FOTO: NATANAEL VIEIRA
Caderno do!s - Teatro, cinema, humor na internet, resenhas e sinalizadores
Reportagem revela ângulos pouco conhecidos do Aglomerado da Serra. PÁGINAS 4 a 11
Cada ribanceira, uma nação Ano 30 • número 191 • Abril de 2013 • Belo Horizonte/MG
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Belo HorIzonTe, ABrIl de 2013
primeiras palavras
Impressão
Lugar de jornalista é na rua Dany Starling 8° PERÍODO
Edição: André Zuliani
A frase usada como título desse editorial é um dos mais velhos chavões utilizados nas escolas de jornalismo do Brasil. Dez entre dez professores se valem dela na hora de ensinar a seus alunos a arte de apurar. Conclamam, reiteradamente, sobre a necessidade de estar próximo da fonte, conversar olhando nos olhos, sempre atentos a gestos, expressões e ao que acontece ao redor. Mestres do jornalismo, como o norte-americano Gay Talese e o brasileiríssimo Ricardo Kotscho, repetem essa frase como se fosse um mantra, uma reza. Redações enxutas e meios de comunicação modernos impedem, contudo, que tal prática ocorra no jornalismo tradicional. A reportagem, verdadeira tradução do que se espera do trabalho de um repórter, está cada vez mais vilipendiada, aviltada, achincalhada. Jogada às traças, esquecidas por jornais, revistas e
meios eletrônicos. “Dá muito trabalho”, dizem uns. “Custa muito dinheiro”, justificam outros. “Ninguém quer ler textos tão longos”, lembram os preguiçosos. Bobagem. Sim, bobagem. A edição 191 do IMPRESSÃO está aí para provar isso. Que lugar de jornalista é na rua. E que uma boa reportagem sempre terá seu lugar garantido no panteão do bom jornalismo. Textos que exigiram apuração esmerada dos alunos, idas e vindas em busca de uma informação mais precisa, de uma fonte mais preparada. Sem contar o cuidado na hora de escrever, de pôr no papel todo o trabalho de investigação realizado ao longo de dias e dias. O IMPRESSÃO, pela primeira vez, apresenta dois grandes dossiês, um em cada caderno. No primeiro, André Zuliani, Jéssica Amaral e Natanael Vieira desvendaram o Aglomerado da Serra, autêntica moldura de Belo Horizonte. No DO!S, coube aos alunos Camila
Freitas, Guilherme Pacelli e Hiago Soares ir em busca de uma resposta para a polêmica existente entre o “teatro comercial” e o “teatro de experimentação”, há anos discutida por estudiosos, críticos e fãs da arte dramática. Além da dedicação dos alunos na hora de apurar e redigir, é preciso salientar a sensibilidade evidenciada nas fotografias que ilustram as matérias. Desde as capas, quando não pensamos duas vezes na hora de ousar e apresentá-las de maneira pouco convencional. O dossiê do Aglomerado, cujo título foi inspirado na canção “Estação Derradeira”, de Chico Buarque, rendeu imagens tão belas que foi preciso aumentar o número de páginas para que esse material não se perdesse impunemente. O trabalho desenvolvido pelos alunos que produzem o IMPRESSÃO faz jus às palavras proferidas pelo professor Edmundo de Novaes Gomes, em seu discurso de homenagem às turmas que, no último
mês de março, colaram grau em jornalismo no UniBH. “Quando acharem que podem vos persuadir com soluções fáceis e cretinas é o não que encontrarão (...). Não à conversa fiada quando não é hora dela, não à falsidade e à fraude, não ao boato e à fofoca, não ao insulto e à injúria, não à malevolência e à impiedade, ao preconceito e à intolerância, ao fingimento e à iniquidade, à comunicação que não faz nada além de iludir, não ao jeitinho que nunca define a coisa inteira, não à corrupção que infesta o País e não também à arrogância que é sempre inimiga da boa vontade. A tudo isso, não. Por mais infernal e difícil que seja, não. Pois, se na hora decisiva a palavra vos faltar, parodiando o Cristo de Lucas, só restará pedir às pedras que clamem (...). Só assim, depois de dizer e gritar tantos difíceis nãos, só assim vós podereis olhar de frente para o espelho, ao final dessa caminhada que começa mesmo agora e dizer: sim, sim, sim!" ARQUIVO IMPRESSÃO
eXpedIenTe
REITOR Prof. Rivadávia C. D. de Alvarenga Neto INSTITUTO DE COMUNICAÇÃO E DESIGN Prof. Rodrigo Neiva COORDENAÇÃO DO CURSO DE JORNALISMO Prof. João Carvalho
LABORATÓRIO DE JORNALISMO IMPRESSO EDITORES Prof. Leo Cunha Prof. Maurício Guilherme Silva Jr. PRECEPTORA Profa. Ana Paula Abreu (Programação Visual) ESTAGIÁRIOS Camila Freitas Guilherme Pacelli Jéssica Amaral MONITORES André Zuliani Dany Starling LAB. DE CONVERGÊNCIA DE MÍDIAS EDITORA Profa. Lorena Tárcia Parcerias LACP – Lab. de Criação Publicitária Laboratório de Convergência de Mídias Laboratório de Fotografia Ilustrações Izaías Guerra Modelo da capa do Caderno DO!S André Zuliani IMPRESSÃO / TIRAGEM Sempre Editora 2000 exemplares
eleito o melhor Jornal-laboratório do país na expocom 2009 e o 2º melhor na expocom 2003
O jornal IMPRESSÃO é um projeto de ensino coordenado pelos professores Maurício Guilherme e Leo Cunha, com os alunos do curso de Comunicação Social - Habilitação em Jornalismo - do UniBH. Mesmo como projeto do curso de Jornalismo, o jornal está aberto a colaborações de alunos e professores de outros cursos do Centro Universitário. Espera-se que os alunos possam exercitar a prática e divulgar suas produções neste espaço. Participe do IMPRESSÃO e faça contato com a nossa equipe: Rua Diamantina, 463 Lagoinha – BH/MG CEP: 31.110-320 Telefone: (31) 3207-2811 Email: impresso@unibh.br
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Visão crítica
Impressão
Belo HorIzonTe, ABrIl de 2013
A infelicidade de Feliciano Lúcia Miranda Shirley Assunção
MONTAGENS:GUILHERME PACELLI
7º Período
Barbara Goulart Cotrim 6° PERÍODO
Edição: Dany Starling
Já faz algum tempo que nenhuma pessoa pública rende tanto assunto e discórdia como Marco Feliciano, eleito presidente da Comissão de Direitos Humanos. As indagações e manifestações populares permeiam justamente a incongruência do cargo com tal personagem em uma mesma sentença. Muitos questionam sobre como é possível alguém com tantas declarações cruéis chegar a tal posto, outros tantos protestam contra o pastor, afirmando que ele não representa essa nação plural, repleta de contrastes. Tem sido grande a pressão pela saída do racista-homofóbico-metrossexual Feliciano do poder. E esses são termos ainda pouco chulos. Andam dizendo muito mais a respeito do lunático gospel que assumiu nada mais, nada menos, o posto mais importante dos tratados a favor dos direitos humanos no Legislativo brasileiro e que, precipuamente, deveria lutar, justamente, em prol das diferenças. Só que, ao contrário de unir, Feliciano vetou o acesso do povo ao parlamento; ao invés de ouvir, fala aquém de um catedrático de teologia; e no lugar de enxergar, bom, ao que tudo indica, prefere pinçar as sobrancelhas. E como se não bastasse todo o escárnio, ainda ludibria a crença da sociedade quando declara que os desígnios divinos aferiram sua fúria nos tiros que mataram John Lennon e no ‘manche’ que fulminou o grupo Mamonas Assassinas, segundo ele, pelo modo como desafiaram Deus. Com base nisso, se a voz do povo é mesmo a voz de Deus, ele deveria, então, pensar em tirar os vidros do teto e blindá-lo de concreto,
assim como o carro importado e seu caro paletó. Mas, dia após dia, ele vai ficando, como que vencendo uma batalha a cada 24 horas, travada pelo orgulho de exercer tal posto, pelos minutos de fama que parecem não ter fim. E os manifestantes deitam no chão, se desnudam em passeatas, abaixo assinam tudo o que há de possível, embora nada pareça deter tal soberba do homem nascido há 41 anos, em Orlândia, cidadezinha nas cercanias do interior paulista. E, se não bastassem tantas declarações pregressas à eleição, ele ainda fomenta a fúria dos povos ao questionar a imprensa antes de uma declaração – “O cabelo ‘tá’ direito?” –, reverenciando-se, e evidenciando a excessiva preocupação com o visual. Sem pensar o quanto isso atribui a seu estigma duplo peso e triplo asco. Fato é que, em meio a tantas notícias e revoltas, se faz possível notar como o brasileiro tem reagido melhor, e mais agressivamente, à afronta do poder público. Milhares de pessoas têm tomado as ruas, organizando-se em protestos, articulando-se nas mídias sociais e ido além nas manifestações para exonerar o pastor que foi eleito por muitas outras ovelhas que seguem seu exemplo. Que sirva de despertador social, e de lição a todo aquele que acredita que somos tolos o suficiente para deixarmos pra lá, para os deixarmos lá. Dessa forma, caro leitor, é que é possível mudar a história. Em forma de ação, de manifestação, de não aceitação e tantos outros nãos que se fazem presentes na indignação. E pensar que ele saiu de Orlândia querendo ganhar o mundo... Pois deixa estar!
Smoking Gun ou Bullets?
O sol argentino brilhou mais forte
Uma boate na Savassi, região Centro-Sul de Belo Horizonte, decidiu alterar o tema principal de uma festa intitulada “Smoking Gun”, que promoveria no mês de março, após repercussão negativa na mídia e nas redes sociais. O evento, anunciado na página do Facebook da casa de shows Velvet, foi visto com maus olhos, pois ia contra as atuais leis antitabagistas e campanhas contra o fumo, oferecendo a liberação de cigarros dentro do local. Porém, o mesmo canal usado para a divulgação foi o algoz da Velvet. Por lá, depois de vários jovens e algumas empresas de comunicação mandarem seu recado, veio a mudança de “Smoking Gun” para “Bullets”. É doce ou não é?
O mundo parou para ver a fumaça branca no dia 13 de março e, finalmente, o novo Papa foi escolhido. O anúncio da nacionalidade do pontífice, bastante aguardado, foi frustrante para os brasileiros. O novo papa, aquele que comandará a Igreja Católica pelos próximos anos, é argentino. A rivalidade Brasil-Argentina, eterna no futebol, (vide a disputa Pelé-Maradona e Messi- Neymar), saiu agora dos gramados e ganhou um novo palco, o religioso. Foi como perder uma final de Copa do Mundo para os argentinos. O que nos resta é desejar ao Papa escolhido boa sorte, engolir o orgulho e aceitar que, no final, não deu samba, deu tango.
Suicídio a menos
Descanse em paz,
de um metro
cabrón!
Depois de 38 anos, a família de Vladimir Herzog recebeu, em março, o novo e legítimo atestado de óbito do jornalista, torturado e morto nas dependências do DOI-Codi, durante a ditadura militar. No documento anterior, avaliada pelo Exército em 1975, a causa da morte foi dada como asfixia mecânica por enforcamento, indicando suicídio. O atual e real atestado apresenta, como causa da morte, lesões e maus-tratos sofridos durante interrogatório. É como diz o ditado: “Antes tarde do que nunca”. Após pífia montagem de um suicídio fictício, o Estado tenta reconhecer o que já era de conhecimento até de um garoto de 10 anos: ninguém se suicida a menos de um metro do chão!
O líder socialista venezuelano Hugo Chávez, morto no dia 5 de março, não mais terá seu corpo embalsamado. Parte-se do pressuposto de que houve uso abusivo de formol, componente químico utilizado, principalmente, para conservar cadáveres. Mesmo morto, o presidente da Venezuela queria continuar entre nós. A natureza, porém, é sábia e não permitiu. Embora quase um ditador, Chávez era adorado pela maioria da população, o que, contudo, não dá a ele o direito de querer continuar “vagando” por aqui. Os venezuelanos devem compreender que ele precisa descansar e é importante deixá-lo ir. Seu reinado acabou. Vá, Hugo Chávez. Descanse em paz e se comporte, onde estiver.
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Belo Horizonte, dezembro de 2012
Tramas contempor창neas
Impress찾o
dossiê
Impressão
Belo HorIzonTe, ABrIl de 2013
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“Olhe bem as montanhas” Natanael Vieira 7° PERÍODO
Edição: Dany Starling
“Muito prazer, sou o Aglomerado da Serra. Aglomerado é isso que, no Rio de Janeiro, chamam de complexo, como o Alemão ou a Rocinha. E sou mesmo muito complexo. Um emaranhado de becos, ruas estreitas, algumas mais largas, praças meio tortas, meio sujas. São meu sistema nervoso. E bota nervoso nisso. Para alguns, possuo 50 mil moradores; para outros, 60 mil. O que importa? Acho que ninguém está tão interessado assim em saber quantas pessoas há em mim. A depender da página da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), acessada pela internet, terei seis ou oito vilas. A depender dessas mesmas páginas, a PBH vai dizer que tenho 27 ou 33 mil habitantes. O Censo 2010 diz que são 34.510. Não me conhecem, não me conheço. E não sou pequeno. Para quem chega pela entrada Norte da cidade, pela Avenida Antônio Carlos, logo me mostro. Chegue a BH e olhe para a Serra do Curral. Quadrada, ao mesmo tempo harmoniosa. Emoldura a antiga cidade jardim. Depois, se olhar um pouquinho para a esquerda... ‘O que é aquilo?’ Aquilo, minha gente, sou eu! O Aglomerado da Serra. Nasci no início dos anos 1960 e me intensifiquei nos anos 1980. Em meados dos anos 1970, a Serra do Curral começou a ser desfigurada pela atividade extrativista das Mineradoras Brasileiras Reunidas (MBR). A opinião pública pressionou e esse patrimônio paisagístico natural e simbólico da cidade acabou protegido pela criação da reserva do Parque Municipal das Mangabeiras, em 1966. Um catalisador para isso foram os adesivos colados nos carros que disseminavam o slogan criado pelo artista plástico Manfredo Souza Neto: ‘Olhe bem as montanhas’.
Alto e gordo, numa continuação da Serra do Curral, sou vizinho da Fundação Benjamin Guimarães (Hospital da Baleia), dos bairros Mangabeiras, Paraíso, Santa Efigênia, São Lucas e, claro, da Serra, na região Centro-Sul. Segundo a Urbel (sigla para Companhia Urbanizadora e de Habitação de Belo Horizonte), tenho quase um milhão e quinhentos mil metros quadrados. É preciso outro Manfredo Souza Neto para você olhar bem as montanhas? Pois bem, vou mostrar uma coisa: um raio-x, a imagem de um velho alto e gordo. Vamos falar das minhas filhas, digo, das minhas vilas. São elas: Nossa Senhora de Fátima, Chácara, Del Rey, Marçola, Fazendinha, Novo São Lucas e a maior, Santana do Cafezal. Há também microrregiões entre as vilas, como a Primeira, a Segunda e a Terceira Água, que têm esses nomes em virtude dos cursos d’água que nascem nos altos dos morros e passam por mim. Um senhor chamado Google diz que toda a minha área é um mesmo bairro, o Vila Cafezal. Essa gente sabe mesmo confundir as coisas. O nome que me deram é, na verdade, o título de uma das favelas constitutivas do meu sistema, do meu complexo, do aglomerado que sou. Seguindo com o raio-x... Abrigo cinco escolas de ensino fundamental, uma delas fica numa confluência entre várias vilas. O local é comumente chamado, por aqui, de ‘Volta’. Trata-se de confluência entre as ruas Serenata, São Sebastião, Bandoneon, que se segue até a Dr. Camilo. Como essa articulação me dá problemas! Um joelho de velho. Experimente passar em horário de pico. O mesmo que se vê na Cristiano Machado ou na Pra-
ça Sete: uma confusão! É uma área de comércio efervescente. Drogarias, supermercados, açougues, sacolões, padaria, academia, sorveterias, restaurante, vestuário, calçados e, claro, muitos salões de beleza. Ônibus e vans escolares entrando onde caminhões e caminhonetes tentam sair, bicicletas e motos onde estariam pedestres. Carros se enfileiram de saída para o trabalho. Um verdadeiro nó. Mas como todo nó, acaba por se desfazer. Vamos levando nossas crianças às escolas e a nós mesmos para... Onde mesmo? Quase tudo se acalma e o dia recomeça. Abrigo, também, cinco centros de saúde. E, se querem saber, insuficientes. Capengam, minha gente. São motivo de uma das minhas dores de cabeça. E onde me remediar? O posto do Cafezal, por exemplo, ficou inativo – sobre protestos e manifestações – por cerca de três anos. Sem explicações aprofundadas que dissessem coisas diferentes do sacado ‘é para reforma’. Enfim, foi reaberto. Coleta de lixo, varrição e capina também não estão em todas as vilas, mas isso tem melhorado. Muitos moradores foram empregados nessa tarefa. Igrejas? Muitas. Católicas, pentecostais, quadrangulares, testemunhas, cristãs do Brasil, metodistas, batistas, e por aí vai. Cada qual com sua missão, caminhando junto a seus fiéis. Há também grupos espíritas, como a Associação Christopher Smith, e os cristãos em ação conjunta, caso do Jovens Com Uma Missão (Jocum). Muitas prestam serviços que deveriam estar n a
esfera do poder público, outras fazem coro às reivindicações acerca da inoperância. Não posso me esquecer: temos iniciativas como a Organização Não Governamental ‘Projeto Itamar’. A ONG trabalha a cidadania por meio do esporte e da cultura, busca a integração entre as comunidades. A sede do Projeto abriga uma locadora de filmes (única fonte de renda, os fundos são revertidos na compra de bolas, coletes de futsal, quimonos e troféus para campeonatos), um mural com fotos e outros registros de diferentes momentos da ONG e do Aglomerado, e uma biblioteca comunitária, que reúne Daniel Defoe, Ariano Suassuna, Aluísio Azevedo e Carlos Heitor Cony. Este jornal seria pequeno para falar desta cidade que sou. E, de fato, um raio-x apenas não é suficiente para dar conta do meu complexo e nervoso sistema. Gostaria, porém, de levantar uma questão. Comentei há pouco acerca de comércio e da presença das igrejas no Aglô. O que essas instituições, ou empresas, dizem delas, de suas presenças em mim? A que vieram? Recorro, novamente, ao caríssimo Manfredo Souza Neto: “Olhe bem as montanhas; olhe o Aglomerado da Serra.”
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Dossiê
Belo Horizonte, ABRIL DE 2013
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Em busca da Natanael Vieira 7° PERÍODO
Edição: Dany Starling
Muito prazer, sou Natanael Vieira, morador do Aglomerado da Serra. Estudo jornalismo no Centro Universitário de Belo Horizonte – UniBH e integro a equipe de repórteres deste dossiê. Recebemos a missão de falar do lugar onde vivo desde 6 de outubro de 1992. Cada um segundo a sua ótica, ao seu modo de expressão. Não é fácil, mesmo para mim. Mas aí vai. O primeiro olhar que se lança ao Aglomerado da Serra revela confusão. Falo isso por ter percebido a reação de vários amigos que moram em outros lugares, às vezes bairros completamente estruturados segundo o padrão que Aarão Reis adoraria ver circunscrito aos limites do “Projeto Belo Horizonte”. Mas a cidade precisava abrigar, também, quem a construiu. Como no plano não havia lugar para eles, foram se arranjando da maneira que conseguiam. Esse olhar não está de todo errado. Você leu acima sobre a complexidade das vias e das relações que nelas se constroem. Os morros são resultados dos anseios elitistas da nova capital. Anseios que não previam pobreza e sequer sabiam de que modo lidar com ela. As primeiras invasões foram registradas dois anos antes de Belo Horizonte ser inaugurada. E os primeiros registros de ações para coibir a proliferação de favelas remontam aos anos de 1898 e 1900, quando a administração expediu ordem de demolição de barracos improvisados (madeira, lona, telas de zinco ou amianto), as chamadas “cafuas”, em regiões próximas à Lagoinha, São Cristóvão e a morros nas imediações da capital da Contorno – cujo primeiro nome foi Avenida 17 de Dezembro. Com o passar do tempo, os assentamentos tomaram corpo e
fugiram ao controle do poder público. Eram novas cidades sendo edificadas ao redor da urbe planejada. A Contorno perdeu seu sentido original. Os locais periféricos construíam suas próprias identidades e a avenida passou a contornar apenas velhos ideais, um anel abraçando uma cidade fadada a perder seu ar elitista. Contudo, meu tema central não é a questão fundiária, territorial, mas um âmbito mais abstrato, mais relacionado ao aspecto da identidade. Ao contrário de boa parte dos morros cariocas, aqui no Aglô as religiões influenciadas pelas raízes africanas, ou destas originárias, não foram preponderantes para a formação do mosaico religioso local. Antes, a igreja católica e as denominações evangélicas se mostraram mais presentes. Arraigaram-se. A Paróquia de Santana, no bairro da Serra, data de 1930 e era a responsável pela Comunidade Nossa Senhora Aparecida, uma das mais antigas do Aglomerado. Quanto à primeira evangélica, não se tem notícia. Estas são incontáveis. Até a década de 1990, aqui perto da minha rua eu contava quatro. Hoje, são duas, mas, no morro inteiro, seria uma tarefa para o IBGE. Jesuítas modernos
Reginaldo José do Nascimento está barbudo, fazendo jus à imagem construída de Jesus. Não à toa: ele é o Cristo a ser crucificado na Sexta-Feira Santa. Pelo menos no teatro da Paixão. Ele conta que está ensaiando há pelo menos dois meses e todos se empenham, de corpo e alma, para que tudo dê certo. Reginaldo participa assiduamente da Comunidade Nossa Senhora Aparecida, uma das cinco igrejas que compõem a nova Paróquia de Belo Horizonte, a Bem-Aventurada Dulce dos Pobres. Até meados de 2012, as Comunidades (igrejas católicas com congregação relativamente menor)
do Aglomerado da Serra – Santa Terezinha, São Miguel e as Nossas Senhoras Aparecida, Rosário, Conceição, Lourdes e Fátima – pertenciam a diferentes Paróquias nas imediações do morro, nos bairros de classe média e classe média alta. O que se vê agora é uma rede de igrejas sem uma matriz. Os templos católicos do Aglô em nada se assemelham às grandes catedrais pelo mundo, ou mesmo à Catedral da Nossa Senhora da Boa Viagem, em estilo neogótico, no bairro Funcionários, ou ainda, à Igreja São José, em estilo manuelino, no centro da capital. Alguns não tão pequenos, mas nada que assuste ou quebre a relativa uniformidade das casas sem reboco e sem pintura, em sua maioria.
“A Contorno perdeu seu sentido original. A periferia construiu sua própria identidade e a avenida passou a contornar apenas velhos ideais” Reginaldo diz que a Paróquia de Santana, no bairro Serra, nunca teve relação direta e contínua com a Comunidade Nossa Senhora Aparecida. “Isso, a meu ver, contribuiu para a busca de uma missão própria, com base na identidade que já temos”, analisa. No caso do teatro, por exemplo, ele conta que o padre responsável pela administração da Paróquia, Wagner Calegário, sabe do que está acontecendo de maneira geral, mas prefere não interferir, e incentiva os fiéis a caminharem por si.
A visita ao grupo Jovens Com Uma Missão (Jocum) foi num dia de muita chuva e vento – o que deu um pouco de medo, pois vi uma torre de transmissão de energia no terreno. Uma senhora que trabalha na Casa Luzeiro foi quem emprestou a chave do portão. Ela estava de saída e, mesmo sem saber a quem cedera a chave, recomendou que desse a volta e entrasse pelo outro lado. “Não tem problema”. Assim o fiz. Marcelo Henrique também usa barba, mas não tem a ver com teatro, antes porque gosta. O que não gosta é do termo “coordenador”. Todavia, é mais ou menos essa a função que desempenha. A instituição conta com missionários de vários países e denominações protestantes. A unidade local é chamada de Casa Luzeiro e existe, desde 1992, na Vila Novo São Lucas (conhecida como Favelinha). Um casarão com marcos e janelas em madeira densa e outras instalações no terreno. O trabalho é desenvolvido, principalmente, com jovens (com ênfase na evangelização, treinamento missionário e desenvolvimento social) e senhoras. Estas estão, no momento, sem condições para serem atendidas. Faziam hidroginástica, mas o equipamento da piscina estragou e o conserto é bem caro. Marcelo disse que nunca tiveram problemas com a torre de transmissão. Fiquei mais tranquilo. Ele logo nos explicou que a missão à qual a instituição se dedica – e que conta com outras sete casas em Belo Horizonte, todas mantidas com ajuda de amigos e doações da sociedade – surgiu a partir do sonho de um holandês, Loren Cunningham, em 1960. Não somente um sonho no sentido de desejo ou anseio, mas um sonho de fato, uma visão enquanto dormia. As missões de Cunningham chegaram ao Brasil, em Contagem, 15 anos após a fundação do Youth With A Mission. Suas atividades fotos:natanael vieira
Dossiê
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Belo Horizonte, ABRIL DE 2013
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feli(z)cidade são traduzidas num versículo do livro de Marcos que diz: “Ide por todo mundo e pregai o evangelho a toda criatura”. Myriam Heilbuth Vercoza nos atendeu na Associação Christopher Smith, no bairro Santa Efigênia. O sobrenome complicado, de origem alemã, não faz jus ao modo como esta senhora lida, há 18 anos, com a creche da Associação que atende a crianças carentes do morro. Ou melhor, “Criança é criança, não existe criança de comunidade ou criança rica. Criança tem direito à educação”. É a visão de Myriam, que se desloca do Anchieta, passando por dentro do Aglomerado, até Santa Efigênia, sem cobrar nada por isso. “A doutrina espírita ensina a viver olhando sempre o próximo. Minha missão é tomar conta da creche”. Mas ela lembra que antes dessa incumbência, também participou das reuniões da Associação com moradores num espaço na Vila Santana do Cafezal. Não participa mais por não conseguir fazer esforço físico. Ela afirma que o trabalho dos espíritas é sempre em comunidade, em grupos, mas sem a intenção de “espiritizar ninguém” (sic). Myriam conta que, em determinada ocasião, quando falava dessa maneira de trabalhar a um jornalista, percebeu que ele deixava escapulir um riso de vez em quando. “Ele dizia que o foco da matéria estava em mim. Então eu disse que ele não conseguiria terminar. Aqui, nós fazemos, nós trabalhamos. Nós. Não apenas eu”, recorda. Depois de muita conversa, percebi que já era hora de ir. Na saída, um notebook começou a emitir um alerta. Parecia que era de bateria fraca. Myriam olhou e disse que não sabia mexer naquele, que não tinha muita intimidade com computadores portáteis, só no que tinha em casa. Em seguida, revela que comprou um tablet e está tentando aprendendo a usá-lo, do
alto de seus 68 anos. Estes missionários agem com base em conhecimentos próprios e nos ensinamentos de suas religiões. Reginaldo José do Nascimento chegou ao local de nossa entrevista com uma vela na mão. Ele acabara de participar da procissão de outra igreja. “Gosto de ir para prestigiar. Iremos nos encontrar na Comunidade Nossa Senhora de Fátima para uma celebração maior. Antes, cada uma faria sua celebração em separado”. Marcelo Henrique viu seus pais traçarem seus caminhos na missão cristã do Jocum, para onde também se direcionou. “As coisas aqui são voluntárias. Respeitamos a identidade da comunidade local. Todos são bem vindos, sem distinção de religião”, pontua. Ele vê com bons olhos a entrada de pessoas “estrangeiras” em locais em nome de uma missão. Missões comerciais?
Outro olhar lançado sobre o Aglô pode revelar um tipo de missão diferente. São investidas comerciais. Exitosas pelo aumento do poder aquisitivo das classes C, D e E. Bares, mercearias, lanchonetes e toda a sorte de estabelecimentos. Todos exibem plaquinhas e cartazes que indicam a aceitação de cartões de crédito – e todas as bandeiras, praticamente, são aceitas. Pouco se usa o caderninho com anotações. Um corte de cabelo a R$ 10 pode ser pago com cartão de crédito ou débito. Eu que o diga, já o fiz quando estava sem notas na carteira. Se por um lado não há lojas de grandes redes varejistas (supermercados, vestuário, drogarias, entre outros tipos), por outro, as que existem encontraram meios para suprir a necessidade de consumo da população local. Uma delas é, como mencionado, a aceitação de cartões. Algumas lojas, como as de móveis, possuem linhas de crediário próprias. Tornou-se im-
produtiva a venda dos pequenos comerciantes apenas a dinheiro. O importante é não perder o cliente, ou melhor, o freguês. Entretanto, nos arredores do Aglomerado, é muito comum encontrar grandes supermercados, hipermercados e shoppings. Não sobem o morro, mas o morro vai até eles. Outra missão que tem se mostrado bem sucedida diz respeito às empresas de televisão por assinatura. Ande por qualquer rua ou beco. Se seu intuito for contar dez antenas, em dez minutos, será cumprida com louvor. Se o objetivo for contar todas as residências nas quais constam tais antenas, precisará de bons dias para os cálculos. Não faço, entretanto, uma análise aqui de cunho qualitativo da programação que mais agrega audiência na região. Ande, de novo, pelas ruas e becos, entre 18h e 22h, e atente aos sons que saem das janelas. Por experiência própria, posso dizer que, seguramente, você ouvirá as músicas-tema das aberturas das novelas. O que não é algo, categoricamente, negativo. Sabemos, é cultural. Enquanto “passeávamos” pelo morro, mostrei aos colegas Jéssica Amaral e André Zuliani algumas lojas mais específicas. Numa delas, de moda feminina, você encontra peças de mesmo valor e aparência daquelas vendidas na Savassi. Quem é cliente dela não tem vergonha de pedir para parcelar. Quer ter. Próximo a essa loja, uma especializada em moda evangélica. Sim, existe! A loja, na verdade, mescla roupas mais discretas, sem decotes arrojados ou vestidos curtos, a roupas ousadas (mas não tanto). Nesse sentido, o consumidor é que é evangélico. A moda é quase a mesma. Questões públicas
O processo de produção da reportagem coincidiu com um período conturbado no Aglomerado.
Um homem foi assassinado a tiros durante um evento na Praça do Cardoso e outras 13 pessoas ficaram feridas. No dia seguinte, durante uma intervenção da Polícia Militar para investigações e formação de cerco para localizar suspeitos, um jovem foi baleado na perna pelos PMs. Os moradores e parentes da vítima que estavam no local não permitiram que os policiais levassem o ferido ao hospital e o fizeram num carro particular. Foi difícil conversar com as pessoas, perguntar nome e o sobrenome. Mesmo sendo morador, simples perguntas soavam como investigação. A câmera fotográfica intimidava, despertava olhares desconfiados. Não é de se espantar. Os moradores vêem desde sempre a confusão que os jornalistas fazem quando da apuração de matérias no morro. Dizem que o crime foi numa vila quando, na verdade, foi em outra. Mostram imagens que, nem sempre, condizem com o que se vê no cotidiano do local. É preciso mais que uma matéria, mais que um dia para entender as missões particulares dos que passam por estes becos. Ter uma missão, de maneira geral, significa abdicar de si ou de algo em favor de alguém ou mesmo de um coletivo. Pude perceber, nos dias mais intensos da apuração, que os missionários – sejam religiosos, sejam comerciais – encontram-se em diferentes níveis de comprometimento com suas atividades. Algumas missões estão em ascensão, outras em declínio. Missões, missionários e moradores se misturam no ambiente “sub-urbano” do morro e criam, sem muito alarde, novas formas de atribuição de sentido àquilo que vivem. Não é preciso forçar. Na verdade, é preciso observar. É um processo contínuo de busca e reconstrução do que é ser morador do Aglomerado da Serra. Mas é também um processo de aceitação do outro, do que é diferente em cada um.
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Belo Horizonte, ABRIL DE 2013
Longe da geografia oficial, o Aglomerado possui traços do interior Textos e fotos de Jéssica Amaral 5° PERÍODO
Dossiê/Ensaio
Impressão
No sobe-e-desce, crianças brinca o vento o
Ruas e lojas possuem um jeito todo próprio de ser, repleto de prosas, curvas e acontecimentos
Entre natureza e contruções do homem a serra emoldura o belo horizonte
Nas quebradas esculpidas pela história, as relações se entrelaçam
Dossiê/Ensaio
Impressão
Belo Horizonte, ABRIL DE 2013
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am, a música toca, as vozes se misturam, orquestra a vida
O domingo ecoa nos becos. Pelos raios da manhã, a Serra acorda
O ágil e o pacato se misturam e fazem parte da mesma matéria
Placas indicam nomes e rumos de uma caminhada pouco conhecida
Becos, vielas e escadas. Suas linhas costuram o caminho das casas
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Belo Horizonte, ABRIL DE 2013
Dossiê
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O interior é logo ali Costumes e vida pacata aproximam o Aglomerado da Serra das pequenas cidades fotos:natanael vieira
O autor da reportagem observa a vida no morro, dos cidadãos às antenas de TV
André Zuliani 8° PERÍODO
Edição: Dany Starling
Aos olhos de quem está aqui embaixo na cidade, a impressão que se tem do Aglomerado da Serra é a de um paredão habitado. Quando se está lá, é perceptível e bastante expressiva a quantidade de ruas íngremes e inúmeras vielas, escadarias, becos e, sobretudo, passadiços que fazem parte do itinerário dos moradores. O que podemos perceber é que – não importa a direção para onde você vá – existem apenas duas opções: subir ou descer. Essa rotina “eletrocardiogrâmica”, na qual os moradores caminham do sopé do Aglomerado até seus lares e o trajeto inverso, das casas até o trabalho, faz com que as panturrilhas sejam a parte mais definida de seus corpos. Nascido e criado em uma cidade do interior – Lavras, localizada no sul de Minas Gerais –, com “intercâmbio” aos fins de semana e férias letivas na fazenda de familiares, sempre tive vínculos de amizade com várias pessoas, desde colegas de escola a famílias de empregados das fazendas de tios, avós e do meu pai. O contato e a convivência com gente diversa em todos os sentidos, mas, principalmente, com indivíduos que prezam pelo diálogo presencial e intimista, muitas vezes sentado na calçada ou escorado em uma janela da casa de um conhecido, me remeteu à ideia de déjà vu, ao caminhar pelas vielas sinuosas do Aglomerado da Serra. Casas, lojas, barracos, mercearias, salões de beleza, igrejas evangélicas, barbearias, locadoras de filmes foram construídos, em sua maioria, à moda de cidades do interior. Aquela famosa residência comercial: comércio embaixo e residência em cima ou fachada de loja e interior de casa. O que quero dizer é que a arquitetura do Aglomerado foi desenvolvida e efetuada, ao modo e molde dos moradores, com único
objetivo, o beneficiamento do indivíduo. Mas veja bem, do indivíduo pessoa/ser humano, na essência da palavra, não do individualismo. Essa cidade que há lá em cima possui uma simetria arquitetônica tão peculiar que propicia a criação de laços e vínculos afetivos. Vide o abundante número de pessoas conversando pe-
“Essa rotina “eletrocardiogrâmica”, na qual os moradores caminham do sopé do Aglomerado até seus lares e o trajeto inverso, das casas até o trabalho, faz com que as panturrilhas sejam a parte mais definida de seus corpos.” las ruas, idosos sentados em cadeiras de plástico e tamboretes de madeira no passeio. Moradores almoçando com pratos em mãos sentados no meio fio e proseando com o vizinho de frente. O cheiro de feijão fervendo e carne assando, dependendo da esquina que se dobra, crianças brincando pelas sinuosas e tortuosas vielas e curiosos nas janelas a assuntar o que acontece na vizinhança. Sem esquecer, claro, das constantes janelas abertas para a rua, sem grades, com uma televisão ligada ao fundo. Quando não, o companheiro é o rádio, não apenas do morador, mas de quem passa na rua. Isso “é cagado e cuspido paisagem de interior”. (Essa
expressão é derivação popular de origem bélica, em carrara esculpido. A versão que empreguei é utilizada pelo poeta paraibano Jessier Quirino no poema Paisagem de interior, que descreve as minúcias da vida interiorana). Vizinhos e conhecidos
A vida no Aglomerado é ditada por uma máxima do interior que diz: “Todo mundo conhece todo mundo”. Essa classificação concede aos seus moradores uma vida singular daquela que temos. Aqui, muitas vezes, não conhecemos nosso vizinho de porta, não sabemos quem nos acompanha no elevador. Em “nossa” cidade, arquitetura e engenharia são idealizadas em benefício às máquinas e, sobretudo, dos automóveis. As vias são largas, longas e sinalizadas. Lá no Aglomerado é completamente o contrário, nota-se que apenas as avenidas feitas pelo governo – após desabrigar moradores e remanejá-los – são largas. As demais, onde o poder público não se meteu, são ruas naturais, como as primeiras estradas, nas priscas eras, que surgiram devido ao incessante transitar de pessoas. Isso se torna claro e significativo quando se observa as vias de ligações daquela cidade. Estreitas, espremidas, tão íngremes que, ao subir, os dedos do pé encostam na canela. Apertadas, as vielas parecem ser todas de mão única, ou exclusivas para motocicletas. Mas não se engane: ali há pontos de ônibus, passam caminhões, bicicletas, carros, motos, muitos motos, e, claro, pela ausência de passeio, todos os pedestres. Não há semáforos, faixas de pedestres, rotatórias e muito menos canteiros com árvores. É costumeiro dar a vez para um carro ou ônibus passar enquanto se exila ou equilibra em um canto ou beira do suposto meio-fio. O trânsito lembra o da Índia, de tão confuso. Mas, no final das contas, todos se entendem. O trânsito lembra o da Índia, de tão confuso. Mas, no final das contas, todos se entendem.
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Dossiê
Belo Horizonte, ABRIL DE 2013
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A quantidade de pessoas e crianças pelas ruas não é o único indício de que, naquela cidade, a mudança é constante. A metodologia de arquitetura da favela é inacabada, constante e interminável. Os tijolos à mostra, órfãos de reboco e tinta, vergalhões sobressalentes aguardando por um concreto, lajes carentes de madeiramento e telhas, todos estão expostos ao intemperismo, mas, acima de tudo, à continuidade. Um eterno convite ao “puxadinho”. Uma arquitetura que disponibiliza, no mesmo lote, casas para todos os membros da família. Ou seja, a avó mora embaixo, a filha em um barraco nos fundos, o tio ao lado, o neto em outro acima da laje daquele da avó. Não é um prédio, é um exemplo de arquitetura do puxadinho. Destroços e lixeiras
A sujeira das ruas é acompanhada por alguns animais domésticos. Cachorros, galinhas e pintinhos são frequentes em alguns passeios e barracos. A quantidade de lixo espalhado às vezes é absurda, assim como seu conteúdo. Pedaços de bonecas, um velotrol, embalagens de alimentos, trapos de panos e alimentos se acumulam em barrancos e matagais vizinhos às casas, mas não só neles. As próprias ruas são depósitos de entulhos e matérias de construção, há sempre montes de areia, brita ou terra pelos cantos. Alguns barracos, rodeados ou vizinhos de vegetação – mangueiras, bananeiras e pés de urucum –, são obrigados a conviver com velhos tanquinhos, ou mesmo destroços de máquinas de lavar roupas. Toda essa poluição se deve, grande parte, à inexistência de lixeiras. Encontrar uma é coisa rara. É necessário andar quarteirões e, quando encontro, ela é de madeira e claramente feita pelo próprio morador daquela residência de muro chapiscado. A intervenção do governo, nesse ponto é exclusiva às obras de realojamento de moradores do Programa Vila Viva. Vistos por fora, os apartamentos populares são arrumadinhos, belos e possuem passeios e lixeiras conservadas. Sua arquitetura e coloração destoam do restante do Aglomerado. O Vila Viva corresponde a, no máximo, 10% de todo o Aglomerado, ou seja, o governo oferece aos moradores a mesma porcentagem de lixeiras. É impossível, mesmo com todo o trabalho de coleta de lixo feito pelos garis, o da varrição pelos varredores e da capina por funcionários da prefeitura, manter aquele emaranhado de ruas sem lixeiras, limpas. Essa cidade, assim como todas as outras, possui um centro comercial bastante característico, como tudo que é natural de lá. Em um com-
Apesar de o laranja tijolo predominar, mil cores destacam a energia dessa “cidade”
plexo de vielas – que de tão tortuosas, estreitas e próximas, mais parecem tentáculos de polvo – precisamente na encruzilhada das ruas Nossa Senhora de Fátima, São Sebastião, Bandonion e Serenata, encontra-se o centro comercial do Aglomerado. Aos domingos, o movimento de pessoas não fica atrás do da Feira Hippie. Assim como acontece na tradicional feira da Avenida Afonso Pena aqui os clientes e comerciantes disputam espaço e mercadorias, a proximidade do concorrente é bastante similar. Mercearia do Tatu, Padaria Canarinho, Su-
permercado Goiabal, Açougue do Paulo, Açougue Goiabal, Verdurão Safra, Hortifruti do Serjinho e algumas barracas estilo feira com caixotes de madeira cobertos por verduras, frutas e legumes disputam a clientela que faz compras pré-almoço. Buscando evitar a rotina de ônibus, motos e carros da semana que terminou, as ruas viram calçadões devido à quantidade de pedestres transitando para cima e para baixo com caixas e sacolas de compras, enquanto outros conversam e observam o movimento daquela “cidade interiorana” localizada na capital.
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Tramas contemporâneas
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Metamorfose ambulante A transformação da sociedade tem permitido casamentos e uniões antes inimagináveis Aline Oliveira Juliana Soares Léia Cândido Patrícia Alves Wilson Reynaud Jr. 6° PERÍODO
Edição: Dany Starling
“E eu vos declaro marido e mulher”. “Que sejam felizes, até que a morte os separe”. Frases como essas sofreram grandes modificações ao longo dos anos, principalmente, com o desenvolvimento da sociedade. Hoje, o “eu vos declaro marido e mulher” passa por adaptações. Em muitos casos, para o simples “eu vos declaro ‘marido e marido’” ou “mulher e mulher”. Para falar da mudança desses paradigmas, vale pensar em quais motivos levavam os casais ao matrimônio, desde o início das gerações. Por volta dos séculos XIX e XX, os casamentos eram concretizados por objetivos-padrão: constituir família e manter a honra perante a sociedade. Com a evolução da sociedade, os matrimônios tomaram outras diretrizes, com o fim de preconceitos e mitos. No século XIX, as famílias arrumavam os maridos para as filhas e, na maioria dos casos, em troca dos dotes – bens, dinheiro ou terras ofertados às famílias da noiva. Casava bem a moça cujo dote do pretendente fosse o mais “gordo”, de maior valor. Fazendas, lotes, cabeças de gado e tudo o mais que valesse dinheiro era entregue em nome da união. Em não raros os casos, muitas famílias falidas trocavam as filhas por dinheiro no ato da negociação. As noivas, então, casavam, muitas vezes, sem conhecer o marido. Àquela época, a sociedade impunha a ideia de que mulheres solteiras não mereciam respeito. Por isso, a maioria sentia a necessidade de casar para não ficar mal falada, ou ser conhecida por “solteirona”. Aquela que não casasse até os 15 ou 16 anos era vista, pela sociedade machista, como
“mulher sem serventia”. Novos tempos
Os movimentos populares pela igualdade dos direitos, manifestados ao longo de muitos anos, deram às mulheres, em meados da década de 60, o que elas tentavam conquistar: liberdade de expressão, de escolha e igualdade, além do direito de construir relacionamento conjugal e de planejar sua família. A partir dessa legislação (que garante vários outros direitos defendidos pela mulher), muita coisa mudou. Atualmente, as mulheres é que escolhem seus namorados, noivos e maridos. O casamento é feito pelo amor que une o casal, e não mais em troca de alguma coisa, ou para andar de acordo com as regras da sociedade. Hoje, se o matrimônio não anda bem, se há traição, não se omite e se abaixa a cabeça perante as dificuldades. A mulher que se sentir desconfortável numa relação não tem mais a obrigação de levar o enlace adiante, como antigamente, quando o divórcio era visto como algo terrível. A jornalista Lidiane Oliveira, de 26 anos, comenta que hoje as pessoas são livres e se casam por amor, assim como planejam cada detalhe, da cerimônia à convivência diária. Ela se sente realizada por escolher alguém com os mesmos pensamentos e ideais de vida. “Tenho certeza de que escolhi a pessoa certa. Ele se parece muito comigo em pensamentos e perspectivas. Fiquei noiva em maio e vamos nos casar em breve. Sou romântica e pretendo fazer tudo como manda o figurino”, conta, entusiasmada. Até pouco tempo, o casamento homossexual não era cogitado. Homens e mulheres que amavam pessoas do mesmo sexo tinham de esconder sua sexualidade – em todos os sentidos. A minoria que ia à luta por seus direitos enfrentava grande cruelda-
de e preconceito. Ante os movimentos de liberdade e igualdade, em 2001, alguns países, principalmente da Europa, regularizaram os direitos dos homossexuais de se casar, seguindo os mesmos padrões da lei para heterossexuais: primeiramente, o reconhecimento como união estável, logo seguido da oficialização do casamento no civil.
No Brasil, em meados do ano passado, após o reconhecido da união estável, passou-se a reconhecer o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. O artista e dramaturgo Rodrigo Dias vive com seu companheiro há cerca de seis anos. Após muitas dificuldades – até a própria aceitação sexual –, ele conta o que vivencia em uma
sociedade ainda machista e preconceituosa, mas com contínuo avanço de ideias: “Acredito que muita coisa mudou. Há mais visibilidade, o assunto está em pauta na mídia, no dia a dia, e muitos mitos estão sendo desconstruídos. Mas é só o início de um processo. Os direitos civis para homossexuais ainda têm que avançar muito. Precisamos
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tornar nossa visibilidade cotidiana, para que um dia não haja mais tanta distinção na vida em sociedade”, afirma. O dramaturgo ainda conta que, com a revolução dos protestos pela igualdade de direitos, pensa em oficializar sua união em breve. “Acho que esses movimentos abrem precedentes para outros vários. Não se percebe que isso reforça o gueto e a discriminação. Sou a favor de lutarmos pelos direitos de igualdade e não ressaltar o que temos de diferente. A discussão é ampla e profunda, mas prefiro pensar sempre pela categoria da ‘igualdade’ e não da ‘diferença’”, acredita. Para o padre e psicólogo Márcio Nicolau, os relacionamentos, em especial os matrimoniais, ainda passarão por várias transformações. “O amor romântico, aquele que tudo supera, é o objetivo a ser hoje alcançado pela maioria das pessoas. Contudo, o mundo mudou muito, jovens sonham com esse amor romântico e se casam. Mas, pela infelicidade conjugal, separam e se casam de novo, sempre em busca da felicidade, o que os deixa frustrados por vezes, pois a felicidade de um não depende somente do outro”, conclui.
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Um casamento muito louco! Os americanos Abril Pignataro e Michael Curry casaram-se em junho de 2010. Apesar de usar trajes adequados para a cerimônia, optaram por “roupas de mergulho” nas cores tradicionais: a noiva estava de vestido branco e o noivo de preto – tudo, porém, adaptado à vida aquática. O local escolhido para a união foi um tanque de 120 mil litros, localizado no Atlantis arine World em Riverhead, Nova Yorque (EUA). Como são mergulhadores, os noivos decidiram fazer os votos em um local que fosse significativo para ambos. O casal estava protegido por uma gaiola e como “convidados” tubarões, enguias, raias, cavalos marinhos, lagostas e outros peixes. Além disso, os pombinhos, ou melhor, peixinhos, usavam equipamentos de mergulho e microfones para transmitir suas palavras um ao outro – assim como para os familiares e amigos que acompanhavam o enlace matrimonial, mas do lado de fora
do tanque. Afinal, ninguém queria se arriscar e acabar virando “comida para peixe”. Casando nas nuvens
Em Bruxelas, na Bélgica, o casal Jeroen e Kippers foi erguido numa plataforma a quase 49 mil metros do chão para a cerimônia de casamento, na qual compareceram 20 convidados e o padre que realizou a cerimônia. Em uma plataforma ao lado, ficaram os músicos. Após os votos, os recém-casados pularam para oficializar a união. Responsável pela rea-
lização do casamento nas alturas, a empresa Marriage The Sky assegura que realiza várias celebrações desse tipo. Se puderem desembolsar um pouco mais, os noivos podem optar por fazer uma festa suspensa, com direito a jantar com três pratos diferentes. O valor, porém, chega às alturas, £ 25 mil libras esterlinas, uma quantia referente à 77.500 reais por um casamento nas nuvens. Casamento de “índio”
Os australianos Ellie Barton e Phil Hendicott realizaram um dos mais
inusitados casamentos de que se tem notícia. O noivo vestia, aliás, segurava um chapéu estrategicamente. A noiva “usava” uma calcinha pintada com tinta branca e dois círculos brancos desenhados entorno dos mamilos, sem esquecer do véu branco, claro. Os noivos exibicionistas fizeram os votos diante de 250 convidados que foi transmitido ao vivo por uma rádio australiana. Se você tem dúvida quanto ao bolo do casal “Adão e Eva”, sim, os bonequinhos que retratam o casal também estavam nus.
Na China, há mais de dois mil anos, o arroz representava o símbolo da “fartura”. O gesto de jogar os grãos sobre os noivos significa o desejo de fartura para a vida do casal e simboliza a fertilidade. Portanto, nunca se esqueçam do arroz! O truque que algumas noivinhas têm usado, para variar, é tingir o arroz com as cores da decoração da festa. Não é difícil, mas certifique-se de que os grãos estão bem secos, para que não borre o vestido ao tocá-lo.
Casamentos entre pessoas do mesmo sexo: vitória de uma sociedade mais justa
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Minha BH
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Imobilidade urbana Frota de veículos e transportes coletivos dificultam o trânsito em Belo Horizonte
Caroline Passos Roberta Garcia 7° PERÍODO
Edição: André Zuliani
Corredores lotados, assentos escassos e trânsito lento. Esta é a situação do transporte coletivo na capital mineira. Nos últimos meses, as principais vias de acesso da cidade se encontram em obras para receber o BRT – sigla em inglês para Bus Rapid Transit (transporte rápido por ônibus). Esse foi o sistema escolhido para desafogar o trânsito e que promete resolver boa parte dos problemas de mobilidade urbana com custo de implantação dez vezes menor que a de um metrô. Andar pelas ruas de Belo Horizonte de carro ou transporte público não tem sido fácil. De 2005 para 2010, a frota de veículos praticamente dobrou de 82.799 para 163.489. Os dados são do Sistema de Informação da Mobilidade Urbana (SisMob) de Belo Horizonte e revelam que o aumento de 80 mil veículos nas ruas da capital ampliou o tempo gasto nas viagens. A auxiliar administrativo Polliane Shiveck, 27 anos, é moradora da região da Pampulha e precisa pegar dois ônibus diariamente para
chegar ao trabalho, no bairro Gutierrez, região centro-sul da capital mineira. Ela revela que, nos últimos meses, a situação do trânsito só tem piorado, “antes eu chegava com 1hora no trabalho, agora levo quase duas. A quantidade de obras espalhadas pela cidade tem prejudicado o acesso dos ônibus, que precisam dar muitas voltas para sair dos canteiros de obras ou acabam ficando presos em engarrafamentos quilométricos. Está insuportável ir trabalhar todos os dias.” Para o motoboy Glaydston Oliveira, 23 anos, a situação está muito ruim. “Em qualquer horário que vou fazer minhas entregas pego trânsito. Tenho demorado mais tempo para conseguir atender meus clientes” diz ao destacar que ir de um ponto a outro da cidade leva, nos últimos meses, muito mais tempo. “Sempre preciso pegar caminhos alternativos. Do contrário, fico atrasado.” BH está na lista das cidades que receberão verbas do PAC Mobilidade. Em maio deste ano, o Ministério das Cidades anunciou a liberação de R$ 3,1 bilhões para a expansão do metrô. Após a conclusão das obras a projeção é de que o veículo que hoje transporta
215 mil passageiros por dia passe a levar 980 mil. No último mês de setembro, a Empresa Pública Trem Metropolitano de Belo Horizonte (Metrominas) publicou no Diário Oficial do Município (DOM) o aviso de licitação do projeto básico de engenharia das linhas 1, 2 e 3 – sendo 18,5 milhões destinados às linhas 1 e 2, e de R$ 14,6 milhões às obras da linha 3. De acordo com a assessoria de imprensa da Metrominas, o projeto é fundamental, pois assim será possível apontar os custos e elaborar o edital para execução das obras. Analista técnico da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU-Metrô-BH), Adão Guimarães, afirma que a expansão é a única solução para os problemas de superlotação do sistema metroviário da capital e uma alternativa ao alívio do trânsito nas principais vias da cidade. “A linha 1 está no limite da capacidade instalada. Não temos como ofertar mais lugares. Transportamos uma capacidade muito acima de passageiros” declarou Guimarães. Segundo ele, o crescimento ocorreu em função das mudanças que aconteceram em Belo Horizonte na última década e ressaltou que o trânsito, hoje, está
muito mais complicado, sobrecarregado, e com isso, as pessoas, por diversas razões, optam por se deslocar de metrô. “Quando falamos em expansão, pensar em só levar trilhos para outras regiões é cair em erro, pois precisamos pensar em melhorias para a linha na qual estamos operando hoje. É preciso ampliar, melhorar, comprar mais trens, modernizar e mudar alguns sistemas de controle”, explicou. Itinerário das linhas
A previsão é de que a linha 1 seja reformada e ampliada até a estação Novo Eldorado, em Contagem. A 2, por sua vez, terá uma extensão de 10,5 km, ligando a região do Barreiro ao bairro Calafate, na Região Oeste da capital. Calcula-se que sejam implantadas sete estações. Quanto à linha 3, que, segundo o projeto será totalmente subterrânea, com 4,5 km, ligando a Savassi à Lagoinha, com cinco novas estações. Estudante de nutrição, Juliana Soares, 35 anos, é moradora da região de Contagem e utiliza o metrô para trabalhar e voltar da faculdade todos os dias. “O problema é a lotação. Depois de sete horas da manhã os vagões ficam extre-
Afunilamento de vias no centro da cidade, devido às obras do BRT, causam deficiências no trânsito que reverberam no Complexo da Lagoinha
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mamente cheios, é difícil transitar, embarcar e desembarcar do trem,” revela. Apesar disso, ela acredita na eficiência e rapidez do veículo, uma vez que não é necessário enfrentar o trânsito e seus imprevistos. “Aumentar a quantidade de trens nos horários de pico já seria um grande passo e tornaria a viagem confortável. Não adianta expandir as linhas e construir mais estações se a capacidade continuar a mesma,” opina. BRT
As principais vias de acesso da capital estão em obras para receber o BRT. A implantação do sistema promete tirar das ruas aproximadamente 800 ônibus nos horários de maior concentração de veículos. Inicialmente, o BRT circulará em dois corredores exclusivos, nas avenidas Antônio Carlos/Pedro I e Cristiano Machado, integrando a área central da Paraná e Santos Dumont, onde estão sendo implantadas seis estações de embarque e desembarque de passageiros. As avenidas Santos Dumont e Paraná receberão os ônibus municipais do BRT que chegarão das Estações de Integração Venda Nova, Pampulha, Vilarinho, São Gabriel e José Cândido. O tráfego nas vias será exclusivo para o BRT. A previsão é que após a inauguração do sistema o número de linhas que chegam das regiões
norte, nordeste e leste hoje com 136, diminuirão quase oito vezes, chegando a 18 linhas. Um centro de controle automatizado deve inspecionar todo o funcionamento do sistema, o que de acordo com técnicos da BHTrans, representará melhoria da qualidade das informações prestadas aos usuários e permitirá gestão eficiente no que se refere à solução dos problemas de operação. Ângela Gomes, 23 anos, analista de atendimento, não acredita que o BRT será a solução, pois apesar de retirar veículos das principais vias, em alguns casos, os usuários gastarão mais tempo para chegar ao destino. “Como moro em Santa Luzia pego dois ônibus para chegar ao trabalho. Com o BRT precisarei pegar três linhas diferentes, ou seja, vou gastar mais passagens e tempo,” contesta. O sistema escolhido é alvo de muitas críticas por especialistas. Entretanto, a BHTrans argumenta que o BRT apresenta o menor custo de implantação e o menor tempo para viabilizar o funcionamento. O investimento é, por exemplo, dez vezes menor do que o exigido para a instalação de um metrô e o tempo é pelo menos dois terços menor. Década do caos
O presidente da CBTU- Metrô BH e especialista em transportes, Nilson Nunes, comenta que o
transporte público na capital é ineficiente. “A solução para os problemas da capital seria o planejamento de um sistema Wde transporte público integrado, introduzindo modalidades de alta e baixa capacidade na matriz de transportes da cidade,” profetiza. De acordo com ele, os problemas de mobilidade são mais sérios do que parecem, além de afetar a qualidade de vida dos usuários com falhas em questões como tempo de viagem, superlotação, irregularidade do serviço, além de acar-
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retar ocorrências como aumento da poluição do ar e do número de acidentes. Nunes destaca, ainda, que o problema não só agravou nos últimos anos, como tende a piorar. “Os investimentos necessários para resolver os problemas de mobilidade urbana são usualmente altos e os municípios e estados não têm capacidade financeira suficiente. Adotam-se medidas que apenas resolvem parte da questão e a solução mais abrangente é adiada,” conclui.
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Belo Horizonte, ABRIL DE 2013
Jornal Daqui
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À sombra das chuteiras mortais Simplicidade e perseverança são marcas de Jorge Abuid Moreira, o Jorginho da Chuteira Fernando Dutra 6° PERÍODO
Edição: André Zuliani
Já foi bombeiro, eletricista, ambulante, trabalhou em gráfica, Jorginho já se arriscou em muitas profissões ao longo da vida. Definitivamente ele não tem medo do trabalho. Foi justamente a insistência em fazer o que gosta e, sobretudo, o que acredita que transformou sua vida de artista ambulante. Sempre em busca de uma barraca na feira para expor seus produtos, por sinal, bastante requisitados, que atualmente não precisa ir atrás de trabalho, são os clientes que batem à porta. A vida fez de Jorginho um artista. Desde jovem, com base nos conhecimentos adquiridos com o pai, tecelão, desenvolveu trabalhos em couro, principalmente, fazendo sapatilhas. Andava pelas ruas da cidade, de preferência pelas feiras populares, vendendo seus calçados e, como ele conta, “vendia tudo rapidinho. Os caras viam a qualidade do produto e já compravam tudo de uma vez, pra revender”. Pode até parecer que era fácil, mas a vida seria mais dura com esse artista. Logo ao entrar em seu ateliê, Jorginho já corre para mostrar a pilha de cheques sem fundo que adquiriu ao longo da vida. Principalmente na época em que vendia na rua e era obrigado a confiar nas pessoas. Por isso, tomou vários canos, passou necessidade e teve de recorrer à mãe para “salvar os meses mais difíceis”. Certa vez, quando trabalhava em uma confecção de couro, teve a oportunidade de aprender a fazer chinelos. O fato é que um dia apareceu um baiano na rua com um par de chinelos na mão. Como os chinelos eram bonitos e de qualidade, foi chamado para trabalhar na confecção. Eis que o baiano entra no ateliê, corta todo o couro que tinha, usa o necessário para fazer uma amostra do chinelo e some no mundo, deixando todo o material para trás. Ao perceber que o viajante havia “abandonado o barco”, o dono da confecção se desesperou ao ver que tanto material seria jogado no lixo. Jorginho com sua habilidade de artesão, não fugiu à responsabilidade e conseguiu recriar os chinelos do baiano. Dito e feito: os chinelos fizeram sucesso e Jorginho decidiu seguir seu caminho e abrir a própria confecção.
Com o passar do tempo ficou desanimado com o trabalho, produziu muitos “chinelos do baiano”, mas continuava a levar canos. Pensou em desistir do ofício e buscar alternativas para ganhar dinheiro. Mas o acaso estava no caminho deste artista. Certa vez, quando voltava de bicicleta para casa, a roda dianteira topou com um pé de chuteira velha, ela se enroscou nos arames e catapultou Jorginho diretamente ao chão. Assim como o rosto outras partes do corpo ficaram esfoladas com a queda. Indignado decidiu pegar aquele pé de chuteira e levá-lo para casa. Por fim resolveu que iria reformar aquele velho impasse. E assim, de forma catastrófica, começava sua história com as chuteiras. Apoiado por um amigo, cliente antigo, dedicou de corpo e alma ao novo ramo. Já familiarizado com o manejo do couro rapidamente começou a produzir chuteiras de boa qualidade, sendo requisitado pelos boleiros da Lagoinha. Não demorou e começou a ficar conhecido não apenas na região, mas por toda a capital. No final da década de 1990, chegou a criar um modelo de chuteira exclusiva para seu xará, camisa 10 do Atlético-MG. A partir dela, a vida do ex-ambulante mudou radicalmente. Nas duas horas que estive em seu ateliê, quatro clientes apareceram para buscar encomendas e solicitar novas chuteiras. Sem contar, claro, os amigos que passam apenas para um bate-papo. O lugar é realmente movimentado. Clientes renomados
Há 18 anos no mercado das chuteiras, sua lista de clientes é de invejar até mesmo um vendedor de loja renomada. Além das dezenas de boleiros anônimos, as chuteiras de Jorginho chegam a grande parte do elenco profissional dos clubes mineiros: Atlético e América. Do time verde e branco, Jorginho guarda a chuteira do atacante Alessandro, já do alvinegro a coleção é numerosa. Atleticano fanático que é, deixa bem à vista, como um troféu de honra ao mérito, às chuteiras de Danilinho, Jô, Réver, Diego Tardelli, Neto Berola, Diego Alves, Renan Ribeiro, Marques e uma raridade, a do goleiro Bruno. Tal currículo acabou por ratificar a profissão ao próprio nome. Hoje, todos conhecem o Jorge Abuid Moreira. Quem? O Jorginho da Chuteira! Ah, bom! As amizades que a vida lhe
Até mesmo clientes famosos dão cano em Jorginho
proporcionou fazem dele um verdadeiro contador de histórias. Sempre tem um bom causo envolvendo algum jogador de futebol, sobretudo do atlético, óbvio. Mas não pense que este sujeito simples se curva ante tantas personalidades. Já desdenhou de jogadores que se diziam amigos, mas fingiam que não o via na rua. A cabeleira farta e a barba cultivada há longos anos, (ambas já meio grisalhas) as roupas sujas de graxa, as mãos calejadas, a fala pausada, porém constante, são características que definem o artista. E ele desdenha de quem lhe julga pela aparência: “eu almoço, vou ao banco, trabalho, faço tudo assim. Por que vão me tratar diferente? Se não gosta de mim, tudo bem, mas depois não venha me chamar de amigo”.
Apesar de ser reconhecido no meio futebolístico, ainda tem prejuízo com alguns clientes. Até mesmo dos famosos que recebem milhares de reais por mês, Jorginho já foi vítima. Hoje em dia, tem condições de recusar trabalho. Se um cliente não paga o serviço, não precisa procurá-lo, ele não lhe atenderá novamente. Apesar de colecionar prejuízos, assim como chuteiras, é bem humorado e continua confiando nas pessoas. Amigo dos clientes, ele preza honestidade a dinheiro. Pai de duas filhas, uma com três a outra com 14 anos, Jorginho da Chuteira já passou por poucas e boas nessa vida. A mais honrosa é que mesmo em um universo dominado pela alta tecnologia, o artesão se destaca por seu talento manual.