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PARCIALIDADE E FETICHE: FREUD EXPLICA

PARCIALIDADE E FETICHE: FREUD EXPLICA

Joao Vitor Passuello Smaniotto * Décio Franco David **

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Nós dizemos não: nós nos negamos a aceitar esta mediocridade como destino - Galeano -

O sistema, definido por Eduardo Galeano como “máquina”, ensina a “aceitar o horror como se aceita o frio no inverno”193. Por coincidência, neste inverno de 2017, recebemos a divulgação da sentença condenatória do Ex-presidente Lula, na qual o magistrado federal Sergio Moro o condena pela prática dos delitos de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. As 218 páginas redigidas pelo magistrado demonstram claramente a intenção do processo e sua declinação a um juízo valorativo alheio à realização de uma conduta típica, concentrando-se, exclusivamente, no símbolo representado pela figura do ex-presidente. Aqui, nessa relação entre o sujeito e o objeto é que se torna compreensível o interesse do julgador. Aqui, reside a verdadeira materialização de todo o quadro paranoico instituído e confirmado pelo primado da hipótese sobre o fato194 .

* Doutor em Ciências Jurídicas e Políticas (Universidad Pablo d´Olavide – Sevilha/Espanha). Mestre em Direitos Humanos, interculturalidade e desenvolvimento (Universidad Pablo d´Olavide - Sevilha/Espanha). Mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (Centro Universitário Autônomo do Brasil – Unibrasil). Professor de Ciência Política e Teoria do Estado, Direito Constitucional, Direito do Trabalho, Direito Sindical e Introdução ao Estudo do Direito, pelas Faculdades Integradas do Vale do Iguaçu - Uniguaçu. Advogado. ** Doutorando e Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP). Professor Substituto de Direito Penal da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor de Direito Penal da Faculdade de Educação Superior do Paraná (FESP). Advogado. 193 GALEANO, Eduardo. Dias e noites de amor e de guerra. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2016, p. 83. 194 CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale. Torino: UTET, 1986, p. 51. A constatação de Cordero se dá explicando que o magistrado cria uma hipótese sobre a qual ele busca, ao longo da instrução, apenas fatos ou significantes confirmadores da acusação, dispensando qualquer elemento diverso. O mesmo raciocínio está presente em CORDERO, Franco. Procedura penale; 7. ed. Milano: Giuffré, 2003, p. 25. Na psicanálise de Freud, encontramos passagem semelhante quando ele trata de afastar o sofrimento da realidade: “Se já neste procedimento é nítida a intenção de tornar-se independente do mundo exterior, buscando suas satisfações em processos internos, psíquicos, as mesmas características surgem mais fortemente no próximo. Nele o vínculo com a realidade é ainda mais frouxo, a satisfação é obtida de ilusões que a pessoa reconhece como tais, sem que a discrepância entre elas e a realidade lhe perturbe a fruição. O âmbito de que se originam tais ilusões é aquele da vida da fantasia; quando ocorreu o desenvolvimento do sentida da realidade e ficou destinado à satisfação de desejos dificilmente concretizáveis. Entre essas satisfações pela fantasia se destaca a fruição de obras de arte, que por intermédio do artista torna acessível também aos que não são eles mesmos criadores. Quem é receptivo à influência da arte nunca a estima demasiadamente como fonte de prazer e consolo para a vida. Mas a suave narcose em que nos induz a arte não consegue produzir mais que um passageiro alheamento às durezas da vida, não sendo forte o bastante para fazer esquecer a miséria real. Mais energético e mais radical é um outro procedimento, que enxerga na realidade o único inimigo, a fonte de todo sofrimento, com a qual é impossível viver e com a qual, portanto, devem0se romper todos os laços, para ser feliz em algum sentido. O eremita dá as costas a este mundo, nada quer saber dele. Mas pode-se fazer mais, podese tentar refazê-lo, construir outro em seu lugar, no qual os aspectos mais intoleráveis sejam eliminados

Inicialmente, pode-se verificar que em boa parte da decisão, há uma preocupação sincera (ou não!) do magistrado em justificar seus atos, tentando afastar seus valores e opiniões pessoais em uma clara tentativa de afirmar “não ter outra opção a não ser condenar”. Porém, a partir dos estudos freudianos, é sabido que se “costuma dizer mais do que se pretende dizer”195. Afinal, em todo discurso, o sujeito fala daquilo de que tem consciência, mas, ao mesmo tempo, o inconsciente também se manifesta no discurso, seja pela escolha de palavras, nas associações, nos lapsos de linguagem, na insistência de alguns significantes, etc196 . Essa interpretação psicanalítica da decisão nos permite compreender e concluir, desde já, que se está diante de um fetiche punitivo e que a construção do conteúdo decisório reforça uma matriz retributiva197, muito próxima do que em Nietzsche198 se identifica como espírito de vingança e que, diversamente do que sustenta em sua decisão, o julgador está, sim, influenciado pela mídia e direcionado a uma perseguição política ou, em termos constantes da decisão, “guerra jurídica”199 . Assim, sabendo que o inconsciente não está tão oculto assim200, a condenação do expresidente demonstra claramente a ausência de imparcialidade do julgador. Um sistema processual democrático centraliza sua atuação na inércia e imparcialidade do magistrado201. Como bem afirma Rubens Casara, esse pilar da estrutura da função jurisdicional corresponde a um direito público subjetivo, direito fundamental do cidadão, materializado pelo acesso a um juiz independente e imparcial202. Luigi Ferrajoli afirma que a imparcialidade é expressa por três perfis inerentes à atuação jurisdicional: i) equidistância: correspondente ao afastamento do juiz dos interesses das partes; ii) independência: representada pela exterioridade do magistrado ao sistema político, e; iii) naturalidade: representada pela determinação de sua designação e de suas competências203. A decisão demonstra a infração aos três perfis identificados por

e substituídos por outros conformes aos próprios desejos. O indivíduo que, em desesperada revolta, encetar este caminho para a felicidade, normalmente nada alcançará; a realidade é forte demais para ele. Torna-se um louco, que em geral não encontra quem o ajude na execução de seu delírio. Mas diz-se que cada um de nós, em algum ponto, age de modo semelhante ao paranoico, corrigindo algum traço inaceitável de mundo de acordo com o seu desejo e inscrevendo esse delírio na realidade. É de particular importância o caso em que grande número de pessoas empreende conjuntamente a tentativa de assegurar a felicidade e proteger-se do sofrimento através de uma delirante modificação da realidade” (FREUD, Sigmund. Obras Completas, volume 18: O mal-estar na civilização, novas conferências introdutória à psicanálise e outros textos (1930-1936). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 37-38). 195 CASARA, Rubens. Mitologia Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 100. 196 Conforme se verifica em FREUD, Sigmund. Obras Completas, volume 16: O eu e o id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925). São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 14-21. No mesmo sentido, GOMES, Gilberto. A teoria freudiana da consciência. Psicologia: Teoria e Pesquisa, vol.19, n.2. [online], 2003, pp.118. 197 Sobre o assunto, DAVID, Décio Franco; SALOMÃO NETO, Antônio. Fetichismo e Pena: Reflexões sobre psicanálise no Direito Penal. Revista O Mal-Estar no Direito, v. 2, n. 2. Set./2016, p. 1-17 198 NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 31 e ss. 199 Expressão contida nos itens 39, 66, 77, 83, 118, 127, 128, 131, 132, 138 da sentença. 200 “O inconsciente é um conceito forjado no rastro daquilo que opera para construir o sujeito” (...) “O inconsciente é aquilo que dizemos” (LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 844). 201 Conforme LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 169-171. 202 CASARA, Rubens. Op. cit.¸p. 144. 203 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 534.

Ferrajoli. A naturalidade foi objeto de reflexão do magistrado ao justificar sua competência para análise do processo (item II.1) e, independentemente do fato de não se concordar com os fundamentos apresentados pelo magistrado, há, ainda, grotesca agressão aos dois outros perfis. É facilmente observado que a independência do magistrado é inexistente. Se o sujeito julgador deve ficar alheio ao sistema político (independência), como não questionar sua parcialidade ao fato de ter participado de evento político de partido de oposição ao ex-presidente?204 Do mesmo modo, sua atuação como verdadeiro investigador (parte processual ativa) demonstra a ausência de respeito pela equidistância. Por certo, a desejada imparcialidade não se confunde com neutralidade, conforme explica Jacinto Nelson de Miranda Coutinho205. Pelo contrário. É preciso que além de se manter em uma imparcialidade endoprocessual pela equidistância e afastamento da gestão da prova, o magistrado apresente uma imparcialidade subjetiva206, expressão máxima de sua independência. Isso evita a maculação da democracia processual, a qual exige que os sujeitos se assumam ideologicamente207 . A assunção de um posicionamento ideológico deve estar coadunada à estruturação sistemática constitucional democrática. Em outras palavras, se julgo um réu, que eu o julgue como a pessoa digna e cidadã que é e se houver qualquer fator que interfira nesse processo, que eu me afaste dele. Em outras palavras, se meu (in)consciente deseja a punição, antes mesmo da análise das provas, que eu, magistrado, não exerça o ato de julgar! Essa constatação evita a formalização de uma relação fetichista de punir, subvertendo a parte pelo todo208. Essa subversão, no caso em holofote, corresponde à punição de um membro do partido como se estivesse punindo todo o partido em virtude de se ter uma posição contrária à ideologia do coletivo (partido) ou em uma punição falaciosa que acredita restaurar o status quo, seja pela privação de liberdade ou pelo bloqueio de bens209 . No entanto, nesse jogo processual, o ex-presidente não foi identificado como sujeito (significante) pelo magistrado, mas, sim, como objeto (subversão da parte em nome do todo) e, por tal razão, abandonou-se a compreensão de um significante210 e buscou-se

204 Aqui, uma observação. O fato é notório com imagens, inclusive, de participações do magistrado em eventos do PSBD. Porém, apenas para manter o referencial acadêmico, segue link de reportagem: http://www.gazetadopovo.com.br/blogs/certas-palavras/sergio-moro-e-o-palanque-do-pre-candidatodo-psdb/. Além disso, destaca-se a crítica ao fato da decisão conter como substrato condenatório reportagem de site do jornal “O Globo”, como fundamento de seu posicionamento. (item 376 da sentença); 205 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios do Direito Processual Penal brasileiro. Separata ITEC, ano 1, nº 4 – jan/fev/mar 2000, p. 12. 206 Cf. CASARA, Rubens. Op. cit., p. 146. 207 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo Juiz no Processo Penal. Empório do Direito. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/o-papel-do-novo-juiz-no-processo-penal-por-jacintonelson-de-miranda-coutinho/. Acesso em 21 ju. 2017. 208 Essa substituição do todo pela parte, integra as características fetichistas apresentadas por Binet (abstração e exageração). Desta forma, o objeto particular é uma representação ou projeção de uma imagem do todo. Sobre o assunto, SAFATLE, Vladimir. Fetichismo: Colonizar o Outro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 40-41. 209 No mesmo sentido, DAVID, Décio Franco. SALOMÃO NETO, Antonio. Op. cit., p. 10 e ss. 210 “Um sujeito é aquilo que pode ser representado por um significante para outro significante” (LACAN, Jacques. O Seminário, livro 16: de um outro ao outro. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 21).

a satisfação (alcançar) do objeto de fetiche (punir). Desde o famoso escrito de Freud211 , o fetiche pode ser compreendido como algo correlato à imagem, símbolo, etc. A projeção sobre o que se espera do objeto pela realização de uma pulsão (ou, até mesmo uma perversão212), desencadeia atos para alcançar o objeto desejado, esquecendo-se o indivíduo de que muitas vezes o objeto desejado não corresponde ao alcançado, justamente por ser um objeto redescoberto213, o que, de certa forma, é representado pela concepção de imagem fantásmica214. No presente caso isso corresponde a punir alguém para extirpar a corrupção endêmica. Em suma, a imagem fantásmica seria o expresidente preso, satisfazendo, portanto, o fetichismo punitivo. Isso é perceptível por expressões vagas e ambíguas e argumentações que denotam uma inclinação antecipada ao juízo condenatório. Em especial, nos itens 106 a 110, a decisão afirma que é possível a realização de escutas indevidas, o que não caracterizaria uma infração pelo fato de que não foi utilizado nenhum conteúdo dessa ilegalidade, como se o direito à vida privada e à intimidade fossem passíveis de relativização pelo simples fato de que não foram utilizadas tais escutas. No item 126, o julgador afirma que a possibilidade de “revisão de decisões judiciais pelas instâncias superiores faz parte do sistema”, o que está correto. Porém, seu posicionamento ideológico não é este. Como é cediço, o julgador defendeu abertamente proposta para reduzir o número de recursos processuais215 . Nos itens 242, 243, 244 e 245, a decisão afirma que há confirmação do conteúdo apresentado em delações, porém, ao longo do texto, verifica-se apenas menção aos próprios depoimentos e documentos incapazes de corroborar o juízo acusatório. Além disso, em trechos da decisão, há clara tentativa de inversão do ônus probatório (especialmente nos itens 442, 447, 448, 449 e 450). As menções a contradições apresentadas pelo julgador servem para projetar uma ideia de que o réu deve provar algo, quando, na verdade, como bem define Paulo Rangel, o ônus é exclusivo da acusação216 . Em outras palavras, ao afirmar que o ex-presidente “não apresentou

211 FREUD, Sigmund. Obras Completas, volume 17: Inibição, sintoma e angústia, O futuro de uma ilusão e outros textos (1926-1929). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 302-310. 212 Lacan entende que o fetichismo deve ser classificado como uma perversão (LACAN, Jacques. O Seminário, livro 04: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Zahar, 1995, p. 157). 213 LACAN, Jacques. O Seminário, livro 04: a relação de objeto. Op. cit., p. 25. 214 “Vimos anteriormente como Freud, em um movimento que será bastante implementado por Lacan, abre as portas para a ressonância do sentido mais arcaico da palavra idealização. Trata-se da submissão do objeto ao esquema mental que dele possuímos. Ou seja, trata-se da apreensão do objeto como projeção de um esquema mental que, no caso do fetichismo, é a imagem fantásmica. (...) O que nos explica, por exemplo, por que o fetichista é necessariamente um cenógrafo que, através de uma espécie de contrato, constrói situações nas quais ele procura anular toda dissonância presente no corpo do objeto por intermédio da sua conformação perfeita à imagem” (SAFATLE, Vladimir. Op. cit., p. 120-121). 215 Sobre o assunto: DAVID, Décio Franco. As "boas intenções" causam mais um terremoto no sistema jurídico-penal. Justificando. Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2015/04/13/as-boasintencoes-causam-mais-um-terremoto-no-sistema-juridico-penal/. Acesso em: 20 jul. 2017. 216 A título de exemplo, se o Ministério Público narra, na denúncia, o fato chamado “matar alguém” com descrição do modus operandi e todas as circunstâncias do delito e em seu interrogatório o réu alega que na data e horário do fato encontrava-se em viagem a outro estado ou país, caberá ao Ministério Público provar o que descreveu na denúncia: um fato típico, ilícito e culpável e, consequentemente, seu álibi é falso, através dos meios de prova admitidos no ordenamento jurídico. (...) Enfim... o réu alega, mas o ônus da prova, hoje, diante da constituição, é exclusivo do ministério público. Não se confunde o direito que tem o réu de alegar, em sua defesa, o que bem entender, com o ônus da prova. Este é total e

explicação concreta nenhuma” (item 450), o magistrado inverteu o ônus probatório, característica fundamental da presunção de inocência, consignada no artigo 5º, LVII, da Constituição Federal. Igualmente, nos itens 468, 591, 592, 593, 627, 628, 629, 630, o magistrado afirma a existência de contradições e, ao invés de valorar as argumentações (por ele chamada de provas) sob o filtro do in dúbio pro reo, ele interpreta em sentido oposto (“se há incoerência, é culpado!” – expressão clara da perversão fetichista). Essa disposição prévia à condenação é gritantemente exposta no sopesamento seletivo de depoimentos, conforme se constata nos itens 641, 642, 643 e 644. Nesses, só foram considerados “verdadeiros”, os depoimentos incriminadores do ex-presidente, materializando, portanto, a imagem fantásmica relativa ao objeto de fetiche. O mesmo ocorre com as inúmeras repetições quanto às contradições e a insistência do magistrado em pedir reiteradamente a mesma explicação (basta uma rápida leitura dos trechos do interrogatório que foram transcritos na sentença – item 437). Um processo penal democrático deve centrar sua estruturação na compreensão cênica defendida por Winfried Hassemer217, segundo a qual o magistrado, no papel de expectador, assiste às histórias dos atores processuais – haja vista inexistirem verdades por convicção218 – de modo que ao final do processo de diálogo, chega-se a um juízo sobre o caso produzido (análise de um objeto fugaz219). A compreensão cênica, em si, corresponde, a compreensão da relação entre o que já está produzido no enunciado penal (Direito Penal – caso) com o que vai ser preenchido (Direito Processual Penal) na forma (como e quando) que o texto regula (atos, prazos, sujeitos, procedimento, etc.), tudo em conformidade com as regras processuais democráticas. Nesse modelo, o acusado “não é somente participante da compreensão cênica, mas também o objeto: ele é o próprio meio de prova”220, e, como tal, merece todo o respeito e preservação de suas garantias processuais e materiais. Infelizmente, tanto o processo quanto a sentença não correspondem a esse modelo. Por isso, pode-se falar de uma desenfreada e delirante busca de “felicidade” pela punição221 . Diante de tudo isso, nós negamos a aceitar o horror como o frio do inverno. Nesse momento histórico em que as garantias constitucionais penais parecem evaporar diante da fúria punitivista, nos unimos para dizer não a esta decisão, e, dizendo não, dizemos sim à democracia, como bem escreveu Galeano222 :

exclusivamente do MP. A regra inserta no art. 5º, LVII, da CRFB deve ser vista como inversora total do ônus da prova e qualquer dúvida que restar diante da não comprovação do fato imputado ao réu pelo ministério público deve, obrigatoriamente, ser resolvida em seu favor. Trata-se da aplicação do princípio in dubio pro reo. (RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 23. ed. São Paulo: Atlas, p. 507). 217 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do Direito Penal. Porto Alegre: SAFE, Porto Alegre, 2005, p. 172 e ss. 218 HASSEMER, Winfried. Op. cit., p. 186. 219 A mesma ponderação sobre a relação com objeto que mencionamos acima é feita por Hassemer: “os objetos não existem fora da nossa percepção e fora das nossas declarações sobre eles, de modo que para verificar a verdade do conhecimento se deva apenas comparar as declarações com os objetos. A teoria da correspondência da verdade é ingênua; correta é a “teoria do consenso sobre a verdade”. (HASSEMER, Winfried. Op. cit., p. 186). 220 HASSEMER, Winfried. Op. cit., p. 200. 221 Vide nota inicial do texto. 222 GALEANO, Eduardo. Nós dizemos não 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 12-13.

E neste estado de coisas, nós dizemos não à neutralidade da palavra humana. Dizemos não aos que nos convidam a lavar as mãos perante as cotidianas crucificações que ocorrem ao nosso redor. À aborrecida fascinação de uma arte fria, indiferente, contempladora do espelho, preferimos uma arte quente, que celebra a aventura humana no mundo e nela participa, uma arte irremediavelmente apaixonada e briguenta. Seria bela a beleza se não fosse justa? Seria justa a justiça, se não fosse bela? Nós dizemos não ao divórcio entre a beleza e a justiça, porque dizemos sim ao seu abraço poderoso e fecundo. Acontece que nós dizemos não, e dizendo não estamos dizendo sim. Dizendo não às ditaduras, e não às ditaduras disfarçadas de democracias, nós estamos dizendo sim à luta pela democracia verdadeira, que a ninguém negará o pão e a palavra, e que será bela e perigosa como um poema de Neruda ou uma canção de Violeta Parra.223

223 Referências CASARA, Rubens. Mitologia Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2015. CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale. Torino: UTET, 1986. ______. Procedura penale; 7. ed. Milano: Giuffré, 2003. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios do Direito Processual Penal brasileiro. Separata ITEC, ano 1, nº 4 – jan/fev/mar 2000, p. 3-57. ______. O papel do novo Juiz no Processo Penal. Empório do Direito. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/o-papel-do-novo-juiz-no-processo-penal-por-jacinto-nelson-demiranda-coutinho/. Acesso em 21 ju. 2017. DAVID, Décio Franco. As "boas intenções" causam mais um terremoto no sistema jurídico-penal. Justificando. Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2015/04/13/as-boas-intencoescausam-mais-um-terremoto-no-sistema-juridico-penal/. Acesso em: 20 jul. 2017. ______; SALOMÃO NETO, Antônio. Fetichismo e Pena: Reflexões sobre psicanálise no Direito Penal. Revista O Mal-Estar no Direito, v. 2, n. 2. Set./2016, p. 1-17 FREUD, Sigmund. Obras Completas, volume 16: O eu e o id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925). São Paulo: Companhia das Letras, 2011. ______. Obras Completas, volume 17: Inibição, sintoma e angústia, O futuro de uma ilusão e outros textos (1926-1929). São Paulo: Companhia das Letras, 2014. ______. Obras Completas, volume 18: O mal-estar na civilização, novas conferências introdutória à psicanálise e outros textos (1930-1936). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. GALEANO, Eduardo. Dias e noites de amor e de guerra. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2016. ______. Nós dizemos não 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 12-13. GOMES, Gilberto. A teoria freudiana da consciência. Psicologia: Teoria e Pesquisa, vol.19, n.2. [online], 2003, pp.117-125. LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. ______. O Seminário, livro 04: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Zahar, 1995. ______. O Seminário, livro 16: de um outro ao outro. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 23. ed. São Paulo: Atlas SAFATLE, Vladimir. Fetichismo: Colonizar o Outro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

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