Edição 199 - Caderno 2

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Jornal Laboratório do Curso de Comunicação Social do UniBH Ano 33 • número 199 • Outubro de 2015 • Belo Horizonte/MG

danilo SILVEIRA


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Belo Horizonte, Outubro de 2014

Teatro

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Terceiro ato de uma carreira Atores e diretor teatral discutem a situação dos artistas da velha guarda em BH danilo SILVEIRA

Entre coxias e holofotes, atores falam de suas experiências no mercado teatral

Igor Lucas Guilherme Rúbia Costa As cortinas se abrem como um sorriso. A respiração, ofegante, é similar à de um estreante. O olhar da plateia mantém-se atento a cada gesto. Há, ainda, o movimento e o som de cada passo naquele cenário. A expectativa do público aumenta com os murmúrios sobre a peça. O artista se verga aos aplausos, que soam como um prêmio, ao longo da carreira de um ator de teatro. A visão pode não ser a mesma de quando tinha vinte e poucos anos. Também o corpo já não é tão atlético, escultural. E as dores? Aparecem em vários lugares. Basta completar 40 anos. Será, contudo, que, em algum momento, um ator se torna ultrapassado para os palcos? Aos 65 anos, com cinco décadas de carreira, e mais de cem espetáculos no currículo, Pedro Paulo Cava,

diretor, autor, produtor e professor de teatro, acredita que a experiência enriquece as produções teatrais. “O ator com experiência e vivência sempre tem oportunidade. Ele aprende e ensina. Afinal, aprendemos com o diretor e o produtor mais novos, já que fazemos parte de uma arte de reciclagem”, comenta. “Sonho de empada” é o nome do empreendimento da atriz mineira Margarida Soalheiro, 53, que, há dois anos, decidiu fazer e vender salgados para sobreviver. “Foi uma alternativa que encontrei, depois de algum tempo em busca de oportunidade no teatro. A idade pesa, a grana é pouca e o mercado, cada vez mais restrito”, diz. A intérprete, que atua desde a adolescência e fez cursos de especialização no Palácio das Artes e na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), oferece, sem timidez e com muita simpatia, as suas empadas pelas ruas da

capital. “Há a cultura de estar sempre jovem, bonita e com o corpo em dia. Daí o preconceito com os atores maduros. Temos menos chances de trabalho”, enfatiza. Margarida, porém, mantém viva a

“Há gente que mudou de vida e, hoje, vende empadinha, refrigerante, imóveis, ou passagem no balcão de empresa aérea. Tenho visto muito isso ao longo da vida” Pedro Paulo Cava

carreira artística em seus sonhos. De acordo com a atriz, seu próximo passo é ir ao Rio de Janeiro para investir no projeto de um programa de humor para a web. Na acepção de Pedro Paulo Cava, há “atores e atores” em BH. Com o olhar compenetrado, repete a frase que compartilha com muitos colegas diretores: “Fazemos teatro com quem está perto. A gente não trabalha com quem sumiu”, conta. Segundo ele, a profissão é um ofício extremamente difícil, doloroso, além de pagar mal. Não há trabalho sempre, embora hoje exista um maior número de produções. “Há gente que mudou de vida e, hoje, vende empadinha, refrigerante, imóveis, ou passagem no balcão de empresa área. Tenho visto muito isso ao longo da vida. São pessoas com relativo talento, mas que não tinham a garra necessária para enfrentar a barra da profissão”, argumenta.


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Teatro

Belo Horizonte, Outubro de 2014

rúbia costa

Em um escritório repleto de obras de artes, Pedro Paulo Cava geria o Teatro da Cidade

Mercado “irreal” “Dama do teatro mineiro”, Wilma Henriques, 84 - sendo 57 dedicados ao teatro, ao cinema e à televisão - é natural de Conselheiro Lafaiete. Ela segue ativa na profissão e acredita que o teatro ajude muito ao ator experiente, justamente, nesta fase de sua vida. “Exercitamos nossa mente. Movimentamos o corpo. Vivemos”, destaca. Em seu vocabulário, não existe a palavra “velho”, mas, sim, o termo “experiente”. A última peça em que atuou, em 2013, foi “A dama desnuda”. Na visão de Wilma, a mescla de atores jovens com mais vividos não existe em BH. “Tudo não passa de bom dia ou boa noite. Sempre haverá espaço para nós no teatro. São os produtores daqui que não têm interesse em pôr atores mais experientes em suas produções. Em São Paulo, na Bahia ou no sul do país, existem mais oportunidades de trabalho para nós. Em Minas Gerais, o mercado ainda não é real”, avalia. Outro senhor de cabelos grisalhos e com extensa carreira artística é Mário Cesar Camargo, de 68 anos. O ator é natural de São Paulo, mas mora na capital mineira há mais de 20 anos. A peça que o trouxe a BH foi a remontagem “Bella Ciao”, sobre a história da imigração no Brasil. “Sempre haverá papel para os mais velhos”, comenta. Para ele, se o ator for competente, poderá sempre trabalhar. “É o que se pode perceber na teledramaturgia, onde há muitos profissionais de renome acima dos 60 anos. Claro que, em algum momento, a idade pode pesar, mas não é um fator que impeça o ofício”. A experiência e os anos de atuação têm sua importância no mercado. “No meu caso, aumentou a oferta de papeis, à medida que fico

mais maduro”, conclui. Atualmente, Mário, que já foi datilógrafo, almoxarife e redator, jamais abandonou os palcos. Ensaia uma peça com estreia marcada para julho, em São Paulo. Mente rejuvenescida Chega uma hora em que os anos de carreira começam a sobrecarregar o corpo, responsável por ajudar o artista a compor a cena e o personagem. Por fim, ao trabalhar com a mente, o papel ganha vida. “Desde os 40 anos, começamos a apresentar defeitos”, diz, sorridente, Pedro Paulo Cava, ao su-

blinhar, por outro lado, que a cabeça do ator melhora muito ao longo do tempo, pois “seu olhar passa a ser o olhar do outro”. Certos atores assumem a mudança de postura ao subir no palco, mesmo com as limitações físicas da idade. “Em determinado momento, a mobilidade atrapalha. Mas, quando estou em cena, ela não me incomoda. Minha cabeça comanda tudo. Esqueço qualquer barreira”, confessa Wilma, para quem fazer teatro ajuda muito a aceitar as mudanças naturais, ao trazer tolerância.

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Os palcos ontem e hoje A “capital das Alterosas” conheceu as artes cênicas na segunda metade do século XX, por meio dos pioneiros Manoel Teixeira, Luiz Gonzaga de Oliveira, Francisco de Paula Andrade (F.Andrade) e João Ceschiatti. Cada um começou o primeiro ato das bases do teatro em BH. Segundo o jornalista e escritor Jorge Fernando dos Santos, ao menos quatro nomes merecem destaque especial neste cenário: Otávio Cardoso, Elvécio Guimarães, Wilma Henriques e Palmira Barbosa. Para Wilma Henriques, com o tempo, mudou não apenas o teatro, mas, também, as produções locais, a dramaturgia, “o fazer e o pensar da arte e o amor dedicado”. Para Pedro Paulo Cava, a forma de produzir sofreu a maior transformação, já que, antes, havia “sociedade” entre os produtores. Hoje, eles são movidos pela Lei de Incentivo à Cultura. “Após a ditadura, poucos grupos continuaram a fazer teatro de cunho político e ideológico. As produções voltaram-se à estética, à experimentação e à comédia”, declara. Segundo o ator Mário Cesar Camargo, em BH, as pessoas buscam mais o teatro de comédia, principalmente, no período da “Campanha de popularização”, quando os ingressos têm a metade do preço. “Teatro vai além. É preciso assistir a grandes espetáculos, emocionantes e envolventes, e não só a piada e sacanagem”, opina. danilo SILVEIRA

O veterano Mário César Camargo recorda momentos de sua carreira


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Mídia e tecnologia

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Ser ou não ser... YouTuber? Criadores de conteúdo do site YouTube giram milhões de reais mensalmente Cleisson Lima Pimenta Matheus Teodoro Nathália Ferreira O grande boom do YouTube no Brasil aconteceu em 2010. Muitos canais já existiam e tinham grande número de fiéis seguidores. Mas, naquele momento, mesmo com conteúdo e personagens interessantes, ninguém imaginaria que o site de vídeos se tornaria uma das principais redes sociais pouco tempo depois. Os dois primeiros grandes representantes brasileiros no site foram Felipe Neto, dono do canal Não faz sentido, que, posteriormente, viria a ter o seu nome – e, atualmente, conta com mais de 4 milhões de inscritos – e PC Siqueira, do Maspoxavida (1,7 milhão de inscritos e diversos canais paralelos). Ambos fizeram com que os usuários da internet olhassem para a plataforma de vídeos de maneira diferente. Com duas ou mais postagens semanais, nos quais abordam os temas mais discutidos na atualidade ou falam de suas próprias vidas, os vloggers – como eram chamados à época –, tiveram milhões de visualizações em seus vídeos e ganharam cada vez mais seguidores. E não foi só na internet que tais profissionais fizeram sucesso. Muitos ganharam espaço em outras mídias, com quadros em canais importantes de televisão. O mercado logo começou a prestar atenção no site, que, até então, era visto no país apenas como espaço para vídeos engraçados, bons para compartilhar com os amigos. Ali estava, no YouTube, uma maneira de produzir conteúdos diversificados e alcançar públicos de todas as faixas etárias, com culturas diferentes, de modo distinto de outras mídias.A internet, afinal, poderia ultrapassar as barreiras do tempo e do espaço. Após os sucessos de Felipe Neto e de PC Siqueira, milhares de brasileiros criaram canais no YouTube para também produzir o que lhe viesse à mente. Tendo como referência o sucesso de diversos canais no exterior, surge enorme diversidade de conteúdos, com diferentes temas e formatos, como esquetes de humor, assuntos de gamers e do mundo tecnológico, diários de viagem, culinária, giros de notícias, dicas de comportamento e

moda, curiosidades e mais vlogs. E assim surgiram os chamados YouTubers, termo atualmente usado para os criadores de conteúdo no site. Hoje, o YouTube brasileiro gera milhões de dólares por mês, com um número cada vez maior de inscritos e de visualizações diárias. Mais do que isso, ele transforma pessoas em personagens adorados por fãs. Assim como atores de televisão, tais figuras são reconhecidas nas ruas e fazem sucesso muitos eventos de que participam. Diante de mercado crescente é fácil compreender porque muitas pessoas largam profissões, digamos, convencionais – como professores, administradores, designers e jornalistas – para tornarem-se YouTubers. Dona do canal Acidez Feminina, com 700 mil inscritos, Taty Ferreira fala sobre relacionamentos e comportamento de forma irreverente. Tendo as mulheres como principal público, ela expõe opinião sobre tais assuntos, comenta situações cotidianas e discute ações no interior das relações. Com mais de 80 milhões de visualizações, a YouTuber diz que sua vida não foi alterada em função do site, apesar de viver dele agora. “Antes, eu era a Tatiane e, agora, continuo a ser a Tatiane. Minha personalidade não

mudou por causa do YouTube. A diferença é que, atualmente, mais pessoas prestam atenção em minhas opiniões”, afirma, ao lembrar que, antes de trabalhar exclusivamente com conteúdo para internet, atuou como auxiliar administrativa em uma rede de drogarias e, depois, em um supermercado. “Também estudei Psicologia e fui faxineira em prédios públicos no Canadá”, conta. Presença! Segundo dados divulgados pelo G1, no fim de 2014, um YouTuber que tem entre 500 mil e 1 milhão de inscritos consegue ganhar, mensalmente, de R$ 6 mil a R$ 50 mil – grana essa que vem de anunciantes, patrocinadores e eventos onde fazem “presença”. É óbvio que, quanto mais views e inscritos, mais dinheiro no caixa. Desse modo, acabou por surgir outro fenômeno no YouTube brasileiro: a saída de produtores de conteúdo para o exterior. Como as maiores redes de Network estão no exterior, boa parte dos produtores de conteúdo para o site, que viviam no país, mudaram-se para a Europa e a América do Norte. É o caso do casal Leon e Nilc, do Cadê a chave e Coisa de nerd (com quase 4

Curiosidades • Felipe Neto fundou, em 2011, a Paramaker, primeira network nacional especializada em canais de entretenimento no YouTube. Hoje, ela conta com 3,5 mil canais. O YouTuber e empresário já afirmou ter lucrado o seu primeiro milhão por meio da empresa. • O YouTube tem um total de 1 bilhão de visitantes únicos por mês, além de contar com 6 bilhões de horas de vídeo assistidas por mês. • O vídeo mais assistido da história do YouTube é o videoclipe da música “Gangnam Style”, do cantor sul-coreano Psy, com quase 2,5 bilhões de visualizações. O video brasileiro mais visto é o clipe de “Ai, se eu te pego” de Michel Teló, visto mais de 600 milhões de vezes.


Mídia e tecnologia

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Os 5 maiores canais do YouTube no Brasil

1º - Porta dos Fundos (esquetes de humor) 10.076.923 de inscritos e 1.670.767.842 de visualizações 2º - Parafernalha (esquetes de humor) 6.775.248 de inscritos e 742.354.630 de visualizações 3º - Galo Frito (humor e paródias) 6.620.312 de inscritos e 726.325.505 visualizações 4º - 5incoMinutos (vlog) 4.617.244 de inscritos e 340.670.780 de visualizações 5º - VenomExtreme (canal de games) 4.119.299 de inscritos e 594.967.085 de visualizações reprodução

milhões de inscritos), que recebeu propostas para morar e trabalhar no Canadá após o sucesso na Internet. Para os que ficam em solo “canarinho”, também aparecem grandes

oportunidades, como relata Taty Ferreira. “Financeiramente, não alcancei muita coisa vistosa. Pude comprar um carro usado e pago todas as minhas despesas. O que, provavelmente, eu

não teria em outro setor são as experiências. Viajei para a Disney, por conta de uma publicidade em meu canal, experimentei a gravidade zero, nas mesmas condições, e conheci Rio de Janeiro, Salvador, Curitiba, Maceió e outras cidades no Brasil e no exterior. Isso sem falar nas pessoas legais que conheci”, diz. No último mês, Taty lançou seu primeiro livro, ‘O Manual da mulher moderna’, nas principais livrarias do país, com a presença de vários de seus fãs. Após o nascimento de seu “filho”, ela se diz surpresa com tudo o que tem acontecido: “Não esperava nada quando iniciei a produção de conteúdo para internet. Queria diversão, mas nunca imaginei ganhar dinheiro, ter visibilidade, ficar famosa, lançar um livro. Taty acredita que a renda vale a pena. Trabalho com o que gosto de fazer, e não pela quantidade. Acredito que qualquer trabalho feito com prazer faz a renda ser apenas um meio de sobrevivência. Esse é meu caso”, garante. Além da Taty, outros criadores de conteúdo para o site também estão tendo novas oportunidades no mercado, fora das redes sociais. Nos últimos tempos, eles lançaram livros, encabeçaram programas de televisão e participaram de vários projetos publicitários. A tendência é que a Internet invada cada vez mais não só a vida das pessoas, mas também os outros meios de comunicação. E os YouTubers, os nomes do momento do mercado, estão no topo dessa revolução.

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Vida melhor no futuro O YouTube não para de crescer. A cada dia, diversos canais são lançados e muitos outros fazem sucesso. Apesar disso, uma dúvida se propaga em meio àqueles que acompanham o crescimento: de que modo o canal funcionará no futuro? O site crescerá até que proporção? Além disso, continuará fazendo sucesso? E quanto aos YouTubers? Será que conseguirão manter seu lugar ao sol? Essas e muitas outras dúvidas são levantadas, diariamente, para os produtores de conteúdo. No caso Taty Ferreira, o crescimento está longe de desacelerar. “Acredito que apenas iniciamos a produção de conteúdo para internet. Diversos meios de divulgação serão criados e vários produtores aparecerão ao longo do tempo. Há cinco anos, quando iniciei os vídeos, quase ninguém tinha smartphone, quanto mais internet 3G ou 4G no celular”. Ela enxerga que o cenário atual é bem diferente. “Já é possível acessar a internet no ônibus, no metrô, nas escolas, nas praças, no shopping, no bar com os amigos”, analisa a YouTuber, ao questionar o que ocorrerá quando todas as pessoas souberem usar bem um dispositivo e tiverem internet realmente de qualidade. “O público só irá aumentar e, consequentemente, crescerá a quantidade de pessoas a expor seu conteúdo”, conclui. reprodução

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A banca qu

Cinquenta e nove anos de hi Aline Caroline Carinna Viganor Elisabeteh Ferreira Karen Costa Roberta Gregório E se uma banca falasse? Talvez contasse sobre o casal que fez uma sessão de fotos em meio às revistas ou da bailarina que dançou, graciosamente, pela praça. “Subiram em mim na vitória do Atlético na Libertadores. Sobrevivi porque não tenho portas”, declararia. Aliás, justamente devido à falta de portas, ela funciona 24 horas. Sim, 24 horas na Praça Sete, em meio a manifestações populares, tempestades, feriados e um possível (talvez próximo) apocalipse zumbi – vide “The Walking Dead”. Em 1959, Mário Rocha havia acabado de voltar da Segunda Guerra Mundial. O pracinha, que lutou após ouvir promessas de glórias a seu retorno, nada recebeu além de uma “banana” de Getúlio Vargas. Ele trabalhou na banca, comprou-a, para que seus filhos –agora, os netos – continuassem o negócio. Em 30 anos nas mãos da família, a banca Praça Sete viu o impeachment do ex-presidente Fernando Collor e a reunião dos caras pintadas à espera do resultado das votações no Congresso. Apreciou, também, a seleção brasileira de futebol campeã nas Copas de 1994 e 2002. “A cidade e a história passam por aqui”, diz Caruso Rocha, responsável pelo comércio. Ter um carro era o sonho de consumo do brasileiro. Numa era em que os jornais se apresentavam como meios principais para informações e classificados, ao longo de todas as noites, 20, 30 pessoas esperavam até que as publicações fossem entregues. Os horários de fechamento dos jornais ocorriam às 21h, e a Banca Praça 7 era a primeira a receber os exemplares em Belo Horizonte. Estado de Minas, Correio Braziliense, Folha de S. Paulo e Diário da Tarde, que ficava pronto às 17h, eram alguns dos procurados pelo público noturno. Já são 15 anos sem intervalo no funcionamento, após experiências realizadas em certos dias da semana. A venda de jornais, contudo, caiu bastante. Hoje, às 3h, os únicos grandes focos de luz da Praça 7 são a banca e duas lanchonetes das redondezas. Nesse horário, quando um cliente-coruja aparece, seus pedidos costumam incluir recargas para celular, cigarros e refrigerantes. Mas ao contrário do que se pode imaginar, o funcionamento à noite não influencia a venda de produtos com conteúdo adulto.“Com o poder da internet, as pessoas têm o que querem no celular”, explica Caruso. Tão acessível, quando procurado em revistas adultas, esse recheio atinge um público mais velho e a qualquer hora do dia. Cafezinho? Dos gazeteiros do século XIX, que andavam pelas ruas com seus jornais, a um ponto fixo para a venda

das publicações, os produtos buscados nas bancas de revistas vêm mudando. À época da ditadura, publicações como o proibido O Pasquim eram guardadas e vendidas aos fregueses de confiança. Hoje, os clientes buscam de um pão de queijo ao cafezinho. “Onde já se viu isso numa banca de revista?”, brinca Josimar, funcionário do negócio há cinco meses. Ainda assim, em meio a clientes fiéis e a amizades de longa data, a variedade de produtos torna a banca quase uma loja de conveniência. Fones de ouvido e balas se misturam a revistas, jornais e apostilas para cursinho – cada vez mais procuradas.

Há algum tempo, as profissões passadas de pai para filho eram comuns, principalmente, no setor comercial. Caruso conta, porém, que trabalhar na banca Praça Sete não foi escolha dele. “O negócio já está na terceira geração de minha família e preferi continuar, mas não vejo interesse de outros familiares no negócio. Meus sobrinhos veem meu irmão e eu trabalhando aos sábados, domingos e feriados, e não querem isso para eles”, garante. Com um estabelecimento tão antigo no mercado, o que não faltou foram compradores para a banca. Segundo Caruso, as pessoas se interessam pelo negócio


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ue tudo vê

istória na calçada da Praça 7 porque sempre há um grupo de pessoas conversando por ali. Muitos pensam que administrar o comércio é um trabalho fácil e não há nada a fazer, a não ser ler revistas. “Nem mesmo eu leio tanta revista. O celular, hoje, toma muito mais minha atenção”, brinca Caruso. As ofertas de compra da banca partem, principalmente, de pessoas aposentadas, que querem “matar o tempo” trabalhando com algo pequeno. “Geralmente, elas não duram nem duas semanas, pois a banca exige grande esforço”, explica. Todo o material não vendido deve ser devolvido, e, quando alguma publicação chama a atenção do público, é preciso solicitar mais

exemplares às distribuidoras. A toda hora, chegam novos “carregamentos”. Olho (sempre) vivo Localizada num quarteirão bem movimentado, há, também, o risco da violência e da onda de furtos e outros delitos. Segundo dados da Secretaria de Estado de Defesa Social de Minas Gerais, publicados em 2014, ocorre, em média, um assalto a cada 15 minutos em BH. A banca, contudo, só foi assaltada uma vez, o que, para Caruso, é resultado do Programa Olho Vivo, parceria entre a Prefeitura Municipal e o governo danilo Silveira

do Estado. O projeto monitora diversos pontos da cidade com câmeras de vídeo. “Criou-se um estigma de violência na Praça 7, como quando um criminoso é preso e diz que comprou qualquer coisa aqui, que é algo genérico. Pouco vemos disso. E a presença constante da polícia inibe essas situações”, afirma. Bem... Mas e se uma banca falasse? Talvez relatasse as abordagens policiais na Praça, os casais namorando e o incrível número de pessoas que transitam diariamente por um dos principais pontos da capital mineira. Falaria, também, de candidatos que visitam a cidade à época das eleições e do inusitado caso do homem musculoso que se embrenhou em suas revistas e deixou à mostra a calcinha que usava. “Eu ‘tô’ no olho do furacão!”, diria ela.

Comércio 24 horas? Sim, eles existem! Quem já andou na madrugada pelas ruas de Beagá pode se surpreender com uma loja ou lanchonete funcionando às 2 da matina. Mas e quando não estamos falando de um comércio alimentício ou farmacêutico, e sim de clínicas odontológicas, veterinárias ou, até mesmo, de uma loja de baterias? Na capital mineira, o comércio 24h é dos mais variados. Aos que querem manter a saúde mesmo após a meia-noite, BH oferece academias, além de – por que, não? – uma desentupidora e uma biblioteca? Confira, os endereços desses (preciosos) locais: Biblioteca Prof. Emílio Guimarães Moura Fac de Ciências Econômicas - UFMG Av. Antônio Carlos, 6627, Pampulha (31) 3409-7011 Desentupidora Betel Av. Sebastião de Brito, 601, Dona Clara (31) 3491-7382 Núcleo Odontológico Carmo Sion Rua Grão Mogol, 559, 4º andar, Carmo Sion (31) 2555-2080 Acqua Sports Fitness R. Cel. Jaíro Pereira, 144, Palmares (31) 3422-4127 Baterias Três Irmãos Av Dom Pedro II, 2049, Carlos Prates, (31) 2555-1112


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Tramas contemporâneas

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fotos: Izabella Medeiros

Mensageiro à moda antiga Caso encontre um singelo envelope na porta de sua casa, não hesite em abri-lo Izabella Medeiros “Escreva algo para um amigo, um amor, um parente. No dia seguinte, nosso mensageiro virá, pegará sua carta e a levará ao destinatário”. Desse

modo, o publicitário Ramon Brant, de 23 anos, procura incentivar os moradores de Belo Horizonte a readotarem um hábito hoje esquecido: escrever à mão para quem se ama. Daí nasceria o “Chá com cartas”, iniciativa

Na era digital, cartas manuscritas reforçam relações humanas

de intervenção urbana que parte da necessidade de fugir do cotidiano e busca estimular a escrita e as trocas de correspondências entre as pessoas. O jovem acredita que, por ser atemporal, a carta aprimora, nos indivíduos, a

escuta pelo mundo e os leva a refletir sobre as relações pessoais da vida contemporânea. A ideia do projeto surgiu de um desejo pessoal do publicitário, ainda na faculdade, após receber o bilhete de uma amiga. Naq uela simples carta, estava escrita uma frase apenas: “A saudade é o amor que fica”. A sensação de se sentir querido por uma pessoa mexeu muito com o estudante e o inspirou a compartilhar tal sentimento com desconhecidos. O primeiro “click” surgiu de um post publicado por Ramon, em 2012, em seu perfil no Facebook. A mensagem dizia: “Escrevendo cartas para o inverno passar depressa. Quer receber? É só curtir!”. Muitas pessoas se manifestaram, e, desde então, ele não parou de escrever. Parece ter compreendido bem que a troca de cartas pode tornar mais especiais as relações humanas. “Quero aproximar as pessoas por meio da palavra”, destaca. Cartas que voam longe Montado em uma bicicleta antiga e vestido com um uniforme inspirado em carteiros da década de 1940, Ramon escolhe ruas ou bairros para partilhar suas ideias. A intervenção acontece em três dias: no primeiro, envelopes feitos à mão, protegidos por uma embalagem transparente, são pendurados por cordas e fixados nos portões das casas da cidade. No interior da missiva, os moradores encontram recados de reflexão, que os incentivam a escrever para alguém. Em outro dia, o “mensageiro


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ela, foi uma surpresa encantadora ver as cartinhas penduradas nos portões. “Cheguei a comprar uma máquina de escrever antiga, e, sempre quando posso, escrevo para alguém”, conta.

Escrever cartas, anônimas ou endereçadas, tornou-se uma forma de intervenção na praça

Do papel ao cérebro Estudos recentes apontam que, tanto crianças quanto adultos, podem ter mais vantagens no aprendizado quando praticam uma antiga forma de comunicação: a escrita manual, com lápis e papel. Após inúmeras pesquisas, cientistas americanos chegaram à conclusão de que o cérebro responde de forma distinta ao aprender a escrever manualmente e ao digitar as letras em teclados eletrônicos. Para os universitários, a dica é abandonar os computadores e voltar a fazer anotações no caderno. As pesquisas indicam que tal prática eleva o potencial do aluno na hora de fixar o conteúdo das matérias. Isso ocorre porque, ao escrevermos à mão, mais conexões cerebrais são estimuladas, o que favorece a aprendizagem de fórmulas e de símbolos.

Amor no envelope A mineira Eliana Bertolino, de 28 anos, sempre gostou de expressar, no papel, os sentimentos relativos a amigos e familiares. Apesar disso, todos ficaram surpresos por ela ter aceito o desafio de um tio, que a instigou a contar suas experiências no livro As cartas que escrevi, lançado do primeiro semestre de 2015. “Por ter tido várias experiências agradáveis ao enviar e receber cartas, senti que deveria ampliar essa ideia. Assim surgiu meu livro”, conta, ao lembrar que se emocionou com todas as histórias revividas. “Foi como relembrar de tudo que eu vivi, pois cada história teve grande importância em determinados momentos da minha vida”, completa. Cada missiva remonta a algo marcante, mas uma se revela bem especial,

por ter sido escrita à época em que Eliana trabalhava como atendente de telemarketing. “A carta foi feita para minha supervisora, Rakelly, em um momento difícil da minha vida”, diz. Aos 23 anos, a escritora foi diagnosticada com lúpus, doença rara e autoimune, que afeta, principalmente, a pele, as articulações, os rins e o cérebro. Eliana defende que, em alguns momentos, é complicado entender o outro. Por isso, sempre é válido separar um tempo e escrever àquela pessoa que compreendeu suas dificuldades e te surpreendeu com atitudes positivas. “Escreva! Não tenha vergonha de se expressar, de demonstrar o que sente para as pessoas. Nunca pense que pode ser tarde demais para enviar uma carta a alguém”, afirma.

antigo” volta às casas e recolhe cada uma das cartas, para, posteriormente, entregar pessoalmente a seus destinatários. Quando os endereços são de outras cidades, o jovem encaminha as cartas pelos correios ou pede a ajuda de amigos. “Era delicado, senti-me especial, parecia ter sido feito para mim. Fechei novamente o envelope, subi as escadas, abri o gradil e conferi casa a casa. Na maioria delas, ele estava lá. Tive o ímpeto de ‘roubá-las’, saber se as mensagens eram singulares ou se tinham sido reproduzidas. Um mesmo discurso para uma rua inteira, para o bairro, talvez, para a cidade”, conta, em depoimento, a designer gráfica Renata Coutinho, de 35 anos. Para

Caneta, papel e saudade O projeto também investe em ações realizadas em lugares públicos de Belo Horizonte. Mensalmente, aos sábados ou aos domingos pela manhã, o “Chá com cartas” escolhe alguma praça da capital mineira para exercer a intervenção. Os participantes levam todos os itens necessários, como envelope, caneta, lápis e papel. Além disso, inúmeros envelopes são pendurados nas árvores, com convites à escrita. A carta pode ser anônima. Portanto, será deixada em algum lugar estratégico da cidade, ou pode se destinar a alguém específico, para ser postada nos correios no dia seguinte. Os sentimentos que preenchem as cartas conseguem estimular emoções não acessadas pelas modernas tecnologias. Desde que iniciou o projeto, Ramon não somente conhece novas histórias, mas vive, revive e compartilha o que tem aprendido. Por isso, se você, caro leitor, algum dia encontrar um singelo envelope deixado na porta de sua casa, ou pendurado na árvore de uma praça, por favor, não hesite em abrir. Com quase três anos de intervenção, o “Chá com cartas” já alcançou, aproximadamente, mais de 2 mil pessoas. Trata-se de indivíduos que aceitaram o desafio de Ramon Brant e investiram um pouco de seu tempo para escrever uma carta para alguém. No fim de 2014, o projeto recebeu R$ 62 mil de incentivo fiscal, pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura, a Lei Rouanet.


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Você já ouviu?

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Na encruzilhada dos sentimentos Sentimental, Luiz Gonzaga do Nascimento Junior transforma agressividade em amor REPRODUÇÃO

Wilson Albino Pereira Cavaleiro solitário, último trabalho de Gonzaguinha, e sua segunda produção independente, teve lançamento póstumo, pois o artista morreu durante uma turnê pelo sul do Brasil, em abril de 1991. O motivo: uma caminhonete Chevrolet F400 no meio do caminho. Ao final do texto, talvez você sinta vontade de ouvir as músicas deste CD, há ‘aboios’ e letras que fogem ao padrão gramatical. Portanto, despir-se dos preconceitos linguísticos, rítmicos e poéticos é condição essencial a quem se dispuser a mergulhar fundo nesse mar, ora agitado, ora estável, mas, sempre repleto das mais controversas emoções. Depois que se aperta o play, ouve-se três segundos de aplausos, e, nos 50 minutos subsequentes, a sensação que se tem é de que o som ganha cor, sabor e fragrância. A voz de Gonzaguinha e a sonoridade do violão se entrelaçam, e dessa cumplicidade brotam louvores ao amor, ao humanismo e à vida. O disco reúne partes de dois shows, um realizado em Belo Horizonte, outro em Brasília. O CD contém apenas 12 faixas, a maior parte feita de sucessos consagrados por intérpretes bastante conhecidas, como Maria Betânia e Simone. Algumas canções remetem a dilemas e paixões, o

que provoca a sensação de que foram compostas ontem. É o caso de ‘Um homem também chora’, faixa 3, cuja letra aponta o carinho e o trabalho como sendo coisas indispensáveis à vida de qualquer ser humano. Na faixa 3, há mais duas canções atemporais. ‘É’, por exemplo, deixa transparecer o ponto de vista político, o que o artista considerava primordial para favorecimento da coletividade. “Gonzaguinha era um companheiro das esquerdas”, tal qual, afirmou o ex-presidente Lula. A outra música ‘O que é o que é’, tem a ver com o significado e a importância da vida para cada um. Já, em ‘Gentileza’, canção que ocupa a faixa 5, Gonzaguinha, antes de começar a cantar, explica ao público por que fez a música. Trata-se de uma homenagem a um pai de família que perdeu esposa e filhos em um incêndio, e que, depois do ocorrido, viveu apenas para distribuir flores e pregar o amor a toda gente. Fotografia é o nome da faixa 7. É mesmo um retrato das lembranças infantis. As imagens evocadas pela letra contrapõem alegrias e tristezas, já que o Morro de São Carlos, lugar onde Gonzaguinha passou parte da meninice, era o espaço da liberdade, mas também, era um lugar onde ocorriam violências diversas.

“[...] chega de temer, chorar, sofrer, sorrir, se dar, e se perder e se achar [...]” este é um trecho de ‘Não dá mais para segurar’, também conhecida como ‘Explode coração’, faixa 11. Nesta canção, dúvidas e certezas se defrontam e, entrecruzam-se, e por vezes colidem-se. Talvez, seja esta a encruzilhada de sentimentos que nos revele um Gonzaguinha diferente daquele vencedor de festivais universitários e militante político. O artista que foi capaz, inclusive, de realizar shows no ABC Paulista, a fim de arrecadar fundos para fortalecer as lutas sindicais. Os fãs de Gonzaguinha, ao ouvirem o bolero nostálgico e suave ‘Começaria tudo outra vez’, faixa 12, a última música do CD, talvez, perguntem: e se naquela manhã de segunda, 29 abril, Gonzaguinha não tivesse assumido a direção do Monza SE, cor bordô, ano 1990? E se tivesse escolhido outra BR, que não fosse a 280, quilômetro 181? E se a velocidade do veículo na hora da batida não fosse 150 km/h? E, se uma caminhonete F400, branca, 1980, não tivesse cruzado o seu caminho? E se a colisão de frente não tivesse causado a fratura da primeira e da segunda vertebras da coluna cervical? E se as costelas quebradas não tivessem lhe perfurado os pulmões? E se a causa mortis não tivesse sido secção de medula e traumatismo craniano? Será que Luiz Gonzaga do Nascimento Junior, o Gonzaguinha, completaria 70 anos no dia 22 de outubro de 2015? ‘E’ e ‘Se’, são dois operadores argumentativos. O primeiro é de adição, soma a favor de uma mesmo conclusão. O segundo é de condição, indica uma hipótese para a realização ou não de um fato qualquer. São sinais gráficos pequeninos, mas, lado a lado auxiliam na criação de perguntas, às quais, provavelmente, nunca ninguém obterá respostas.

Ficha Técnica Direção artística e produção executiva: Aramis Barros Assistente de produção: Lelé Pereira Arranjos e teclados: Jota Moraes Percussão: Mingo Araújo Técnicos de gravação: Sérgio Rocha, Luis G. D’Orey, Marcelo Saródio e Edu Brito Assistentes de gravação: Marcelo Soródio e Júlio Carneiro Criação original e concepção do show ao vivo: Luiz Gonzaga do Nascimento Jr. Gravação ao vivo em Belo Horizonte em 1991 Remasterização: Visom Digital Direção de arte: Marciso (Pena) Carvalho Projeto gráfico: Káthia Junqueira Foto: Jorge Rosemberg (Fotograma) Gravadora: Som Livre


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Impressão

Belo Horizonte, Outubro de 2015

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Um jorro de palavras, imagens e odores Obra de Loureço Mutarelli encanta na literatura e no cinema REPRODUÇÃO

Mariana Gualberto “Olha desculpe o cheiro. Estou com problemas no encanamento”. A obra literária, de 2002, é assinada por Lourenço Mutarelli, nome inicialmente consagrado no cenário dos quadrinhos, que também conquistou o seu espaço na literatura nacional. A narrativa introspectiva é envolvente e de rápida leitura, enquanto abarca o protagonista Lourenço em duas obsessões: o cheiro do ralo e a bunda da garçonete de onde lancha diariamente. Reza a lenda que o livro foi escrito em apenas cinco dias, o que é refletido no resultado final. As páginas são devoradas em uma velocidade ímpar, fruto de uma linguagem simples e de um ritmo acelerado, em meio ao uso quase que exclusivo de diálogos imersos em capítulos breves. Engana-se quem acha que a simplicidade do linguajar torna a obra rasa; ao contrário, talvez esse seja o ponto mais forte dos livros de Mutarelli, em meio a uma leitura fácil, mergulhamos fundo em histórias bem amarradas, em trechos de vidas que poderiam acontecer logo ali, na nossa esquina. Em o Cheiro do Ralo, a história contada é a de Lourenço; proprietário de uma espécie de antiquário, o protagonista passa os seus dias de trabalho enfurnado em sua sala, onde recebe os mais diversos tipos de pessoas tentando vender objetos cheios de história para conseguir um tostão. Ao fundo do espaço há um banheiro, de onde o ralo emana um

cheiro enigmático, cheiro de excremento sensorial. Para Lourenço, tudo é troca, tem um valor e pode ser comprado; os pertences dos outros, o seu pai ausente e até a bunda desejada. Imerso em seu próprio mundo, o personagem goza com a desgraça do outro, atribui valores arbitrários aos inúmeros objetos que recebe, enquanto suga a necessidade alheia. Em sua realidade, só há duas preocupações: a afirmação de que o cheiro que emana do ralo não é seu e conseguir a bunda desejada. Conquistar não está nos planos de Lourenço, atribuir valores sim. Pagar para se colocar em um patamar de controle sobre os outros lhe causa inenarrável prazer. Com a necessidade de valorar tudo e todos, o homem estabelece suas histórias na medida em que coleciona partes dos outros. Lourenço emana das fraquezas do próximo para compensar suas próprias fragilidades. Em 2006, a obra ganhou uma adaptação para o cinema, com direção de Heitor Dhalia e orçamento de apenas R$315 mil. Com título homônimo, o roteiro é fidedigno à obra literária. Com exceção do protagonista, Lourenço, que no livro é descrito como um cara semelhante ao do comercial da Bombril, e, no cinema, é interpretado por Selton Mello. Por ser tão fiel à obra original, os interessados pelo Cheiro do Ralo literário e cinematográfico devem priorizar as páginas à tela; inverter a ordem colocaria em risco toda a imaginação, e faria com que o leitor associasse cada passagem do livro ao que foi assistido.

“– Isso aqui cheira a merda! – É, do ralo ali. – Não é não! O cheiro vem de você! – Não amigo, o cheiro é do banheiro aqui! – Quem usa esse banheiro? – Eu. – Quem mais? – Só eu. – Então, de onde vem o cheiro? E sai a passos firmes, deixando Lourenço perturbado.”

Ficha Técnica Livro Título: O Cheiro do Ralo Autor: Lourenço Mutarelli Editora: Companhia das Letras Ano: 2011 (1ª edição 2002) 184 páginas Filme Título: O Cheiro do Ralo País: Brasil Diretor: Heitor Dhalia Elenco: Selton Mello, Paula Braun, Flavio Bauraqui, Alice Braga Ano: 2006 Duração: 112 min Gênero: comédia / drama


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Belo Horizonte, Outubro de 2015

Crônicas

Impressão

Jornalismo e maresia Nayara Cristina de Oliveira O jornalismo é como uma névoa fina e úmida – mas que também pode ser corrosiva e destruidora de sonhos e expectativas. O jornalismo é como o sal no mar: às vezes, incomoda; contudo, sem ele, não haveria mar. É a paixão ensurdecedora pela busca da verdade, a necessidade de saber mais e transmitir esse “mais” a outras pessoas. Ouso dizer que seja um compartilhamento de informação, paixão e verdades. Brisa suave que, às vezes, entorpece a mente e nos leva a um mundo surreal, com fantasias e sonhos, mas com um doce amargo. Hummmm... o jornalismo! Quem me dera poder te descrever com todos os sabores. É como sentir no ar o cheiro da maresia, mas um cheiro de abordagens e transcrições com leve toque de realidade nessa quase viagem à imensidão do mar. Há a escuridão, o nevoeiro que diminui a visibilidade, e que, sim, é triste. Por vezes, porém, no jornalismo, há quem não enxergue, com clareza, a necessidade da apuração. Resultado? Ficamos à mercê de uma quase bruma do mar. Como as ondas. Assim é o jornalismo: uma correria total pela informação, pela grande notícia, pelo “furo”. No mar, as ondas vêm e vão. Já o jornalismo é uma via de mão única, que, tão somente, vai. Depois, é só saudade, cheiro e lembrança. E assim como a maresia é o jornalismo: viajante no tempo e no espaço, salgado, mas com gosto de mel, escuro

por diversos caminhos. E vivo e brilhante, como nunca se viu. Doce jornalismo, salgada maresia. Tão distante, e, ao mesmo tempo, tão perto. Tão diferentes e tão iguais.

Há quem diga que o jornalismo tem gosto de sangue. Pois digo que o jornalismo tem gosto e cheiro de maresia. Silêncio que incomoda. Gosto que provoca. Sensação que destrói. Eterna fantasia de

um mundo com mais jornalismo-maresia. Verdade que não condena. Eterna descoberta. Caminhos onde se tecem sonhos, planos e verdades. Assim como a maresia é o jornalismo. dandara deolinda

O segredo do sobrinho Vinícius Oliveira Ordem, segundo o dicionário, significa “ato de comandar, ordenar alguém”. Essa é a palavra que reina aos fins de semana na casa de Maria Aparecida, uma senhora de 74 anos que mora no boêmio bairro de Santa Tereza, em Belo Horizonte. Ela ordena que seu sobrinho jogue, junto a ela e a suas três irmãs, o popular jogo de cartas intitulado “buraco”. (O problema é o segredo que seu sobrinho esconde.) Ele tem 20 anos e veio do interior, há pouco mais de 24 meses, para estudar. Nos fins de semana, o jovem pensa em descansar, pois estuda à noite e trabalha durante o dia para ajudar nas despesas da casa. Seu horário de descanso seria aos sábados e domingos, mas, como se sabe, ele é trocado pelos quatro naipes do baralho. No sábado, as partidas, geralmente,

começam às 16h e terminam por volta das 21h. Já no domingo, o couro come! Além de ir fazer a feira com Maria Aparecida, o garoto tem de ajudá-la a preparar o almoço e lavar a louça, para, então, começar os trabalhos sobre a mesa – sempre forrada por uma colcha verde, estampada por diversas cartas. A disputa começa às 13 horas e não tem hora para acabar. Geralmente, segue até as 23 horas , pois, na segunda, todos trabalham, menos a aposentada Maria Aparecida. Na verdade, se dependesse dela, o fim de semana teria cinco dias, todos para jogar buraco. (A questão importante, contudo, é o segredo do sobrinho.) A conversa durante as partidas é sempre a mesma: “Quem já pegou o morto?”; “A gente já tem canastra limpa?”; “Eles estão vulneráveis!”. As expressões são corriqueiras, mas ainda atormentam o coitado do sobrinho de

Maria Aparecida, que se sente obrigado a participar do majestoso programa de sábado e domingo à tarde. Em certos fins de semana, o jovem combina de sair com os amigos. Em outros, ele trabalha. Por fim, há aqueles em que vai ao interior, para visitar a família. Maria Aparecida até compreende a necessidade das viagens à terra natal, mas, quando o sobrinho marca de sair com os amigos, o clima pesa! Suas tias acham um absurdo ele deixar de jogar o pomposo buraco para sair com “qualquer um” para se divertir. Afinal, a melhor diversão do mundo é ouvir o barulho do embaralhar das cartas. E o jovem é valente! Mesmo contrariando a vontade das senhoras, encara as feras e sai de casa para se distrair. Quando volta, depara-se, quase sempre, com a fúria de suas colegas de baralho! Bastam algumas palavras, porém, para que elas esquecem o ocorrido. (A questão, porém,

é o mistério do sobrinho!) As marcações do buraco são feitas em uma agenda de 1998: todas (sim, todas!) as partidas jogadas na casa de Maria Aparecida, desde o dia 28 de julho daquele ano, estão devidamente registradas nas páginas amareladas de um ementário. A vontade do sobrinho é pôr fogo naquela caderneta! Atualmente, as marcações ocupam a metade da agenda (e a meta da insaciável Maria Aparecida é completá-la). Tudo bem, tudo bem! Mas o que dizer, finalmente, do tal segredo do pobre sobrinho? Vamos lá: apesar de tudo o que precisa enfrentar aos sábados e domingos, ele é completamente apaixonado pelo obrigatório jogo de buraco! O problema está no fato de não poder revelar tal avassaladora paixão. Afinal, se Maria Aparecida souber de tudo, seu fim de semana passará a ter – precisamente – cinco dias.


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