixão, já que esta implica, muitas das vezes, uma “renúncia ao prazer de pensar.” 87 Isto me permite afirmar que Sérgio Moro, por não conseguir disfarçar a sua perseguição desmedida contra Lula, demitiu-se do seu dever de pensar. Quanto a este ponto, aliás, cai como uma luva as lições de Rubens Casara, ao afirmar que, “em vários atores jurídicos, subsiste um pouco de Eichmann, pois “são a-sujeitos, uma vez que se omitem de julgar/pensar condicionados a reproduzir “cientificamente” suas crenças sem disso ter consciência.”88 Com Lebrun, é possível dizer “que não se trata de um sujeito maléfico, mas de uma pessoa que se demite de sua posição de sujeito (garantidor – acrescentei), que se submete totalmente ao sistema que o comanda, que não o autoriza a pensar...”89
84 BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Trad. Maria Lucia Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1982, p. 22. 85 http://www.tijolaco.com.br/blog/os-melhores-momentos-de-lula-por-edson-lenine/ 86 ENRIQUEZ, Eugène. Da horda ao Estado. Psicanálise e vínculo social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1983, p. 87. 87STRECK, L. L. A Revelação das” obviedades” do sentido comum e sentido (in)comum das “obviedades” reveladas. In: Oliveira Júnior, L. A., O poder das metáforas: homenagem aos 35 de docência de Luis Alberto Warat, Livraria do Advogado, 1998, p. 53. 88 CASARA, Rubens. Mitologia Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 290 89 LEBRUN, Jean-Pierre. Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Trad. Sandra Regina Felgueiras. Rio de Janeiro: Companhia de Freud. 2004, p. 73.
O que se viu em todo o julgamento do Ex-Presidente Lula foi uma tentativa (sem sucesso) de pôr em prática, como diria Millôr, um dos principais lemas da mídia autoritária: “julgar como se estivesse pisando nos ovos... do povo.” E os resultados são desalentadores – para não dizer: desastrosos – porque, como bem nos lembra Calligaris, frequentemente um moralizador raivoso desconta nos outros as tendências e impulsos que, em muitos casos, são seus, mas ele não consegue dominar. 90 Dito de outro modo: o padrão moral que todo “moralizador raivoso” se impõem, nunca é respeitado por ele, mas é sempre considerado por ele um padrão que todos devem respeitar.91 Dessa forma, revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação, é crime, de acordo com o art. 325 do Código Penal. Por outro lado, permitir a divulgação dos grampos em face de Dilma e Lula, que foram obtidos em razão do cargo, foi, para juiz Moro... mero descuido passível de... desculpas. Eis por que a frase de Ronald Laing – “Finge-se que não se está fingindo que está fingindo” – parece ter sido feita ao Juiz Moro, por conta da sua perseguição (desmedida) ao Ex-Presidente da República, o Sr. Luiz Inácio Lula da Silva. E, naturalmente, o resultado é, se não apenas absurdo, cômico. Aliás, absurdo e comicidade são as principais características do juiz avestruz, porque, tomando de empréstimo a televisão como fonte de seu pensamento, todo o seu discurso é um acróstico92 sobre o nome dos seus mestres: mídia, televisão, imprensa, jornal e etc. O problema, porém, é que, com tal submissão a esses “mestres”, como bem observou Galeano, o juiz avestruz acaba reduzindo a justiça social à justiça midiática penal.93 Assim, o contraditório, que deveria ocorrer no processo, acaba sendo transportado para o Jornal Nacional, com um detalhe: 30 minutos para a acusação e 30 minutos para o juiz. E a defesa? Bem, para a defesa sobra uma nota. E olhe lá... O resultado está aí: um processo penal do espetáculo que, segundo Casara, “é construído para agradar às maiorias de ocasião, forjadas pelos meios de comunicação de massa, em detrimento da função contramajoritária de concretizar direitos fundamentais.”94 Isto me permite concluir, parafraseando Millôr, que somente teremos um Estado Democrático de Direito no dia em que gastarmos mais com o ensino do que com a televisão e os cursinhos jurídicos, isto é, no dia em que gastarmos mais com a educação e a cultura democrática do que com a falta de educação.
90 CALLIGARIS, Contardo. Todos os reis estão nus. Ed. Três Estrelas, São Paulo, 2013, p. 38. 91 CALLIGARIS, Contardo. Todos os reis estão nus. Ed. Três Estrelas, São Paulo, 2013, p. 39. 92 Acróstico é uma composição poética, em que as letras iniciais, do meio ou do fim, formam nomes ou palavras. Assim, em toda decisão do juiz avestruz, sempre é possível encontrar um acróstico, tal como: mídia, imprensa, jornal, televisão e etc. 93 GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar. A escola do mundo ao avesso. Porto Alegre: L&PM Editores, 1999, p. 31. 94CASARA, Rubens. Processo Penal do Espetáculo. Ensaios sobre o Poder Penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p. 12.