10 minute read

A CRISE DAS INSTITUIÇÕES BRASILEIRAS REFLETIDA NA CONDENAÇÃO DE UM EX-PRESIDENTE DA REPÚBLICA POR UM JUIZ SINGULAR

A CRISE DAS INSTITUIÇÕES BRASILEIRAS REFLETIDA NA CONDENAÇÃO DE UM EX-PRESIDENTE DA REPÚBLICA POR UM JUIZ SINGULAR Gabriela Shizue Soares de Araujo *

A União Europeia sofre até hoje os efeitos da crise econômica mundial que teve início em 2008, enfrentada equivocadamente com políticas de austeridade severas, que não permitem que os países mais afetados do bloco se recuperem, enquanto as desigualdades econômico-sociais aumentam em medida muito desproporcional à pretendida quitação das dívidas públicas. O plebiscito realizado em 2016 no Reino Unido, que aprovou sua saída da União Europeia – também conhecido como BREXIT -, foi um dos principais reflexos da falência das instituições europeias no enfrentamento da crise e em sua comunicação com os cidadãos europeus. Desde o seu início, logo no pós-Guerra, a União Europeia vinha se desenvolvendo como o mais moderno e democrático modelo de integração regional do mundo, fundada em princípios como solidariedade e cooperação mútua, e com o objetivo claro de criação de uma identidade europeia que transcendesse os territórios nacionais dos Estadosmembros, priorizava a economia do bem-estar social. Esse projeto esbarrou, porém, na conformação das instituições que “governam” a União: enquanto os poderes decisórios são muito concentrados nos chefes de Estado de cada Estado-Membro, ressaltando a intergovernamentabilidade em desfavor da supranacionalidade nas relações, o Parlamento se mostra enfraquecido e distante de seus eleitores. Além disso, o excesso de medidas e procedimentos adotados entre as instituições europeias dificulta a compreensão do cidadão comum sobre o seu funcionamento. Com a crise econômica de 2008, o resultado da medida de forças entre os diferentes Estados-membros que compõem a União Europeia foi a guinada para uma política econômica extremamente neoliberal, de austeridade e proteção do sistema financeiro em detrimento de gastos com educação, saúde e assistência social e supressão de direitos sociais previamente adquiridos. É a política de combate aos “déficits” públicos. Quase uma década depois, é possível afirmar que a linha adotada foi um equívoco: os países mais afetados pela crise não conseguem fôlego para uma retomada econômica e seguem estrangulados com um aumento extraordinário de desemprego e marginalização das classes populares, que acaba se espalhando por todo o continente em razão da supressão de fronteiras característica da União Europeia. Tais fatores, aliados ao baixo nível de compreensão dos cidadãos europeus sobre o funcionamento das instituições europeias e sua real possibilidade de interferência na

Advertisement

* Doutoranda e Mestre em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Especialista em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – COGEAE/PUCSP. Professora assistente de Direito Constitucional na graduação da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora convidada de Direito Constitucional na PósGraduação da UNIFIEO – Osasco. Advogada.

condução dessas instituições (déficit democrático), formam um ambiente favorável para o crescimento de movimentos nacionalistas, pregações separatistas da ultradireita e a xenofobia. Os cidadãos sentem os efeitos de fazer parte da União Europeia, mas ao mesmo tempo não se sentem parte dela. Embora não tenha sentido os efeitos da crise econômica lá atrás, em 2008, muito por conta dos altos investimentos em políticas sociais e de infraestrutura que seguiam em pleno vapor durante o segundo mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por certo que, em um mundo globalizado, e tendo em vista a prolongada recessão enfrentada pela Europa durante a última década, não seria possível ao Brasil passar completamente incólume à pressão do sistema financeiro mundial. O Brasil começou a sucumbir à crise, embora que tardiamente, muito em razão de erros de condução econômica pontuais do governo Dilma Rousseff, quase todos em cedência às medidas de austeridade que já não estavam dando certo na Europa. Quando se fala em “cedência”, é porque não se pode esquecer de uma pressão coordenada do sistema financeiro globalizado, ávido por lucrar com a lógica neoliberal. Porém, pequenas concessões não contentaram o sistema financeiro e as elites dominantes, ao mesmo tempo em que trouxeram consequências danosas às classes populares, principais fiadoras dos governos petistas até então. Some-se a isso, uma crise institucional nas relações de forças entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, que supostamente deveriam se equilibrar harmonicamente por um sistema de freios e contrapesos. Sobre o Congresso Nacional brasileiro, tal qual ocorre com o Parlamento Europeu, podese destacar o déficit democrático como um de seus principais problemas. No nosso caso, é possível citar como fatores de influência o baixo nível de compreensão sobre as reais funções do parlamento, a ausência de obrigatoriedade de um compromisso prévio dos candidatos na defesa de determinada política econômica ou social, a falta de transparência e prestação de contas dos atos praticados pelos parlamentares, e a inexistência de um mecanismo de participação popular que permita ao cidadão cobrar efetivamente o cumprimento dos pactos políticos selados e eventualmente destituir o mandato daqueles que não os cumprirem. Como acontece na Europa, em que o cidadão europeu não se sente representado no Parlamento, no Brasil as funções executivas parecem ter uma relação muito mais direta com seus eleitores do que as funções legislativas. Em ambos os casos, a ausência de uma consciência política se reflete em votos personalistas, geralmente influenciados pela superioridade econômica de cada campanha. O marketing, a publicidade, os santinhos, têm tanto valor porque não se vota em ideias, em programas, mas sim nos rostos estampados na propaganda eleitoral. Mas ainda assim é mais fácil compreender as propostas dos cargos majoritários e suas funções são mais claras para um cidadão comum. Maior exemplo do déficit democrático brasileiro é a esdrúxula sessão de votação do impeachment da ex-presidente Dilma, que extraordinariamente transmitida ao vivo pela emissora de televisão que domina esse meio de comunicação, foi um choque para a maioria dos brasileiros, surpresos com o baixo nível de formação política ou até mesmo pessoal da maioria dos parlamentares, cuja justificativa de voto se pautou em questões

extremamente alheias ao processo, como suas próprias famílias, Deus e outras invocações narcisistas. Neste momento, é necessário pontuar a falta de democratização da mídia, que, concentrada nas mãos de um seleto grupo representante das elites dominantes, apenas compartilha as informações que lhe convém e geralmente direcionadas a seus interesses. Isso contribui também para que boa parte do povo brasileiro tenha ficado surpreso com a identidade de seus próprios representantes no Parlamento brasileiro. A dificuldade de compreensão ou educação para a filtragem daquilo que é disseminado pela mídia monopolizada, faz com que, mesmo que inconscientemente, a opinião publicada seja absorvida como verdade absoluta, de modo que opinião publicada e opinião pública passam a ser sinônimos no contexto nacional. Essa crise institucional toma proporções ainda maiores, quando a opinião publicada passa a ter ingerência também sobre o Poder Judiciário, intérprete maior da Constituição brasileira e detentor do poder burocrático de dar a última palavra em situações conflituosas envolvendo os demais poderes ou suas ações. Em outras ocasiões na História mundial, em que a mídia monopolizada promoveu o avanço de forças reacionárias com o recrudescimento do ódio e preconceito de classe disfarçados sob o discurso da “moral e bons costumes”, a omissão do Poder Judiciário no papel de proteger direitos fundamentais e o seu acovardamento ou conivência diante de seguidas medidas de exceção promovidas no combate a um “inimigo” eleito, possibilitaram a instalação de prolongados Estados de Exceção, como foi a Alemanha nazista de Hitler ou a recente ditadura militar no Brasil. O que permeia a agora conhecida “Operação Lava-Jato” é um juiz singular promovido pela mídia monopolizada a uma figura de super-herói no combate ao mal – aqui representado pela corrupção de parte da classe política que não serve aos propósitos do sistema financeiro e das elites dominantes. Ao invés de se utilizar a força ou o poderio militar, procura-se a instalação de um Estado de Exceção pela atuação dirigente do próprio Poder Judiciário. A exemplo do que foi feito em 1989 com Fernando Collor, o “caçador de Marajás”, todos os esforços da mídia são direcionados à promoção da figura do juiz singular Sérgio Moro para impedir o retorno do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva à presidência da República. Aqui a expressão juiz singular não é aplicada no sentido jurídico do juiz que decide sozinho em primeira instância, mas pelo seu próprio adjetivo: trata-se de um caso raro dentro do quadro da magistratura brasileira. Afinal, fugindo de todos os princípios e deveres que permeiam a profissão, essa figura singular se imbuiu de uma parcialidade persecutória desde o início, ignorando legítimos direitos e provas das defesas e atuando de forma sobressalente ao Ministério Público não apenas no descumprimento de expressos preceitos legais e constitucionais, como na promíscua relação com a mídia. Pode-se dizer que o Conselho Nacional de Justiça ou o Supremo Tribunal Federal seriam os órgãos capazes de controlar os abusos cometidos pelo juiz Sérgio Moro no exercício da magistratura, até mesmo para devolver credibilidade e seriedade à instituição. Como alertou Montesquieu, é uma experiência eterna que todo homem que tem poder é levado a abusar dele, razão pela qual é preciso que sejam estipulados limites e formas de controle à sua atuação. Porém, existe uma passividade tão grande diante dos

públicos desvios de função cometidos, que talvez só possa ser explicada pela pressão incansável da opinião publicada, e a cada vez mais “santificada” promoção da figura pública do singular juiz de Curitiba. Sergio Moro conduziu um longo e midiático processo, orientado pelo seu próprio solipsismo. Ignorando todos os acordos de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário e passando por cima da própria Constituição Federal, desrespeitou princípios inerentes ao devido processo legal, como o direito à duração razoável do processo, o direito a um juiz imparcial e o direito à paridade de armas, sem contudo conseguir alcançar o seu objetivo final: provas de ilícito cometidos pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Com relação à extensa sentença condenatória baseada apenas em suposições próprias e no depoimento de uma única testemunha (que sequer foi homologado como delação premiada), nem cabe aqui fazer grandes digressões sobre o processo hermenêutico aplicado: a singular sentença se explica pelo desvio de função existente na parcialidade da conduta do juiz que a prolatou. É que sequer se pode falar em círculo hermenêutico, quando o processo interpretativo é cortado na pré-compreensão do intérprete. A partir daí, seu voluntarismo conduziu toda a fundamentação da sentença. Não é uma grande surpresa que, após anos de uma interação vaidosa com a mídia monopolizada, o juiz Sérgio Moro condenasse o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva apenas com base em sua convicção própria, ainda que diante da completa ausência de provas. É o típico juiz solipsista, já notado anteriormente por Lenio Streck. O que preocupa, porém, é a fundamentação da sentença com base em elementos completamente estranhos ao processo, como questões políticas e matérias publicadas na mídia, e principalmente os ataques do magistrado aos advogados da defesa, estes no exercício de sua profissão. Percebe-se a intenção deliberada não só de condenar alguém sem provas, mas também de condenar o seu legítimo e constitucional direito de defesa, através da repressão aos seus advogados. Os advogados de defesa de todo o país, infelizmente, já começam a sentir o efeito dominó, em outras jurisdições, da quebra institucional tão promovida sobre a figura desse juiz singular de Curitiba. O perigo é que a singularidade se torne ordinária, ao ponto de abrir espaço para a instalação de um Estado de Exceção, nesse país que viveu tão pouco sob a democracia. Ainda há esperança, é claro, que o sistema judiciário se recomponha, com a revisão pelos tribunais superiores desse excepcional processo político-midiático-judiciário que vem sendo enfrentado pelo principal representante das classes populares, o expresidente Luiz Inácio Lula da Silva. Porém, é necessário também que se faça um trabalho radical de reestruturação de nossas instituições, uma revisão de ponta a ponta, a começar pela reforma política e a democratização da mídia – muito diferente de censura, ressalte-se -, para evitar que o país mergulhe em um Estado de Exceção permanente. Como diz Thomas Piketty sobre a crise das instituições na União Europeia, o que vale também para a crise institucional brasileira, “homens e mulheres são bons: as instituições é que são ruins e podem ser melhoradas”.

This article is from: