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SENTENÇA CONTRA LULA VIOLA A IGUALDADE DE ARMAS PROCESSUAL

SENTENÇA CONTRA LULA VIOLA A IGUALDADE DE ARMAS PROCESSUAL Ricardo Franco Pinto *

A destruição de princípios basilares de Direito, mais especificamente de Direito Penal é muito mais fácil do que se poderia imaginar. Geralmente, uma única Sentença detém tal poder de destruição, sempre e quando a mesma conte com o apoio do conjunto midiático a serviço do poder dominante. Como no caso em que aqui trataremos (a sentença condenatória de Lula) e em muitas outras conhecidas no transcurso da história (Mandela poderia ser o exemplo mais claro), não importa, a rigor, o conteúdo da sentença, mas a quem se quer condenar. Assim, algumas sentenças funcionam apenas como uma espécie de “pano de fundo” para o que realmente está em jogo, que é a decisão política sobre o destino de um país e a implantação, no caso do Brasil, de medidas ultraliberais como ocorre efetivamente há pouco mais de um ano. Com a promulgação da Constituição de 1988, ao menos dois destes princípios basilares estariam garantidos: o primeiro, a separação de poderes; o segundo, a igualdade de armas em um processo judicial. O primeiro princípio, de separação de poderes, se garantiria delimitando-os em três (em uma evolução política do que pregava Benjamin Constant, que entendia que havia cinco poderes406), tal e como já se adotava na primeira república, com inspiração na interpretação de Montesquieu. No corpo da Constituição de 1988 encontramos a divisão de poderes (executivo, legislativo e judiciário) delimitadas principalmente em dois artigos: o art. 2º, que estabelece que “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”; e o art. 60, §4º, que atua como norma protetora do artigo anterior, ao estabelecer que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (...) III - a separação dos Poderes”. A importância deste princípio reside na não interferência (ou influência) política de um poder em outro pois isto colocaria em risco o sistema democrático. Entendemos que este princípio foi e será tratado em outros lugares, e não nos ocuparemos diretamente do mesmo neste artigo. O segundo princípio, que buscaremos analisar com um pouco mais de exatidão, é o princípio da igualdade de armas407. É igualmente reconhecido pela Constituição Brasileira naquele que seja possivelmente o mais famoso artigo da Carta Magna (art. 5º), que estabelece que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Evidentemente todos os que trabalhamos com o Direito Penal sabemos que

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* Professor Visitante da Universidad Pablo de Olavide (Sevilla - Espanha). Advogado junto ao Tribunal Penal Internacional (Haia – Holanda). Doutor Internacional pela Universidad de León (León - Espanha), e especialista em Direito e Política Internacional, nas áreas de Terrorismo, Terrorismo de Estado e Direitos Humanos. 406 Para Constant, os poderes eram: Real, Executivo, Representativo Duradouro (assembleia hereditária), Representativo de Opinião (assembleia eletiva) e o Judiciário. 407 Também denominado “paridade de armas”.

este princípio não é obedecido à risca (nem no Brasil, nem em outros países), mas um mínimo de respeito ao mesmo deveria ser observado, para que ao menos haja uma redução da desigualdade processual entre acusação e defesa. Mas o que isto quer dizer em processo penal? Que as armas que possua a acusação (geralmente o Ministério Público) sejam idênticas às da defesa. E esta observância à igualdade de armas é obrigação de todas as instituições, mas principalmente dos juízes, e especialmente do juiz da causa penal específica, pois é ele o primeiro e mais importante garantidor de que a paridade não somente esteja perfeitamente estabelecida, mas que seja mantida até o fim do procedimento. Infelizmente, não foi o que se observou nem na instrução e nem na sentença contra Lula. Apenas para deixar três exemplos do transcurso da instrução criminal, temos inicialmente a famosa e infantil apresentação do “powerpoint” da denúncia contra Lula, onde o Procurador de Justiça acusou-o de ser o chefe de uma organização criminosa, chamando-o de “comandante máximo” do esquema de corrupção investigado no processo conhecido como lava-jato408. Isto é uma ação ilegal, pois um Procurador da República não tem o direito de dirigir-se assim a um cidadão brasileiro (ou estrangeiro) sem que o mesmo tenha tido sequer oportunidade de defesa. Isto é um claro descumprimento do dever jurídico de todos (juiz, ministério público e/ou advogados) de preservar sempre a imagem e também a figura do réu. Isto desequilibra claramente a paridade de armas, pois a acusação se utiliza de um espaço midiático amplíssimo para verter estas acusações, o que faz com que o processo penal transcenda os limites do judiciário e obtenha o impacto desejado na sociedade. Em outras palavras, uma clara manipulação midiática do processo penal, e que a defesa não tem como utilizar as mesmas armas, pois o servilismo mediático é claramente contra os interesses do réu. No caso, contra Lula. E que medidas foram tomadas pelo juiz da causa, responsável para garantir a igualdade de armas e os direitos do réu? Nenhuma. O segundo exemplo é a famosa condução coercitiva de Lula à Polícia Federal sem que o mesmo sequer fosse previamente notificado para prestar depoimento ao juiz instrutor. Estranhamente, toda a imprensa sabia sobre a condução, e mais um espetáculo foi criado409 com a única intenção de efetuar uma busca em sua propriedade. Uma ação claramente ilegal, causada agora pelo próprio juiz, que tinha a obrigação de parcialidade. Neste momento, já está claro que o juiz se posiciona em qualidade também de acusador. O terceiro exemplo é o vazamento ilegal das conversações telefônicas entre Lula e seus familiares e principalmente entre Lula e a Presidenta Dilma Rousseff, que aliás foram assim posteriormente declaradas pelo Supremo Tribunal Federal. A violação aos arts. 8º y 9º da Lei 9.296/1996 deveria ter sido, por si só, suficiente para afastar ao juiz instrutor da causa, uma vez que cometeu atos que poderiam ser criminais, nos moldes do art. 10º da mesma lei410. A partir deste momento, apartar ao juiz instrutor do procedimento era

408 Que investiga a corrupção na Petrobrás. 409 O vazamento de informações sigilosas à imprensa foi uma constante no processo contra Lula. 410 Lei 9.296/1996: (...) Art. 8° A interceptação de comunicação telefônica, de qualquer natureza, ocorrerá em autos apartados, apensados aos autos do inquérito policial ou do processo criminal, preservando-se o sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas.

absolutamente necessário. Evidentemente isto não ocorreu, e desde então já havia a certeza na sociedade brasileira que Lula seria condenado, independentemente de que forma o processo transcorresse. O curioso naquele momento é que tanto os cidadãos chamados de “esquerda” ou “direita” e mesmo os de “centro” compartiam a mesma opinião. E todos estavam absolutamente certos. A opinião entre os que tratamos a diário com o Direito Penal não era distinta: estava claro que os princípios de Direito Penal não valiam para este processo, que a excepcionalidade tão combatida por todos os democratas reinava nestes Autos e que a condenação era o objetivo do mesmo. A perseguição objetiva processual, dividida em investigação, instrução e sentença, havia sido mudada politicamente para condenação pública, violação de direitos processuais e confirmação condenatória. Como dizemos na Espanha, um verdadeiro paripé. Uma sentença condenatória (ainda que pobre em termos jurídicos ou argumentativos como a proferida contra Lula) era apenas uma questão de tempo, mas nunca seria uma questão de justiça. Neste livro, serão muitos os autores que analisarão de forma exaustiva a sentença condenatória contra Lula. Ainda assim, entendemos necessário chamar a atenção apenas para uma questão que apoiaria tudo o que argumentamos anteriormente: a sentença condenatória possui 962 parágrafos (divididos em 238 páginas). Destes, apenas 5 foram dedicados à tese da defesa. Toda a sentença é claramente uma autodefesa do próprio juiz que a assinou, mais que uma análise exaustiva dos argumentos e teses de acusação e defesa (no caso da falta de análise das teses da defesa). A paridade de armas aqui é apenas um conceito que foi há tempos preterido na condução deste processo. Posteriormente à sentença, os advogados de Lula apresentaram embargos de declaração sendo que o juiz sentenciador (que aliás no decorrer do rito sempre os tratou sem o devido respeito e sem urbanidade) se recusa a admitir que há contradições ou lacunas em sua sentença. Nada novo, não surpreendentemente. Ato seguido, determina o sequestro dos bens de Lula, em outra decisão não apenas polêmica, mas totalmente absurda e sem sustentação jurídica alguma. E por que afirmamos isto? Oras, porque na decisão sobre os embargos declaratórios, o juiz reconhece claramente que não houve prejuízo algum para Petrobras, manifestando-se assim a respeito: “Este Juízo jamais afirmou, na sentença ou em lugar algum, que os valores obtidos pela Construtora OAS nos contratos com a Petrobrás foram utilizados para pagamento da vantagem indevida para o ex-Presidente. Aliás, já no curso do processo, este Juízo, ao indeferir desnecessárias perícias requeridas pela Defesa para rastrear a origem dos

Parágrafo único. A apensação somente poderá ser realizada imediatamente antes do relatório da autoridade, quando se tratar de inquérito policial (Código de Processo Penal, art.10, § 1°) ou na conclusão do processo ao juiz para o despacho decorrente do disposto nos arts. 407, 502 ou 538 do Código de Processo Penal. Art. 9° A gravação que não interessar à prova será inutilizada por decisão judicial, durante o inquérito, a instrução processual ou após esta, em virtude de requerimento do Ministério Público ou da parte interessada. Parágrafo único. O incidente de inutilização será assistido pelo Ministério Público, sendo facultada a presença do acusado ou de seu representante legal. Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei. Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa.

recursos, já havia deixado claro que não havia essa correlação (itens 198-199). Nem a corrupção, nem a lavagem, tendo por crime antecedente a corrupção, exigem ou exigiriam que os valores pagos ou ocultados fossem originários especificamente dos contratos da Petrobrás”. O curioso é que, se analisarmos rapidamente o parágrafo 880 da sentença condenatória, encontramos uma claríssima contradição: “Mesmo tendo parte dos benefícios materiais sido disponibilizada posteriormente, durante o ano de 2014, tendo eles origem em créditos decorrentes de contratos da Construtora OAS celebrados em 10/12/2009, considerando aqui somente os contratos do Consórcio CONEST/RNEST, configuram vantagem indevida disponibilizada em razão do cargo de agente público federal, não só para o então Presidente, mas para os igualmente beneficiários executivos da Petrobrás.” E em relação à esta flagrante contradição, perguntaríamos por aqui: “¿en qué quedamos?” Este é apenas um dos inúmeros argumentos que poderíamos esgrimir para comprovar que os princípios de Direito a que nos referimos no início foram e seguem sendo claramente violados. O princípio da igualde de armas é violado para que se possa condenar a Lula e o princípio da separação de poderes é violado para que se possa impedi-lo (através de uma condenação criminal) de disputar a Presidência da República em 2018, reestabelecendo-se assim a democracia no país. Sabemos que virão argumentos contrários aos que acabamos de manifestar, ainda que se sabe igualmente que sempre são os mesmos, curiosamente: que não podemos ser literais, que este preciosismo não é necessário. E poderia inclusive estar de acordo, se estivéssemos tratando de questões políticas puramente. Mas estamos ante um processo judicial, e ainda por cima penal, onde todas as questões devem ser exaustivamente analisadas, nunca de uma forma en passant (em cinco parágrafos no caso da análise das teses da defesa) como resolve a sentença. E se assim não for, não estamos nem exercendo o Direito e muito menos buscando a Justiça. O que se buscaria seria claramente um “encaixe” através de uma sentença de teses acusatórias e decisões anteriormente tomadas. Todo este processo, como disse em entrevista recente Eugênio Aragão, é uma verdadeira “chicana”.

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