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DA PUBLICIDADE, DA NULIDADE E DO CONTROLE DAS DECISÕES JUDICIAIS, QUEM ESTÁ ACIMA DA LEI?
DA PUBLICIDADE, DA NULIDADE E DO CONTROLE DAS DECISÕES JUDICIAIS, QUEM ESTÁ ACIMA DA LEI?
Leonardo Costa de Paula *
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Não importa o quão alto você esteja, a lei ainda está acima de você. Adaptação livre de Sérgio Fernando Moro na sentença que condena o ex-presidente Lula A análise que se fará no presente estudo restringe-se à relação entre publicidade, motivação e controle das decisões judiciais e suas repercussões a partir da teoria das nulidades, tendo como objeto a divulgação de conteúdo resultante de interceptações realizadas no âmbito da investigação que resultou no processo que tem, como um dos Acusados, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na denominada “Operação Lavajato”. A sentença que condenou o ex-presidente, amplamente difundida pelos meios de comunicação social, dedicou-se, em alguma medida, a esta questão e, portanto, há indiscutível interesse em se debater sua validade, analisando-se o contexto em que foi produzida, sem que se desconsidere a opinião manifestada academicamente pelo magistrado que proferiu a decisão. Tendo em vista que o processo segue em seu curso e não há trânsito em julgado, não se busca, no presente artigo, uma análise factual dos elementos de prova produzidos na instrução processual, mas, sim, a análise científica e jurídica, da fundamentação de exposição de interceptação telefônica do Acusado, regida, pela lei e pela Constituição, sob o sigilo, e suas repercussões sobre o processo e sobre a imparcialidade do julgador. São compatíveis a legalidade e a submissão de tal elemento de investigação ao escrutínio da opinião pública, saudável ou não? Sabe-se que o ex-presidente da República foi condenado à pena de 9 anos e meio de prisão, em processo que teve, em sua origem, investigação na qual houve interceptações telefônicas, cujos áudios e relatórios respectivos foram parcialmente divulgados pela mídia no ano de 2016, às vésperas da nomeação de Lula para o cargo de Ministro Chefe da Casa Civil. A decisão de retirada do sigilo dos autos da referida investigação, que continha dados indiciários colhidos pela polícia judiciária, foi assim fundamentada: Como tenho decidido em todos os casos semelhantes da assim denominada Operação Lavajato, tratando o processo de apuração de possíveis crimes contra a Administração Pública, o interesse público e a previsão constitucional de publicidade dos processos (art. 5º, LX, e art. 93, IX, da Constituição Federal) impedem a imposição da continuidade de sigilo sobre autos. O levantamento propiciará assim não só o exercício da ampla defesa pelos investigados, mas também o saudável escrutínio público sobre a atuação da Administração Pública e da própria Justiça criminal. A democracia em uma sociedade livre exige que os governados saibam o que fazem os governantes, mesmo quando estes buscam agir protegidos pelas sombras.279
* Doutorando em Direito pela UFPR, Professor da Faculdade CNEC-Rio de Janeiro. 279 Disponível em: <http://www.otempo.com.br/capa/pol%C3%ADtica/leia-decis%C3%A3o-de-moroque-retirou-sigilo-de-conversa-entre-dilma-e-lula-1.1260054>, acesso em 21 de julho de 2017.
Pela Constituição, ainda em vigor, é possível se afirmar que o escrutínio público sobre a Administração Pública e a própria Justiça criminal impede a imposição de continuidade do sigilo sobre os autos? Que fique claro, não se analisa no presente texto científico a atuação de qualquer das partes ou atores envolvidos e sim, os fundamentos jurídicos e se há adequação estruturante para a Ciência do Direito a partir do que está estabelecido no ordenamento jurídico. Afinal, a publicidade das decisões judiciais, não por acaso prevista pelo mesmo dispositivo constitucional que consagra sua motivação, serve, também, ao controle da atividade do Estado pelos cidadãos. A jurisdição é a manifestação de um poder do Estado e, portanto, a publicidade do agir do Estado-juiz serve, fundamentalmente à crítica. Aos saberes jurídico-penal e processual-penal, incumbe a tarefa de avaliar a racionalidade das decisões, como mecanismo de contração do exercício de poder ilegítimo. A Constituição determina que é inviolável a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Ainda se assegura o direito à indenização por dano daí decorrente, como reza o inciso X do artigo 5º da CRFB. O inciso XII, do artigo 5º, da Constituição, por sua vez, é mais claro no que diz respeito à inviolabilidade da correspondência e comunicações telegráficas e de telefonia. Dita que só pode ser rompido o sigilo por ordem judicial e somente nas hipóteses que “a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual” (grifo nosso). O constituinte originário só permitiu o levantamento da intimidade para uma finalidade específica: a investigação criminal ou instrução processual. Então, pelo texto constitucional, não há qualquer ressalva acerca do escrutínio público e, menos ainda, sobre a possibilidade dos governados poderem saber o que pensam ou dizem os governantes. É certo que aquilo que os governantes fazem deve estar sob a regência do princípio da legalidade. Qualquer indivíduo que, no exercício de uma função pública, corporifique o Estado, encontra-se vinculado a este princípio, também nominado princípio da conformidade. Juridicamente, não há lastro legal que justifique o levantamento de um processo com conteúdo sigiloso, oriundo de comunicação telefônica, para que se preserve um saudável escrutínio público. A Constituição não prevê esta hipótese quando estabelece o âmbito de proteção do direito fundamental respectivo e prevê a possibilidade de sua limitação. A Lei 9.296/1996 traz a disposição expressa acerca do regime de interceptação telefônica, sua finalidade e limites. O artigo 8º impõe que a interceptação correrá em autos apartados, com especial atenção para que se preserve “o sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas”. Independentemente de onde estejam estes documentos, já que derivados de lá, o sigilo se estende para o processo, para eventual recurso, e assim sucessivamente. O Supremo Tribunal Federal se manifestou sobre este
ponto com a máxima: frente o direito à privacidade a liberdade de imprensa nunca irá imperar.280 A prova produzida só pode instruir o processo e, tem em sua essência a preservação do sigilo. Ou isso, ou a prova é inútil e, neste caso, dita a lei que deve ser descartada, na presença da defesa, inclusive. A República se diferencia dos regimes despóticos na separação do Príncipe, pelo princípio. Um princípio rege o Estado: o princípio, da legalidade. A coisa pública está separada do governante, submetendo-o a agir conforme a lei, enquanto os particulares devem agir de forma compatível com a lei, ou seja, não sendo proibido, é lícito. O ente público deve agir sob o escrutínio do princípio da estrita legalidade. O que isso quer dizer? Aquele que faz o Estado presente só pode fazer o que a lei define, e na forma da lei, daí, conforme a mesma.281 Na estrutura do Direito Processual, a análise sobre a legalidade corresponde imediatamente à identidade da Nulidade. Nulidade, pela própria palavra, é a qualidade de nada ser.282, muito embora seja convencionada, na doutrina e jurisprudência –arraigadas a uma identidade pseudo teórica da Teoria Geral do Processo – a concepção equivocada, da nulidade enquanto uma tentativa inútil de salvar a estrutura do ato produzido. O correto e constitucionalmente possível para a teoria das nulidades, no campo do processo penal, é preservar o ato, desde que se tenha seguido a lei, desde que tenha sido conforme a lei. É isto que dá corpo ao Devido Processo Legal. Ninguém poderá ser tolhido dos seus bens ou liberdade sem aquilo que esteja definido na própria lei, que estabelece o agir estatal frente ao indivíduo. Existe alguma previsibilidade para que se levante o sigilo de interceptações telefônicas? Não, não existe qualquer possibilidade ou previsibilidade para isso nas definições legais ou Constitucionais. Ora, se não existe essa previsão, poderia um ente público submeter ao escrutínio saudável da população alguma interceptação? Não, pois o sigilo aí é indispensável para que não exponha as pessoas a intimidade, independentemente do que pode pensar o público sobre isso. O papel do Direito aí é justamente a preservação do um contra todos, ou seja, contra majoritário. Não é a toa que se protege o réu de linchamentos públicos, pois esta não é a forma definida em lei. Em manifestação de opinião acadêmica, há mais de dez anos, o magistrado283 que proferiu a decisão ora analisada considerou salutar, na realidade italiana da denominada Mani Pulite, a divulgação, pela imprensa, das informações produzidas nas investigações, entendendo, dentre outras razões, por
280 CONJUR. Justiça confirma veto ao vídeo de Cicarelli na Internet. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2006-set-28/justica_confirma_veto_video_cicarelli_internet>, acesso em 21 de julho de 2017. 281 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Conceitos jurídicos indispensáveis. Palestra proferida na EMERJ disponível nos links parte 1: <http://www.youtube.com/watch?v=nTyRuwSHFbI>, acesso 9 de julho de 2017. 282 PAULA, Leonardo Costa de. Nulidades no processo penal brasileiro: sua compreensão por meio da afirmação do direito como controle ao poder de punir, Curitiba: Juruá, 2013. 283 MORO, Sergio Fernando. Considerações sobre a Operação Mani Pulite. R. CEJ, n. 26, p. 56-62, jul/set 2004, Brasilia, 2004. Disponível em <http://s.conjur.com.br/dl/artigo-moro-mani-pulite.pdf>
garantir “o apoio da opinião pública às ações judiciais”, não obstante “o risco de lesão indevida à honra do investigado ou acusado”.
ANTOINE GARAPON afirma, sobre a realidade francesa da última quadra do século XX, que: “Alguns indivíduos aproveitam a mídia para se emancipar de qualquer tutela hierárquica. (...) Um juiz considera-se prejudicado por sua hierarquia? Ele apela imediatamente para a arbitragem da opinião pública. Todas as anulações processuais são purgadas por essa instância de recurso selvagem que a mídia representa, e os argumentos técnicos do direito ou processuais não tardam a revelar-se para a opinião pública como argúcias, astúcias, desvios inúteis, que impedem a verdade de ‘vir a tona.”284
E ANTOINE GARAPON continua, cirurgicamente: “Nos dois casos – dos juízes e da imprensa – as infrações à regra do segredo da instrução são justificadas pelas falhas do sistema jurídico. Eis por que o jogo atual entre justiça e mídia é perverso: cada um encontra a absolvição de sua transgressão na transgressão do outro”.285 Acerca da submissão do ente público ao princípio da legalidade GARAPON arremata: “Tal atitude, raramente denunciada por aqueles que deviam sancioná-la – os magistrados, dela participam –, se revela extremamente perigosa, inclusive para a moral: ela incentiva o cinismo, a hipocrisia e a tartufice.”286 E, conclui: “De nada adianta invocar a ordem jurídica a torto e a direito, quando se tomam tais distâncias com respeito ao puro e simples direito.”287 Don´t throw the child with the dirty water diz uma antiga expressão inglesa. Na época dos banhos, em abril, pelo que se costumeiramente fala das histórias, os bebês tomavam banho por último, na água já suja. Ao despejar o conteúdo da água, como estava muito turva, podia se correr o risco de jogar fora a água do banho com o bebê dentro. Não se pode subverter a publicidade para algo além do que ela deve ser. Os entes públicos, por certo, devem ser controlados e, talvez, até por isso, se justifica a existência de processos para análise de um caso penal. Porém, de certo que os atos que devem ser controlados, no curso do processo, antes de tudo são os do próprio julgador, já que este está desenvolvendo o poder estatal. Conforme GABRIEL ANITUA, é indispensável que os atos que se deve controlar, na justiça penal, são os atos estatais derivados de lá, pois importante que os cidadãos possam conhecer os fundamentos das decisões e que possam opinar e criticá-las. Conclui o autor que “El control a través de la publicidad permitirá ver la selección que realiza el legislador penal, pero también la que efectivamente concretan las instancias de aplicación del sistema penal.”288
284 GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 66. 285 Ibidem, p. 68. 286 Ibidem, p. 69. 287 Idem. 288 ANITUA, Gabriel Ignacio. Justicia penal pública: Um estúdio a partir de la publicidade de los juicios penales. Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2003, p. 362.
Para se responder às indagações iniciais, é preciso observar que a publicidade no processo penal serve para preservar os cidadãos frente ao abuso estatal. Não se pode subverter este princípio, para se jogar fora a água com o bebê dentro. Ou seja, sob o argumento de proteção do Estado de Direito, na verdade o que se pode fazer é dar-lhe fim. Juiz que age ao arrepio da lei não pode julgar o réu o qual submeteu a um tratamento não previsto em lei e, no mais, que o submeteu a uma instância midiática de julgamento para fugir do controle hierárquico. Da análise hipotética dos possíveis fatos identificados aqui, é perceptível que um magistrado, em uma Democracia, não pode subverter o democrático frente àquilo que o torna juiz. Ou seja, frente a lei. A lei está não só acima do réu, mas antes de tudo, está acima do juiz. É a lei que o define. Se esse barco fizer água, não há réu ou juiz, não há Estado, apenas se alcançará as profundezas e, neste caso, o Leviatã será autofágico.