Edição 210 - Caderno 2

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foto:: mArCoS ANtôNIo

jornal laboratório do curso de jornalismo do UniBH ano 37 • Número 210 • dezembro de 2018 • Belo Horizonte • mg


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DOSSIÊ Cultura de rua

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ritmo e poesia fotoS: vINICIUS SOUZA

O RAP, estilo musical que surgiu na Jamaica, tem o intuito de dar voz aos menos favorecidos e salvar vidas

Vinicius Souza O RAP, abreviação de rhythm and poetry (ritmo e poesia), é um gênero musical que foi criado na década de 60 e levado pelos jamaicanos para os bairros periféricos dos Estados Unidos, como Harlem e Bronx, na década de 70. O estilo, que é um dos gêneros do Hip-Hop, tem uma batida rápida, letras em forma de discurso, com muita informação e pouca melodia. Na sua origem, o RAP foi uma forma cantada e ritmada de expor problemas e questões sociais que outros estilos não buscavam, abordando assuntos de uma forma direta e crítica. No início da década de 1980, era comum os jovens norte-americanos, que já estavam cansados da disco music, mixarem suas músicas e criarem, sobre elas, arranjos específicos. Músicas de James Brown, por exemplo, já serviram de base para diversos RAP’s. O MC, mestre de cerimônias, era o responsável por in-

tegrar letra e mixagem em forma de poesia e protesto. Foi aí que se deu o marco inicial do movimento RAP norte -americano. No Brasil, o gênero começou a ganhar destaque no final da década de 80, mais precisamente na cidade de São Paulo, no Teatro Mambembe, onde o Dj Théo Werneck passou a se apresentar. Com o passar dos anos, o movimento ganhou força, e surgiram os primeiros rappers do país: Thayde e Dj Hum. A partir daí, surgem novos grupos que são destaques até hoje, como o Racionais MC’s, o Detentos do Rap e o Pavilhão 9, que têm como característica fazer músicas como forma de protesto. Na década de 90, com o crescimento do estilo ganhando as rádios do país, iniciaram os julgamentos sobre ele “não ser música”. O conservadorismo tomava conta, pois, algo produzido por negros, dentro das comunidades, que só falava de violência, chegou a ser

considerado como “um estilo de música muito violento e típico da periferia”. Mas, na verdade, o Rap trazia apenas a realidade vivida pelos artistas, que sentiam na pele o preconceito e as mazelas sociais de seus bairros.

Rap como resistência A letra do grupo Racionais mostra dados dos anos 90, onde o grito de socorro da população negra do Brasil fica mais que evidente. Esses dados, se comparados com os tempos atuais, ainda assustam. O rapper mineiro Djonga, que é conhecido nacionalmente por sua luta contra o preconceito, segue a linha de criar música como forma de protesto. Na música Favela Vive, lançada em 2018, em que diversos artistas do RAP nacional protestam contra o modo como as favelas são vistas e tratadas no país, Djonga traz informações na mesma linha de raciocínio dos grupos dos anos 90: “Mas, no meu lugar se ponha e suponha que, no Séc.

XXI, a cada 23 minutos morre um jovem negro e você é negro que nem eu, pretin, não ficaria preocupado?”.

“60% dos jovens de periferia, sem antecedentes criminais, já sofreram violência policial. A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras. Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros. A cada quatro horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo. Aqui quem fala é primo preto, mais um sobrevivente.” Diversos rappers citam a luta dos negros no país. Abordam, em suas letras, o racismo, a homofobia e diversas formas de preconceito ainda tão presentes no Brasil. Nomes como Rincon Sapiência, Criolo, Emicida, BK, Djonga e Mano Brown são exemplos de MC’s que vestem a camisa e usam seus versos como protesto contra a marginalização daque-

les que são rotulados “inferiores”. Um caso mais especifico é o de Jefferson Ricardo da Silva, conhecido como Rico Dalasam. Dalasam é cantor, compositor e o primeiro rapper assumidamente homossexual, representante da comunidade LGBT dentro do cenário do RAP nacional. Em entrevista com Marília Gabriela, Rico conta que Dalasam é a abreviação da frase Disponho Armas Libertárias a Sonhos Antes Mutilados, e que “consumir RAP durante a minha adolescência foi um preparatório para encontrar resistência, me ajudou a ter orgulho de ser negro e de ser gay”. As mulheres também já usam o RAP como grito de resistência. Inicialmente, algumas até faziam partes de grupos como RZO e SNJ. Agora, a presença delas no cenário nacional passa a ser cada vez mais notada, pois, além de cantarem em carreiras solo, elas também produzem, mixam e participam diretamen-

te da cultura rapper no Brasil. MC’s como Karol Conka e Negra Li lutam diariamente para reverberarem suas vozes. Buscam a luta diária das mulheres, com músicas que falam sobre empoderamento feminino, violência contra a mulher e o machismo na sociedade.

Hip-Hop hoje Nos dias de hoje, o gênero já conquistou seu espaço no país. Mesmo ignorado por gravadoras no início dos anos 2000, o estilo buscou se reinventar e falar diretamente ao jovem brasileiro, não somente aos jovens das periferias. Mauro Mateus dos Santos, conhecido como Sabotage, é um exemplo dessa reinvenção. Ao falar da realidade que viveu na Favela do Canão (SP), trouxe uma novidade ao estilo, acrescentando uma leveza nas rimas, mesmo cantando um contexto social “nem tão leve assim”. O RAP cresceu e, em 2017, foi conside-


DOSSIÊ cultura de rua rado o estilo musical mais ouvido nos EUA, de acordo com a empresa de pesquisas Nielsen. No Brasil, uma mudança drástica na indústria fonográfica abriu brechas para jovens crescerem e ganharem notoriedade no cenário da música nacional. Nesse contexto, Emicida se destacou, lançando uma mixtape

feita em casa chamada Pra quem já mordeu cachorro por comida, até que eu cheguei longe. Sucesso de crítica, a mixtape o levou ao lançamento de seu segundo álbum, chamado Emicidio, com divulgação por redes sociais e venda de exemplares a mão. Hoje, o rapper é um dos mais influentes

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e conhecidos do país. Esse foi o pontapé inicial para que jovens, cada vez mais, se jogassem em seus sonhos. Mesmo sem muito apoio e estrutura, estava provado ali que não era impossível seguir o seu propósito de fazer música, cantar experiências e fazer disso o sustento de vida.

música para salvar vidas Em Belo Horizonte, nas regiões do Centro e do Barreiro, são fortes os movimentos de jovens que buscam no RAP um espaço de integração, cultura e lazer. No Centro, mais precisamente no Viaduto Santa Tereza, acontece o Duelo de MC’s, evento que reúne rappers de todo o país para uma disputa de rimas. Já consagrado na cidade, o evento, geralmente realizado aos domingos, é organizado pelos jovens do Movimento Família de Rua, que tem como objetivo preservar e difundir a cultura Hip-Hop e Skate enquanto expressão artística e estilo de vida. O movimento existe desde 2007 e vem ganhando mais importância no cenário do RAP

nacional. Em 2018, o Viaduto Santa Terezaserá palco da final do campeonato nacional de Duelo de MC’s, que acontecerá no dia 15 de dezembro, a partir das 14 horas. No Barreiro, os duelos foram formados há cerca de 2 anos, e os duelos acontecem às quartas-feiras. O evento começou com uma brincadeira entre amigos e hoje se tornou o Movimenta Barreiro, que tem como objetivo “trazer o hip-hop de uma forma mais educativa, mostrando para os jovens que existe uma opção, não importa de onde você vem, existe um lugar para você”, destaca uma das produtoras do movimento, Kezia Telles. O evento acontece na pista de skate da

Premiação dos vencedores do duelo de MCs

região, ao lado do Via Shopping Barreiro. Um dos idealizadores do movimento, conhecido como Cabral, fala sobre o que motivou a realização do evento: “O local fica entre um shopping e uma faculdade, o que faz com que muitas vezes as pessoas das comunidades que não têm a condição de usufruir desses locais, venham para cá, onde a música acolhe, sem importar sua classe social ou condição financeira.” Os jovens sonham, ainda, em abrir uma ONG, oferecendo oficinas e workshops. João Paulo, um dos organizadores, também idealizador do movimento, conta que o objetivo é “rodar o mundo, mostrando o nome da região e acolhendo pessoas carentes.”

Organizadores do Movimenta Barreiro

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De Nova York à BH FOTo: gil braga

A contribuição do grafite para o ambiente visual e cultural da capital mineira

Grafites podem ser vistos da rua Sapucaí, no bairro Floresta

Stéffane Nascimento Na década de 70, surgiu nos Estados Unidos, mais especificamente na cidade de Nova York, um movimento cultural chamado Hip Hop. Iniciado como forma de protesto contra o sistema político e social da época, esse movimento foi desenvolvido por jovens de classe baixa que sofriam com o sistema desigual, sendo a maioria deles afro-americanos. Com isso, o Hip Hop desenvolveu quatro pilares que expressam sua identidade e que fazem parte da cultura até hoje: o rap, como estilo musical, o DJing, que é a origem dos Dj’s, o breakdance, como estilo de dança de rua, e o grafite, como forma de comunicação visual. As primeiras marcas do grafite eram letras e símbolos feitos em locais públicos, que aos poucos evoluíram para desenhos mais elaborados, expres-

sando o pensamento de seus produtores. Vários artistas emergiram desse movimento, como Jean-Michel Basquiat, que começou grafitando paredes e metrôs em Nova York, deixando sempre a marca “SAMO”, sigla de “same old shit”, cuja tradução é “a mesma merda de sempre”. Os quadros de Basquiat, sempre expressivos e peculiares, chamaram atenção de muita gente e, aos poucos, ele ficou conhecido no mundo inteiro. Mesmo com sua morte precoce, aos 27 anos, em 1988, sua forma de fazer grafite ainda é referência mundial. Suas obras, expostas em grandes e renomadas galerias, são vendidas por milhões de dólares.

Em terras tupiniquins No Brasil, os primeiros sinais de grafite surgiram no período da ditadura militar (regime que ocorreu entre 1964 e 1985). O propósito era o mesmo:

registrar nas paredes a indignação contra o sistema opressor, por meio de frases e símbolos, e criticar a censura que impedia a liberdade de expressão. Em 1973, surgiu, em São Paulo, um desenho de uma boca com alfinete feita por Alex Vallauri, pioneiro no Brasil ao fazer grafite em forma de desenho. Alex fez várias outras obras e incentivou muitos pessoas a pintarem as ruas da capital paulista. Com isso, a cidade foi gradativamente colorida, abrindo as portas para artistas como Os Gêmeos (os irmãos Otávio e Gustavo Pandolfo) e Kobra, agora conhecidos internacionalmente. A iniciativa de Alex Vallauri foi tão importante para o grafite brasileiro que a data de sua morte, 27 de março de 1987, é considerado o Dia Nacional do Grafite. Atualmente conhecida como a cidade mundial do grafite,

São Paulo ganhou inúmeros outros desenhos que colorem as ruas da metrópole. Um dos pontos turísticos da cidade, o “Beco do Batman”, ganhou esse nome quando recebeu, na década de 80, um desenho do personagem homem-morcego. Após isso, diversos artistas completaram o beco, situado na boêmia Vila Madalena, transformando -o em uma galeria a céu aberto.

Criando raízes em BH Na capital mineira, a imersão do grafite foi um pouco mais lenta. Davidson Gonzalez do Nascimento, de 37 anos, mais conhecido como Seres, é grafiteiro há 20 anos e confessa que teve algumas dificuldades no início de sua carreira. “Não participei de outros meios de comunicação, a cidade não tinha nada em relação a cursos, workshops. Tínhamos 15 artistas, 20 a 30, no máximo, incluindo

a galera de Contagem e Betim”, conta Seres Seu primeiro contato com a linguagem de rua foi a pichação e iniciou no grafite quando ainda era adolescente. “No final da década de 90, eu e um amigo começamos a fazer esse movimento em uma feira de cultura da escola em que eu estudava”, revela. Seres enfrentou outros desafios além da escassez do grafite na cidade. “Quando eu optei pelo grafite, minha mãe teve aquela visão de que eu estava continuando a fazer aquilo que eu fazia (pixo). Já meu pai sempre me surpreendeu muito, quando ele soube do grafite, ele falou: ‘nó, que bacana isso aí’”, conta Seres. Mesmo com as dificuldades, Seres permaneceu no caminho para aperfeiçoar seus desenhos e, com o tempo, o seu nome começou a ser conhecido em Belo Horizonte. “As pessoas perguntavam: ‘Se-

res? Quem é Seres?’”. Como naquela época havia poucos artistas do movimento, o nome acabara se propagando entre as pessoas que tinham interesse na arte urbana. De acordo com ele, o grafite começou a despertar o interesse do poder público no ano 2000, quando, o então prefeito de Belo Horizonte, Célio de Castro, desenvolveu um projeto chamado Guernica. “Esse projeto foi o mais importante que houve na cidade. Foi ele que fez com que hoje a gente tenha esse tanto de grafiteiro na cidade. Eles ou passaram por esse projeto, ou por alguma oficina de algum grafiteiro que passou por esse projeto”, pontua. Desde 1999, Célio de Castro organizou uma comissão para a análise da pichação e do grafite, elaborando discussões com psicanalistas, engenheiros, artistas plásticos, urbanistas, arquitetos e


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“Tenho amigos pais de santo, muçulmanos, cristãos, ninguém se aborrece por estar do lado de uma pessoa que é rica ou pobre, negra ou branca, homem ou mulher, o grafite abraça a todos.” Seres acredita que o tabu em relação a marginalização do grafite não existe mais. “Se você pegar de 10 anos para cá, a aceitação foi muito maior. As políticas públicas foram sempre abertas ao novo, abertas a novas experimentações”, pontuou. Ele acredita, ainda, que o grafite foi um pontapé inicial para inserir jovens e adolescentes no meio artístico. “O grafite vem com essa demanda do público, do ‘para todo mundo’, porque o que é legal é pra todo mundo”, finaliza. Hoje já existem vários projetos e movimentos além do Guernica em Belo Horizonte, que incentivam o reconhecimento do grafite como arte urbana e contribuem para o desenvolvimento cultural da cidade. A galeria Quartoamado, por exemplo, foi fundada em 2012, por um grupo de amigos que tinham o objetivo de desenvolver projetos que aproximassem a arte de rua do

Mirante da arte É improvável que você tenha andado pelo Centro de Belo Horizonte sem ter percebido os grafites pintados em algumas empenas de prédios. Essas pinturas foram produzidas durante o festival Cura – Circuito Urbano de Arte, que realizou sua terceira edição em novembro de 2018, cobrindo mais quatro empenas. O Cura é um festival de arte urbana, idealizado por três grafiteiras mineiras, e teve sua primeira edição em julho de 2017. Segundo Priscila Amoni, uma das idealizadoras do festival, o “objetivo inicial era colocar BH no mapa mundial do grafite”. Atualmente, o Cura é o segundo maior festival de arte de rua do país. Além de Priscila, a comissão organizadora do festival conta com Janaína Macruz e Juliana Flores. Desde 2017, diversos artistas convidados, em sua maioria mulheres, ajudaram a colorir o Centro de BH. Nesta última edição, o festival teve como convidada a artista Denise de Sousa Almeida, mais conhecida como Dninja, que

FOTo: gil braga

público e o cotidiano da cidade. Raul Sampaio, um dos fundadores da galeria, revela que a iniciativa surgiu após perceberem a existência de muitos artistas que produziam desenhos incríveis pelas ruas da capital mineira, mas, ainda assim, faltava algo que os aproximassem das pessoas e da cidade. “Nosso pensamento era desenvolver projetos com esses artistas. Nós os inserimos no mercado, trabalhamos suas carreiras, fazemos a conexão da proposta de um cliente com a proposta desses artistas”, explica Raul. Hoje, a galeria tem parceria com dez artistas, e faz exposições mensais, promovendo, toda quarta-feira, eventos relacionados às exposições.

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abriu o evento no dia 5 de novembro pintando a Empena de Letras, no Edifício Satélite. “Eu estou muito feliz em participar do Cura, sempre acompanhei de longe. Eu acho legal demais o trabalho deles”, disse emocionada. Para Dninja, a iniciativa de pintar um mural de letras foi “a coisa mais fantástica do mundo”, pois, acredita que as letras são a essência do grafite. Seu interesse pelo grafite começou quando ainda era nova. “Eu via em clipes de músicas, filmes, e alguns nas ruas de Belo Horizonte, que era coisa bem rara na época, e queria fazer igual.” No início, assim como o Seres, Dninja teve algumas dificuldades por falta de referên-

cias locais, o que a deixou “desanimada” por um tempo. Até que ela conheceu algumas pessoas que trabalhavam com grafite e começou a acompanhá-las. Dninja tem 40 anos e disse que nunca sofreu nenhum preconceito por ser mulher e fazer grafite: “sempre tive muito apoio dos meninos”. Para ela, o grafite é uma cultura inclusiva: “tenho amigos pais de santo, muçulmanos, cristãos, ninguém se aborrece por estar do lado de uma pessoa que é rica ou pobre, negra ou branca, homem ou mulher, o grafite abraça a todos.” E é esse pensamento de inclusão que o Cura tem como ideologia. O festival promoveu, além da pintura de mais 4

empenas, vários aulões, sessões comentadas de filmes sobre o grafite e mesas com debates de diversos temas. “A gente participa, a gente traz os movimentos para conversarem. Trouxemos, agora, essa empena de letras, que traz vinte e um artistas da cidade e levanta essa pauta da pichação, da arte periférica tendo destaque no Centro. Tem todas essas questões aí sendo discutidas, tentando incluir mesmo, dar voz para os movimentos”, conta Priscila Amoni. Graças ao Cura, Belo Horizonte sedia o primeiro mirante de arte urbana no mundo. Todos os prédios grafitados pelo festival podem ser vistos da Rua Sapucaí, no bairro Floresta. O evento des-

te ano encerrou no dia 18 de novembro, com uma grande festa, completando 10 prédios pintados. Entre eles, os 3 maiores grafites produzidos por mulheres na América Latina. Ainda não há data para o próximo festival, mas, é possível acompanhar as atividades por meio do Instagram @cura.art. A presença do grafite em Belo Horizonte tem contribuído com a estruturação visual da cidade de forma positiva. Hoje, há desenhos em várias regiões da cidade sendo úteis, não só como decorativos urbanos, mas também como fatores importantes para a construção, a valorização e a resistência de uma identidade da cultura local. FOTo: gil braga

outros profissionais de áreas diversas da Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG. A partir dessa elaboração, nasceu, em 2000, o projeto Guernica, desenvolvido pela Prefeitura de Belo Horizonte, em parceria com o Centro Cultural UFMG e a Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa, Fundep. Com o objetivo de desenvolver ações e oficinas que possibilitam aos jovens frequentarem outras linhas de pensamentos e espaços da cidade, aperfeiçoando seus conhecimentos técnicos e conceituais, esse projeto permanece até hoje.

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Priscila Amoni, uma das idealizadora do Festival Cura


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DAS RUAS às passarelas Por Vitória Ohana O conceito de street style surge no cenário em que os editoriais de moda não representavam fielmente o que as pessoas estavam consumindo nas ruas. A moda urbana ou moda das ruas surgiu nos guetos de Nova York, nas décadas de 70 e 80, quando os aficcionados por hip hop, punk, grunge e rock n’ roll começaram a se inspirar nos artistas da época, ditando o estilo. O movimento surgido nas ruas expressava o estilo criativo, animado, irreverente e contrastante dos jovens. Rapidamente, a mistura dos mais variados estilos resultou na convergência de cores, tendências e culturas pelas ruas das cidades. A relação entre as influências musicais e a moda é muito estreita. O conceito de streetwear nasce juntamente com a ascensão do hip hop nas regiões marginalizadas de bairros novaiorquinos, como o Bronx, e tem o protagonismo de negros. A adidas, por exemplo, se tornou mundialmente famosa após o lançamento da música “My adidas”, do grupo de rap RUN D.M.C. A parceria resultou em um contrato no valor de 1 milhão de dólares entre a marca e os rappers. E pensar no streetwear derivado principalmente do hip-hop, é pensar adidas e Nike. O estilo das ruas, tomando proporções maiores, logo fez com que as grandes empresas do ramo começassem a produzir para esse segmento. A ideia de popularizar o conceito unissex fez com que as camisetas, calças, tênis, jaquetas e casacos pudessem ser usados - em uma peça - por homens

e mulheres. O estilo do hip hop é visível até hoje nas roupas das marcas, calças e camisetas largas, jaquetas com estampas remetentes ao grafite, modelos de tênis para skate mas, também deu lugar à mais cores e mais diversidade de tecidos e estampas. Ainda na década de 70, aliada ao esporte, a marca Converse caminhava para consolidarse como símbolo de street style. Marquis Mills Converse, ex-gerente de uma loja esportiva, teve a ideia de criar um calçado com solas emborrachadas para evitar acidentes como escorregões, como o que o próprio já havia sofrido. Os tênis foram bem aceitos pelo público, a Converse já produzia milhares de pares de sapatos, mas, foi somente ao produzir o primeiro modelo de calçados exclusivos para jogadores de basquete que o sucesso chegou. Pouco antes, na década de 60, o basquete se tornaria um dos marcos na luta pelos direitos civis dos negros nos EUA. Um aperto de mão entre jogadores de times rivais, sendo um deles majoritariamente branco e o outro negro, desafiou as leis do estado do Mississipi, que proibia times de jogarem com outras equipes ‘de origem africana’. A partir desse momento, o crescimento de atletas negros na principal liga de basquete norte-americana ajudou a popularizar os clássicos e atemporais Chuck Taylor. Assinados pelo exjogador de basquete, Charles “Chuck” Hollis Taylor, o modelo colocou de vez a Converse no mercado da moda. Os tênis saíram das quadras e foram para as ruas do mundo inteiro, em versões coloridas, estampadas,

fotos: vitória ohana

Street style não é só mais a tendência das ruas, é o próprio conceito de produção e consumo

monocromáticas, cano alto, cano médio e até plataforma. Buscando também o conceito unissex, em que não existem modelos femininos ou masculinos. Nessa mesma linha, a Nike lançou o Nike Air Force, usado por grandes nomes do basquete pelo seu desempenho no amortecimento, entre eles Magic Johnson e Michael Jordan. Assim como o sucesso da Converse, o modelo da Nike logo saiu das quadras e foi parar nos pés dos jovens de Nova York, principalmente daqueles que dançavam o breakdance. A relação entre artistas, atletas e público passou a ser ainda mais explorada pelas marcas em assinaturas. Depois do Nike Air Force, foi o momento de Michael Jordan assinar a própria coleção com a Nike, lançando o Nike Air Jordan. Outros artistas também assinam coleções com grandes marcas atualmente, como o rapper Kanye West que, em parceria com a adidas,

Converse Chuck Taylor uma das peças do strett style


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colocou no mercado um dos maiores sucessos de vendas da empresa, os tênis Yeezy. A coleção Fenty X Puma, da cantora Rihanna, colocou a Puma novamente nos holofotes do street style. Os solados emborrachados, mas com glamour e modernidade do veludo, ilustram bem as referências do hip hop e pop cantados por Rihanna.

No Brasil O desfile de moda São Paulo Fashion Week (SPFW) é um dos maiores eventos de moda do mundo, acompanhado da semana de moda de Nova York, Paris e Milão. E foi no SPFW a consolidação da união entre as passarelas e as ruas no Brasil. A responsável pelo feito foi a LAB - Laboratório Fantasma, do rapper Emicida e seu irmão Fióti, no primeiro desfile da marca em 2016. Com a presença significativa de modelos negros - algo antes raro em desfiles de grifes -, incluindo o cantor Seu Jorge, Emicida e Fióti buscaram referências orientais e africanas para criarem a coleção, com predominância da paleta de cores preto, vermelho e branco. A

LAB levou aos palcos do SPFW a história de Yasuke, o primeiro - e talvez único - samurai negro do Japão. Com isso, em busca da representatividade racial e de corpos plus size, a marca demonstra preocupação em atender os diversos biotipos. Além das passarelas, as lojas de fast fashion - padrão de produção, consumo e descarte, como são conhecidas as marcas que trabalham com departamentos -, atuam como prossumidoras do street style. Os times de criação dessas lojas permanecem atentos aos movimentos da moda urbana e passam a produzir o que está em tendência nas ruas. E o fast fashion também explora a relação de confiança entre os blogueiros, influenciadores digitais e o público. Camila Coelho, Kadu Dantas e Lala Rudge são alguns dos influenciadores que já assinaram coleções para a Riachuelo, por exemplo. A Forever 21 é uma marca de departamento norte-americana que há pouco tempo está se espalhando pelo Brasil - antes, a loja só tinha unidades em São Paulo e no Rio de Janeiro. A marca ganhou destaque

no Brasil justamente por estar sempre atrelada a divulgação por meio de donas de blogs e influenciadoras digitais. O street style, para funcionar no fast fashion, precisa que ele esteja conectado à pessoas reais e sendo usado por pessoas comuns no dia a dia. Em Belo Horizonte, o empreendedor Guilherme Gonçalves, 24 anos, idealizou a marca Fegare U.S. Segundo ele, a proposta urban style “queria iniciar uma ca-

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minhada de exportação das questões socioculturais das periferias para o mundo”. O objetivo é mudar a opinião das pessoas que olham para os negros de maneira diferente. Para isso, a Fegare U.S busca sempre caracterizar a cultura negra - associada a resistência - nas peças da marca. “A quebrada é um lugar de conhecimento e nós sempre vamos nos surpreender com ela”, afirmou Guilherme. As roupas das Fegare

U.S mostram tendências já vistas anteriormente; camisetas e calças largas, estampas militares, predominância do preto e branco, mas também apontam tendências contemporâneas e joviais como flores e poá nas peças, detalhes em cores mais vivas como amarelo, rosa, verde, vermelho e azul. O uso dessas novas produções demonstram maior abertura às novidades de moda pelas culturas do hip hop e rap, público que sempre esteve

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ligado ao fashionismo, mas agora mais preocupado com a sofisticação. Uma das inspirações de Guilherme é Tyler, the Creator - rapper, produtor e empresário. O dono da Fegare U.S acredita que a relação da marca com as produções audiovisuais é essencial para a divulgação - e também como forma de manifesto - do trabalho de pessoas negras. Tyler, the Creator é idealizador da marca Golf Wang, e utiliza da sua música e de vídeos para a divulgação das coleções. Como já foi feito por artistas brasileiros e outros norte-americanos, Tyler também assinou coleções de tênis com a marca Vans, até lançar sua própria empresa de calçados, a Golf Le Fluer, em parceria com a Converse. Assim como a maioria dos negros, Guilherme enxerga seu trabalho e suas atitudes como uma forma de resistir aos preconceitos e mostrar que as produções das periferias podem ser tão boas quanto as de fora. “A favela me criou. O mundo lá fora está sendo preparado para a gente conseguir desconstruir aquilo que está na nossa cara. Criar um padrão nosso, um padrão preto ou simplesmente estar fora dos padrões”, finaliza.


fOTO:: marcos antônio

fOTO: gil braga

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EXERCÍCIO fotográfico

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EXERCÍCIO fotográfico

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fOTO:: marcos antônio

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TRAMAS CONTEMPORâneas

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O VIrtual já é realidade fOTO: vITÓRIA OHANA

Caju Ameixa é a primeira marca brasileira a lançar um editorial de moda em realidade virtual

Kit da Caju Ameixa feito para colaboradores e equipe

Vitória Ohana O doce de Caju Ameixa é originalmente feito em fogão à lenha e cozido por até 12 horas em fogo baixo. O caju atinge a coloração marrom escura, até ficar parecido com uma ameixa. Foi inspirado nesse doce, tipicamente nordestino, que a nasceu marca Caju Ameixa - resultado da união de raízes do Nordeste e da capital mineira. Os trinta anos da Caju Ameixa perpassam no mercado atacadista, principalmente no bairro Barro Preto, consolidado polo da moda mineira, onde chegou a ter cinco lojas. Na década de 80, a criação do Grupo de Moda Mineira fixou a participação de Belo Horizonte no cenário da moda brasileira. Já na década de 90, o bairro Prado também chamou atenção de

compradores e lojistas do Brasil. Com peças mais elaboradas, identidades brasileiras e sofisticação, é onde, hoje, se localiza o showroom da Caju Ameixa. Foi a pedido de Paulo Neto, à frente da Caju Ameixa, que a Selletiva - agência de marketing de moda - decidiu produzir o primeiro editorial em realidade virtual do país para a coleção intitulada Cosmopolitana Fresh 2019 Alto Verão. A ideia de trazer tecnologia para o segmento de moda e ainda colocar em pauta a discussão sobre sustentabilidade social norteou os produtores a buscarem soluções inovadoras que fugissem do tradicional catálogo de moda. A tecnologia de realidade virtual utiliza recursos gráficos como 3D ou imagens em 360° para que a interação entre o usuário e

o sistema operacional resulte na sensação de presença. Essa tecnologia é feita por meio dos óculos de realidade virtual e a conexão com softwares específicos. No Brasil, a tecnologia ainda não se desenvolveu muito, o que pode ser explicado pelo alto preço dos equipamentos, mas, a Selletiva resolveu apostar nela mesmo assim. Tanto que, para aproximar a tecnologia ainda mais dos consumidores, produtores e parceiros da marca, a agência encomendou os próprios óculos, feitos com materiais mais baratos, como o MDF, e produziram os kits entregues aos colaboradores. Os kits são compostos por um óculos em realidade virtual, com um QR Code direto para o vídeo, e uma cartilha explicativa sobre a marca

e sobre o editorial em realidade virtual. O vídeo final - disponível no YouTube e que pode ser experimentado com qualquer óculos de realidade virtual - busca explorar as possibilidades de visualização das peças de roupa, já que por meio da VR (virtual reality) é possível observar o caimento das peças no corpo, o movimento dos tecidos e as cores mais próximas do real, além de evitar que seja produzido mais lixo, como acontece com os catálogos de papel. O evento de lançamento da coleção Cosmopolitana Fresh - Alto Verão 2019 aconteceu no Museu de Moda, situado no centro de Belo Horizonte, e teve a participação de Fred Souza e Fernanda Gomes, produtores executivos, Luiz Naveda, responsável pela trilha sonora, captação e edi-

ção de vídeo, e Paulo Neto, representante da Caju Ameixa. A equipe apresentou ao público as etapas de criação do vídeo, um deles foi a escolha do local de gravação, o Mirante de Belo Horizonte, um dos pontos turísticos da cidade, para evidenciar as raízes mineiras. Assim como a trilha sonora mais dançante e a for-

mação das modelos, em uma forma de ciranda, para que houvesse a possibilidade de mais movimentação contextualizada. Logo após a exibição do making of das gravações, todo o público presente foi convidado para assistir ao vídeo final nos óculos de realidade virtual. A experiência rendeu muitos elogios à equipe.

veja mais Aproxime a câmera do seu teleone para o Qr Code e seja direcionado para o vídeo da Caju Ameixa.


AgÊNCIA De CrIAção pUblICItÁrIA DA vINCI

PuBlICIDaDe

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OUTROS PAPOS

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chave do sucesso A história do jornalista Júlio Baranda mostra como sacrifício e dedicação são essenciais para o jornalista Napáuria Almeida

fotos: reprodução/facebook

Diário do Comércio, Rádio Liberdade, Itatiaia e, atualmente, Rádio Inconfidência. Esses são alguns dos veículos de comunicação em que o jornalista Júlio César Eterovik Baranda atuou em seus 31 anos de trajetória, até agora. Nascido em Belo Horizonte e criado pela mãe no bairro da Serra, Júlio, que perdeu o pai ainda na infância, cresceu ao lado dos quatro irmãos e adquiriu sua independência cedo. Aos 14 anos de idade, começou a trabalhar para ajudar a família. Baranda conta que sempre gostou muito de rádio e admirava a torre da Rádio 98 FM, no bairro onde morava,

o que aguçou sua vontade de seguir a profissão de jornalista. Ele concluiu o Ensino Fundamental na Escola Estadual Pandiá Calógeras, sem nunca ser reprovado. Foi nessa realidade de muita luta, trabalhando e estudando ao mesmo tempo, que Júlio passou em um concurso da Minas Caixa e foi trabalhar em um banco. Nesta época, um amigo o chamou para prestar vestibular na Fafi-BH, hoje UniBH. Foi aí que ele ingressou no curso de Jornalismo, formando aos 23 anos, em 1987. No início, não exerceu a função, pois era concursado e possuía estabilidade. Mas, ainda quando estava faculdade, ficava imitando locutores, colocava dis-

cos na radiola e anunciava músicas. Certo dia, marcou um horário no estúdio de rádio da faculdade para fazer a gravação de um comercial. Um amigo que ajudaria na gravação, faltou. E um outro colega, que trabalhava na rádio Liberdade, em Betim, resolveu ajudá-lo. Ao final do trabalho, o radialista gostou muito de Baranda e perguntou se ele já tinha alguma experiência em rádio. Júlio declarou que nunca havia trabalhado em um veículo de comunicação antes, mas gostava de treinar locuções em casa. Depois desse encontro, ele recebeu o convite para ocupar uma vaga na Rádio Liberdade como locutor.

“Aí eu fui, fiz um teste, eles me aceitaram. Comecei a trabalhar lá, a fazer rádio, antes mesmo de me formar na faculdade”, comemora. Ao final do curso, foi convidado para trabalhar como revisor do Diário do Comércio. Nesse momento, Júlio assumiu três empregos: Minas Caixa, Diário do Comércio e Rádio Liberdade. Em 1991, a Minas Caixa fechou e, então, foi para a Rede Minas trabalhar como produtor, onde também atuou como repórter. De 1992 a 1996, Julio trabalhou na Rádio 98 FM, na Rádio Extra, Rede Minas, Rede Record, Itatiaia e, também, na Assessoria de Imprensa do Palácio das Artes.

Já em 2000, o governo refez o núcleo de rádio e Júlio recebeu um convite da Secretária de Comunicação para trabalhar nele. Deixou, por isso, o Palácio das Artes. No núcleo, ele atuou entre 2000 e 2007.

Mudanças Na década 90, quando Júlio iniciou sua carreira, não existia a mesma tecnologia que existe hoje. Sem computador, as pautas e textos eram feitos à mão ou na máquina de escrever. As apurações eram muito mais difíceis, feitas por telefone ou indo ao local. “Era um trabalho mais difícil, numa época em que o jornalismo era feito com mais paixão”, lamenta. Júlio cita que as gerações vão mudando, os pensamentos e anseios se alteram. Após muitas palestras em faculdades, ele conta que muitos alunos estão estudando jornalismo para entrar em boates, festas e no Mineirão. Mas, ele alerta que não é bem assim.

“Jornalismo tem que fazer com paixão, com tesão, porque você gosta de trabalhar.”

Júlio Baranda diz que sua vida divide entre antes e depois do Jornalismo

O amor e a seriedade pela profissão fizeram de Júlio Baranda um profissional muito valorizado. Ele vê o jornalismo como um ofício sacrificante, pois, desde cedo, começou a abrir mão de eventos sociais, de sábados, domingos e feriados. “A galera me chamava pra ir pra Cabo Frio e eu respondia ‘ah, vai com Deus galera!’, eu não posso ir, estou trabalhando”, conta com bom humor. Júlio destaca que a Itatiaia abriu muitas

portas, pois, foi onde seu nome tornou-se mais conhecido. Sem os trabalhos anteriores e seu profissionalismo, ele não teria alçado voos altos. “O jornalismo parte muito de indicação e quem a recebe é quem se esforça, se entrega, labuta, batalha, quem não reclama muito. É pra quem vai lá e faz, tem que ter iniciativa. Esse é o perfil para o profissional de hoje”, explica Júlio. Segundo ele, a evolução da tecnologia facilitou muito o trabalho do jornalista. Contudo, ao mesmo tempo, trouxe o risco da ausência da checagem dos fatos e aumentou a disseminação das Fake News. “Antigamente era difícil errar uma matéria, porque checavam muito a fonte. Hoje não é bem assim. Antes, as informações e as pautas eram recebidas por telex. Hoje, tudo chega por email e WhatsApp, até mesmo como imagem e som”, comenta Baranda. Ele ainda dá uma dica: “O bom jornalista se faz de muitas fontes.” Baranda cita, ainda, que as pessoas estão na correria, na dependência das informações que chegam por meio das redes sociais. Por isso, não estão dando atenção para as famosas Fake News. Para ele a falta de checagem e os erros de ortografia mostram a pouca responsabilidade dos jornalistas. Mensagem do Baranda para você que é jornalista: “Chegar com vontade, tesão de fazer jornalismo: quem não tem isso não vai para frente. Tem que ter disponibilidade, esquecer a vida para trás. (...) A sua vida sempre vai se dividir entre o antes e o depois do jornalismo.”


TRAMAS CONTEMPORâneas

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cinema x netflix foto: isabela beloti

Em casa ou em frente às telonas, novas tecnologias oferecem experiências inesquecíveis aos espectadores Isabela Beloti

Pioneira do streaming, a Netflix é uma das empresas mais famosas na transmissão de filmes e séries para quase 200 países, e promete fornecer aos seus clientes uma experiência superior a do cinema, sem tirá-los do conforto de casa. A história da Netflix começou há muito tempo, quando alugar DVD’s ainda era a maneira mais conhecida de consumir produtos audiovisuais. Criada em 1997, nos Estados Unidos, a empresa começou fazendo entrega de filmes por correios. Não demorou muito e ela já mostrou sua personalidade inovadora: criou um modelo de assinatura mensal, em 1999, que funcionava como é hoje, uma pessoa pagava uma taxa fixa e podia pegar quantos DVD’s quisesse por mês, sem se preocupar com taxas extras. E foi em 2007 que ela modernizou seus serviços mais uma vez, expandindo para a transmissão dos filmes e séries via streaming. No Brasil, a estreia da Netflix aconteceu somente em setembro de 2011. Usando e abusando das redes sociais como plataforma principal para

suas propagandas, a empresa conquistou o povo brasileiro com sua criatividade e funcionalidade. Com tanto sucesso em pouco tempo, outras empresas também apostaram nos serviços streaming criando plataformas como a Globoplay, Youtube Premium, Amazon Prime Videos e HBO. Até mesmo a gigante Disney divulgou, recentemente, que vai começar a distribuir seus

você sabe?

Streaming é uma tecnologia que envia informações multimídia para dispositivos com acesso à internet. Assim, conteúdos diversos podem ser acessados online e sem a necessidade de download. Um grande exemplo de streaming é o site YouTube, que utiliza essa tecnologia para transmitir vídeos em tempo real.

filmes e desenhos via streaming na Disney+.

Mais inovação Com uma concorrência maior, a Netflix tem sentido, mais uma vez, a necessidade de aprimorar seus produtos. Seu desejo de crescer e não perder o posto de plataforma mais conhecida trouxe um grande incentivo para que ela começasse a produzir seus próprios conteúdos. A primeira série de produção própria foi o grande sucesso House of Cards, que estreou em 2013. Desde então, a equipe não parou. Foram diversos sucessos como ‘‘Stranger Things’’, ‘‘The Crows’’, ‘‘13 Reasons Why’’, sem esquecer os famosos filmes juvenis como A Barraca do Beijo, Alex Strangelove, Para Todos os Garotos que Já Amei”e muitos outros títulos. Não satisfeita e

querendo crescer ainda mais no ramo de produção, a Netflix anunciou, no início de 2018, que pretendia lançar, no mínimo, 86 novos títulos de filmes próprios até o final do ano. Loucura, né?

Mudança de comportamento O comportamento do consumidor, sem dúvida alguma, mudou com o surgimento dessas novas tecnologias. As pessoas, agora, preferem maratonar suas séries favoritas em casa do que enfrentar o trânsito para assistirem a um filme nos cinemas. As vantagens que a plataforma de streaming oferece, como ter todos os filmes que ama em um só lugar, qualidade máxima de áudio e vídeo disponíveis e ainda poder assistir aos conteúdos sem interrupção de

anúncios ou publicidade, são grandes motivos que estão preocupando as redes de cinema. Prova disso foi a produção audiovisual do livro Para Todos os Garotos que Já Amei. A autora, Jenny Han, contou para uma revista brasileira que escolheu a Netflix como produtora, ao invés dos estúdios convencionais, pela vantagem de lançar seu filme em 170 países ao mesmo tempo. Ela revela que queria que todos aproveitassem o filme na mesma hora e que pudessem comentar de qualquer lugar do mundo o que acharam.

Cinema e o público A empresa Cineworld, segunda maior rede de cinemas do mundo, sediada no Reino Unido, na tentativa de driblar o sucesso da Netflix e de outros serviços streaming

que têm surgido, anunciou que está criando uma nova experiência para seus clientes. O projeto desenvolvido envolve a instalação de três gigantes telões nas salas cinematográficas: um frontal e dois laterais. A ideia da empresa é permitir que o espectador se sinta no meio de uma ação, quase que parte dela. Dessa forma, a imersão do cliente no cinema pode ser mais aprofundada, além de ser oferecida uma tecnologia que ele não teria em sua própria casa. A verdade é que todos queremos ter, dentro do conforto do nosso quarto, as melhores experiências e que nos aproximam dos personagens. Mas, ter três telões em casa não para todo mundo, né? A solução é esperar que essa tecnologia chegue logo no Brasil.


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Você sabia?

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o vinil revive As histórias que os vinis nos contam Isabela Beloti

foto: ISABELA BELOTI

Apreciado desde a sua capa até as músicas que armazena, o disco de vinil nunca deixou de ser obra de arte para os apaixonados. Até o lançamento do LP (Long Play) em 1948, os discos, fabricados em goma-laca, traziam apenas uma música de cada lado. As composições eram tocadas à medida que a agulha do toca-discos percorria as ranhuras, onde as melodias eram guardadas. Com a chegada histórica dos LP’s, a inovação do vinil foi trazer mais tempo de música de cada lado, cerca de 20 minutos. Em 2018, com 70 anos, os discos provam que sua essência resiste às tecnologias no mundo da música. Os LP’s contam muitas histórias, como a de Rodrigo Borges, músico e compositor que nasceu em uma família de músicos. Seu pai, Marilton Borges, amigo de Milton Nascimento e integrante do Clube da Esquina, é um dos

maiores pianistas de samba jazz do Brasil e foi também diretor de rádio. Durante esse tempo, Marilton ganhou muitos discos dos compositores que, na época, lançaram seus álbuns. Ele inspirou em Rodrigo uma paixão incansável por música. Rodrigo conta que cresceu ouvindo a coleção do pai, que tinha cerca de 5.000 vinis. Seu disco favorito era o Thriller, de Michael Jackson, e as histórias que viveu junto ao disco são inúmeras. “Eu tenho saudade da época e dele (Michael) por fazer parte da minha infância. O Michael abriu as portas da MTV que era super preconceituosa, não abria espaço para artistas negros. A emissora tinha um posicionamento de segregação mesmo. E o Michael quebrou isso com Thriller porque não tinha como eles não tocarem, foi o álbum mais vendido da história. Acho que esse disco é a síntese ideal do Pop com uma produção perfeita. E, também, eu tenho essa memória

Parte do acervo de Edu Pampani na Discoteca Pública

afetiva, de menino, de criança fascinada com o clipe. É uma memória boa de infância”, completou. Artista nato, Rodrigo cita também sua fascinação pelas capas de LP’s. “Elas são objetos de desejo e obras de arte pra mim”, conta. Dentre suas capas favoritas, ele lista as do Michael Jackson, dos Beatles, Clube da Esquina e Secos e Molhados. Para Borges, além das artes incríveis, o legal das capas é também o tesouro que elas carregam: as fichas técnicas e o contexto de gravação das músicas. “A minha geração, principalmente quem gostava de música, é uma geração que decorava as fichas técnicas dos LP’s. Para mim, era fetiche”, brinca. Outro apaixonado pelos vinis é Edu Pampani. Colecionador dos bolachões, diretor geral e coordenador do acervo da Discoteca Pública de Belo Horizonte, Edu, que começou a colecionar aos 13 anos, conta que nunca abandonou sua paixão pelos dis-

O álbum Triller, de 1982, é o disco que marcou a infância de Rodrigo Borges

cos. Durante oito anos de sua juventude, ele comprava, em média, 12 discos por mês, e reuniu mais de 1.000 exemplares nesse período. Em 1985, aos 22 anos, mudou para Salvador e realizou seu sonho de criança: abriu sua própria loja de discos. Pampani lembra, com emoção, os encontros com os amigos após dias de espera pelo lançamento de novos discos. Sua diversão era

comprar um disco novo, reunir a galera no quintal de casa e passar o fim de semana ouvindo as músicas novas. Para ele, hoje não existe mais esse ritual, já que uma variedade de singles é lançada em plataformas de música diariamente e todos podem escutá -las em seus fones de ouvido. “As pessoas não param mais para, simplesmente, escutar música”, lamenta. Ele recorda também de quando os CD’s foram lançados. Na época, década de 90, o brasileiro parou de comprar os LP’s e a onda dos discos compactados começou. “Eu demorei a entrar nessa história do CD. Só que, como eu trabalhava com loja, com venda, eu fui obrigado a mudar meu jeito de trabalhar. Aí eu comecei a vender CD e os vinis perderam o valor total na época, não valiam mais nada”, desabafa. Mas, não satisfeito, Edu, que sempre foi apaixonado pelos LP’s, encontrou uma solução: o mercado internacional. “O gringo nunca perdeu o gosto, a paixão pelos discos”. Pampani afirma que os LP’s voltaram ao mercado brasileiro somente a partir de 2010. Mas,

com os pendrivers, streaming e a possibilidade de manter milhares de músicas em um único dispositivo, a fama dos vinis nunca mais foi a mesma. As pessoas não têm mais pilhas de LP’s, ou guardam os discos em prateleiras e caixas. De volta a Belo Horizonte, Edu abriu a Discoteca Pública, no bairro Santa Tereza. Ele armazena, atualmente, cerca de 17 mil discos de vinil, todos catalogados por estilo e depois por ordem alfabética. Seu objetivo, e grande desafio, é ter, pelo menos, um exemplar de cada disco já lançado no Brasil desde 1951. ”Eu acredito que vários artistas estão com suas discografias fechadas aqui. Só que tem muita coisa que está faltando porque os artistas têm muitas músicas espalhadas no compacto, nos discos de dez polegadas e nos LPs. Mas todo fonograma interessa para a gente”, explica. O espaço é aberto ao público e se tornou um refúgio para os amantes e colecionadores do vinil. Lá, todos encontram um um ambiente agradável para ouvir seus discos favoritos e desfrutar uma boa conversa.


15 Pechstein pelas ondas de Fitzgerald Você já VIU E OUviu?

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Mia Rodrigues Primeiramente é necessário compreender quem são esses dois grandes artistas – Max Pechstein e Ella Fitzgerald. Max foi um pintor e artista gráfico alemão do movimento expressionista – um estilo artístico de vanguarda, do século XX, em que os artistas retratavam os sentimentos e emoções subjetivos nos objetos. O artista também se influenciava pelo fauvismo, uma corrente artística francesa do início do século XX, que buscava qualidades expressivas usando cores fortes como o vermelho, amarelo e roxo. O artista iniciou sua carreira como aprendiz de um pintor decorativo da cidade Zwickau, no leste da Alemanha. Ele continuou sua formação na Academia Dresden de Belas Artes em 1903 e se formou com as honras

da escola, e desse modo, ganhou uma bolsa de estudo na Itália. Nos anos seguintes, especificamente em 1906, o pintor se juntou ao famoso grupo artístico alemão Die Brucke, que marcou o início da arte moderna e do expressionismo alemão. O grupo surgiu contestando o naturalismo e as tradições acadêmicas, buscando promover uma arte mais avançada, adequada àquela nova sociedade; ficou conhecido pelo entusiasmo criativo. Max também se destacou pelas pinturas que fez durante sua viagem à Ilha Palau, localizada no oceano pacífico, em que retratou um dos seus temas favoritos: o erotismo. Já a musa Fitzgerald foi uma memorável cantora da música popular americana e intérprete de jazz – até hoje é considerada a “The

First Lady of Song” (A Primeira Dama da Canção). Com sua versatilidade musical e sua genuína voz, Ella vendeu mais de 40 milhões de discos (desde a sua estreia na indústria fonográfica, na década de 30) e ganhou 13 Grammy’s – o principal prêmio do mundo da música. A cantora se destaca ao lado de grandes ícones da música, como Frank Sinatra e Louis Armstrong. Unindo a genialidade de Max Pechstein, na obra Pausa de modelo (1925) e a de Ella Fitzgerald, em algumas das suas harmoniosas sonoras, me predispus a fazer uma interpretação integrada. Arrisquei, mesmo que de maneira sintética (pois não temos tantos caracteres para discorrer), transcrever a essência dessas leituras que pulsaram dentro de mim por meio das suas artes.

FOTO: reprodução

Um artista expressionista alemão e uma primazia do Jazz, juntos, em uma única interpretação

Ella Fitzgeral, com a sua voz potente e flexível, é considerada a “Primeira Dama da Canção”

A modelo se inclina à uma sútil sensualidade e sentimental ociosidade em sua alcova – que é apalpada pelo ocaso. Um olhar desatento, distante. E de modo despretensioso, as afeições chegam provocando uma ambiguidade, cuja a profundidade e pungência são pontuadas pelas intensas cores. E toda essa intensidade também vibra, pela cinzenta fumaça impalpável e pelo latejante Jazz interpretado por Ella Fitzgerald – Night and Day. Esta sonoridade nos invoca a explorar as emoções identitárias e as feições da mulher enigmática que salta ao nosso olhar. Olhar esse, que queima juntamente com o cigarro (uma muleta para sua fugaz existência?), de

modo que não deixa claro o que a queima por dentro. Enquanto a cantora, ao pensar em seu amado noite e dia, se inflama ao ficar submissa à chama do pungente afeto que a traga. Assim como Ella em sua interpretação de Love for Sale, a modelo faz uma reflexão, um diálogo com a sua solidão. Achamos sentir (ou realmente cremos) os análogos sentimentos que relacionamos à sua expressão corporal frente ao vazio. Principalmente, quando a artista, em Undecided, adentra de maneira romântica e suave nos nossos ouvidos, juntamente com a imprecisão das nuvens cinzas carregadas de indagações – perfeitas para uma típica noite útil e reclusa.

FOTO: reprodução

Ambiguidade sentimental

Max Pechstein - Pausa de modelo, 1925. Expresionismo, Fauvismo


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CRÔNICas

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Do sexo masculino A frieza com que a lua tocava minha pele era da mesma intensidade que os olhos alheios me observavam enquanto eu caminhava na rua. Os bolsões de trevas tentavam me esconder daquilo que minha mente considerava uma ameaça – um julgamento, na verdade. Havia acabado de sair de um bar na rua Goitacazes, bem no Centro de Belo Horizonte mesmo, sabe? E, mesmo sendo nove da noite, a movimentação nas ruas era quase caótica, afinal, havia saído o resultado das eleições. Havia mesmo de beber um pouco de álcool com meus amigos e meu namorado, e, apesar do teor opressor que inundava as ruas, havíamos acabado de nos noivar. Muitos carros percorriam as entranhas de BH louvando a derrota do PT, digo, do comunismo... não. Na verdade quis dizer “derrota da corrupção” – acho que era isso mesmo que eles estavam dizendo. Essas frases estavam sufocando tudo a todo momento, deixando apenas um som abafado ditar as essências

de qualquer coisa que existisse. Tudo estava em sua mera existência enquanto os discursos de ódio eram acompanhados de convicções rasas. Tudo era muito exagerado e, por isso, eu e meu namorado decidimos ir embora. Ainda assim, tínhamos a convicção de que o álcool seria um ótimo ajudante para acalmar os nervos. Despedimo-nos de todos e fomos caminhando sobre algumas poças d’água até a Estação Central, mas sempre tentando nos camuflar sob os bolsões de trevas – como havia dito no início. Cada passo que dávamos era uma luta contra a vontade de entrelaçar nossos dedos para nos sentirmos seguros. O pânico iminente crescia em nossos corações, de modo a nos deixar sempre receosos de que alguém estivesse nos seguindo, mas, desta vez... estava. Posso arriscar dizer que o cheiro de nosso medo atraiu alguns animais peçonhentos? Pois, a campina de pedra nos cegava, enquanto as hienas nos cercavam aos poucos, sem nem ao menos perceber seus risos que surgiram em

meio a pauladas e pontapés. Conseguia ver alguns vultos gritarem o nome do candidato que havia ganhado com um sorriso animalesco na cara, umas sombras que devoravam nossas integridades enquanto ficávamos com o rosto no chão sentindo o tremor dos passos pesados de várias outras sombras chegando. Elas pareciam loucas – as hienas, ou sombras... o que você quiser categorizar. Aquilo percorria toda a minha luta de

anos, décadas, vidas. Vidas que passaram por mim em que meu eu sempre ressurgia das cinzas a fim de tentar provar a mim mesmo que a aberração não estava em mim. Toda a nata de arrependimentos saía em forma de sangue e contornava meu corpo, deslizando sobre o chão empoeirado do centro de Belo Horizonte – a mesma cidade que vivi minha adolescência, que tinha como lar.

Em meio a tantas agressões – ao corpo, à alma... – meu corpo parecia oco. Sentia como se fosse um tambor, vazio e barulhento, o barulho que incomodava tanto as hienas. Elas riam enquanto pisavam com toda a força da histeria coletiva que cegava a todos, como viseiras com spikes pontiagudos e enferrujados. Mas o que eu poderia fazer? Eu era um tambor – oco, sem identidade e barulhento.

Por fim, enquanto sentia o gosto de sangue deslizar minha garganta, as hienas foram embora rindo como nunca. Pude finalmente levantar o que restou de meu corpo para levar o que restou de meu amado, mas sempre com a vergonha incandescente por não ter conseguido revidar. Caco por caco, juntei nós dois e fui em refúgio para longe dos risos surdos. Ah, e caso não tenha se tocado, eu sou um homem do sexo masculino. Ilustração: DA VINCI

Arthur Scafutto

o amor não está à venda Rafael Lopes Depois de toda a euforia por causa de mais uma gravidez, Jade resolveu se esconder para que pudesse trazer seus filhotes à vida em paz. Ela, uma Yorkshire Terrier, cabreira e agitada, saiu correndo pela casa, descontrolada, procurando por todo lado um bom lugar para deitar. A família estava animada, esperando a chegada dos filhotes. Maria, sua dona, pulava louca pela

casa, pensando na grana que iria ganhar com a nova ninhada. Já no cair da noite, quando já estávamos dormindo, escutamos os gemidos da cadela. Será que agora ela estava se sentindo bem para trazer seus filhos à vida? Ou aquele era apenas mais um momento de desespero pela casa? Acordamos e vimos que ela tinha se jogado no tapete da sala e, ao lado dela, estavam dois pequenos filhotes. Eu

fiquei assustado com toda gritaria e animação; Pedro, o filho mais novo de Maria, correu para pegar os filhotes no colo; Maria, mais empolgada que nunca, saiu gritando pela casa: “Não encoste no meu pote de ouro!”. E foi essa a frase que não saiu da minha cabeça. Perdi o sono e minha mente ficou confusa, a fala da dona ecoando no silêncio. Será que a relação entre Jade e Maria se baseava somente na

ideia da dona de ganhar dinheiro em cima da reprodução da cadela? Onde nessa relação se encontra o amor, o carinho e a confiança? Percebi que a venda de animais domésticos hoje tem se tornado algo comum e rotineiro em muitas casas. Mas, como isso afeta os cães? E aquela antiga ideia deles serem os melhores amigos do homem? Essa prática pode ser também uma das causas do aumento

da venda e da criação ilegal de animas, um ato de crueldade. No caso de Jade, a euforia se dissipou quando perceberam que ela trouxe apenas aqueles dois filhotes ao mundo. Eu não consigo entender como uma pessoa pode dizer que ama seu bichinho de estimação, se ela o deixa de lado, não brinca mais e nem dá a mínima atenção quando a quantidade de filhotes não é a que ela esperava.

Vejo que Jade foi usada e subjugada para o benefício financeiro da dona. Não consigo relacionar o amor, um sentimento tão puro e legítimo, a uma transação tão egoísta e desleal como essa. Por que nos colocamos na posição de dar amor e carinho aos nossos bichinhos se apenas o que nos importa é o ganho material? Podemos nos considerar seres amáveis se colocamos nossos próprios amores à venda?


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