13 minute read
O MALABARISMO JUDICIAL E O FIM DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
O MALABARISMO JUDICIAL E O FIM DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
João Ricardo Wanderley Dornelles *
Advertisement
“Moro condenou Lula com má consciência. Por que precisou de 60 páginas de autojustificação, antes de “fundamentar” e proferir a sentença?” (Leonardo Boff) Na atualidade verificamos a ampliação das práticas penais como meio de regulação dos conflitos na sociedade. Isso tem levado ao deslocamento da política para o campo do sistema de justiça, com os procedimentos penais ocupando centralidade nesse processo. O protagonismo do Poder Judiciário nos processos de criminalização ampliada é um dos pontos mais importantes para o enfraquecimento da ordem constitucional democrática e o crescimento significativo dos espaços de exceção. No Brasil tais características têm sido aprofundadas como forma de intervenção na luta política, em especial nas ações da “Operação Lava Jato”, tendo como consequência imediata a criminalização da política, o aumento da seletividade penal, a estigmatização através da construção da figura do “inimigo” com profundos retrocessos na ordem democrática constitucional. Assim, como justificar uma sentença condenatória onde não são apresentadas provas, ou o que é considerado como prova se restringe à delação de outro réu em troca de benefícios no seu julgamento? Como considerar séria uma sentença condenatória sem provas materiais, sem documentos comprobatórios da materialidade do crime imputado? É o caso da sentença proferida no dia 12 de julho de 2017 pelo juiz Sérgio Moro, da 13a . Vara Criminal Federal de Curitiba, contra o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Uma decisão que em nada se parece com uma sentença judicial. Assemelhando-se mais a uma longa, com mais de duzentas páginas, opinião pessoal em relação ao réu. Ao acompanharmos a trajetória do juiz Sérgio Moro, desde o início da chamada “Operação Lava Jato” percebemos uma grande quantidade de situações e decisões no mínimo duvidosas por ele praticadas. A começar pelas inúmeras e exaustivas conduções coercitivas de diferentes acusados, incluindo a do próprio ex-Presidente; a quantidade enorme de pessoas presas preventivamente por um longo período de tempo, sem julgamento; as inúmeras condenações sem provas ou com fragilidade de evidências materiais, chegando à sentença condenatória contra Lula. A primeira leitura da sentença chama a atenção pela quantidade de páginas, cerca de sessenta, onde o juiz Sérgio Moro dá a impressão que está fazendo uma defesa política da sentença que irá anunciar no final da mesma. Alguns pontos, dentre outros, que chamam a atenção: . juiz responsável assume a postura de inquisidor ao se apresentar simultaneamente como julgador e acusador. Em diferentes momentos confundia-se como parte do processo;
* Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio; Coordenador-Geral do Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio; Membro do Instituto Joaquín Herrera Flores.
. prática do Lawfare em relação ao acusado; . cerceamento do direito de defesa, desrespeitando o Direito Internacional dos Direitos Humanos e as Convenções Internacionais assinadas pelo Brasil, no que se refere ao tratamento dispensado ao acusado e aos seus advogados; . seletividade do próprio Sistema de Justiça, que condenou o ex-Presidente Lula sem provas, enquanto existe uma enorme quantidade de provas contra o senador Aécio Neves, Michel Temer; Gedel Vieira Lima etc; . a condenação do acusado com absoluta falta de provas; . grampo ilegal da conversa telefônica entre ex-Presidente Lula e Presidenta Dilma Rousseff. Do ponto de vista jurídico, a sentença de Moro é um amontado de argumentos e insinuações que nada provam. Uma peça que confronta a doutrina jurídico-penal, a ordem constitucional democrática e princípios civilizatórios que foram deixados de lado em toda a Operação Lava Jato. A sentença de Moro incorpora o que existe de pior na área jurídico-penal: a lógica inquisitorial do eficientismo penal, do “direito penal do inimigo”, a confusão promíscua entre o acusador e o julgador. Enfim, expressa um retrocesso, uma volta ao passado prémoderno, pré-iluminista. A sentença do juiz Moro, ainda no seu relatório, no item 32, letra “p”, afirma “que há provas documentais, testemunhal e periciais de que o ex-Presidente era o proprietário do imóvel e que as reformas foram a ele destinadas, sem que houvesse pagamento do preço ou do valor das reformas por ele”. Voltamos à pergunta que não quer calar. Onde estão as “provas documentais, testemunhal e periciais” que o juiz Moro afirma existirem. Uma afirmação que cai no vazio, já que as provas jamais apareceram no decorrer da sentença ou nos documentos juntados pelo Ministério Público Federal. Não basta anunciar algo que isso se torna verdade. Apenas por suposição imaginemos a seguinte situação: alguém resolve acusar o juiz Moro de muitas coisas, imputar-lhe crimes ou outras ilicitudes e ações imorais. E tais acusações serão julgadas por outro magistrado. No entanto, as acusações ficariam no campo das ilações, das suposições, do desejo subjetivo de quem o teria acusado, na intenção, caso não fossem apresentadas provas materiais, testemunhais ou periciais. Ou seja, intenção, suposição, desejo, intuição e convicção, por si só, não se transformam em comprovação de um fato, não se tornam verdades. Acusações, seja contra quem for, só se tornam verdades com a existência de provas documentais ou testemunhais, que deem materialidade à acusação, dando concretude e conteúdo preciso sobre os fatos e os atos imputados ao acusado. Somente tais provas são admitidas pelo direito brasileiro. Saindo do exemplo acima, o mesmo se dá em relação à sentença do juiz Moro em relação às acusações contra o ex-Presidente Lula. Tudo ficou no plano da subjetividade do julgador, talvez do seu desejo confundindo-se com o que é a realidade. E o que é mais grave, confundindo o seu desejo e subjetividade com o seu papel público (ou o que deveria ser o papel público de um magistrado), com os seus desejos pessoais e/ou com
suas convicções e posicionamentos político-ideológicos. Mas, ainda assim, sem as provas admitidas no ordenamento jurídico brasileiro. A crítica que aqui se faz se refere a emissão de uma sentença condenatória contra um cidadão, independente de quem ele é. Uma sentença condenatória que necessita de mais de duas centenas de páginas para tentar provar, de forma meramente argumentativa, a responsabilidade dolosa do réu em relação ao ato a ele imputado. E toda sentença foi calcada apenas nos argumentos apresentados pelo Ministério Público Federal e acompanhados pelo juiz. E sempre somos obrigados a voltar à questão inicial, onde estão as provas? Atenção, estamos perguntando sobre as provas, não sobre os desejos expressos através de argumentos, convicções ou afirmações. Provas concretas. Onde estão, juiz Moro? Tudo isso se torna mais grave quando o que se apresenta como provas conclusivas (ou deveríamos escrever “provas”, entre aspas?) são delações premiadas. Como escreveu o Professor Afrânio Silva Jardim em seu “Parecer para o Comitê de Direitos Humanos da ONU”, do ano de 2016, por ele chamado de “Testemunho Qualificado”: “Estou convicto de que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva está “previamente condenado”. Contra ele, criou-se um “clima” de verdadeira perseguição, através de investigações policiais e processo penal carentes de tipicidade penal e do mínimo de provas de conduta de autoria ou participação em delitos. Como se costuma dizer: escolheram o “criminoso” e estão agora procurando o crime...”. Para o jurista Fernando Hideo Lacerda "não há materialidade para condenação pelo crime de corrupção", como também "não há embasamento jurídico para condenação pelo crime de lavagem de dinheiro". Para ele, “o fato que embasa a condenação do expresidente Lula foi definido pelo juiz como a 'propriedade de fato' de um apartamento no Guarujá. Diante disso, ele foi condenado por corrupção (porque teria recebido esse apartamento reformado como vantagem indevida do Grupo OAS em razão de contratos com a Petrobras) e lavagem de dinheiro (porque teria ocultado e dissimulado a titularidade desse imóvel)”. Moro, na sua sentença, afirmou que “o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua esposa eram PROPRIETÁRIOS DE FATO do apartamento 164-A, tríplex, no Condomínio Solaris, no Guarujá”. Fez tal afirmação, embora não exista nenhuma testemunha que afirme que Lula ou a sua esposa tenham frequentado o referido imóvel. O conceito de “propriedade de fato”, usado pelo juiz Moro em sua sentença, não existe no ordenamento jurídico brasileiro. E não existe porque é o conceito de Posse que mais se aproximaria de tal situação. O Código Civil Brasileiro dispõe em seu artigo 1.196 que “Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”. Em nenhuma parte da sentença o juiz Moro provou que Lula e/ou a sua esposa tenham exercido, plenamente ou não algum dos poderes inerentes à propriedade. Ou seja, Lula e Dona Marisa nunca foram proprietários e nunca tiveram a posse sobre o referido imóvel ou, se assim preferir o juiz Moro, nunca tiveram a “propriedade de fato” (sic). Portanto, na sentença não aparece qualquer prova, ou mesmo indício, de que o exPresidente ou sua esposa tenham exercido a posse sobre o tal tríplex. O que existe de
fato foi apenas uma visita do casal ao local para conhecer o imóvel. E uma visita não configura posse (“propriedade de fato”, segundo o juiz) e, muito menos, propriedade. Assim, o que temos? Temos uma única visita para que o juiz tenha concluído que Lula detinha a posse sobre o apartamento. O que é mais curioso (ou seria apenas um descuido do juiz Moro?) é que não foi apresentado nenhum documento sobre possíveis negociações para a compra do imóvel, nenhum registro de propriedade, nenhuma promessa de compra e venda, promessa de doação, nada que possa indicar que Lula e sua esposa tenham obtido ao menos a posse do tríplex ou a perspectiva de virem a ser proprietários do mesmo. Hideo Lacerda também chama a atenção de que a sentença do juiz Moro por pelo menos nove vezes tenha usado matérias do jornal “O Globo” como se fossem provas documentais. Certo, reconhecemos que as Organizações Globo têm um poder especial em relação à todo o processo da chamada “Operação Lava Jato”, sabemos como bem lembrado por alguém que a “Globo fez a diferença”. Mas é ir longe demais dar status de prova documental às reportagens jornalísticas do jornal carioca. Estranho, para não dizer lamentável ou risível. Esse conjunto de matérias do “O Globo”, que num passe de mágica judicial se transformou em “provas documentais”, seria a comprovação de que Lula é o “proprietário de fato” (sic) do apartamento? Como dito antes, estranho, lamentável, risível. Mas era importante vincular o caso a Petrobras, afinal como justificar que tal julgamento estivesse no âmbito da Operação Lava Jato? O malabarismo judicial não tem limites. Aqui entrou o papel dos delatores de plantão. Um ex-diretor do Grupo OAS, Léo Pinheiro seria a prova testemunhal para comprovar que a propriedade do imóvel e uma reforma realizada seriam resultados das negociatas envolvendo a Petrobras. Devemos lembrar que Léo Pinheiro ofereceu duas versões da sua delação premiada. Na primeira delas, isentou o ex-Presidente Lula. Como a versão original não agradou ao juiz de Curitiba, outra versão da delação foi feita, desmentindo o que havia sido declarado anteriormente. E onde estão as provas documentais sobre tais afirmações? Nenhum documento. Nada. As únicas coisas que existem são as declarações colhidas através de negociação de acordo de delação premiada. É importante lembrar que aos delatores não se requer que digam a verdade. Os delatores as oferecem não em nome da justiça ou por elevados
princípios éticos ou nobreza dos seus atos, mas sim para tentar negociar uma pena
mais branda ou, melhor dizendo, “salvar pele”. Também lembramos de outras coisas: que o juiz Moro não considerou na sentença as mais de setenta testemunhas de defesa de Lula; que no decorrer dos julgamentos da Operação Lava Jato foi seletivo ao tratar das delações premiadas, acatando aquelas que poderiam indicar algo contra Lula e descartando as que negavam o seu envolvimento com recebimento de propinas ou, por “não vir ao caso”, as que envolviam políticos do PSDB, como o ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso, Aécio Neves etc. Para o jurista Dalmo Dallari, a condenação do ex-Presidente Lula é ilegal, pois não aponta a prática de nenhum crime. Não tendo fundamento legal, é uma sentença com motivação política, configurando uma conduta inconstitucional do juiz Sérgio Moro, o
que o sujeitaria a responsabilização, podendo chegar à sua punição, pelos órgãos superiores da Magistratura. Também Dallari percebe que a “decisão longuíssima” cita fatos e apresenta argumentos que “não contêm qualquer comprovação da prática de um crime que teria sido cometido por Lula”. Conclui que a condenação do acusado se deu sem qualquer base para uma fundamentação legal, portanto sendo uma condenação política, configurando, assim a sua inconstitucionalidade. 180
A sentença leva em consideração a afirmação de que Lula, quando no exercício da Presidência da República, teria recebido um apartamento tríplex no Guarujá em troca de vantagens para o Grupo OAS em contratos com a Petrobras. Segundo Dallari, “se realmente isso tivesse ocorrido haveria um fundamento jurídico para o enquadramento de Lula como autor de um crime e para sua consequente condenação juridicamente correta. Ocorre, entretanto, que nos registros públicos competentes não consta que Lula tenha sido ou seja proprietário do mencionado apartamento, nem foi exibido qualquer documento em que ele figure como tal, ou mesmo como compromissário comprador”. Como o ato que fundamentou a condenação de Lula jamais existiu e nenhuma prova foi apresentada para a sua confirmação, a sentença condenatória se baseou num fundamento falso, portanto ilegal. Por fim, cabe recurso para o Tribunal Regional Federal da 4a.Região (TRF-4), sediado em Porto Alegre. Segundo o jornal “O Estado de S. Paulo”, o TRF-4 já deu provimento a 38% (trinta e oito por cento) dos recursos interpostos contra decisões do Juiz Moro. Esperase, assim, que aquele tribunal anule a sentença contra o ex-Presidente Lula. É bom lembrar que recentemente, no dia 27 de junho de 2017, o TRF-4 acolheu o recurso de João Vaccari Neto, ex-tesoureiro do PT, condenado por Sérgio Moro a 15 anos e 4 meses de prisão, absolvendo-o dos crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e associação criminosa. Votaram favoravelmente à absolvição os desembargadores Leandro Paulsen e Victor Luiz dos Santos Laus. O único a defender a manutenção da condenação foi o desembargador João Pedro Gebran Neto. O acolhimento do recurso se fundamentou exatamente na falta da apresentação de provas na sentença condenatória do juiz Moro. O número relevante de sentenças do juiz Sérgio Moro reformadas no TRF-4 pode ser um indicador de uma prática rotineira nas suas decisões sem embasamento legal. O normal é que os desembargadores considerem a fragilidade das evidências materiais que fundamentaram a sentença e absolvam Lula. No entanto, não vivemos tempos normais e pesa sobre os desembargadores a pressão política para impedir a sua candidatura em 2018. Pressão exercida pelos mesmos setores envolvidos no Golpe de 2016 que, de forma inconstitucional, afastou a Presidenta Dilma Rousseff. Mais uma vez a lição de Dalmo de Abreu Dallari é esclarecedora: “O dado fundamental é que a condenação de Lula pelo Juiz Sérgio Moro não teve fundamentação jurídica, restando, então, como justificativa, a motivação política. E aqui vem muito a propósito lembrar que a Constituição brasileira, no artigo 95, parágrafo único, estabelece, textualmente, que aos juízes é vedado : “III. Dedicar-se à atividade
180 DALLARI, Dalmo de Abreu. Condenação de Lula: sem fundamento legal. Artigo assinado no Jornal do Brasil (digital – www.jb.com.br), de 15 de julho de 2017.
político-partidária”. Evidentemente, essa atividade pode ser exercida, e estará sendo exercida, quando alguém praticar atos tendo por motivação um objetivo político, seja o favorecimento de um candidato ou de uma corrente política, seja a criação de obstáculos para integrantes de uma orientação política contrária às preferências do Juiz. Ora, proferindo uma decisão desprovida de fundamento jurídico, visando criar obstáculos para um político de destaque oposto às suas convicções e aos candidatos de sua preferência, o Juiz está participando de atividade político-partidária. Foi precisamente o que fez o Juiz Sérgio Moro, que, além de proferir sentença desprovida de fundamento jurídico, ofendeu disposição expressa da Constituição.” Assim, além da falta de provas materiais, a sentença foi emitida sem fundamento legal e com evidente motivação política. Não se tratou de uma sentença fundamentada no direto, mas sim de um julgamento de exceção.