12 minute read
CAPTURA DA SOBERANIA POPULAR, ESTADO DE EXCEÇÃO E JURIDICINISMO
CAPTURA DA SOBERANIA POPULAR, ESTADO DE EXCEÇÃO E JURIDICINISMO Juliana Neuenschwander e Marcus Giraldes*
No dia 12 de julho de 2017 o cidadão Luís Inácio Lula da Silva foi condenado à pena de nove anos e meio de prisão pela suposta prática de crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Enquanto isso, as pesquisas eleitorais, divulgadas amplamente, apontam o político Lula, que foi duas vezes Presidente da República, como favorito ao pleito presidencial que deverá se realizar em 2018. A sentença proferida pelo juiz federal Sérgio Moro peca por inúmeros vícios processuais e materiais: incompetência do juízo, ausência de valor probatório das chamadas “delações premiadas”, o fato de Lula não ter nem o título de propriedade e nem a posse do famoso tríplex do Guarujá, de não existir nexo causal entre atos de ofício praticados por Lula enquanto Presidente da República e os contratos celebrados entre Petrobras e a empreiteira OAS. Finalmente, é absolutamente esdrúxula a condenação por lavagem de dinheiro sem que exista a indicação de qual dinheiro teria sido lavado. Por tudo isso, mas também porque não é consistente nem coerente, a decisão proferida contra Lula não é correta, não é reta, não é justa. Sobram-lhe curvas, tergiversações, desvios. Pode-se dizer mesmo que ela é circular e tautológica. Uma tautologia facilmente observável, por exemplo, na utilização de matérias de jornal como prova, o que apenas se justifica, na sua artificialidade, pelo fato da condenação de Lula ser desprovida de provas. É impactante o número de matérias veiculadas nos últimos anos em grandes jornais e revistas semanais que atacam diretamente o exPresidente, o número de capas de revistas que fazem associações extremamente negativas de sua imagem, a descarada manipulação midiática em torno de seu nome, sobretudo se contrastadas com a quase absoluta desconsideração de denúncias análogas, ou até piores, feitas a seus adversários políticos. Esse tipo de manipulação midiática, com tratamento artificial e deformado da informação, tem cumprido a função de (de)formar a opinião pública que, nos regimes que se descrevem como democracias, é o caldo no qual se produzem as decisões coletivamente vinculantes. Como tem sido verificado, essa função claramente político-manipulatória dos meios empresariais de comunicação de massa transborda dos processos ditos democráticos de escolha dos representantes políticos e passa a atuar e interferir mais diretamente no processamento de demandas dirigidas ao Judiciário. Quando isso acontece, o processo deixa de ser o percurso jurídico que pretende alcançar uma decisão minimamente correta ou justa, para ser o palco disfarçado de uma batalha que já não é mais jurídica, mas essencialmente política. Desde 2010, o jornal O Globo tem publicado reportagens referentes à suposta compra, pelo ex-presidente Lula, de um tríplex no balneário paulista Guarujá. Esse mesmo Jornal, e o grupo econômico do qual faz parte, apoiou desde o início a chamada Operação Lava Jato e a atuação espetaculosa do Juiz Sérgio Moro nos processos vinculados à 13a Vara Federal de Curitiba. Em março de 2015, início de grandes manifestações de massa midiaticamente convocadas contra o governo de Dilma Rousseff, o jornal O Globo entregou ao referido juiz o prêmio “Faz a Diferença”, outorgando-lhe o título de
Advertisement
* Professora Titular da UFRJ / Advogado e analista da FIOCRUZ.
“Personalidade do Ano”. Esse mesmo Juiz utilizou, na decisão contra Lula, as matérias desse mesmo jornal como “prova” para sua condenação. Eis a circularidade: as provas são criadas pelo jornal, que premia o juiz da causa, que utiliza as provas criadas pelo jornal. A referência ao Globo é feita sete vezes ao longo da sentença. Nessa confusão alucinatória que é resultado da circulação de imagens e aparências fabricadas empresarialmente pelo oligopólio midiático, não surpreende que o próprio papel de julgador venha a ser objeto de trocas, embora muitos acreditem nos mitos de heróis. Se observarmos o processo de Lula sob esse prisma, vemos que a eventual inocência ou culpa de Lula é irrelevante e pouco interessa à decisão final, pois também as provas colhidas pela defesa foram ignoradas. O processo de Lula é paradigmático, pois traz à luz as complexas relações entre direito e política no Brasil atual. O tempo de uma política desarticulada em meio às denúncias de corrupção juridicamente ativadas e midiaticamente selecionadas para serem esquecidas ou amplificadas. Nesse contexto o direito já não é capaz de conter a força dos ímpetos políticos, cedendo às suas lutas e operando a partir de referências políticas, e não mais jurídicas. A confusão entre as funções política e jurídica e o desarranjo institucional dela decorrente, fenômeno que vem derrotando o sufrágio popular e a constituição brasileira, tem o seu principal ponto de inflexão no processo de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff. Em 2016, o impeachment da Presidente Dilma Rousseff foi colocado como a solução para a crise econômica (esta mesma amplificada pela sabotagem político-midiática), que para tal fim foi apresentada como uma espécie de razão de Estado, capaz de ultrapassar os limites constitucionais. Depois de se defender estoicamente perante o Senado, quando restou evidente a inexistência de crime de responsabilidade, Dilma Rousseff foi julgada pelos senadores e senadoras tal como foi julgado Michael Kohlhaas, o herói do livro de Heinrich Kleist: foi, há um só tempo, julgada culpada e inocente, condenada à perda do mandato, mas com seus direitos políticos preservados. Foi julgada culpada porque inocente, preferimos dizer. Com Lula acontece algo semelhante, mas aqui estamos mais além de Kleist e Kohlhaas, nos deparamos com Kafka e Joseph. K, no Processo. A certo ponto de suas desventuras, perdido no labirinto do tribunal, na arquitetura do qual Kafka representou magistralmente os meandros da lei e suas infinitas dobraduras, K. afirma: - Minha inocência não simplifica a o caso (...) Tudo depende de muitas coisas sutis, nas quais o tribunal se perde. Mas ao final surge, de alguma parte onde não havia nada, uma grande culpa”.261 No parágrafo 961 de sua tão extensa quanto insustentável decisão, o juiz Moro afirma que a condenação do ex-Presidente Lula mostra que ninguém está tão alto que não esteja abaixo da lei. Na verdade, não é isso que ali se revela, mas apenas que sob esse argumento o juiz Moro/Globo, regozijando-se de modo parcial de sua pretensa imparcialidade, busca justificar moralmente uma decisão desprovida de fundamentos jurídicos. A condenação de Lula, para a qual sua inocência (ou culpa) não foi considerada de modo relevante, mostra que a lei já não é tão alta a ponto de limitar a vontade política de um juiz. Mostra que o Juiz, esse sim, ultrapassou a lei em nome (não declarado) de um movimento político-midiático que é bem mais amplo, do qual ele se tornou um instrumento. Ocorre que um juiz, embora tome decisões que trazem consequências
261 KAFKA, F. O Processo. Trad. Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM, 2013, p.174.
políticas, não está autorizado a decidir politicamente, sobretudo se o faz em detrimento das razões jurídicas. Um juiz não é o soberano, ainda que pretenda usurpar a soberania cujo titular, nos regimes em que está efetivado o direito ao sufrágio universal, é o povo. O Juiz Moro/Globo busca impedir a soberania popular, mas não está em grau de atuar soberanamente. Na formulação clássica do jurista alemão Carl Schmitt, soberano é aquele que decide sobre o Estado de Exceção, ou seja, que decide qual é a situação de exceção que justifica a suspensão temporária do direito. Hoje, no Brasil, muitos têm descrito a situação que vivemos sob o rótulo “Estado de Exceção”. Mas o que temos assistido, pelo menos até o momento em que escrevemos estas linhas, não é um Estado de Exceção clássico no sentido de Carl Schmitt, em que o soberano decide pela suspensão de toda a ordem jurídica tendo em vista a conservação da própria ordem. É bem verdade que, mais tarde, Schmitt aderiu ao nazismo e esqueceu esse conceito de suspensão para restabelecimento do direito e passa a apregoar um novo “direito” emanado do Fuhrer. O que vemos hoje no Brasil é a normalização da corrupção política do direito Lula foi condenado, mas quem foi desta forma aprisionada foi a soberania popular. Nas construções do pensamento filosófico da modernidade, o povo, salvo em momentos revolucionários, nunca foi uma realidade sensível, mas sim um referente externo que é invocado como fundamento do poder e do direito para, no momento seguinte à fundação da ordem política e jurídica, ser novamente impedido de se manifestar. Em certa medida, a ordem político-jurídica é sempre fundada sobre um aprisionamento da soberania popular, que permanece como algo externo, com uma besta fera domesticada, impedida de se manifestar plenamente. Mas o povo, essa fera domesticada, permanece sendo temido e respeitado, como o referente externo que estabelece limites jurídicos ao exercício do poder, mediante o respeito à uma constituição que desenha esses limites e os modos nos quais a soberania popular domesticada pode se manifestar de tempos em tempos mediante o exercício do sufrágio universal. No Brasil pós-Golpe de 2016, o povo que sempre foi uma abstração e um referente externo está capturado simbólica e materialmente. Nesse contexto, a sentença contra Lula cumpre o papel de criar um impedimento formal à soberania popular porque restringe as opções eleitorais das forças depostas pelo golpe de Estado parlamentarjudiciário, enquanto o governo que se instaura após esse golpe prescinde de qualquer referência, concreta ou mesmo abstrata, ao povo. A condenação de Lula aprisiona a soberania popular antes mesmo dessa se manifestar, é um impedimento a essa soberania popular, que embora castrada e domesticada ainda apresenta algum limite ao poder da oligarquia. De outro lado, o povo é destituído, no pós-golpe, ou nesse tempo da duração do golpe, de seus direitos, sendo isolado juridicamente do processo político, pois que os direitos individuais e sociais são, antes de mais nada, faculdades políticas dos indivíduos que permitem a esses serem reconhecidos juridicamente como povo. O que se pode perceber, então, é que o povo simbólico e abstrato que foi invocado pelos processos constituintes democráticos desde o século XVIII, nessa quadra que vivemos passa a ser desprezado como jurídica e politicamente relevante. Para o governo de fato instalado em Brasília, não há mais povo, mas corpos que buscarão suas próprias formas de sobrevivência.
O Estado de Exceção aparece, aqui, não no sentido schmittiano de suspensão da ordem jurídica para conservação da ordem política e social, mas no sentido invocado por Walter Benjamin, nas suas teses sobre a História, quando este afirma que “a tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral” (tese 8)262. Como se sabe, Schmitt, que escrevia do ponto de vista de um soberano individualizado, mitologizado, não admitia a dualidade entre Estado de direito e Estado de exceção, pois para ele “nem toda atribuição excepcional, nem toda medida ou ordem emergencial policial é um Estado de exceção”263. O foco estava na decisão que afirma politicamente o soberano em face do inimigo. Benjamin, pelo contrário, estava consciente da dualidade e do conflito imanente entre exceção e direito porque escrevia do ponto de vista da “tradição dos oprimidos”, do “sujeito do conhecimento histórico” (tese 12), dos que sofrem a violência do poder soberano. A estrutura dessa exceção, que é parasitária de todo Estado de direito que esteja assentado em sociedades divididas em classes sociais, “normalizando-se” como um terceiro excluído na relação entre direito e política. A exceção que vivemos é normalizada como negação de direitos, é aquela exceção que, “na tradição dos oprimidos” se faz regra. Esse é um Estado de Exceção que não é declarado, ou formalizado, mas que está presente de acordo com o momento, com a situação, com os envolvidos. Não é um “estado de exceção” dirigido a todos, pois há uma seletividade da exceção, que atinge os pobres, os presos, os negros, os índios, os “inimigos” de cada lugar e instante. A exceção é concreta e histórica de acordo com as relações de força de cada formação social e não um paradigma abstrato de governo. Para Jacques Rancière: Não vivemos em democracias. Tampouco vivemos em campos, como garantem certos autores que nos veem submetidos à lei de exceção do governo biopolítico. Vivemos em Estados de direito oligárquicos, isto é, em Estados em que o poder da oligarquia é limitado pelo duplo reconhecimento da soberania popular e das liberdades individuais. Conhecemos bem as vantagens desse tipo de Estado, assim como seus limites264 . Essa caracterização de Rancière tem tanto o mérito de apresentar uma crítica radical à realidade de supremacia oligárquica dos regimes que a ideologia denomina “Estados democráticos de direito” quanto é uma recusa de um discurso a-histórico sobre o Estado de exceção, que despreza os limites jurídicos ao poder dessa oligarquia e que são o resultado das lutas históricas dos oprimidos. E justamente por isso, está implícita nessa crítica uma contribuição teórica bastante relevante para a compreensão da relação entre direito e exceção. Todo recuo nos limites estabelecidos ao poder da oligarquia é um avanço no Estado de exceção. Em um país como o Brasil, de uma construção incompleta do Estado de direito, das permanências de heranças da escravidão e da ditadura militar, as zonas de exceção são extensas e nunca estiveram ocultas. A vida cotidiana em favelas das grandes cidades ou em áreas camponesas e indígenas é sem dúvida comparável à vida em “campos”.
262 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da História. In Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 222/232. 263 SCHMITT, Carl. Teologia política. In A crise da democracia parlamentar. São Paulo: Scritta, 1996, p. 92. 264 RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 94.
O processo contra Lula está inserido nesse contexto do avanço da exceção. Mas também sabemos que punições segundo critérios externos ao direito, na realidade, não são novidade. Basta lembrar da prisão e condenação de Rafael Braga, manifestamente injusta, e que hoje condensa simbolicamente toda a violência do sistema punitivo contra pobres e negros. O impeachment da Presidenta da República sem crime de responsabilidade significa um rompimento da oligarquia com o compromisso firmado em 1988 de que os resultados eleitorais para a chefia do Estado deveriam ser respeitados. Em ato contínuo, como consequência dessa usurpação do direito ao sufrágio universal e instalação de um governo desprovido de qualquer legitimidade jurídica e popular, está em execução um agressivo programa de retiradas de direitos. No dia anterior à divulgação da sentença contra Lula, não por coincidência, foi aprovada pelo Congresso uma ampla alteração da legislação trabalhista em favor do patronato. As supressões de direitos políticos, econômicos e sociais do povo são um afrouxamento dos limites ao poder da oligarquia, um recuo no Estado de direito, avanço no Estado de exceção. A condenação de Lula é mais um efeito dessa ofensiva e ao mesmo tempo uma condição para que, caso ocorram eleições em 2018, estas sejam ainda mais restritas.