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O CRIME DE CORRUPÇÃO PASSIVA NA VISÃO DO STF E A SENTENÇA QUE VIOLA O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

O CRIME DE CORRUPÇÃO PASSIVA NA VISÃO DO STF E A SENTENÇA QUE VIOLA O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

Juarez Tavares

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* Ademar Borges **

A interpretação correta do conteúdo do injusto penal do crime de corrupção passiva (art. 317, CP), apesar de consolidada jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do entendimento uníssono da doutrina jurídica, vem novamente à tona em face da recentíssima sentença que condenou o ex-Presidente Luís Inácio Lula da Silva. Essa sentença poderia ser discutida, sob o prisma da sua legitimidade, a partir de inúmeras perspectivas dogmáticas: (i) o indisfarçável desprezo pela máxima segundo a qual a legitimidade da condenação penal, sob o aspecto probatório, depende de um convencimento judicial motivado – a partir da prova produzida pela acusação – da existência do fato criminoso para além de qualquer dúvida razoável (ou, na fórmula evocativa anglo-saxã, beyond a reasonable doubt); (ii) as múltiplas violações ao princípio acusatório decorrentes da reiterada violação ao art. 212 do CPP em razão da postura excessivamente ativa do juiz na produção da prova oral248; (iii) a escancarada afronta ao princípio do juiz natural decorrente da indevida ampliação da competência do magistrado prolator da sentença, tantas vezes denunciada pela doutrina249, entre tantas outras, muitas delas debatidas em outros brilhantes trabalhos reunidos na presente obra. A escolha do tema deste breve ensaio – a análise do alcance do delito de corrupção passiva no direito brasileiro – se deve, fundamentalmente, a três razões: (i) a compreensão acerca dos requisitos exigidos para a configuração do crime de corrupção passiva manifestada na sentença condenatória afronta claramente a orientação jurisprudencial do plenário do Supremo Tribunal Federal; (ii) o equívoco cometido pelo magistrado, por si só, afasta por completo a possibilidade de caracterização do crime de corrupção passiva no caso examinado; (iii) a inexistência do delito de corrupção passiva afastaria, por consequência, qualquer possibilidade de condenação pelo delito de lavagem de dinheiro, já que não haveria crime antecedente. O grave equívoco em que

* Professor Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professor Visitante na Universidade de Frankfurt am Main, na Universidade de Buenos Aires e na Universidade Pablo D’Olavide (Sevilha). Professor Honorário da Universidade de San Martín (Peru). Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Subprocurador-Geral da República aposentado. Advogado. ** Doutorando em Direito Público pela UERJ. Mestre em Direito Constitucional pela UFF. Procurador do Município de Belo Horizonte. Advogado. 248 A Lei n. 11.690, de 9 de junho de 2008, alterou a redação do art. 212 do Código de Processo Penal, passando-se a adotar o procedimento do Direito Norte-Americano, chamado cross-examination, no qual as testemunhas são questionadas diretamente pela parte que as arrolou, facultada à parte contrária, a seguir, sua inquirição (exame direto e cruzado), e ao juiz, os esclarecimentos remanescentes e o poder de fiscalização. 249 A questão foi definitivamente solucionada pelo Professor Gustavo Badaró em excelente trabalho doutrinário: “A conexão no processo penal, segundo o princípio do juiz natural, e sua aplicação nos processos da Operação Lava Jato”, disponível em http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servico s_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/122.07.PDF.

incorreu a sentença ao interpretar o alcance do delito de corrupção passiva no direito brasileiro pode ser demonstrado sem maiores dificuldades, à luz não apenas da dogmática jurídica como também – e principalmente – sob a ótica da jurisprudência do STF. A sentença afirmou que “na jurisprudência brasileira, a questão é ainda objeto de debates, mas os julgados mais recentes inclinam-se no sentido de que a configuração do crime de corrupção não depende da prática do ato de ofício e que não há necessidade de uma determinação precisa dele”. Prosseguir afirmando que, “na Ação Penal 470, julgada pelo Plenário do Egrégio Supremo Tribunal Federal (AP 470/MG, Relator Min. Joaquim Barbosa, por maioria, j. 17/12/2012), a questão foi discutida, mas, na interpretação deste Juízo, não há uma afirmação conclusiva a respeito dela, pelo menos expressa, nos fundamentos do julgado”. A conclusão da sentença a propósito do entendimento do STF a respeito do tema está objetiva e integralmente equivocada. O Supremo Tribunal Federal discutiu de modo particularmente profundo a questão dos requisitos exigidos para a configuração do delito de corrupção passiva no julgamento da AP 470. Debateu-se amplamente, àquela altura, sobre a necessidade de comprovação do objeto da barganha da função pública – ato de ofício – que motivou a aceitação ou solicitação de uma vantagem indevida como condição para a configuração do crime de corrupção passiva. Ao problema – já complexo sob o prisma dogmático – soma-se, sob a ótica da jurisprudência do STF, a conhecida dificuldade em extrair as teses jurídicas majoritárias dos seus julgamentos num contexto em que a dinâmica de deliberação sugere que o acórdão resulta da reunião de votos particulares, sem que se chegue a um consenso em relação às controvérsias centrais do debate250. Deve-se procurar, entretanto, identificar com clareza o alcance da norma penal incriminadora prevista no art. 317 do Código Penal a partir da jurisprudência do plenário do STF251. É que o sentido da proibição penal da prática da conduta tipificada pela lei depende inevitavelmente da atividade interpretativa realizada pelos Tribunais, notadamente pelo STF, órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro252 . O debate atual sobre o conteúdo normativo do delito de corrupção passiva exige do intérprete o desenvolvimento de uma raciocínio assim encadeado logicamente: (i) a jurisprudência determina o sentido final da norma penal incriminadora, pois, ao interpretar o texto da lei, estabelece o campo de conduta (proibida) penalmente relevante; (ii) o STF discutiu exaustivamente, no julgamento da AP 470, os requisitos objetivos e subjetivos exigidos para a configuração do delito de corrupção passiva no direito brasileiro; (iii) o sentido normativo atribuído à lei incriminadora pela

250 Para entender de modo adequado os graves problemas deliberativos enfrentados atualmente pelo STF: V. SILVA, Virgílio Afonso da. (2006) O STF e o controle de constitucionalidade: deliberação, diálogo e razão pública. Revista de Direito Administrativo nº 250. Rio de Janeiro: FGV Direito Rio. pp. 197 a 227. 251 Para identificar a posição prevalecente do STF, utilizou-se o critério segundo o qual a jurisprudência dele coincide com a orientação firmada pelo órgão competente por uniformizar o entendimento dos órgãos fracionários: no caso do Supremo Tribunal Federal, seu Plenário. Precedente isolados de órgãos fracionários (Turmas) contrários à diretriz jurisprudencial do órgão uniformizador do Tribunal (Plenário do STF) foram conscientemente excluídos da análise presentemente empreendida. 252 Embora ao STF não incumba, em princípio, uniformizar a interpretação das leis penais incriminadoras (infraconstitucionais), acaba afirmando a palavra final sobre o sentido e alcance das leis penais examinadas no julgamento de ações penais originárias. É que o critério hierárquico implica a necessidade de garantir a prevalência da interpretação do STF sobre as normas penais infraconstitucionais.

jurisprudência do STF integra o próprio conteúdo do injusto penal, vinculando normativamente não apenas os julgamentos futuros, mas também o próprio destinatário da lei penal. Daí porque o exame da tipicidade da conduta imputada ao denunciado exige a prévia identificação do sentido atribuído pelo Plenário do STF ao art. 317 do CP253. De fato, valores essenciais em um Estado de direito democrático254 – tais como a racionalidade e a legitimidade das decisões judiciais, a segurança jurídica e a isonomia – recomendam a aplicação ao presente caso da recente jurisprudência do Plenário do STF a propósito do sentido e alcance da norma penal prevista no art. 317 do CP. Há muito se discute no Brasil acerca do exato sentido da norma incriminadora prevista no art. 317 do CP. As principais controvérsias podem ser assim resumidas: (i) a corrupção passiva exige que a aceitação ou solicitação de uma vantagem indevida tenha sido motivada pela barganha da função pública exercida pelo agente? (ii) a consumação do delito exige a comprovação de que a aceitação ou solicitação de uma vantagem indevida decorra de um específico ato de ofício colocado pelo funcionário público à disposição do particular? (iii) a corrupção passiva exige a comprovação da prática concreta do ato de ofício na esfera de atribuições do agente corrompido? Essas questões suscitam pelo menos dois planos de argumentação distintos: (i) o primeiro consiste em saber se a consumação do delito de corrupção passiva exige a demonstração da vinculação entre a vantagem indevida (solicitada ou recebida) e o exercício da função pública, o que demanda perscrutar se há um nexo de causalidade entre essa vantagem indevida e um ato de ofício, ainda que apenas potencialmente considerado; (ii) o segundo reside na questão concernente à necessidade, para a configuração do delito, de demonstração da efetiva prática (comissiva ou omissiva) do ato de ofício. O primeiro plano argumentativo sugere o problema da necessidade de demonstração da vinculação causal, ainda que potencial, entre a vantagem indevida e um ato de ofício (que pretensamente esteja dentro da esfera de atribuições do agente). Já o segundo plano argumentativo põe em debate a questão concernente à exigência de demonstração da concreta atuação do funcionário público em benefício do particular como condição da consumação do delito de corrupção passiva. STF respondeu a todas essas questões no conhecido julgamento da AP 470, ocasião em que se definiu com maior precisão o sentido da norma penal incriminadora (art. 317 do CP). Para que se tenha uma ideia da extensão do problema no que diz respeito à tentativa de encontrar os elementos objetivos do delito de corrupção passiva, convém rememorar algumas passagens do julgamento da conhecida AP 470, oportunidade em

253 Firmado pelo Plenário do STF uma diretriz jurisprudencial precisa a propósito dos requisitos exigidos para a configuração do delito de corrupção passiva – o que ocorreu no julgamento da AP 470 –, não há dúvida quanto à necessidade de aplicar o mesmo entendimento ao caso presentemente examinado. Da fecunda densidade normativa do princípio constitucional da isonomia se extrai primordialmente o dever do Judiciário de dar tratamento jurisdicional igual para as situações iguais (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 16a ed., São Paulo, Malheiros Editores, 1999, p. 221; BOBBIO, Norberto. Igualdade e Liberdade, tradução de Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro, Ediouro, 1996, p. 25; CANOTILHO, J. J. Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, Coimbra Editora, 1982, p. 380; SILVA. Celso de Albuquerque. Do efeito vinculante: sua legitimação e aplicação, cit., p. 85). 254 Como afirmou o Ministro Edson Fachin, “é parte do munus público de uma Corte Constitucional a construção de uma narrativa de precedentes, que oriente todo o sistema judicial” (ADI 1046, Relator Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 18/12/2015).

que a composição plenária do Tribunal tencionou, em alentado julgamento de mérito, delimitar o alcance desse tipo penal. O quadro abaixo apresenta uma breve síntese do modo como o STF definiu o sentido da exigência de demonstração de ato de ofício para a configuração do delito de corrupção passiva:

Réus: João Paulo Cunha e Henrique Pizzolato (fase inicial do julgamento da AP 470) Réus: outros Parlamentares (fase final do julgamento da AP 470)

Min. Joaquim Barbosa Assim, está comprovado que o réu HENRIQUE PIZZOLATO recebeu vantagem indevida, oriunda da DNA Propaganda, para determinálo a praticar atos de ofício, consistentes nos repasses antecipados de recursos do Banco do Brasil à DNA Propaganda, sem previsão contratual e sem controle sobre o emprego dos recursos. Além da doutrina e da jurisprudência uníssonas, o próprio tipo penal explicita a natureza formal desse crime – sua consumação independe, até mesmo, da ocorrência do pagamento, bastando a mera solicitação/recebimento em razão do cargo, vinculada à possibilidade de praticar os atos de ofício oferecidos em contrapartida. Não se exige, sequer, que haja a prática efetiva do mencionado ato de ofício. Esta prática configura causa de aumento de pena.

Min. Ricardo Lewandowski Para a caracterização da corrupção passiva, deve ser apontado o ato de ofício do funcionário, configurador de transação ou comércio com o cargo por ele exercido. (…) o Ministério Público não apontou, nem sequer minimamente, o ato de ofício contrário à lei praticado pelo réu [João Paulo Cunha]. O Plenário desta Corte, todavia, por sua douta maioria, ao apreciar a mesma matéria nesta AP 470, externou um entendimento mais abrangente, assentando ser suficiente, para a configuração do tipo previsto no art. 317 do Código Penal o mero recebimento de vantagem indevida, por funcionário público, dispensando-se a precisa identificação do ato de ofício. E mais: dispensou, também, a necessidade de indicação da relação entre o recebimento da vantagem por parte do servidor e a prática de determinado ato funcional. Até porque, no caso do delito de corrupção passiva, a consumação delitiva se deu no momento da aceitação da vantagem indevida e não no momento do saque do valor. Basta, pois, segundo entende a Corte, para a caracterização do delito de corrupção passiva, que se demonstre o recebimento de vantagem indevida, subentendendo-se a possibilidade ou a perspectiva da prática de um ato comissivo ou omissivo, não identificado, presente ou futuro, atual ou potencial, desde que este esteja na esfera de atribuições do funcionário público.

Min. Rosa Weber A indicação do ato de ofício não integra o tipo legal da corrupção passiva. Basta que o agente público que recebe a vantagem indevida tenha o poder de praticar atos de ofício para que se possa consumar o crime do artigo 317 do Código Penal. (…) Ou seja, exige-se que a vantagem seja ofertada e aceita por conta do ato de ofício, e não que este seja efetivamente praticado. A maioria, porém, pelo voto condutor do Ministro Ilmar Galvão, entendeu que a tipicidade exigia fosse, a vantagem indevida, solicitada ou recebida em vista de ato de ofício entre as atribuições funcionais do agente corrompido. Naquele caso, a denúncia não identificava ato algum de ofício realizado ou mesmo pretendido a motivar o pagamento de vantagem ao então Presidente da República. Na espécie, porém, paga a vantagem indevida, aos parlamentares corrompidos, para angariar-lhes o apoio político ao Governo Federal.

Min. Luiz Fux … a prática de algum ato de ofício em razão da vantagem recebida não é necessária para a caracterização do delito. Basta que a causa da vantagem seja a titularidade de função pública. (…) o crime de corrupção passiva configura-se com a simples solicitação ou o mero recebimento de vantagem indevida (ou de sua promessa), por agente público, em razão das suas funções, ou seja, pela simples possibilidade de que o recebimento da propina venha a influir na prática de ato de ofício. Como já exaustivamente demonstrado, a prática de algum ato de ofício em razão da vantagem recebida não é necessária para a caracterização do delito. Basta que a causa da vantagem seja a titularidade de função pública. (…) Por isso, é mesmo dispensável a indicação de um ato de ofício concreto praticado em contrapartida ao beneficio auferido, bastando a potencialidade de interferência no exercício da função pública. A comprovação da prática, omissão ou retardamento do ato de ofício é apenas uma majorante, prevista no § 2o do art. 317 do Código Penal.

Min. Dias Toffoli Como já decidido por este Plenário em capítulo anterior, no que inclusive fiquei vencido, a corrente majoritária formou-se no sentido de ser despicienda a existência do ato de ofício para a tipificação do crime de corrupção passiva, bastando, para tanto, que a vantagem seja oferecida em razão do exercício de cargo público. A partir desta premissa, curvo-me a essa orientação e, doravante, passo a orientar o teor deste meu voto nesse sentido.

Min. Cármen Lúcia … tinha, no rol de suas atribuições, o controle do processo licitatório, cabendo-lhe, entre outros atos, a nomeação da comissão de licitação, a anulação ou revogação do certame, a assinatura do contrato com a empresa vencedora e o acompanhamento de sua execução. Provou-se, no processo, ter sido garantida vantagem indevida a Roberto Jefferson, Romeu Queiroz, deputados federais do Partido Trabalhista Brasileiro, e Emerson Eloy Palmieri com a específica finalidade de se obter deles apoio político consubstanciado em ações positivas para aprovação e sustentação dos projetos e atos de interesse do Governo Federal.

Min. Cezar Peluso Quanto aos atos de ofício que João Paulo Cunha poderia ter realizado, bastaria a existência de nexo causal entre a conduta do funcionário público e a prática de ato funcional de sua competência, ou a perspectiva de o praticar.

Min. Gilmar Mendes “a ação que a lei incrimina consiste em solicitar (pedir) ou receber (aceitar) vantagem indevida em razão da função, ou aceitar promessa de tal vantagem. A ação deve necessariamente relacionarse com o exercício da função pública que o agente exerce ou que virá a exercer (se ainda não a tiver assumido), pois é próprio da corrupção a vantagem solicitada, recebida ou aceita em troca de um ato de ofício. O agente aqui mercadeja com sua função. O ato a que visa a corrupção praticada não deve necessariamente constituir uma violação do dever de ofício (...) Deve, todavia, o ato ser de competência do agente ou estar relacionado com o exercício de sua função (…)”. Insisto nesta reafirmação, Sr. Presidente, mormente em face da observação do eminente Ministro Revisor de que a Corte reviu seu posicionamento e abandonou a exigência do ato de ofício. Não é esta minha compreensão. Penso que é muito importante assentar as bases teóricas deste julgamento, inclusive pela repercussão dos precedentes da Corte nas demais esferas do Poder Judiciário. A Jurisprudência firmada na AP 307 permanece, portanto, inalterada: é indispensável ato de ofício em potencial para configuração do crime de corrupção passiva, apesar de não ser necessária sua efetiva prática pelo corrupto.

Min. Marco Aurélio Então, proclamo, Presidente, e assento como ideia básica que o ato de ofício, o implemento do ato de ofício está ligado, à forma, que diria, qualificada ou à causa de aumento de uma das espécies de corrupção, mesmo porque, quanto à passiva, pode ocorrer quando o servidor já esteja inclusive fora da função, e até mesmo antes de assumi-la. Basicamente acompanhou o Relator, não entrou na discussão quanto ao ato de ofício.

Min. Celso de Mello Sem que o agente, executando qualquer das ações realizadoras do tipo penal constante do art. 317, “caput”, do Código Penal, venha a adotar comportamento funcional necessariamente vinculado à prática ou à abstenção de qualquer ato de seu ofício – ou sem que ao menos atue na perspectiva de um ato enquadrável no conjunto de suas atribuições legais –, não se poderá, ausente a indispensável referência a determinado ato de ofício, atribuir-lhe a prática do delito de corrupção passiva. Torna-se imprescindível reconhecer, portanto, para o específico efeito da configuração jurídica do delito de corrupção passiva tipificado no art. 317, “caput”, do Código Penal, a necessária existência de uma relação entre o fato imputado ao servidor público e o desempenho concreto de ato de ofício pertencente à esfera de suas atribuições funcionais.

Min. Ayres Britto Basta apenas que se possa deduzir com clareza qual a classe de atos em troca dos quais se solicita ou se recebe a vantagem indevida – isto é, a natureza do ato objeto da corrupção. (...) nos crimes de corrupção, o ato de ofício não pode deixar de fazer parte da respectiva cadeia causal ou vínculo funcional. Mas à expressão legal “ato de ofício” deve corresponder o sentido coloquial de “ato do ofício” a cargo do agente público corrompido. E ato de ofício, parlamentarmente falando, é ato de legislar, fiscalizar, julgar (nos casos excepcionais de que trata a Constituição Federal).

O voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes bem representa os pontos de consenso no julgamento acima referido acerca dos requisitos exigidos para a configuração do delito de corrupção passiva: (i) “a ação que a lei incrimina consiste em solicitar (pedir) ou receber (aceitar) vantagem indevida em razão da função, ou aceitar promessa de tal vantagem”255; (ii) “a ação deve necessariamente relacionar-se com o exercício da função pública que o agente exerce ou que virá a exercer (se ainda não a tiver assumido), pois é próprio da corrupção a vantagem solicitada, recebida ou aceita em troca de um ato de ofício”, uma vez que “o agente aqui mercadeja com sua função”; (iii) “o ato a que visa a corrupção praticada não deve necessariamente constituir uma violação do dever de ofício”; (iv) “deve, todavia, o ato ser de competência do agente ou estar relacionado com o exercício de sua função (…)”256; (iv) “a exigência de determinação do ato funcional está

255 “Colhe-se na doutrina que ‘a ação que a lei incrimina consiste em solicitar (pedir) ou receber (aceitar) vantagem indevida em razão da função, ou aceitar promessa de tal vantagem. A ação deve necessariamente relacionar-se com o exercício da função pública que o agente exerce ou que virá a exercer (se ainda não a tiver assumido), pois é próprio da corrupção a vantagem solicitada, recebida ou aceita em troca de um ato de ofício. O agente aqui mercadeja com sua função. O ato a que visa a corrupção praticada não deve necessariamente constituir uma violação do dever de ofício (...) Deve, todavia, o ato ser de competência do agente ou estar relacionado com o exercício de sua função (…)’. (Rui Stoco, Código Penal e sua interpretação jurisprudencial, RT, 4a edição, p. 1647).” (fl. 2300/2301) 256 Como anteriormente afirmado, esta Corte sufragou entendimento no sentido de que “o ato ou abstenção a que a corrupção se refere deve ser da competência do intraneus, isto é, deve estar compreendido nas suas específicas atribuições funcionais, pois só neste caso pode deparar-se com um

relacionada à imprescindível conexão entre o ato e a função pública e não, propriamente, ao ato materializado, pois é indiferente para a consumação do delito que o ato funcional venha a ser praticado ou não”. Em síntese, afirmou o Ministro Gilmar Mendes que a jurisprudência firmada na AP 307 permaneceu, no julgamento da AP 470, inalterada: é indispensável ato de ofício em potencial para configuração do crime de corrupção passiva, apesar de não ser necessária sua efetiva prática pelo corrupto. Na mesma linha de entendimento, o voto do Ministro Celso de Mello reafirmou a tese de que “sem que o agente, executando qualquer das ações realizadoras do tipo penal constante do art. 317, caput, do Código Penal, venha a adotar comportamento funcional necessariamente vinculado à prática ou à abstenção de qualquer ato de ofício – ou sem que ao menos atue na perspectiva de um ato enquadrável no conjunto de suas atribuições legais –, não se poderá, ausente a indispensável referência a determinado ato de ofício, atribuir-lhe a prática do delito de corrupção passiva”. Outros trechos do voto do Ministro Celso de Mello deixam ainda mais claro o entendimento do STF de que a consumação do delito de corrupção passiva exige que o agente público negocie (solicitando ou recebendo vantagem indevida) ato de ofício inserido nas suas atribuições legais: Para a integral realização da estrutura típica constante do art. 317, “caput”, do Código Penal, é de rigor, ante a indispensabilidade que assume esse pressuposto essencial do preceito primário incriminador consubstanciado na norma penal referida, a existência de uma relação da conduta do agente – que solicita, ou que recebe, ou que aceita a promessa de vantagem indevida – com a prática, que até pode não ocorrer, de um ato determinado de seu ofício. Não custa insistir, desse modo, e tendo presente a objetividade jurídica da infração delituosa definida no art. 317, “caput”, do Código Penal, que constitui elemento indispensável – em face do caráter necessário de que se reveste esse requisito típico –a existência de um vínculo que associe o fato atribuído ao agente estatal (solicitação, recebimento ou aceitação de promessa de vantagem indevida) com a mera perspectiva da prática (ou abstenção) de um ato de ofício vinculado ao âmbito das funções inerentes ao cargo desse mesmo servidor público. Basta, assim, e para efeito de integral realização do tipo penal, que a conduta do agente – quando não venha ele a concretizar, desde logo, a prática (ou abstenção) de um ato de seu próprio ofício – tenha sido motivada pela perspectiva da efetivação ulterior de um determinado ato funcional. Sem a necessária referência ou vinculação do comportamento material do servidor público a um ato de ofício – ato este que deve obrigatoriamente incluir-se no complexo de suas atribuições funcionais (RT 390/100 – RT 526/356 – RT 538/324) –, revela-se inviável qualquer cogitação jurídica em torno da caracterização típica do crime de corrupção passiva definido no “caput” do art. 317 do Código Penal. Daí o magistério da doutrina penal (MAGALHÃES NORONHA, “Direito Penal”, vol. 4/244, item n. 1.320, 17a ed., 1986, Saraiva), que salienta, na análise do tema, que o comércio da função pública, caracterizador do gravíssimo delito de corrupção passiva, reclama,

dano efetivo ou potencial ao regular funcionamento da administração” (Nelson Hungria, Comentários ao Código Penal, pg. 369).

dentre os diversos elementos que tipificam essa modalidade delituosa, um requisito de ordem objetiva consistente em “haver relação entre o ato executado ou a executar e a coisa ou utilidade” oferecida, entregue ou meramente prometida ao servidor público. Definitivo, sob esse aspecto, é o magistério doutrinário de HELENO CLÁUDIO FRAGOSO (“Lições de Direito Penal”, vol. II/438, 1980, Forense), para quem o delito de corrupção passiva, tal como tipificado no “caput” do art. 317 do Código Penal, “está na perspectiva de um ato de ofício, que à acusação cabe apontar na denúncia e demonstrar no curso do processo” (grifei). (...) O eminente Relator, ao destacar esse aspecto pertinente ao ato de ofício, afirmou–lhe a existência e confirmou a referência, ao mencionado ato de ofício, na própria denúncia, o que se mostra essencial à configuração típica do delito de corrupção e ao reconhecimento da prática efetiva, por parte dos réus em questão, dessa modalidade de crime contra a Administração Pública, cuja ocorrência restou demonstrada – segundo registrou o Relator da causa em seu douto voto – mediante prova idônea e válida, corroborada, em juízo, sob o crivo do contraditório.” (fls. 2442/ 2446) Em outra passagem do mesmo acórdão, o Ministro Celso de Mello torna a esclarecer com precisão os contornos dogmáticos do delito de corrupção passiva, explicitando que a jurisprudência do STF nunca afastou a necessidade de demonstração da vinculação da vantagem indevida às funções atribuídas por lei ao agente público. Ao contrário, o Ministro Celso de Mello demonstrou com clareza que a jurisprudência do STF entende necessário para a configuração desse delito que o agente tenha solicitado ou recebido vantagem indevida a pretexto de praticar ato de ofício inserido no seu âmbito de competências legais, in verbis: Não constitui demasia enfatizar, Senhor Presidente, que o Supremo Tribunal Federal, neste julgamento, não está procedendo à revisão de sua jurisprudência nem alterando formulações conceituais já consolidadas nem flexibilizando direitos e garantias fundamentais, o que seria incompatível, absolutamente incompatível, com as diretrizes que sempre representaram, como ainda continuam a representar, vetores relevantes que orientam a atuação isenta desta Suprema Corte em qualquer processo, quaisquer que sejam os réus, qualquer que seja a natureza dos delitos. (…) Devo registrar, Senhor Presidente, no que concerne à questão do ato de ofício como requisito indispensável à plena configuração típica do crime de corrupção passiva, tal como vem este delito definido pelo art. 317, “caput”, do Código Penal, e na linha do que fiz consignar em voto anterior proferido, neste caso, em 29/08/2012, que dele não se pode prescindir no exame da subsunção de determinado comportamento ao preceito de incriminação constante da norma penal referida. Sem que o agente, executando qualquer das ações realizadoras do tipo penal constante do art. 317, “caput”, do Código Penal, venha a agir ao menos na perspectiva de um ato enquadrável no conjunto de suas atribuições legais, não se poderá, ausente essa vinculação ao ato de ofício, atribuir-lhe a prática do delito de corrupção passiva. Para a integral realização da estrutura típica constante do art. 317, “caput”, do Código Penal, é de rigor a existência de uma relação entre a conduta do agente – que solicita,

ou que recebe, ou que aceita a promessa de vantagem indevida – e a prática, que até pode não ocorrer, de um ato determinado de seu ofício. Torna-se imprescindível reconhecer, portanto, para o específico efeito da configuração jurídica do delito de corrupção passiva tipificado no art. 317, “caput”, do Código Penal, a necessária existência de uma relação entre o fato imputado ao servidor público e o desempenho concreto de ato de ofício pertencente à esfera de suas atribuições funcionais. Não custa insistir, desse modo, e tendo presente a objetividade jurídica da infração delituosa definida no art. 317, “caput”, do Código Penal, que constitui elemento indispensável – em face do caráter necessário de que se reveste esse requisito típico –a existência de vínculo que associe o comportamento atribuído ao agente estatal (solicitação, recebimento ou aceitação de promessa de vantagem indevida) à mera perspectiva da prática (ou abstenção) de um ato de ofício pertinente ao âmbito das funções inerentes ao cargo desse mesmo servidor público. Mostra-se suficiente, assim, e para efeito de integral realização do tipo penal, que a conduta do agente – quando não venha ele a concretizar, desde logo, a prática (ou abstenção) de um ato de seu próprio ofício – tenha sido motivada pela perspectiva da efetivação ulterior de um determinado ato funcional. (…) Orienta-se, nesse mesmo sentido – exigindo como essencial à caracterização da figura típica da corrupção passiva a existência de conduta do agente vinculada a atos de seu ofício –, a jurisprudência dos Tribunais, cujo magistério destaca que o crime de corrupção passiva se perfaz quando se evidencia, como pressuposto indispensável que é, que o servidor público, na concreção de seu comportamento venal, agiu na perspectiva de um ato de ofício inscrito em sua esfera de atribuições funcionais (RT 374/164 – RT 388/200 – RT 390/100 – RT 526/356 – RT 538/324). O eminente Relator, ao assinalar esse aspecto pertinente ao ato de ofício, afirmou-lhe a existência e confirmou a referência que a própria denúncia fez a esse elemento essencial de configuração do crime de corrupção passiva, vinculando-o, causalmente, à percepção de indevida vantagem e destacando, ainda, o reconhecimento de que houve prática efetiva, por parte dos réus em questão, dessa modalidade gravíssima de crime contra a Administração Pública. Cabe reiterar, neste ponto, até mesmo para afastar dúvidas infundadas a respeito da matéria, nos exatos termos do voto que proferi na sessão plenária de 06/09/2012, que a orientação jurisprudencial que o Supremo Tribunal Federal firmou a propósito do denominado “ato de ofício”, no julgamento da Ação Penal 307/DF, Rel. Min. ILMAR GALVÃO, permanece íntegra, não tendo sofrido qualquer modificação. Uma simples análise comparativa entre a decisão plenária proferida na AP 307/DF e o presente julgamento revela que o Ministério Público, neste caso (AP 470/MG), ao contrário do que sucedeu no “Caso Collor”, formulou acusação na qual corretamente descreveu a existência de um vínculo entre a prática de ato de ofício e a percepção de indevida vantagem. Cumpre rememorar que, no já mencionado “Caso Collor”, o ex-Presidente da República foi absolvido com fundamento no art. 386, III, do CPP (“não constituir o fato infração

penal”) em razão de falha na denúncia, “por não haver sido apontado ato de ofício configurador de transação ou comércio com o cargo então por ele exercido”. No presente caso, ora em julgamento, o Ministério Público não incidiu nessa mesma falha, pois descreveu, de modo claro, a existência desse necessário liame entre o ato de ofício e o comércio da função pública por parte dos réus, tal como resulta claro da peca acusatória em questão. Vê-se, portanto, que esta Corte mantém-se fiel à diretriz jurisprudencial que estabeleceu, em torno do “ato de ofício”, no precedente fundado no julgamento da AP 307/DF. Em suma, Senhor Presidente: diversamente do que sucedeu no “Caso Collor” – em que o Ministério Público deixou de descrever que a conduta do ex-Presidente da República (percepção de indevida vantagem) estaria causalmente vinculada a um determinado ato de seu ofício –, o Senhor Procurador-Geral da República, neste processo (AP 470/MG), procedeu à exata e precisa narração dos elementos essenciais inerentes ao tipo previsto no art. 317, “caput” do CP, apontando o nexo de causalidade entre o ato de ofício e o recebimento de indevida vantagem por parte dos réus acusados da prática do crime de corrupção passiva. Até mesmo o Relator, Ministro Joaquim Barbosa, foi assertivo ao registrar que a consumação do delito de corrupção passiva exige que a solicitação ou recebimento da vantagem indevida estejam vinculados à possibilidade de praticar os atos de ofício oferecidos em contrapartida. (Cf. trecho do voto à fl. 3.675.) O Ministro Ricardo Lewandowski, já na fase final do julgamento, depois de identificar o entendimento majoritário acerca do tema, concluiu que para a caracterização do delito de corrupção passiva é necessário que se demonstre o recebimento ou solicitação de vantagem indevida, subentendendo-se a possibilidade ou a perspectiva da prática de um ato comissivo ou omissivo, não identificado, presente ou futuro, atual ou potencial, desde que este esteja na esfera de atribuições do funcionário público. (cf. trecho do voto às fls. 3.729-3.730.) Os parlamentares federais condenados por corrupção passiva no julgamento da AP 470 receberam vantagem indevida, segundo a visão majoritária do Tribunal, como contrapartida ao oferecimento de seus votos para a aprovação de projetos de interesse do Governo na Câmara dos Deputados, o que, sem dúvida configura ato incluído na esfera de suas atribuições, como funcionários públicos. A caracterização do crime de corrupção passiva por parte dos congressistas levou em consideração, portanto, o fato de que se demonstrou o ato de ofício – voto parlamentar para aprovação de projetos de lei apontados na denúncia – em razão do qual teriam recebido vantagem indevida. A condenação dos deputados federais àquela altura denunciados se deu em razão da comprovação de que eles teriam recebido dinheiro para votar favoravelmente à aprovação de projetos de lei (ato de ofício) de interesse dos corruptores. Essa conclusão está baseada nos votos que formaram a corrente majoritária do julgamento:

Ministra Rosa Weber

Na espécie, porém, paga a vantagem indevida, aos parlamentares corrompidos, para angariar-lhes o apoio político ao Governo Federal. Tal apoio político é passível de se consubstanciar em diversos atos, entre eles o voto parlamentar de apoio aos projetos

de atos normativos no Congresso. E restou provado não só que os partidos em questão e os ora acusados beneficiários apoiaram o Governo, como também que votaram no Parlamento a favor de suas propostas, especialmente nas reformas tributária e previdenciárias. Isso é suficiente para caracterizar o “ato de ofício” pretendido com a vantagem indevida, inseridas as votações entre as atribuições do parlamentar.

Ministro Joaquim Barbosa

Os parlamentares beneficiados pelos pagamentos de dinheiro em espécie eram responsáveis pela condução de votos de vários outros correligionários, contando com o especial papel atribuído aos líderes de bancadas de parlamentares na Câmara dos Deputados. Como visto, os pagamentos de dinheiro em espécie tiveram o poder de influenciar importantíssimos atos de ofício, formando uma base de apoio alinhada ao Partido dos Trabalhadores na Câmara, que conferiu facilmente maiorias favoráveis aos interesses dos corruptores. (fl. 3498) (...) Considerada a bilateralidade, no caso em análise, da corrupção passiva e da corrupção ativa, pode-se afirmar que os autores dos pagamentos tinham conhecimento atual dos elementos do tipo objetivo, vale dizer, de que beneficiavam parlamentares, no exercício da função, e tinham por fim influenciar a prática de atos de ofício de seu interesse, pois esta era a principal vantagem que os parlamentares beneficiários poderiam lhes conceder em troca dos pagamentos. Por sua vez, os parlamentares acusados solicitaram dinheiro para si ou para seus partidos, porque sabiam do interesse do Partido dos Trabalhadores em sua fidelidade na Câmara dos Deputados, ofertando- lhe, assim, a prática de atos de ofício favoráveis ao Governo. (fl. 3678)

Ministro Dias Toffoli

Como já decidido por este Plenário em capítulo anterior, no que inclusive fiquei vencido, a corrente majoritária formou-se no sentido de ser despicienda a existência do ato de ofício para a tipificação do crime de corrupção passiva, bastando, para tanto, que a vantagem seja oferecida em razão do exercício de cargo público. A partir desta premissa, curvo-me a essa orientação e, doravante, passo a orientar o teor deste meu voto nesse sentido. (fl. 4225) (...) Note-se que a conduta descrita, na interpretação agora dominante perante o Supremo Tribunal Federal (a orientar o comportamento de todos os agentes públicos e políticos indistintamente), se adéqua ao tipo imputado aos parlamentares, na medida em que a solicitação da vantagem, na espécie, estaria motivada pela função pública por eles exercida, o que basta para configurar a relação de causalidade entre ela e o fato imputado. (fl. 4229)

Ministra Cármen Lúcia

Demonstrou-se, nos autos, que os parlamentares José Janene (falecido), Pedro Henry e Pedro Correa receberam, indevidamente, R$ 2.905.000,00 (dois milhões e novecentos e cinco mil reais) para a prática de ato de ofício consistente em garantir, por meio de ações políticas na Câmara dos Deputados, apoio ao Governo Federal.

A prática de ações políticas legislativas é o ofício dos parlamentares, seja para apoiar seja para se contrapor às diretrizes e ações governamentais. Pela sua atuação o parlamentar recebe subsídios, na forma constitucionalmente fixada. Qualquer recebimento para essa atuação, máxime em se cuidando de prática que conduza a ação como entrega contrapesada pela aceitação da promessa ou vantagem indevida que seja oferecida, constitui conduta penalmente ilícita. (fls.1952/1953) (...) Provou-se, no processo, ter sido garantida vantagem indevida a Roberto Jefferson, Romeu Queiroz, deputados federais do Partido Trabalhista Brasileiro, e Emerson Eloy Palmieri com a específica finalidade de se obter deles apoio político consubstanciado em ações positivas para aprovação e sustentação dos projetos e atos de interesse do Governo Federal. (fls. 1990/1991) (...) As provas dos autos patenteiam que Roberto Jefferson, auxiliado por Emerson Eloy Palmieri e Romeu Queiroz, recebeu R$ 4.545.000,00 (quatro milhões e quinhentos e quarenta e cinco mil reais), vantagem indevida a ele destinada “para votar a favor de matérias do interesse do Governo Federal” (fl. 45.424, alegações finais do Ministério Público Federal). (fl. 1994)

Ministro Celso de Mello

O eminente Relator, ao assinalar esse aspecto pertinente ao ato de ofício, afirmou-lhe a existência e confirmou a referência que a própria denúncia fez a esse elemento essencial de configuração do crime de corrupção passiva, vinculando-o, causalmente, à percepção de indevida vantagem e destacando, ainda, o reconhecimento de que houve prática efetiva, por parte dos réus em questão, dessa modalidade gravíssima de crime contra a Administração Pública. (...) No presente caso, ora em julgamento, o Ministério Público não incidiu nessa mesma falha, pois descreveu, de modo claro, a existência desse necessário liame entre o ato de ofício e o comércio da função pública por parte dos réus, tal como resulta claro da peça acusatória em questão. Vê-se, portanto, que esta Corte mantém-se fiel à diretriz jurisprudencial que estabeleceu em torno do “ato de ofício”, no precedente fundado no julgamento da AP 307/DF. Em suma, Senhor Presidente: diversamente do que sucedeu no “Caso Collor” – em que o Ministério Público deixou de descrever que a conduta do ex-Presidente da República (percepção de indevida vantagem) estaria causalmente vinculada a um determinado ato de seu ofício –, o Senhor Procurador-Geral da República, neste processo (AP 470/MG), procedeu à exata e precisa narração dos elementos essenciais inerentes ao tipo previsto no art. 317, “caput” do CP, apontando o nexo de causalidade entre o ato de ofício e o recebimento de indevida vantagem por parte dos réus acusados da prática do crime de corrupção passiva. Cabe enfatizar, de outro lado, no exame do delito de corrupção passiva atribuído aos réus, que o ato de ofício indicado no presente caso compreende, tal como bem assinalou

o eminente Ministro Relator, não só o ato de votação parlamentar como os demais encargos de ordem institucional e regimental que se incluem no complexo de seus poderes, de suas funções e de suas atribuições no âmbito do Congresso Nacional. De qualquer maneira, no entanto, cumpre observar que a votação parlamentar traduz, de modo expressivo, exemplo conspícuo e clássico de ato de ofício por excelência. (fls. 4475/4482)

Ministro Ayres Britto

(...) nos crimes de corrupção, o ato de ofício não pode deixar de fazer parte da respectiva cadeia causal ou vínculo funcional. Mas à expressão legal “ato de ofício” deve corresponder o sentido coloquial de “ato do ofício” a cargo do agente público corrompido. E ato de ofício, parlamentarmente falando, é ato de legislar, fiscalizar, julgar (nos caos excepcionais de que trata a Constituição Federal). (fl. 4505) (...) Dito de outro modo, o emaranhado de fatos apurados nesta ação penal permite o juízo mental de que Pedro Henry e Pedro Corrêa, auxiliados por João Cláudio Genu, solicitaram e receberam vantagem indevida a pretexto da prática de ato de ofício. (fl. 4516) A jurisprudência do STF firmou-se, portanto, no sentido de que a caracterização do delito de corrupção passiva depende da existência de nexo causal entre a vantagem indevida (solicitada ou recebida) e um ato funcional da competência do funcionário público (ato que pode ou não ser efetivamente praticado257). Como afirmou o Ministro Celso de Mello no julgamento da AP 307 – conclusão reafirmada no julgamento da AP 470 –, “[n]ão custa insistir, desse modo, e tendo presente a objetividade jurídica da infração delituosa definida no art. 317, caput, do Código Penal, que constitui elemento indispensável - em face do caráter necessário de que se reveste este requisito típico – a existência de um vínculo que associe o fato atribuído ao agente estatal (solicitação, recebimento ou aceitação de promessa de vantagem indevida) e com a perspectiva da prática (ou abstenção) de um ato de ofício vinculado ao âmbito das funções inerentes ao cargo desse mesmo servidor público” . No julgamento da AP 307, a corrente majoritária afirmou que a tipicidade exigia fosse a vantagem indevida solicitada ou recebida em função de ato de ofício incluído entre as atribuições funcionais do agente corrompido258. Em debate levado a efeito pelos

257 Releve-se que à tipificação do crime escusa até que o ato de ofício seja praticado, sendo suficiente a perspectiva da sua prática: “Para a integral realização da estrutura típica constante do art. 317, caput, do Código Penal, é de rigor, ante a indispensabilidade que assume esse pressuposto essencial do preceito primário incriminador consubstanciado na norma penal referida, a existência de uma relação da conduta do agente – que solicita, que recebe, ou que aceita a promessa de vantagem indevida – com a prática, que até pode não ocorrer, de um ato determinado de seu ofício.” (STF - Ação Penal no 307/DF – RTJ 162/264 – Ministro Celso de Mello). 258 Transcreva-se, a seguir, naquilo que interessa à questão da inteligência dos tipos penais em questão, partes do voto condutor do acórdão do Supremo Tribunal Federal, que teve como Relator o Ministro Ilmar Galvão: "De assinalar-se, por fim, que para verificar-se o crime de corrupção passiva, não basta que a solicitação, recebimento ou aceitação da promessa de vantagem se faça pelo funcionário público em razão do exercício da função, ainda que fora dela ou antes de seu início. Indispensável se torna a existência de nexo de causalidade entre a conduta do funcionário e a realização de ato funcional de sua

Ministros no julgamento da AP 470, conclui-se que o entendimento firmado nesse processo não destoava do precedente firmado na AP 307259. A esse respeito, ressaltou o Ministro Gilmar Mendes: “Da mesma forma, tem-se falado muito, Presidente, que violamos a jurisprudência da célebre AP no 307, sobre o ato de ofício; pode ter havido aqui ou acolá algum tipo de manifestação. Agora, o julgamento majoritário apontou – no caso de corrupção – a existência, a configuração de ato de ofício. Em suma, há uma certa confusão em torno desse assunto e, como nós temos essas lendas urbanas que vão se consolidando, é muito importante que isso fique bem claro.” (fl. 2912) No mesmo sentido, a precisa advertência feita pelo Ministro Celso de Mello no julgamento da AP 470: Desejo enfatizar, Senhor Presidente, que o Supremo Tribunal Federal, neste julgamento, não está rompendo nem contrariando os seus próprios critérios jurisprudenciais estabelecidos, dentre outros precedentes, no julgamento da AP 307/DF. Cabe esclarecer, neste ponto, até mesmo para afastar dúvidas infundadas a respeito da matéria, que a orientação jurisprudencial que o Supremo Tribunal Federal firmou a propósito do denominado “ato de ofício”, no julgamento da Ação Penal 307/DF, Rel. Min. Ilmar Galvão, permanece íntegra, não tendo sofrido qualquer modificação. Uma simples análise comparativa entre a decisão plenária proferida na AP 307/DF e o presente julgamento revela que o Ministério Público, neste caso (AP 470/MG), ao contrário do que sucedeu no “Caso Collor”, formulou acusação na qual corretamente descreveu a existência de um vínculo entre a prática de ato de ofício e a percepção de indevida vantagem. (fls. 2912/2913) Em síntese, a jurisprudência atual do STF firmou-se no sentido de que, para a configuração do crime de corrupção passiva, é indispensável a comprovação da prática (potencial ou efetiva) de ato de ofício, i.e., de competência do agente ou relacionado com o exercício de sua função. A sentença, ao afirmar que “na Ação Penal 470, (...) a

competência". 259 Retorna o Relator, Ministro Ilmar Galvão, ao tema da seguinte maneira: “Recorrendo à interpretação histórica, o parecerista invoca o testemunho de Nelson Hungria, segundo o qual, o legislador pátrio, quanto ao delito em referência, 'inspirou-se no Código suíço, a quem vieram também aderir a lei francesa de 8.2.1945, e o Código espanhol de 1944 (Comentários ao Código Penal, 2ª ed., Rio, Forense, 1959, v. 9, p. 367)', aduzindo, verbis: 'E o Código suíço prevê exatamente as formas simples e qualificada da corrupção passiva, em tipos diversos, atendendo nesta última a maior gravidade do fato por ter o agente, omitido ou retardado o fato ou tê-lo praticado infringindo o dever funcional. Assim, no art. 316 prevê a corrupção do funcionário que, para realizar um ato não contrário a seus deveres e de acordo com suas funções ('pour procéder à un acte non contraire à leurs devoirs et renttrand dans leurs fonctions') solicita ou aceita vantagem indevida (corrupção imprópria, da qual se originou o art. 327, caput, do Código Penal brasileiro). No art. 315 prevê a conduta daquele que para praticar um ato que implique uma violação dos deveres de seu cargo ('pour faire un acte impliquant une violation des devoir de leurs charge') solicita ou aceita a vantagem indevida (corrupção própria, da qual se originou o art. 317, parágrafo 1º, do Código Penal brasileiro). No referido Código, portanto, é de rigor a relação do fato com o ato de ofício em ambas as hipóteses'."E conclui: 'Diante do testemunho do emérito doutrinador, a conclusão só pode ser uma: se o Código suíço foi o modelo em que se inspirou o legislador brasileiro para a definição do crime de corrupção passiva em suas modalidades, não há dúvida de que, na lei pátria, exige-se a relação do fato com ato de ofício do servidor para a caracterização de tal ilícito, mesmo na ação descrita no caput do art. 317 do Código Penal brasileiro”.

questão foi discutida, mas, na interpretação deste Juízo, não há uma afirmação conclusiva a respeito dela, pelo menos expressa, nos fundamentos do julgado”, está claramente equivocada. O desrespeito por parte da sentença à orientação jurisprudencial do plenário do STF certamente será objeto de impugnações recursais, sempre cercadas de novos debates doutrinários. Diante desse contexto, duas perguntas fundamentais deverão, em algum momento, ser respondidas pelo próprio STF: (i) o entendimento sobre os requisitos exigidos para a configuração do delito de corrupção passiva firmado no julgamento da AP 470 será mantido? (ii) eventual mudança de jurisprudência – ampliando o alcance do injusto penal pelo afastamento da exigência de comprovação da prática (potencial ou efetiva) de ato de ofício – poderia ter eficácia retroativa? O efetivo respeito ao princípio da legalidade em matéria penal exige – senão a manutenção da jurisprudência atual –, no mínimo, o reconhecimento da irretroatividade de eventual alteração in malam partem da jurisprudência do STF. A propósito, observou com precisão o Ministro Teori Zavascki em recente precedente do STF260 : Com efeito, pouco adiantaria sustentar a garantia constitucional de necessidade de edição de lei penal e impedir sua retroatividade maléfica se os acusados afetados não pudessem identificar com segurança o quadro normativo que lhes é exigido a partir dos textos legislados. Aliás, a importância de tratar dos efeitos, no tempo, de lei considerada não recepcionada pela CF/88 vem sendo ressaltada por esta Corte, a exemplo do que tem ocorrido em inúmeros julgamentos em que se tem modulado os efeitos temporais de suas decisões: INQ 687/SP, Rel. Min. Sydney Sanches, Pleno, DJ de 09/11/2001; CC 7.204/MG, Rel. Min. Ayres Britto, Pleno, DJ de 09/12/2005; MS 26.604/DF (Rel. Min. Cármen Lúcia, Pleno, DJ de 03/10/2008; RE 560.626/RS, Rel. Min. Gilmar Mendes, Pleno, DJe de 05/12/2008; RE 637.485/RJ Rel. Min. Gilmar Mendes, Pleno, DJe 21/05/2013; RE 630.733/DF, Min. Gilmar Mendes, DJe de 20.11.13. (...) Com maior razão, parece importante que, dada sua consequência de agravar a situação jurídica do réu, seja dada eficácia apenas prospectiva a eventual modificação da jurisprudência que venha a considerar como não recepcionado pela Constituição de 1988 o art. 225 do CP, na redação da época. Exatamente na mesma direção, o voto proferido no mesmo julgamento (HC123.971) pelo Ministro Edson Fachin: Não desconheço, igualmente, entendimentos doutrinários que, fundados no princípio da segurança jurídica, sustentam que os entendimentos jurisprudenciais consolidados em favor do réu, quando alterados, devem ter vigência meramente prospectiva. Entretanto, tais posicionamentos visam a assegurar que a prática de uma determinada conduta, considerada na data do fato pela jurisprudência majoritária como atípica, possa ser objeto de punição por parte do Estado, em razão de uma guinada in pejus do entendimento jurisprudencial consolidado no momento em que o ato foi praticado.

260 Cf. HC 123971, Relator Min. Teori Zavascki, Relator p/ Acórdão: Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 25/02/2016.

Nessas situações, faz sentido afirmar a impossibilidade de retroatividade in pejus das alterações jurisprudenciais. Afinal, o cidadão quando pratica uma conduta, pode nutrir em sua consciência a ideia de que ela não é criminosa em razão de esse ser o entendimento dominante nos tribunais. Em conclusão, não há dúvida de que a jurisprudência do plenário do STF tem como indispensável, para a configuração do delito de corrupção passiva, a comprovação da prática (potencial ou efetiva) de ato de ofício. Por outro lado, em passado muito recente, o atual relator da operação lava jato no STF, o Ministro Edson Fachin, afirmou que alterações jurisprudenciais desfavoráveis ao réu – tornando típica conduta que o Tribunal considerava atípica – não pode ter eficácia retroativa. Portanto, mesmo que o STF altere seu entendimento, essa alteração não pode retroagir para consolidar uma sentença que viola o princípio da legalidade.

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