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DELAÇÃO PREMIADA VERSUS DIREITO AO SILÊNCIO. QUEM GANHA NA SENTENÇA?
DELAÇÃO PREMIADA VERSUS DIREITO AO SILÊNCIO. QUEM GANHA NA SENTENÇA?
Michelle Aguiar *
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No dia 12 de Julho de 2017, o fraco sistema democrático que ainda rege o Brasil sofreu mais um duro Golpe. Foi divulgada sentença proferida pelo juiz da 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba, Sérgio Moro, condenando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva a 9 anos e 6 meses de prisão na Operação Lava Jato. O caso analisado envolvia a compra de um tríplex localizado no Guarujá, no litoral paulista e as acusações seriam, em suma, de que teria supostamente o ex Presidente Lula participado conscientemente de um esquema criminoso envolvendo o Grupo OAS e a Empresa Petrobras. Neste sentido, aduziu o Ministério Público Federal que o Grupo OAS, seria um dos grupos empresariais que teriam promovido o pagamento de vantagem indevida em contratos da Petrobras a agentes públicos e a agentes ou partidos políticos e que, concernente a esses valores, R$ 3.738.738,00 teriam sido destinados especificamente ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, corporificados através da disponibilização de um apartamento tríplex sem que houvesse pagamento do preço correspondente pelo então ex-presidente. A tese foi acolhida pelo juízo, sentenciando Luís Inácio Lula da Silva aos crimes de corrupção passiva, conforme artigo 317 do Código Penal, com a causa de aumento na forma de seu §1º (em razão de ato de ofício ou de dever funcional) do mesmo dispositivo legal e, por um crime de lavagem de dinheiro do artigo 1º, caput, inciso V, da Lei n.º 9.613/1998, alcançando-se o patamar de 9 anos e seis meses de reclusão. Ocorre, que durante a leitura da extensa sentença (em exatas 218 páginas), é possível verificar-se uma postura absolutamente parcial, arbitrária e de lógica inquisitória por parte do juízo a quo. E mais grave do que isto, por diversas vezes é externada a defesa de atos que contrariam direitos e garantias fundamentais do acusado e do próprio ordenamento jurídico brasileiro, no que tange ao sistema acusatório e democrático. Um exemplo nítido desta afirmação se respalda na defesa das chamadas delações premiadas e, em contrapartida, na reprovação ao direito ao silêncio, como assim é elucidado em página 44, parágrafo 251 da referida sentença: Quem, em geral, vem criticando a colaboração premiada é, aparentemente, favorável à regra do silêncio, a omertà das organizações criminosas, isso sim reprovável. Piercamilo Davigo, um dos membros da equipe milanesa da famosa Operação Mani Pulite, disse, com muita propriedade: "A corrupção envolve quem paga e quem recebe. Se eles se
* Advogada Criminal, Pós-graduada em Processo Penal e Garantias Fundamentais (ABDConst-RJ), Bacharel em Direito (IBMEC-RJ), Diretora de Pesquisa da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim-RJ) Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Membro do Law Enforcement Against Prohibition (LEAP). Delegada da Comissão de Prerrogativas (OAB/RJ). Autora de diversos artigos jurídicos na área criminal.
calarem, não vamos descobrir jamais" (SIMON, Pedro coord. Operação: Mãos Limpas: Audiência pública com magistrados italianos. Brasília: Senado Federal, 1998, p. 27). 364 Salta aos olhos que um magistrado seja capaz de defender o instituto da delação premiada como se esta fosse um meio inconteste de salvação da nação (como já ocorreu em diversos eventos anteriores à sentença) e se reprove o direito ao silêncio, que constitui uma das dimensões do Direito a Ampla Defesa do acusado. Em apartada síntese, o direito ao silêncio constitui o princípio do “nemu tenetur sine detegere”, ou seja, o direito de não produzir prova contra si mesmo e “calar-se”, direito esse, como já mencionado acima, que compõe a dimensão do Direito de Ampla defesa; pilar fundamental do sistema processual penal democrático, esculpido em sede constitucional, consoante inciso LXIII, artigo 5º da Constituição Federal. Frisa-se que a opção de ficar em silêncio não pode ser interpretada in malam partem (para o mal) do investigado ou denunciado, noção esta que igualmente possui respaldo legal no artigo 186, parágrafo único do Código de Processo Penal365 e é inclusive causa de nulidade processual, conforme entendimento unânime doutrinário e jurisprudencial.366 Destarte, a presente sentença claramente contraria dispositivos constitucionais e legais, assim como princípios que conferem garantias fundamentais e, evidentemente, não pode ser relativizadas ou ignoradas, sob pena de retrocesso do regime democrático brasileiro. Sublinha-se que aqui não se pretende criticar a delação premiada em si, mas sim a forma como esta tem sido utilizada nas presentes Operações, nas quais tem-se utilizado a prisão como regra e, consequentemente, como meio para a obtenção da confissão dos crimes praticados, a fim de se evitar a própria prisão ou a de familiares. Logo, não há um pingo de voluntariedade em se fazer qualquer tipo de delação por parte do investigado ou do denunciado, o que ele deseja é tão somente evitar a prisão, ou se já preso, buscar sua liberdade. Não há então nenhum motivo para se orgulhar ou defender um procedimento destes. Ainda que se afirme na sentença que “jamais se prendeu qualquer pessoa buscando a colaboração ou confissão”367, não é o que a prática demonstrou ou tem demonstrado durante todas as prisões efetuadas no âmbito das Operações Lava Jatos. Vale ressaltar que no antigo sistema inquisitório brasileiro (e que ainda se demonstra presente no atual sistema penal), o interrogatório tornou-se um ato processual de extrema relevância, posto que consistia na formalização da obtenção da prova mais valiosa, da prova inquestionável e que, por essa razão, correspondia à verdade real. Para
364 Íntegra da sentença disponível em http://estaticog1.globo.com/2017/07/12/sentenca_lula.pdf. 365Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas. Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa. 366A exemplo tem-se a inteligência do artigo 478 do Código Processo Penal: durante a sustentação oral as partes não poderão fazer referências, sob pena de nulidade: b) ao silêncio ou à ausência do réu em plenário. 367 Parágrafo 235, folhas 42 da sentença.
a obtenção desta chamada verdade inconteste e purificadora, os fins justificariam os meios, no sentido de que se haveria a possibilidade da prática de meios de tortura, desde que se obtivesse o fim almejado: a confissão. Não se afirma aqui que o presente juízo seja defensor ou que tenha se valido de práticas ilegais ou reprováveis, mas sim de elucidar que o procedimento da delação premiada tem inevitavelmente remetido a essa época tão sombria que foi a chamada inquisição. Por quanto disto, é preciso ter cautela antes de se posicionar sobre assuntos tão polêmicos, como é o caso da delação premiada. Sobretudo, é preocupante que ao destacar a importância da delação premiada no citado parágrafo, tenha sido elencada como referência uma bibliografia referente a chamada “Operação Mani Pulite”, traduzida aqui no Brasil como “Operação Mãos Limpas”. Isto porque, em apertada síntese, a “Operação Mãos Limpas” se iniciou na Itália em 1992, com a prisão de Marcio Chiesa, então presidente de um hospício em Milão, ao ser flagrado recebendo suborno de um empresário. Esta seria então o início de uma longa sequencia de prisões e investigações visando erradicar a corrupção política. Uma das técnicas comum de investigação neste cenário era o excesso da utilização da colaboração com o juízo (leia-se, delação premiada). Neste diapasão, expõe Renzo Orlandi que: A Corte Constitucional havia tornado possível a prolação de sentenças com base em declarações feitas pelo corréu ao Ministério Público, ainda que não confirmadas durante o processo, diante de um juiz imparcial, no contraditório das partes. Em outras palavras, o corréu fazia um favor ao Ministério Público, fornecendo declarações incriminadoras destinadas a valer como prova no processo. Por sua parte, o Ministério Público retribuía o favor, deixando de pedir a emissão de provimentos cautelares e favorecendo uma saída “indolor” do processo por meio da barganha judicial, muitas vezes combinada com a suspensão condicional da pena.368 Nesse sentido, é de se refletir que qualquer semelhança com a Operação Lava Jato não é mera coincidência. Vale ressaltar que a citada “Operação Mãos Limpas” acabou por desorientar a relação entre os poderes do Estado, enfraquecendo o sistema dos freios e contrapesos369, atribuindo poderes incontroláveis tanto para a magistratura, quanto a procuradoria, exterminando toda e qualquer chance de direito de defesa, sendo então reconhecida como uma brusca involução inquisitória do sistema processual. Desse modo, defender a prática da delação premiada da forma como tem sido implementada no Brasil e utilizar a Operação Mãos Limpas como se esta representasse algum passo de evolução, definitivamente contraria qualquer noção de um processo justo e de respeito à democracia. Em um momento tão sombrio para o processo penal, é preciso de juízes que defendam e cumpram as regras do Jogo, não que as derrubem.
368ORLANDI, Renzo. “Operazione Mani Pulite” e Seu Contexto Político, Jurídico e Constitucional, in Constituição, Economia e Desenvolvimento. Revista Eletrônica da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Curitiba, 2016, vol. 8, n.15, Jul – Dez, p. 389. 369 O Sistema de freios e contrapesos possui como escopo garantidor a separação de poderes, possibilitando que cada poder, no exercício de competência própria, controle outro poder e seja pelo outro controlado, sem que haja impedimento do funcionamento alheio ou mesmo invasão da sua área de atuação.