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O “CASO TRIPLEX” E O DIREITO PENAL DO ABSURDO
O “CASO TRIPLEX” E O DIREITO PENAL DO ABSURDO Roberta Barbosa Miranda*
Introdução
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No dia 12 de julho de 2017, foi proferida a sentença nos autos da Ação Penal 594651294.2016.4.04.7000, popularmente conhecida como “o caso Triplex”. Embora o documento já seja questionável por si só quando consideramos o momento escolhido para sua disponibilização – no meio das discussões e protestos contra a aprovação da Reforma Trabalhista -, não iremos nos ater a uma análise política na presente análise. A sentença é longa, possuindo 218 páginas, organizadas em 962 itens. Normalmente, ao lermos uma sentença, esta tem início com um relatório, em que são expostos os argumentos apresentados tanto pela acusação quanto pela defesa durante o curso do processo e, posteriormente, o juiz entra no mérito e na formação de seu convencimento. No documento elaborado por Sérgio Moro, percebemos que a construção se deu de forma distinta do usual. O relatório está presente, é verdade, mas logo depois tem início uma longa explanação sobre as atitudes e decisões tomadas pelo magistrado durante o curso do processo, em uma série de justificativas sobre suas controversas decisões como responsável pelas investigações da Operação Lava Jato e seus desdobramentos. Até o item 152, acompanhamos o juiz se defendendo das alegações de abuso de autoridade, ilegalidades cometidas na fase de inquéritos e parcialidade no julgamento. Novamente defende-se a competência da Justiça Federal e da 13ª Vara Federal de Curitiba para julgar a presente ação penal – assunto que já foi tema de diversas análises e debates que deixaram claro, ao menos juridicamente, o quão errôneo é esse entendimento de acordo com a legislação processual penal. O juiz respondeu às alegações de inépcia da denúncia para, finalmente, no item 264, chegar ao mérito da sentença, e nas ilegalidades e erros conceituais básicos cometidos pelo magistrado.
Do direito penal do absurdo e dos constantes erros processuais
Ao iniciar a leitura do mérito da decisão, já chama a atenção, de início, o pouco destaque dado às provas apresentadas pela defesa, ao mesmo tempo em que grande parte das páginas são gastas transcrevendo falas dos colaboradores, mesmo de pessoas totalmente alheias aos fatos narrados - e o que, sem comprovação, de nada deveriam valer, já que delação premiada é apenas meio de prova, não sendo suficiente para embasar uma condenação, embora este entendimento venha sendo completamente ignorado no âmbito dos processos da Operação Lava Jato. Já de início, o juiz Sérgio Moro traz argumentos externos à ação penal para justificar seu convencimento, extrapolando os já controversos pontos trazidos pelo Ministério Público Federal em sua confusa acusação. Até mesmo o uso das provas emprestadas se dá de
* Roberta Barbosa Miranda é advogada criminalista, graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Especialista em Criminologia, Direito e Processo Penal pela Universidade Candido Mendes. Pesquisadora no grupo “Matrizes do Processo Penal Brasileiro”.
forma totalmente aleatória e diversa do assunto. A ação penal ora discutida envolve a suposta prática do crime de corrupção passiva pelo ex-Presidente Lula, ao aceitar um triplex no Guarujá como vantagem indevida, por beneficiar a empresa OAS em contratos com a Petrobras; e do delito de lavagem de dinheiro, por ter ocultado esse mesmo triplex ao não passá-lo para o seu nome. Qualquer outra investigação ou processo aos quais o acusado responda devem ser ignorados, sob pena de nulidade. Ou assim manda a lei. Na nossa legislação, o delito de corrupção passiva é formado pelos verbos “solicitar”, “receber” e “aceitar”, em razão de sua função, vantagem ou promessa de vantagem indevida. A pena é aumentada se, para tanto, o funcionário retarda ou deixa de praticar ato de ofício, ou o pratica infringindo seu dever. Aqui, merece destaque a grande confusão, por parte não só da acusação mas também do próprio magistrado, ao tratar do crime: fala-se em “concessão”, “aquisição”, “reserva”, “destinação”, mas nunca daqueles verbos específicos para a consumação do tipo penal. De acordo com a acusação, Lula aceitou e recebeu o triplex em troca da prática de atos de ofício em benefício da OAS Empreendimentos. Como provas, foram apresentadas testemunhas que diziam que o apartamento sempre foi tratado como do “exPresidente” por empregados e diretores da OAS, as declarações de Léo Pinheiro –também réu na presente ação penal –, contratos sem assinatura e rasurados encontrados em buscas e apreensões, e uma matéria de jornal veiculada no jornal O Globo, em 2010, que tratava o triplex como de Lula. Quando confrontado sobre uma matéria jornalística ter sido utilizada como prova documental, o juiz Sérgio Moro alegou a importância dessa notícia, por ser antiga e datar de muito antes do início das investigações, o que seria suficiente para comprovar que o imóvel pertencia, de fato, à família do ex-Presidente. Importante destacar que Lula e sua esposa, Marisa, compraram uma cota, de um apartamento normal, no empreendimento que viria a se tornar o condomínio em que o triplex está localizado, na época em que este era de responsabilidade da BANCOOP, constando essa informação, inclusive, na declaração conjunta de imposto de renda do casal. Quando a OAS assumiu a obra, Lula e Marisa não se posicionaram nem sobre o interesse de continuar com o apartamento previamente adquirido e em parte quitado, ou sobre desistir do empreendimento e receber os valores já pagos de volta. Segundo depoimento dos outros acusados, e das testemunhas arroladas, Lula só esteve no apartamento triplex uma vez, acompanhado de sua esposa, de Léo Pinheiro e de outros funcionários da OAS. O ex-Presidente declarou que, embora o diretor da empreiteira tenha lhe oferecido o imóvel, que ainda se encontrava na fase de construção, ele não teve interesse na aquisição por conta de diversos problemas encontrados na obra. Pinheiro, então, disse que iria resolver as questões, e entraria em contato. Marisa ainda retornou ao apartamento, dessa vez acompanhada de seu filho Fábio, mas ao final acabou assinando o termo de desistência da cota adquirida no empreendimento e requerendo os valores já pagos de volta. Nesse meio tempo, diversas obras e melhorias foram realizadas no apartamento, o que levou a acusação a entender que as benfeitorias teriam sido realizadas em benefício de Lula, de forma personalizada e a pedido deste, que não pagou os valores correspondentes à reforma.
Como se percebe, nada nos autos foi capaz de demonstrar o ato de “receber” ou de “aceitar”, por parte de Lula ou de sua esposa, o triplex. Também impossível descobrir, só com as provas acostadas aos autos, qual teria sido o ato de ofício praticado pelo exPresidente para beneficiar a empreiteira nas obras da Petrobras, já que quem tomava as decisões sobre as licitações e contratações era o diretor da estatal à época, e não o chefe do Executivo. Em um exercício mental claramente inconstitucional e incompatível com um Estado Democrático de Direito, o juiz Sérgio Moro entende que os contratos encontrados, um sem assinatura, e outro com o número do apartamento rasurado e também sem assinatura, confrontados com o contrato de adesão para compra de um apartamento simples no então empreendimento da BANCOOP - este devidamente assinado por Marisa Letícia -, bem como os depoimentos de testemunhas que alegavam que a OAS tinha reservado o triplex para a família do Presidente, são mais do que suficientes para comprovação da prática do crime de corrupção passiva. Também para embasar a condenação, o magistrado alega a venda do apartamento simples originalmente adquirido pela família Lula a terceiros, enquanto o triplex nunca foi disponibilizado ao mercado, e a existência da matéria publicada pelo jornal O Globo antes mesmo do início das investigações, que relacionava Lula com o bem, como suficientemente comprobatórios de que o ex-Presidente era o dono de fato do imóvel, embora nunca tenha sequer exercido sua propriedade. Ignora-se completamente o Princípio da Presunção de Inocência, o in dubio pro reo - que vem sendo repetidamente vilipendiado no processo penal brasileiro - e, principalmente, uma análise profunda sobre a admissibilidade e valoração das provas no processo. Para explicar a existência da prática do crime de lavagem de dinheiro, o proposto pela acusação e pelo magistrado é ainda mais forçoso. Após as mudanças sofridas na nossa legislação, para a consumação deste delito, é necessário ocultar ou dissimular a natureza ou, no caso específico, propriedade, de um bem ou valor proveniente de uma infração penal. Ocorre que, conforme a denúncia oferecida pelo Ministério Público, e entendimento do juiz da causa, Lula nunca teve o imóvel em seu nome, tornando impossível que ele ocultasse a origem do bem. Muito menos recebeu dinheiro como “propina” para adquirir o imóvel, dissimulando sua origem ao colocá-lo no nome da OAS Empreendimentos. Pelo exposto nos autos, Lula recebeu um bem do qual nunca usufruiu, não tendo sido seu proprietário, o que, consequentemente, o impede de ocultar a sua propriedade e de consumar o delito. O crime de lavagem de dinheiro necessita de um crime antecedente. No caso, nem mesmo conseguiu-se provar a existência da corrupção passiva, com o recebimento ou o aceite, por parte do ex-Presidente, do triplex. O fato de a OAS ou de Léo Pinheiro terem oferecido o apartamento para Lula consubstancia o delito de corrupção ativa. Mas se, em momento algum, o bem oferecido é recebido pelo agente público, a corrupção passiva torna-se atípica. É o que ocorre no caso concreto, sendo impossível pressupor, então, a lavagem de dinheiro. E, mesmo que não conseguíssemos comprovar a inexistência da prática da corrupção passiva por parte de Lula, entendendo-se pela existência de solicitação ou aceite da vantagem indevida, se ele não receber o bem, não existirá produto do crime e, portanto,
nada haverá para ser lavado. Da mesma forma, conforme incansavelmente debatido quando do julgamento do caso “Mensalão”, nos casos de corrupção passiva, a ocultação do bem não condiz necessariamente com a lavagem, mas sim com a fase consumativa do crime de corrupção, sendo mero exaurimento deste. A lavagem de dinheiro – que não existe aqui, visto estarmos falando de um bem imóvel – não se caracteriza pela ocultação do bem, mas no encobrimento de sua origem para lhe conferir aparência de licitude. Quando analisamos os documentos citados pelo juiz Sérgio Moro para justificar sua sentença, se torna impossível concluir qualquer relação entre as provas e a prática dos crimes de corrupção ativa e lavagem de dinheiro por parte do ex-Presidente Lula.
Conclusão
No geral, o que encontramos é uma sentença fraca juridicamente, baseada exclusivamente em provas circunstanciais. Além disso, do início ao fim do documento, percebemos um juiz que se comporta mais como parte do processo, ao invés de agir com a imparcialidade que lhe é esperada. Muito tempo é gasto se justificando por conta das diversas críticas recebidas à sua atuação ao longo do processo, e pouco se preocupa em garantir um julgamento justo para as partes envolvidas. Ao final, o julgador ainda pontua que nenhuma satisfação pessoal lhe traz essa condenação, mas que ninguém está acima da lei, independente do cargo em que ocupa em mais um juízo de valor totalmente incompatível com a sua função em um processo criminal. A nossa legislação processual penal é de 1940, de origem claramente fascista e incompatível com a Constituição Federal de 1988, pautada em princípios e garantias fundamentais, e na necessidade de proteção dos indivíduos - principalmente daqueles que respondem a ações penais -, perante a força do Estado. Embora completamente absurdo e abusivo, esse triste episódio da nossa história, talvez seja o impulso que nos faltava para finalmente colocar em prática a tão necessária e urgente reforma não só da nossa legislação penal, mas do sistema judiciário como um todo, que ainda segue o modelo inquisitorial e autoritário do período em que foi promulgado, com juízes que atuam mais como acusação, do que como garantidores da Constituição.