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A CRIMINALIZAÇÃO DA AMPLA DEFESA

A CRIMINALIZAÇÃO DA AMPLA DEFESA

James Walker Jr *

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Convidado a participar desta relevante obra que discorre criticamente acerca da sentença166 proferida pelo juiz titular da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba, através da qual foi condenado o ex-presidente da República, vislumbramos, ab initio, uma série de situações anômalas e, por isso, estranhas ao regular exercício de judicatura. Verifica-se na fundamentação decisória uma característica de deslegitimação sistêmica do exercício defensivo e de garantias, capaz de gerar uma dificuldade intrínseca de reconhecimento de legitimidade dos preceitos decisórios, na medida em que o magistrado confunde o exercício do direito de ação com uma “tática bastante questionável, como de intimidação do ora julgador, com a propositura de queixa-crime improcedente, e de intimidação de outros agentes da lei, Procurador da República e Delegado, com a propositura de ações de indenização por crimes contra a honra.”. Historicamente, poderíamos referenciar que desde Beccaria167, existe uma meta racional da dogmática, capaz de limitar os excessos do Estado, vedando-se que, ao contrário, estes excessos sejam empregados na perspectiva de uma racionalidade utilitarista da persecução penal. Em seu decreto condenatório o magistrado descreve, em uma perspectiva de violação de direito, o regular exercício do direito de ação como mecanismo repressor, ou mesmo intimidatório, quando a defesa, obediente aos estamentos próprios da prática defensiva, propõe ações legítimas para alcançar os primados defensivos constitucionais. Assim descreve o julgador: “958. Como defesa na presente ação penal, tem ele, orientado por seus advogados, adotado táticas bastante questionáveis, como de intimidação do ora julgador, com a propositura de queixa-crime improcedente, e de intimidação de outros agentes da lei, Procurador da República e Delegado, com a propositura de ações de indenização por crimes contra a honra. Até mesmo promoveu ação de indenização contra jornalistas que revelaram fatos relevantes sobre o presente caso, também julgada improcedente (tópico II.1 a II.4). Tem ainda proferido declarações públicas no mínimo inadequadas sobre o processo, por exemplo sugerindo que se assumir o poder irá prender os Procuradores da República ou Delegados da Polícia Federal (05 de maio de 2017, “se eles não me prenderem logo quem sabe um dia eu mando prendê-los pelas mentiras que eles contam, conforme http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/seeles-nao-me-prenderem-logo-quem-sabe-eu-mando-prende-los-diz-lula/). Essas

* Advogado criminalista, professor universitário, presidente do IBC Instituto Brasileiro de Compliance, presidente da Comissão de Anticorrupção e Compliance da OAB-Barra RJ, presidente da ABRACRIM-RJ Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas, especialista em Compliance pela Fordham University NY, especialista em Compliance e Direito Penal pela Universidade de Coimbra, doutorando em Ciências Jurídicas pela UAL Universidade Autônoma de Lisboa, sócio do escritório WALKER ADVOGADOS ASSOCIADOS. 166 Disponível em:< http://estaticog1.globo.com/2017/07/12/sentenca_lula.pdf> visto em: 21/07/2017 167 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/delitosB.pdf> visto em: 21/07/2017.

condutas são inapropriadas e revelam tentativa de intimidação da Justiça, dos agentes da lei e até da imprensa para que não cumpram o seu dever.” Exsurge da transcrição acima uma autocriação jurídica, com a pretensa intenção de coexistência sistêmica com a matriz de garantias constitucional, onde o magistrado desarmoniza a fundamentação condenatória, para tentar criminalizar o exercício do direito de ação, como prática defensiva, em verdadeira hipertrofia do controle penal, utilizando-se de argumentos de espetacularização, que alcançam as raias do sensacionalismo, quando invoca, inclusive, o legítimo exercício de ação indenizatória do ex-presidente em face de jornalistas, para tentar caracterizar uma tática questionável de defesa. “(...) Até mesmo promoveu ação de indenização contra jornalistas que revelaram fatos relevantes sobre o presente caso (...).” Na perspectiva do julgador, percebe-se uma verdadeira hiperbolia sensacionalista168 , capaz de capturar o estado emocional do leitor menos preparado para a hermenêutica, sobretudo daqueles que, naturalmente, em razão do apelo midiático do caso, afastamse dos standards mínimos de segurança do sistema de garantias constitucional, promovendo-se um verdadeiro desnivelamento do campo de jogo. Afirmar em sentença, pela caneta de um magistrado, que a defesa do réu, ao empreender o legítimo exercício do direito de ação, inclusive em face de jornalistas, pode significar uma tática de “intimidação do ora julgador”, caracteriza uma autocriação jurídica, que enfrenta a epistemologia garantista, capaz de ferir substancialmente o cognitivismo ético da atividade judicante. Podemos invocar, em alguma medida, as lições do professor René Ariel Dotti, acerca do exercício da ação penal de iniciativa privada, que assim prescreve169 : “A ação penal de iniciativa privada é uma das conquistas democráticas da cidadania e corresponde uma das garantias fundamentais da CF: O acesso ao judiciário para defesa de bem jurídico ameaçado ou lesionado (art. 5º, XXXV).” Revela-se esta argumentação, como uma, dentre várias iniciativas daquele julgador, tendentes a subverter a estandardização do sistema penal, criando-se uma elasticização de interpretação artificial do exercício do direito de ação como instrumento de criminalização dos mecanismos de defesa e luta contra o arbítrio. Com efeito, a linguagem empregada pelo magistrado para alcunhar a iniciativa defensiva, atribuindo-lhe a pecha de “intimidatória”, revela uma contaminação do discurso, capaz de revelar severas influências da psique do julgador, provavelmente capturada pela indesejável repercussão midiática do caso, onde as paixões política

168 CARVALHO, Salo de. Antimanual de Criminologia. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 420: “Em que pesem alguma peças processuais serem caracterizadas por uma intrigante debilidade informacional –sobretudo aquelas que deflagram o início da persecução criminal e, consequentemente, demarcam aquilo que será objeto jurídico de discussão (notícia-crime, denúncia ou queixa) -, a tradução da situação delitiva em um processo penal igualmente produz discursos potencialmente sensacionalistas”. 169 DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 799.

promoveram um verdadeiro esvaziamento da segurança jurídica, capaz de alcançar os contornos de legalidade daquele decreto condenatório. Essa contaminação linguística que denota a captura psíquica do julgador por variáveis não jurídicas, próprias do processo midiático, sobretudo nos denominados maxiprocessos, impõe o desafio epistemológico em separar as interferências probatórias das crenças, esta última considerada como um “estado mental”170 . Essa é a lição que se extrai da aula dos professores Juarez Tavares e Geraldo Prado171 , quando prelecionam: “Além dos processos penais há procedimentos de delação premiada concretizados e, como é inevitável, em circunstâncias semelhantes, alimentadas pelo interesse da comunicação social, que conferem aos fatos ampla e intensa cobertura e dita a linguagem que colonizará requerimentos e decisões, desviando-se de termos técnicojurídicos, prejulgamentos tomaram a forma inadequada de fundamentos decisórios, ao passo que as convicções ainda se sucedem com dispensa de qualquer atividade probatória”. O processo e a sentença revelam um duelo ideológico, onde o juiz, abandonando o seu lugar histórico de equidistância das partes, posicionou-se, desde sempre, inclusive em matérias midiáticas, como uma espécie de “defensor do sentimento de pátria traída”, aproximando-se perigosa e lamentavelmente da posição de inquisidor. A confirmar essa aproximação inquisitória do juiz ao órgão de acusação, desnaturando sua função julgadora e ferindo de morte o princípio do juiz imparcial, trazemos à colação as palavras do próprio magistrado, não proferidas nos autos, mas sim, em seu preferencial canal de comunicação, leia-se, a mídia, assim dispondo172 : “"O prêmio na verdade não é para mim, existe um trabalho coletivo que envolve o Ministério Público, a Polícia Federal, a Receita Federal e, mesmo no Judiciário, existe um trabalho que não é só meu, é meu, do tribunal, do Superior Tribunal de Justiça, do Supremo Tribunal Federal, e é um trabalho ainda em andamento, a única preocupação é chegar ao final desse trabalho garantido a todos o devido processo legal sem atropelamento. Mas ficamos felizes com o prêmio, pois é o reconhecimento da qualidade do trabalho", disse o juiz.” Revela-se inconteste a perspectiva aproximativa estabelecida entre o magistrado e a acusação, que não apenas é afirmada como erigida à categoria de prêmio, entendendo o julgador que o seu trabalho é obra de iniciativa coletiva com a polícia, o ministério público e outros órgãos de repressão.

170 BOGHOSSIAN, Paul. O medo do conhecimento contra o relativismo e o construtivismo. Lisboa: Gradiva, 2011, p. 21. 171 TRAVARES, Juarez; PRADO, Geraldo. O Direito Penal e o Processo Penal no Estado de Direito: Análise de casos. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. 172 G1. Juiz da Lava Jato ganha prêmio de personalidade do ano do 'Globo'. Disponível em <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/03/juiz-da-lava-jato-ganha-premio-de-personalidadedo-ano-do-globo.html>. Visto em 21/07/2017.

Impõe-se o restabelecimento do paradigma histórico do princípio do juiz imparcial, equidistante das partes, capaz, sim, de punir, sem tomar para si a iniciativa punitiva, ou estabelecer o confronto com o condenado, conforme lições de Foucault173 : “É preciso punir de outro modo: eliminar essa confrontação física entre soberano e condenado; esse conflito frontal entre a vingança do príncipe e a cólera contida do povo, por intermédio do supliciado e do carrasco.” Em pleno século XXI, diante da necessidade estatal de manutenção da ordem jurídica, deparamo-nos com um modelo ancestral de justiça criminal, onde o estado-juiz empreende a coisificação do jurisdicionado, arrebatando-lhe direitos e garantias constitucionais, reinaugurando uma inquisição há muito adormecida. Que os tribunais superiores possam resgatar, em momento oportuno, a tradição brasileira de uma justiça democrática, restabelecendo o primado constitucional de garantia dos direitos e princípios que lançam o ser humano na centralidade da ordem jurídica.

173 FOUCAULT, Michael. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 42ª ed. Rio de Janeiro: Petrópolis, 2014. p. 73. . Referências bibliográficas BOGHOSSIAN, Paul. O medo do conhecimento contra o relativismo e o construtivismo. Lisboa: Gradiva, 2011. CARVALHO, Salo de. Antimanual de Criminologia. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015. DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal - Parte Geral. Tomo I. 2ª ed. Coimbra: Coimbra, 2012. DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. FOUCAULT, Michael. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 42ª ed. Rio de Janeiro: Petrópolis, 2014. JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. TRAVARES, Juarez; PRADO, Geraldo. O Direito Penal e o Processo Penal no Estado de Direito: Análise de casos. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.

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