Ano 31 • número 193 • Novembro de 2013 • Belo Horizonte/MG HiAGO SOAreS
uma rua uma avenida mil cidades Reportagens lançam novos olhares sobre a Afonso Pena e a Pitangui, vias importantes e tradicionais da capital mineira PÁGINAS 10 a 13
Roda Viva: em entrevista exclusiva,
Um foca e o repórter do século:
Sol, cigarro, insulina, educação,
equipe do IMPRESSÃO entrincheira
um fim de semana com José
parto normal: confira o Caderno
Mino Carta. PÁGINAS 10 a 13
Hamilton Ribeiro. PÁGINAS 15 e 16
especial de Jornalismo Científico
Caderno Do!s - De dia na escadaria, à noite na boate... e 32 horas seguidas de Alfred Hitchcock
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Belo HoRIzonte, noVemBRo De 2013
primeiras palavras
ImpRessão
Impressões!
eXpeDIente dANY STArLiNG
REITOR Prof. Rivadávia C. D. de Alvarenga Neto INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS Prof. Rodrigo Neiva (diretor) Profa. Cynthia Enoque (diretora adjunta) COORDENAÇÃO DO CURSO DE JORNALISMO Prof. João Carvalho
LABORATÓRIO DE JORNALISMO IMPRESSO EDITORES Prof. Leo Cunha Prof. Maurício Guilherme Silva Jr. Dany Starling (editor convidado) CADERNO ESPECIAL DE CIÊNCIA Prof. Murilo Gontijo
equipe do iMPreSSÃO entrevista o jornalista Mino Carta na semana do uni+ Comunicação
Jonathan Goudinho 8° PerÍOdO
Era uma conversa informal sobre futebol, bares, torcedores, barulho, bagunça, trânsito. Entre divagações aqui e ali, um comentário sobre a extensão da Rua Pitangui, impressionantemente grande. Pronto. Nascia o “dossiê ruas”. Em metade das páginas do Primeiro Caderno, você será convidado a entrar nos múltiplos e distintos mundos da avenida Afonso Pena e da rua Pitangui, duas importantes vias de Belo Horizonte, conduzi-
do por Alex Moura, André Zuliani, Camila Freitas, Letícia Faria, Paola Gomes e este que vos escreve. Num exercício inovador, típico do IMPRESSÃO, a reportagem vem coroada com programação visual especialíssima! Na outra metade, uma aula de jornalismo. Orgulhosamente, apresentamos, na mesma edição, Mino Carta e José Hamilton Ribeiro, dois dos principais jornalistas que o Brasil já conheceu. Em entrevista a nossos repórteres, Mino, criador de periódicos – Quatro Rodas, Veja, IstoÉ e Carta Capital – que ajudaram a construir a his-
tória da imprensa brasileira, trata de tudo e mais um pouco. Jornalismo, política, literatura, sucessos, fracassos. Nada passa despercebido ao “demiurgo” – como alguns o intitulam. No mesmo clima de aula, Natanael Vieira proseou com Zé Hamilton, o “repórter do século”, que fala de jornalismo e de vida no sossego de sua fazenda em Uberaba (MG). No DO!S, pautas sinistras. Trinta e duas horas ininterruptas de Alfred Hitchcook na veia do cinéfilo André Zuliani. Uma reportagem sobre assédio nas boates, por Maria Beatriz de Barros.
E uma novidade: a seção “Líricas”, que nesta edição traz um ensaio narrativo e visual sobre a escadaria da Igreja São José, por Hiago Soares. Você também terá à sua disposição mais um caderno, o Especial Ciência. Nele estão em discussão temas como os benefícios do sol e de exercícios físicos, novas descobertas sobre a insulina e os mistérios que envolvem os processos de leitura. Com tantos textos instigantes, nosso desejo é que você se delicie com essa edição e viaje conosco em cada uma das reportagens. O IMPRESSÃO é seu!
PRECEPTORA Profa. Ana Paula Abreu (Programação Visual) ESTAGIÁRIOS Alex Moura Camila Freitas Hiago Soares
LAB. DE CONVERGÊNCIA DE MÍDIAS EDITORA Profa. Lorena Tárcia Parcerias LACP – Lab. de Criação Publicitária Laboratório de Convergência de Mídias Laboratório de Fotografia
IMPRESSÃO / TIRAGEM Sempre Editora 2000 exemplares
eleito o melhor Jornal-laboratório do país na expocom 2009 e o 2º melhor na expocom 2003
ArQuiVO PeSSOAL
O jornal IMPRESSÃO é um projeto de ensino coordenado pelos professores Maurício Guilherme e Leo Cunha, com os alunos do curso de Comunicação Social - Habilitação em Jornalismo - do UniBH. Mesmo como projeto do curso de Jornalismo, o jornal está aberto a colaborações de alunos e professores de outros cursos do Centro Universitário. Espera-se que os alunos possam exercitar a prática e divulgar suas produções neste espaço. Participe do IMPRESSÃO e faça contato com a nossa equipe: Rua Diamantina, 463 Lagoinha – BH/MG CEP: 31.110-320 Telefone: (31) 3207-2811 Email: impresso@unibh.br
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Zé Hamilton ribeiro recebe o repórter Natanael Vieira em sua fazenda
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Visão crítica
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Belo HoRIzonte, noVemBRo De 2013
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Quando Gênova e Verona se encontram de um lado, um repórter iniciante. do outro, um mito do jornalismo. em comum, a ascendência italiana e o gosto por boas histórias dANY STArLiNG
André Zuliani COLABORADOR
De um vidro em forma de escotilha, na sala de desembarque do Aeroporto Internacional Tancredo Neves, surgiu um senhor de postura ereta, apesar da idade, trajando blazer xadrez, camisa azul, calça marrom e lenço azul mediterrâneo no bolso do paletó. Ele caminhava, desconhecido, entre os passageiros. Mal sabem que as revistas semanais que assinam ou folheiam nos consultórios, à espera da consulta, foram criadas por ele. Mino Carta tem uma vida bastante ativa. Joga tênis todos os dias, o que talvez seja o elixir da flexibilidade e da ausência de clamor ao abaixar para pegar a mala. No táxi, entre o aeroporto e o hotel, na Savassi, a conversa girava sobre política. Enquanto ele falava e respondia os questionamentos do amigo Dany Starling, eu apenas ouvia. Nunca pensei tanto antes de falar ou perguntar algo a alguém como para Mino Carta. Em silêncio, assuntei o grande expoente da imprensa contemporânea brasileira. Devido ao trabalho de preparação da pauta, para a qual assisti e li inúmeras entrevistas com Mino, ele me parecia familiar, mesmo sem conhecê-lo pessoalmente. Por isso, algo destoava. Logo me atinei, seu sotaque está mais italianado do que quando foi entrevistado por Jô Soares, há 25 anos. Por eu estar filmando Mino para um documentário, ele se sentia incomodado. Buscando desfazer sua postura defensiva, perguntei a pronúncia correta de meu sobrenome italiano, Zuliani. Além de explicar, Mino pensou por um momento sobre a região da minha descendência. “É no norte da Itália! Deve ser Verona.” Ele é genovês, cidade litorânea a quase 300 quilômetros da “minha”. No hotel, adiantado para a palestra, Mino quis tomar vinho, mas, ao ver a carta, simplória, optou por uma cerveja. Evidente que o
Tutti buona gente: Mino Carta e André Zuliani falam sobre política, arte, vinhos, futebol e trânsito, na itália e no Brasil
acompanhei. Enquanto bebíamos, ele elogiava o refinamento epidérmico da cidade de Ouro Preto. “Você passa e sente isso. Aleijadinho se inspirava em gravuras romanas quando esculpia. O Museu da Inconfidência é quase uma cópia do Capitólio de Roma.” Antes de sairmos, ele quis saber o resultado da partidaentre Roma e Napoli, que acontecera naquela tarde. Dany o felicitou com o resultado, dois a zero para o time da capital. A caminho do UniBH, o trânsito na avenida Bias Fortes estava terrível. Mino, até então cordial e afável (características herdadas do pai), diante da inércia dos carros, pôs-se imperioso e volitivo (traços marcantes da mãe) ao dizer: “Nunca vi isso! Nem mesmo em São Paulo! É só colocar um guarda de trânsito romano que resolve”, vociferou. “O que me incomoda no brasileiro é a passividade. ‘É assim mesmo, não vai mu-
dar’”, criticou, alterando o tom da voz. Culpa do Dany, que havia previsto o trajeto para apenas 15 minutos. “Você foi otimista no pensamento e, agora, pessimista na ação”, zombou Mino, adaptando a frase do cientista político italiano Antonio Gramsci. Dany, tenso, brincou que os carros se abririam à nossa frente, tal como o Mar Vermelho fez diante de Moisés. “Você tem uma sirene?” replicou, jocoso. Até o taxista riu. Enfim chegamos à faculdade, onde haveria o lançamento do livro O Brasil, grand finale do Uni+ Comunicação. Antes de subir ao palco, Mino, pacientemente, respondeu perguntas dos “focas” da faculdade. Em seguida, escudado pelo velho amigo Marcos Coimbra, colunista da Cart a Capital e proprietário do instituto de pesquisas Vox Populi, o velho jornalista brindou a plateia com mais de uma hora de histórias e ensinamentos.
Na manhã seguinte, li que o jogo Roma x Napoli contou com a presença de Maradona. No táxi, a caminho do aeroporto, contei para Mino que o argentino esteve no estádio. A conversa sobre os anos 1970 e 1980 rendeu muita polêmica: “O Brasil era uma vergonha. A mulher mais bonita era homem (Roberta Close), o melhor jogador de futebol jogava sem a bola (Tostão) e o melhor cantor não tinha voz (João Gilberto). Quer dizer, o país era uma piada”, debochava. O ápice foi quando Mino escalou e comentou a seleção brasileira que perdeu para a Itália na Copa do Mundo de 1982. “O lateral direito chorava em campo, o esquerdo não sabia marcar e por isso saiu o primeiro gol, o centroavante, cazzo, era louco. A Itália venceu porque jogou melhor. Falei pro Juca (Kfouri, jornalista esportivo amigo de Mino), ele duvidou e combinamos de rever o jogo. No
final ele concordou. Depois assistam”. Já em casa, fui assistir a partida e tive que concordar. É evidente que a Itália jogou melhor e que nosso centroavante babava. Nesse período que estive com Mino Carta, pude ouvir várias palavras de um repertório castiço. Trazer à baila, ao cabo, ideário, vernáculo, pobreza franciscana, enfronhar, vivaz, propalar, veniais, barrabás. Mesmo com esse conhecimento dicionaresco, Mino é humilde ao dizer que, em sua carreira, foi um sujeito sortudo. “Eu estava no lugar certo na hora certa”. A modéstia, entretanto, ficou de lado quando respondeu, com convicção granítica, nossa pergunta sobre ele possuir o melhor texto jornalístico do Hemisfério Sul. “Isso não é muito difícil”. Realmente. Quando se está em um patamar como o de Mino Carta, um autêntico demiurgo, a tarefa é quase banal.
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Dossiê Ruas
Belo HoRIzonte, noVemBRo De 2013
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Fomos de táxi...
... e de ônibus e de bike e a pé: quatro repórteres desvendam a avenida Afonso Pena FOTOS: NATANAeL VieirA
André Zuliani
COLABORADOR
Natanael Vieira 8º PeRíODO
O que é possível depreender acerca de Belo Horizonte se sairmos da Praça Rio Branco, conhecida como Praça da Rodoviária, e seguirmos até a Praça da Bandeira? Tentamos descobrir. Quatro repórteres do IMPRESSÃO subiram a Avenida Afonso Pena, cada um por um meio de transporte diferente. Alex, a bordo de um táxi lotação. Camila, de ônibus. Paola, de bicicleta, e Letícia a pé. Percurso em reta, mas nada plano: subidas fortes, íngremes e outras... ainda mais. A intenção desse “Desafio Intermodal”, entretanto, não tem finalidade científica. Não queríamos saber quantas calorias seriam queimadas a pé ou em cima de uma bicicleta, por exemplo. Mas, antes, saber o que cada possibilidade de deslocamento pode propiciar. Metade dos repórteres sequer fez exercício físico no desafio. No entanto, todos exercitaram o olhar e a percepção, apurando-os e direcionando-os a cada detalhe de uma das avenidas mais movimentadas da cidade, e, talvez a mais simbólica.
Às 10h15 de um dia nublado, foi dada a largada. A Praça da Rodoviária não é a que os belo-horizontinos mais se orgulham em ter. O monumento “Liberdade em Equilíbrio”, instalado no centro do largo em 1982, tem 21 metros de altura, mas não consegue esconder a degradação ao redor. A iluminação e os jardins foram revitalizados em 2011 e o policiamento tem sido constante. Mas a situação dos moradores que usam a base do monumento como dormitório é antiga. Este é o cenário que marca o início da Afonso Pena. Em seu ponto mais alto, precisamente na Praça da Bandeira, o marco final do desafio é completamente diferente do inicial. Seja o fluxo de pessoas – praticamente nulo –, a arquitetura da praça, que talvez justifique a desertificação humana, ou o clima, bem mais fresco. Não há um banco, uma lixeira e muito menos monumento de caixa de fósforos, como na da rodoviária. Por se tratar de uma praça pouco visitada, os motoristas – estes, sim, muitos – ao pararem no semáforo me olhavam com estranhamento. Mais intrigados ficaram quando, aos poucos, um a um, os repórteres foram chegando e me contando um pouco sobre o que viram no trajeto. Na Praça Rio Branco, a equipe pronta para encarar o desafio
Na ponta dos pés Letícia Faria 6º PeRíODO
Última a chegar, Letícia Faria gastou 1h08min
Desvendar, a pé, os aspectos que constroem a Afonso Pena, a principal avenida da cidade – eis o desafio. O percurso que terminaria na Praça da Bandeira iniciou-se na Praça Rio Branco, em frente à rodoviária. Apesar de ser porta de entrada para muitos turistas e visitantes, observa-se, naquela região, um número expressivo de moradores de rua, além de ser um local sujo. O que se vê no entorno, atualmente, são vários canteiros de obras. Os passeios esburacados dificultam a circulação dos pedestres. A Afonso Pena corta importantes vias, como a Rua da Bahia e as avenidas Brasil, Getúlio Var-
gas e Contorno. Mas, sem dúvida, o cruzamento com a Amazonas, na Praça Sete, é o ponto com maior concentração de pessoas. Uma disputa constante de pedestres e carros para atravessar a rua. Ninguém respeita ninguém, foi preciso bastante atenção e paciência. O tempo que o sinal fica aberto para a travessia não suporta a demanda de pedestres, um verdadeiro caos. Em meio a um barulho ensurdecedor e gritos de foto na hora, deparo com todos os tipos de lojas e comércios, típicos de hipercentros. A cada quarteirão que se sobe é evidente o crescimento do poder aquisitivo. Prédios espelhados, espetaculares, e restaurantes luxuosos espalham-se pela
avenida. Passeios, antes esburacados, dão lugar a outros impecáveis, motoristas respeitando pedestres e vice-versa. Várias garrafas de água depois, cheguei à Praça da Bandeira. Apesar de não ter visto uma lixeira por perto, não se encontra um papel no chão, em contraste com a Praça Rio Branco. Durante o percurso, de 4,4 km, que subi em uma hora e oito minutos, deparei com escolas, faculdades, órgãos públicos, vários pontos históricos e culturais importantes – alguns antes desconhecidos por mim, confesso. Entendi então o quão importante é a Afonso Pena para a cidade. Pude constatar o porquê dela ser considerada o coração e um dos referenciais urbanos belo-horizontinos.
Dossiê Ruas
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Nuances da avenida Camila Freitas 4º PeRíODO
Subir de ônibus a Avenida Afonso Pena, da Praça Rio Branco à Praça da Bandeira. Era essa a minha tarefa dentro do desafio intermodal. Nos encontramos no início do trajeto para marcar o horário da saída. O clima estava muito bom para uma “corrida”. O céu estava nublado, tinha acabado de chover. Meu coração estava calmo, mas o espírito competitivo, a cada instante da espera, tomava conta do meu ser. Mesmo sabendo que não seria a vencedora, eu tinha esperanças. Às 10h15, cada um tomou o seu caminho rumo ao ponto de chegada. Eu, é claro, peguei o primeiro ônibus que vi, 4103, e senti que poderia ganhar. Entrei na condução, cumprimentei o motorista com um saudoso “Bom dia!”. Ele, por sua vez, respondeu acenando positivamente com a cabeça e exibindo um tímido sorriso. O ônibus estava com poucos passageiros, o que me permitiu escolher o lugar
onde sentar. Acomodada e com o bloco de notas em mãos, comecei a anotar com uma caneta o que observava das gentes que entravam e saíam. Lembro-me que a primeira palavra que escrevi foi, “NADA”, seguido por, “acontece nesse ônibus”. Estava enganada, muita coisa aconteceu – eu apenas estava olhando da maneira errada. Pessoas entravam e saíam sem se falar ou cumprimentar o motorista e o trocador. Eles só foram cumprimentados por uma senhora já idosa, que entrou na condução com dificuldades e mesmo assim falou em alta voz: “Bom dia, meus filhos, e bom trabalho para vocês”. Do lado de fora, o trânsito no início da Afonso Pena é caótico. Gentes atravessam a avenida entre veículos mesmo estando perto da faixa de pedestres, motoristas imprudentes avançam os semáforos e todos buzinam sem parar quando um veículo demora a arrancar. Do lado de dentro é perceptível o grande número de idosos, o que tumultuou a parte
preferencial do ônibus. O coletivo parou em todos os semáforos vermelhos e todos os pontos. Sempre com a mesma pergunta ao motorista: “Passa na praça da Bandeira?” Achei que era de propósito, só para eu não chegar primeiro. Apesar de não acontecer nada muito surreal, foi uma experiência interessante. À medida que o ônibus subia, dava para perceber as mudanças nas nuances da cidade, tumultuada, caótica e mal educada, para um cenário urbano pacato, tranquilo e educado. Talvez tenha a ver com a mudança do poder aquisitivo da região em torno da avenida. Talvez seja apenas uma questão de educação. Finalmente, cheguei ao meu destino depois de 22 paradas e dez semáforos. Às 10h45, fui a segunda a chegar. O resultado, contudo, pouco me importou. Percebi, no decorrer da subida, que chegar ou não primeiro não era o meu objetivo, mas conhecer as gentes que sobem e descem a avenida Afonso Pena.
Afonso Pena de bike Paola Gomes 6º PeRíODO
Dia 01 de outubro, céu nublado, temperatura agradável. E eu? Estava atrasada para o meu compromisso às 10hs. A data era especial, eu faria algo que nunca imaginei ter coragem. Cheguei atrasada, um pouco ofegante, mas ali estava. De longe avistei Letícia, Natanael, Camila e o Alex, que estavam à minha espera na Praça Rio Branco, no início da Afonso Pena. Imaginei que eles também estivessem ansiosos e animados, afinal, não é todo dia que alguém participa de um Desafio Intermodal. Agora que já estávamos todos reunidos, a ciclista, devidamente equipada, era hora de partir. Pela frente, tinha a responsabilidade de subir de bicicleta a Afonso Pena. Preciso confessar que, ao sair da praça, tive medo e fiquei um pouco nervosa, ao ver tantas pessoas e carros na mi-
nha frente. Os pedestres e veículos se misturavam ao caos do trânsito na área central, os sons das buzinas incomodavam, assim como os gritos dos ambulantes. Conforme ia subindo, observava as mudanças na arquitetura dos prédios, a alteração no perfil dos pedestres. Agora, os carros eram importados e a educação dos motoristas para com os ciclistas era admirável. Entre um gole e outro de água, fui desvendando uma Afonso Pena que poucas pessoas conhecem, inclusive eu. A cada parada pra esperar o sinal abrir, olhava atentamente ao meu redor e descobria espaços culturais, gastronômicos, monumentos históricos e religiosos até então desconhecidos. É inegável que o cansaço físico foi grande, ainda mais para uma jovem com “leve arritmia cardíaca” (risos) – fato que só revelei ao professor Leo Cunha e aos outros participantes quan-
do chegamos ao destino. Mas a experiência foi uma das melhores de todos os meus 24 anos. Fiquei surpresa ao descobrir que eu e a “magrela” demoramos apenas 53 minutos para chegar até o topo e conquistar a Praça da Bandeira. Algumas pessoas podem achar que isso é loucura, mas acredito que é apenas experimentar os delírios que o jornalismo nos proporciona.
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No conforto Alex Moura 5º PeRíODO
Chego ao ponto de partida do desafio intermodal no horário combinado, 10 horas. Desde quando a matéria foi proposta e ficou definido que eu iria de táxi lotação, tinha comigo a ideia de que minha experiência não seria a mais interessante. Algo que, creio, se confirmou na prática. Dá-se início ao desafio... Saímos da Praça Rio Branco, às 10h15min, com destino à Praça da Bandeira. O primeiro ponto de táxi lotação na Afonso Pena fica entre as ruas Curitiba e Tupinambás. Caminho cerca de 200 metros até o ponto, e lá está um táxi à minha espera. Logo de cara, tenho a companhia de mais dois passageiros. Pago a tarifa fixa, R$ 2,90, e começo a aventura. Nunca utilizei tal serviço, por opção mesmo. Apesar de não ser nenhum atleta, prefiro andar pelo hipercentro a pé. Tento, durante todo o percurso, observar as “várias avenidas” que existem na Afonso Pena. Durante o percurso, noto três. A primeira tem início no ponto inicial do desafio, na praça que carrega o nome de um importante estadista brasileiro, o Barão do Rio Branco. Nesta parte da avenida, há a mistura de classes sociais, sem exceção: pobres, mendicantes, pessoas de classes mais remediadas que trabalham na região e até ricos, que precisam resolver pendências em órgãos públicos e também passam por ali. Esta Afonso Pena, creio, se finda logo após o Parque Municipal.
Neste trecho ainda há alguns prédios históricos bem conservados. Próximo ao Parque Municipal desce um passageiro e entra outro. Segue a viagem. Inicia-se a segunda parte da avenida. Para mim, esta parte, que compreende os bairros Funcionários e Savassi, é uma espécie de transição do primeiro cenário para o terceiro. O movimento dos carros diminui, não muito, mas diminui. As pessoas nas calçadas também. Mais dois passageiros descem. Como sou o único no táxi, faço algumas perguntas ao motorista sobre a rotina dele e sobre o trajeto também. Ele faz de 10 a 12 viagens por dia na avenida, e, às vezes, no horário de pico, o percurso demora até uma hora para ser feito. O tempo médio é de 20 minutos para cada trecho. Ninguém mais entra no táxi. Percebo que a última parte do trajeto é completamente diferente da primeira. O trânsito, as pessoas. A maioria dos carros é importada. As residências também são bem diferentes. Nas outras duas partes da avenida, quase que somente apartamentos, espigões. Aqui, a predominância é por casas. Ou melhor, mansões... Vinte e dois minutos após meu embarque, chego à Praça da Bandeira. Evidentemente, fui o primeiro, o que já era esperado por todos. Meu meio de transporte era, disparado, o mais rápido. O que, em um dia comum, pode ser ótimo. Mas, para quem ali estava fadado a observar, confesso, foi um pouco frustrante.
da mordomia à ralação: Alex, Camila, Paola e Letícia na ordem em que chegaram
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Dossiê Ruas
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Peculiaridades, charmes, contornos, contrastes, nuances e histórias de uma das ruas mais peculiares de BH
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André Zuliani - COLABORADOR Jonathan Goudinho - 8º Período
A Praça Irajá é o início da Pitangui, mas também da divergência entre os moradores a respeito do bairro. Aqui é São Cristóvão? Não, Lagoinha. Nem um, nem outro, é Concórdia. Nas toalhas que cobrem as mesas do famoso restaurante Chico do Peixe, está escrito Concórdia. Devido à fama do estabelecimento, com mais de 15 anos de existência, a praça é reconhecida como “Praça do Peixe”. Nas primeiras quadras, a rua é de mão única, há predominância de pequenas casas e sobrados e os passeios com árvores em ambos os lados. Logo após, na altura do número 126, torna-se mão dupla. As árvores continuam, mas pichações aparecem. Em seguida, ambas somem, e as casas, agora vizinhas de comércios, dão continuidade. Pet shop, centro automotivo, lava jato e lanchonete são alguns dos negócios. Quase tudo leva o nome da rua: Chaveiro Pitangui, Troca de Óleo Pitangui, Drogaria Pitangui.
A Pitangui parece ser apenas mais uma dentre as 581 ruas espalhadas pelo território belo-horizontino e que homenageiam grande parte dos 853 municípios de Minas Gerais. Ela impressiona não só pela extensão – percorre oito bairros: São Cristóvão, Concórdia, Lagoinha, Colégio Batista, Floresta, Sagrada Família, Horto e Esplanada –, mas por abrigar moradores de diversas classes sociais. Uma rua que abriga várias vilas. Além disso, ela é esteticamente pontilhada. Até mais que qualquer outra, afinal, ela faz esquina com sessenta ruas, interceptando avenidas importantes, como Cristiano Machado, Silviano Brandão e dos Andradas.
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Dossiê Ruas Quando a Pitangui se “ingremina”, a arquitetura se edifica. É na primeira elevação, pesadelo de carros 1.0 e de motores combalidos, antes do corcovado da rua, que vemos uma construção com mais de dois andares, o edifício Gisa, número 609. A subida curvilínea, no bairro Colégio Batista, chama a atenção de quem sobe o morro por quatro peculiaridades: as árvores são mais frondosas, no lado direito os muros têm grafites, no lado esquerdo, pichações, e os lotes aumentam de tamanho, portanto, as casas e os prédios são bem maiores. Dessas casas, uma mansão se destaca, não por seu enorme e comprido muro encoberto por hera, mas por seu vizinho de frente. Um barranco que abriga casas simples com muros de placa de concreto. Logo em seguida está a Cristiano Machado, uma das principais vias de Belo Horizonte. O cruzamento, a quantidade de ruas paralelas e perpendiculares e o infindo número de carros confundem qualquer um que passa por ali. Mas, alcançado o desvencilhamento, é possível continuar o trajeto, apesar de a Pitangui parecer outra rua.
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Após o cruzamento, volta o predomínio de casas, agora com tamanhos médios e grandes, com garagens cujos portões são eletrônicos deslizantes, basculados e muitos manuais. De grades de ferro, alumínio, chapas e madeira. Além disso, a Pitangui volta a ser sentido único. Por ironia, essa região, agora pertencente ao bairro Floresta, é “inarborizada”. A descida e a mudança de paisagem continuam. Há casas, muitas casas, uma próxima à outra, separadas por cercas, muros ou nada - apenas outra cor de tinta na parede. Ao encontrar a Silviano Brandão, diferentemente do que acontece no cruzamento com Cristiano Machado, não há mudança no sentido da rua. As árvores retornam aos passeios, assim como, em menor escala, os prédios. Se o meio de transporte for um carro, é bem provável que se gaste mais tempo que o desejado. Principalmente nos horários de pico, mas não só neles, o trânsito nessa área é intenso, congestionamentos são comuns. Mas é de esperar isso mesmo, considerando que por ali está o principal polo do comércio moveleiro de Belo Horizonte.
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Agora a rua sobe. Começam a aparecer, em grande número, edifícios residenciais por toda a parte. E essa é mesmo a marca do lugar. O bairro Sagrada Família é o mais populoso da cidade, segundo dados do Censo 2010: são 34,3 mil habitantes. Provém das primeiras vilas que surgiram em Belo Horizonte fora do perímetro da Avenida do Contorno e, por isso, tem características extremamente familiares. São andares e mais andares de prédios para acomodar tantos habitantes. A Pitangui é considerada uma das principais vias de acesso ao bairro – e talvez por isso seja tão desejada pela construção civil e pelos moradores. As casas, que dão alívio à paisagem verticalizada, continuam como outrora: a maioria com grandes portões de grade, muros altos, ladeadas e
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cercadas por árvores. Há carros passando todo o tempo. Gente também, mas em menor número. À medida que se sobe a rua, mais gente vai aparecendo, gradativamente. Lá pelo número 2290, no coração da Sagrada Família, próximo do cruzamento com a rua Conselheiro Lafaiete, outra importante via da região, alguns aspectos interessantes. Por ali estão três colégios – Colégio São Luís Gonzaga, Escola Estadual Sagrada Família II e Escola Estadual Helena Pena –, o que garante intenso movimento de pessoas, carros, vans, ônibus e congêneres o tempo todo. E talvez essa movimentação explique as seis lojas de roupa feminina e infantil no pequeníssimo trecho da Pitangui entre as ruas General Carneiro e Conselheiro Lafaiete.
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Dossiê Ruas É na Rua Pitangui que ficam os portões 3, 5 e 6 e a bilheteria C da Arena Independência, no bairro Horto. A casa do América – embora seja mais do Galo – aglomera milhares de torcedores semanalmente no seu recôndito para vibrar pelos dois times citados. As ruas ao entorno ficam abarrotadas de pessoas festejando as emocionantes partidas de futebol. Na vizinhança do Independência, em
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dias de jogos, surge um gênero arquitetônico bastante singular, o “baragem”. Garagens são transformadas em bares e oferecem iguarias diversas, como macarrão na chapa, tropeiro e churrasquinhos. E tudo isso com custo entre cinco a dez reais. Por isso, o clima no entorno ainda é daquele tempo em que os estádios e o ambiente não eram padrão Fifa. Além desses improvisados, há os fixos:
Ali perto está o Galpão Cine Horto, um dos mais importantes espaços de cultura da cidade, visitado por pessoas de todo mundo. Curiosa e paradoxalmente, os moradores do próprio bairro não têm o hábito de frequentá-lo. Entre o estádio e o centro cultural, há uma rua, Maia Lacerda, que retalha o fluxo do trânsito na Pitangui. Naquele trecho todos os motoristas são obrigados a virar à direita. E na direção contrária, à esquerda. É como se a própria rua proibisse o encontro daqueles ambientes culturais, tão próximos geograficamente e, porque não, emotivamente. Ao cruzar a Silviano Brandão pela segunda vez, se estiver de carro, ficará completamente confuso à procura do seguimento da Pitangui. Para não se perder, vire a direita após cruzar o viaduto, é ali que ela continua. Nesse trecho, antes de cruzar o Arrudas, a Pitangui tem casas modestas e, em certo ponto, é vizinha de muro do complexo penitenciário feminino Estevão Pinto. Após a Andradas, a Pitangui retorna com mais árvores e menos asfalto, a pavimentação é em pedras, com algumas nuvens pretas de piche. Os poucos metros quadrados de asfalto e às árvores de copas altas e robustas deixam o clima naquela região bastante ameno. Ao se esquinar com a rua Antônio Justino, a Pitangui se ajusta a uma viela. Ressabiados.
Na beirada do passeio, uma mulher morena, com tatuagens de borboletas que preenchem as costas e estrelas que ilustram a perna direita, transformou uma meia calça bege, apenas com um nó, em um gorro. Ela conversa com um rapaz negro sem camisa com bermuda azul e chinelo de sola rígida que produz um som característico ao andar, sobretudo quando a passada é feita de forma arrastada. Esse ambiente interiorano da Pitangui ocorre não só pelo fato da rua se tornar viela e das casas serem coladas umas nas outras, mas por aquele quarteirão abrigar uma vila completamente destoante das outras. Tijolos nus, passeios que, de tão estreitos, convidam os pedestres a caminha-
rem na rua, fiações elétricas mais enroladas que namoro de cobras, algumas enjambradas como barriga de cavalo e outras esticadas como corda de viola. O trânsito depende do bom senso dos motoristas. Às vezes, quando há água corrente ao pé do meio-fio, vinda de alguma casa, é possível ver rastros molhados de pneus nos passeios. Essa é a realidade daquele trecho da Pitangui no bairro Esplanada. Após vias de mão dupla, mão única e, por fim, uma ruela, a impressão que dá é que a Pitangui vai se definhando até chegar a derradeira esquina da rua Iara. Uma casa com muro de grade e parede amarela anuncia: é o fim da linha. Número 4.398.
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Dossiê Ruas
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hiago soares
Cantinho do Dengo, Bar do Gordo, Bar Tia Morena, Bar do Branco, Bar do Pardal, Prelimibar e Toca e Passa. No clássico CAM x CRU, em outubro, por exemplo, mesmo com o grande número de pessoas que transitavam, bebendo e comendo freneticamente, devido à ansiedade para o início do jogo, foi raro ver uma latinha no chão. E, quando se via, ela desaparecia rapidamente.
Além de quinze lixeiras móveis da prefeitura, dois jovens catadores utilizaram carrinhos de supermercado para recolher latinhas e garrafas pet. Enquanto isso, dezoito catadores de latinhas munidos de sacos plásticos, rodavam entre os torcedores e eram surpreendidos por um pequeno cachorro de uma mulher. A mala canina latia e saltitava impetuosamente toda vez que algum catador passava próximo à dona.
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Lições de Jornalismo Impressão conversa com Mino Carta e extrai ensinamentos que servem para nortear a prática jornalística e o exercício da profissão FOTOS: NATANAeL VieirA
Alex Moura 5º PeRíODO
André Zuliani
COLABORADOR
João Luís Chagas Jonathan Goudinho Natanel Vieira 8º PeRíODO
Em O Brasil, seu livro mais recente, Mino Carta relata que, em sua infância, adorava folhear os livros de pinturas de seu pai, também jornalista e professor de história da arte. Gostava principalmente das pinturas de Giorgione, artista vêneto que pintou Venus, deusa do amor, nua. Queria ser pintor e escritor, não pensava em ser jornalista. A verdade é que Mino Carta não apenas tornou-se jornalista, mas talvez o maior expoente da história do jornalismo brasileiro. Por suas mãos nasceram publicações históricas, algumas que estão aí até hoje, embora sem a mesma qualidade que possuíam quando Mino as comandava. Felizmente, segue cada vez mais viva a Carta Capital, perto de completar 20 anos de existência. Para esta entrevista, o IMPRESSÃO destacou uma equipe de primeira linha. Além dos alunos Jonathan Goudinho, Alex Moura, João Luís Chagas e Natanael Vieira, participou o colaborador André Zuliani. Que, literalmente, cercaram Mino Carta. Em uma manhã chuvosa de sábado, no dia seguinte após a palestra que proferiu durante o Uni+ Comunicação, Mino conversou com os repórteres por mais de uma hora. E deu uma verdadeira aula de jornalismo, como vocês verão a seguir. Impressão: A Carta Capital é o Jornal da República que deu certo?
Mino Carta: As ideias são, de alguma maneira, sempre as mesmas. Agora, o tempo dita, até no campo das ideias, mudanças. O Jornal da República, por exemplo, tinha uma página sindical, cobria atividades dos operários paulistas e brasileiros, em geral.
Naquele momento, realmente, a estrela de Lula começava a despontar, havia uma renovação sindical significativa, situada, sobretudo em São Paulo, mais especificamente no ABC paulista. Hoje, isso não é mais uma motivação tão forte como foi. As ideias centrais são as mesmas, mas os veículos são muitos diferentes. Um jornal diário é muito distinto de uma revista semanal. A Carta Capital, de todas as semanais que dirigi, é, certamente, aquela que está mais adequada ao nosso tempo, é uma publicação que, inclusive, percebe a necessidade de o jornalismo impresso se exprimir de uma forma diferente de como o fez até anteontem. Existe a convicção que a internet, enfim, esses novos avanços tecnológicos em termos de comunicação, prejudicam o jornalismo impresso, o jornalismo de leitura no papel. Essa pressão existe. Entendo que o alude de informações que nos atinge diariamente torne de, alguma forma, difícil a tarefa de quem se limite a simplesmente noticiar, pois a notícia nos alcança ao longo do dia, em qualquer momento. De certa forma, esse é um processo que começou muito com o rádio e se expandiu com a televisão. Para qual norte aponta o jornalismo do nosso tempo?
Os caminhos do jornalismo, hoje, a meu ver, são os caminhos da qualidade, qualidade em geral, qualidade de texto, na maneira de apresentação, enfim, mas também a análise profunda. Não exige, por parte do leitor, adesão absoluta, mas fornece meios para que ele próprio forme sua opinião. Outro caminho é o do “furo”, é a informação que só você tem. O jornalismo brasileiro, que é um dos piores do mundo – com toda a frieza eu digo isso e com toda honestidade –, é horrendamente ruim, uma coisa espantosa, especialmente porque se alinha de um lado só, sempre, em qualquer circunstância. Contra, digamos, qualquer tipo de
mudança, qualquer esforço no sentido de demolir a Casa Grande e a Senzala. Mas não somente por isso ele é ruim, ele é ruim porque o jornalismo de investigação, o jornalismo para colher o furo, acabou. Acabou completamente... A grande reportagem, a busca de uma informação especialmente, sua. Você vai à rua e procura as pessoas certas, “cavuca aqui”, “cavuca lá”. Isso que eu digo vale, a meu ver, para o mundo todo, não só para o Brasil. O caminho para o jornalismo impresso é o da análise, uma análise muito honesta, o mais possível imparcial, mas densa e bem escrita, bem apresentada. E o caminho do furo, da informação exclusiva. Possivelmente o número de leitores tenderá a decrescer. Mas haverá, eu creio, ao cabo, a compreensão dos publicitários – e os nossos também são os piores do mundo –, de que uma publicação influente, que atinge um público importante e que tem um poder de decisão muito grande, é extremamente valiosa para um certo tipo de anúncio. É mais importante o jornalista trabalhar em busca da notícia exclusiva, o “furo”, ou priorizar a notícia “bem dada”, a notícia
“O caminho para o jornalismo impresso é o da análise”
de qualidade?
A notícia “bem dada” é também muito importante. Se você repisa em algo que já se sabe há 24 anos, e volta a esse assunto, você precisa trabalhar com análise, não pode simplesmente noticiar. Você apanha informações, sim. Mas a partir dela você desenvolve todo raciocínio para levar o leitor a entender o que aquilo significa, a formar a sua própria opinião. Não deve ser uma coisa impositiva, mas deve uma coisa muito bem armada, para que ele possa entender todos os aspectos da questão.
Qual a sua participação, hoje, na produção diária da Carta Capital? Você se envolve como se envolvia nas outras redações que comandou?
Eu trabalho duro! Trabalho, trabalho... Nenhuma decisão é tomada sem passar por mim. Eu controlo absolutamente tudo.
Mais que em Veja e na Istoé?
Não, do mesmo jeito. O que acontece na Carta Capital é que, de uma forma muito mais nítida do que naquelas outras, tanto Veja, Istoé e Senhor no
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tempo em que eu as dirigi, eu não contava como uma diretora de arte tão competente quanto a Pilar Velloso. Ela está funcionando com empenho total desde junho. Nesse período, a revista passou por uma reforma gráfica profunda, o que implicou também em uma reforma, de alguma maneira, editorial, para conformar a revista a esse estilo novo para a imprensa brasileira, que é criado por ela. Repito: Uma moça muito competente! Ela trabalhou no exterior por 15 anos, algo assim. Aprendeu muito bem, ora. Lá fora aprende-se, e muito. Aqui desaprende-se (risos). O site da Carta Capital passou, recentemente, por reformulação, e agora tem conteúdo próprio. A tendência é o site se voltar para a notícia instantânea e a revista procurar contextualizar a informação posteriormente?
O site tem implicações diversas àquelas da revista. Que o conteúdo seja mais contingente, digamos assim, mais ligado ao que está acontecendo naquele momento, é inevitável. Você, realmente, se preocupa, sobretudo, com a informação, em primeiríssimo lugar. Essa é tarefa de um site, informar constantemente ao longo do dia. É óbvio que isso implica em um estilo
diferente, as ideias hão de ser as mesmas, já que parte da revista. Na hora em que você traça uma análise, tem que ser consoante ao ideário da revista, mas, ao mesmo tempo, o noticiário pode ser muito mais seco e direto. Não é a hora, exatamente, de cuidar que aquela informação seja trabalhada para já conter uma análise profunda. Se tem um pouco de análise, tudo bem, mas não é fundamental que esse noticiário tenha imediatamente. A análise vem em forma de vídeo na tvCarta, quando aparece a opinião do Mino Carta no Youtube?
Não... Inventaram que, às quintas-feiras, eu tenho que falar. Aí eu falo, como estou falando com vocês.
Você não usa computador e nenhuma decisão é tomada sem seu conhecimento.
Sem meu conhecimento, não. Eu tomo as decisões! As redações não são democracias! Naturalmente, você tem que ter capacidade de ouvir aquele pequeno grupo de pessoas que realmente assessoram, realmente contribuem.
esse pequeno grupo é formado pelo Sergio Lírio e o Maurício Dias?
Sim. Os dois são ótimos, e são fundamentais.
outros papos O Sergio, de alguma maneira, mais ainda, pois está ao meu lado o tempo inteiro. Nós, na segunda-feira, decidimos e esboçamos já o plano da revista para aquela semana. Em geral, nós partimos com duas ou três ideias de capa, isso na segunda-feira, a não ser que tenha alguma coisa que se imponha como capa, inevitável. Nós sempre temos um plano B e, às vezes, um plano C. A partir daí, não tem um texto, uma paginação, que não passe pelo Sergio e por mim. A minha palavra é a última, tanto no texto quanto na parte da Pilar. Com relação ao site, você lê as notícias somente após serem publicadas?
Ou não vejo. Ainda teremos, creio eu, um ombudsman, digamos assim, aceitando essa estúpida palavra. Além de tudo, essa palavra é meio perigosa, pois parece outra coisa (risos). Teremos um ombudsman para o site, acredito, mais cedo ou mais tarde. Alguém que fiscalize.
em 1988, em uma entrevista ao Jô Soares, vocês concordaram que seu texto era o melhor do Hemisfério Sul. Hoje, ele continua sendo o melhor?
Eu acho que está certo. Não é muito difícil ser o melhor texto do Hemisfé-
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rio Sul. Diria que é facílimo (risos). Quais seriam, hoje, seus concorrentes?
Eu acho que tem gente que sabe escrever. O Geneton [Moraes Neto], por exemplo, sabe escrever, e bem. Mauricio Dias, Sergio Lírio e Nirlando Beirão escrevem muito bem. O texto do Nirlando, por exemplo, tem qualidade literária, texto de escritor. Não se trata de fazer aquele “negocinho”, ou procurar imitar o repórter americano da Guerra de Secessão que inventou a história das cinco perguntas (lead) que têm que ser respondidas logo nas primeiras linhas. Isso é uma bobagem inominável. Naturalmente, você tem que capturar a atenção do leitor, mas você pode capturá-la de mil maneiras eficazes. Aqui no Brasil, chama-se um certo tipo de jornalismo americano, que é o do Norman Mailer, do Gay Talese, de New Journalism. Isso é uma mentira, uma bobagem, não é “new” nada, é jornalismo, ponto.
Joel Silveira já fazia isso há muitos anos.
É. Rubem Braga. Essa espécie de camisa de força imposta pelos manuais de redação, por esse coitadinho do Otavinho Frias, é lamentável. Tudo tem que ser escrito em 30 linhas, a pirâmide invertida... Tudo
conversa fiada. Como deve ser a relação do jornalista com o texto, de maneira a ter boa qualidade sem abrir mão da informação e da língua portuguesa?
Nós inventamos que escrever de uma forma adequada ao povão é melhor maneira de chegar a ele. Isso é uma falácia. Foi por causa disso que o jornalismo brasileiro piorou muito. O jornalismo brasileiro sempre serviu ao poder, às elites, não se discute. Mas houve um tempo em que os jornalistas eram muito mais preparados para a tarefa do que são hoje. Em primeiro lugar porque sabiam escrever. Aí não, baixa o tom, põe umas capas idiotas, interessa-se por besteiras, que é muito a história da Veja, que foi baixando o nível. Outro dia estava dizendo que, depois da minha saída da Veja, ela perdeu a censura, que para eles foi uma maravilha e virou uma revista muito próxima da Ditadura. Mas ainda era bem feita, os textos tinham qualidade. Aos poucos, eles entraram nessa de que era preciso baixar o nível para vender mais, atrás da tiragem. A partir daí a desgraça vem, olha como ela está reduzida. Não somente exageraram do ponto de vista da má qualidade, mas também do ponto de vista do pensamento.
Alguns dos novos repórteres da Carta Capital têm a idade que você tinha quando era diretor da Veja, quando já tinha criado a Quatro Rodas e Jornal da Tarde.
Sim, mas eu tive muita sorte na minha vida profissional. Aí é sorte mesmo, você estar no lugar certo na hora certa. Eu fui diretor de redação para fundar uma revista, para começar do nada, a partir de Quatro Rodas, tinha 26 anos. Nunca parei de dirigir publicações, porque estava no lugar certo na hora certa, não por ser um gênio. Ganhei experiência naturalmente, inclusive de comando, o que não é sempre uma coisa muito fácil. Saber comandar é complicado, mas se aprende.
Qual a melhor equipe você já teve?
Durante o Uni+ Comunicação, Mino Carta comentou sua trajetória profissional e lançou o livo O Brasil
Posso destacar alguns jornalistas que enriquecem qualquer equipe. José Hamilton Ribeiro e o Paulo Patarra, por exemplo, são
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meus companheiros desde a Quatro Rodas, imaginem vocês. Depois Tão Gomes Pinto, que foi meu companheiro na edição de esportes do Estado de S. Paulo, no Jornal da Tarde, na Veja, na Istoé. O Nirlando Beirão, a mesma coisa. O Mauricio Dias foi repórter da sucursal do Rio da Veja e somos amigos desde este momento. Sergio Lírio, que é um excelente jornalista. Ele tem todas as qualidades para exercer a profissão com extrema dignidade e conferindo ao texto qualidade literária. Wagner Carelli é outro, que se perdeu, mas que certamente tem um texto brilhante. Tem um menino lá na Carta Capital, o Willian [Vieira]. O Rodrigo Martins é um excelente repórter, de primeiríssima qualidade. A Cynara [Menezes], boa. O Leandro Fortes, que vai sair da revista. Certamente esqueci muitos nomes, muita gente. Você compõe uma tríade que considera fundamental para o bom exercício do jornalismo: a fidelidade canina à verdade factual, o exercício desabrido da crítica e a fiscalização do poder. em cima disso, onde o jornalista deve buscar a verdade?
A verdade em absoluto não existe. Cada um carrega suas verdades. Eu falo da verdade factual como de alguma forma aprendi com Hannah Arendt, porque é exatamente essa. Estamos em Belo Horizonte, essa é uma verdade factual. A interpretação da verdade normalmente é considerada a própria verdade. Por exemplo, o Estadão tem certeza absoluta de que Lula é um cretino. É um ser que chegou aqui por puro acaso. Seria essa a verdade?
De que modo o jornalista deve lidar com a informação em off, sem prejudicar a parte da tríade que fala sobre a fiscalização do poder?
A informação em off deve ser respeitada, ponto. Agora, quando se oferece a oportunidade de conversar com quem te deu a informação em off, você pode propor a essa pessoa. Ele te deu a informação, em off, que determinado ministro será demitido em três semanas. E o cara é um informante absolutamente sério, se ele disse, será assim. Você pode propor:
“Eu poderia dizer que correm rumores pelos corredores do palácio de qual o tal ministro está a perigo”. Se ele disser que sim, tudo bem. Mas o off precisa ser respeitado. Se você trai a fonte, ela não vai mais confiar em você. Ainda que em detrimento dessa parte da tríade?
Não é em detrimento. Você pode negociar. Se você estabeleceu uma boa relação com a fonte, que é o ideal, você pode negociar. Não vou pôr palavras na boca da fonte.
Até aonde o jornalista pode ir para conseguir a noticia? Qual limite?
Limite em que sentido?
Limite ético.
Proponha um exemplo.
“Naturalmente, você tem que capturar a atenção do leitor, mas você pode capturá-la de mil maneiras eficazes” Omitir a condição de jornalista para conseguir a informação ou o uso de câmeras escondidas...
Nesses casos, depende das circunstâncias. Em geral, eu acho que ética é fundamental. Agir as claras é fundamental. Se você se infiltra num ambiente mafioso, fingindo que você é um homem deles, você joga às favas esse tipo de ética. Lógico. Mas, no caso, você está enfrentando uma coisa que justifica essa traição à ética, porque você sabe que se chegar ali e disser que é jornalista, eles te matam.
A ética do jornalista é a mesma do marceneiro, como dizia Claudio Abramo?
É. De alguma forma.
Você já disse algumas vezes que começou no jornalismo como mercenário. Quando e por que deixou de sê-lo?
Mercenário porque topei dirigir uma revista de automóvel, mas não entendo nada sobre automóvel.
Sequer dirijo. Isso é ser mercenário de alguma forma. Não me saí mal, devo dizer, porque a revista foi um sucesso. Talvez porque eu não entendia de automóvel. Nesse sentido, fui dirigir a edição de esportes do Estado de São Paulo. No próprio Jornal da Tarde eu sabia qual era a posição dos Mesquita e não interferia na questão política. Os editoriais eram da alçada dele. As ideias dos Mesquita não são as minhas. A partir de Veja, eu realmente passei a ditar, de alguma maneira, a filosofia do órgão. Porque os Civita nada sabiam de Brasil, não entendiam onde estavam. Eles ainda se entusiasmavam com a caipiroska e com as palmeiras que eram despenteadas pelo vento noturno. A ditadura também contribuiu para essa transição?
Foi fatal. Nesse tempo, tempo inclusive de censura e riscos variados, você percebe que o jornalismo tem, ou pode ter, uma serventia muito grande. Através do jornalismo você pode deixar algo aos historiadores de amanhã, o que de fato aconteceu naquele tempo. Agora, no país da Casa Grande e da Senzala, isso é uma tarefa, se não impossível, pelo menos muito difícil. Esse é um país sem memória. A memória é destruída, deliberadamente, pelos donos da Casa Grande.
O jornalista é ruim por imposição do patrão ou incorpora o pensamento do patrão para segurar o emprego?
As redações repetem a Casa Grande e a Senzala. Você tem alguns que ganham horrores, muito mais que os grandes jornalistas europeus. Aqui se ganha a rodo. Os senhores do jornalismo latino ganham muito. E depois tem a ralé. Os que ganham muito, por hábito, acabam acreditando nas mentiras que eles próprios propagam. São enganados pelas próprias mentiras.
Como você lidou com os erros ao longo da sua carreira?
Com erro? Meu erro? Não me perdoo. Há os pecados veniais e os mortais. Acho que nunca cometi um pecado mortal. Mas veniais, muitos.
e como lidou com eles?
Tentei corrigi-los. Desesperadamente.
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O repórter do século Histórias, impressões e sensações de um foca após passar um final de semana ao lado de José Hamilton ribeiro, mito do jornalismo no Brasil Natanael Vieira 8° PerÍOdO
Depois de sete horas de viagem, quase exatas, chego a Uberaba. Exceção ao gênero, a rodoviária apresenta-se até bem simpática. Logo que me posiciono à porta da banca de jornais e revistas com o cartaz me anunciando, surge Ana Cristina, sobrinha de José Hamilton. Sorridente, dá as boas vindas e me conduz ao carro. No percurso tranquilo, ela conta que ficara presa no trânsito antes de chegar ao terminal rodoviário. “Antigamente não tinha isso aqui em Uberaba, de demorar no trânsito”, conta, com o sotaque que soa bem a meus ouvidos urbanos. A conversa sobre trânsito, coringa para quebrar o gelo em qualquer situação, flui. Cristina fala sobre as obras de Uberaba e eu das (intermináveis) de Belo Horizonte. O assunto termina junto com o
asfalto. Começa a estrada de terra. É a cara do campo dando o ar da graça. E que ar. Vem das árvores que verdeiam em horizontes imóveis, contínuos, lá adiante. “Chegamos num tiro”, brinca Cristina. Abro a porteira e ela estaciona o carro no gramado, próximo à sede da Fazenda Forquilha. Ao entrarmos, percebemos que José Hamilton ainda está dormindo. Ajeitamos algumas coisas para o café. Decido fazer algumas fotos enquanto Cristina, administradora das terras do tio, resolve pendências. A paz da manhã é regida pelo canto dos pássaros, pelo balançar dos galhos do eucaliptal e pequenas desafinadas de uma ou outra vaca mugindo ao fundo. É um belíssimo lugar. Ouço um barulho na cozinha e deduzo ser José Hamilton. Entro. “Ô, Natanael! Que bom que chegou, rapaz!”, diz, sorridente, ao que eu respondo
sabe Deus o quê. O que dizer? À minha frente, mais de 40 prêmios pelos trabalhos no jornalismo, entre eles sete Esso, um Maria Moors Cabot, pela Universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos, entre outros galardões jornalísticos. Com toda simplicidade e naturalidade, pede que nos sentemos à mesa para o café da manhã. Na mesa farta, pães de sotaques variados: francês, italiano e, claro, mineiro – pãozin di queijo. Consegui o contato de José Hamilton com uma das produtoras do Globo Rural. Ele me atendeu com muita boa vontade. Expliquei que gostaria de entrevistá-lo para meu Trabalho de Conclusão de Curso e para uma reportagem a ser publicada no Jornal IMPRESSÃO. Ele topou sem hesitar e marcamos para o final de setembro. Embora ele tenha se esquecido de que marcamos de eu ir a sua casa em São Paulo, deu tudo certo
e acabamos nos encontrando em Uberaba. Ele preferiu passar um tempo em sua fazenda para se curar de uma intoxicação alimentar. José Hamilton diz estar com “trauma de pamonha”, mas a sobrinha põe a culpa em um bacalhau. Minha visita coincide com o momento em que José Hamilton se recupera da perda da mulher, soube mais tarde. A sobrinha pergunta algumas vezes como ele está, se tem dormido e comido bem. Enquanto estive com ele, sono e apetite não lhe pareceram faltar. Respeita os intervalos entre as refeições e toma um remedinho para ajudar a adormecer. Mas também coincide com a época em que soube da gravidez de uma das duas filhas. Gêmeos. Ele mostra a foto do carrinho duplo de bebê a todos. “Criança é bom demais. Dá uma reavivada na família”, comenta, sorrindo de orelha a orelha. Conhecendo a fazenda
Depois do café, sou convidado a conhecer a fazenda e, a cavalo, ajudar José Hamilton e o Zé, peão e caseiro, a tocar bois na mudança de pasto. Não montava há pelo menos três anos, mas me saí bem. Não caí do cavalo (o que me deixou muito contente), abri as porteiras sem “apiá” do bicho e ainda arrisquei umas corridas no lombo do Trovão – mangalarga preguiçoso para sair, mas ágil para voltar. Experiência fantástica. Tranquilo toda vida, José Hamilton atalha pela plantação. “Passo por lá por causa da sombra e pelo cheiro dessas árvores. Gosto muito”, explica, mirando os eucaliptos. A despeito da prótese na perna esquerda – amputada em função de um acidente na cobertura da Guerra do Vietnã, quando pisou sobre uma mina –, ele faz tudo com desenvoltura. Na volta à sede, o almoço já se anunciava. “Natan, seu quarto já foi preparado. É bom tomarmos um banho agora e depois a gente almoça”, sugere. Passamos quase duas horas na
tocada do gado e no passeio pelas instalações de porcos e frangos e a fome já se fazia escutar. Duas coisas muito melhores em fazendas: banho, com aquele jato de água que lava até pensamento ruim, e comida. O fogão não era à lenha – como você pode estar imaginando –, mas os alimentos têm, naturalmente, mais sabor. Diria que têm sabor, na verdade. E os quitutes? Suspiro (não me lembrava da última vez que ouvi alguém dizer essa palavra!), rosquinha de leite, compota de casca de mamão, queijo com goiabada, doces açucarados. Mas José Hamilton prefere os “menos doces”. Após o almoço, ele revela dois hobbies. Faz os dois no mesmo cantinho da fazenda. Estica uma rede e se dedica à leitura. Está maravilhado com Cervantes. De vez em quando, comenta algo sobre o livro, o autor, Dom Quixote, Sancho Pança, as situações dos dois amigos, enfim. O outro passatempo encaixa-se nos intervalos da leitura: observação de pássaros. Não sabe diferenciar muitas espécies, gosta mesmo é de ver o movimento das avezinhas, elas se alimentando no comedouro que preparou, nas confusões que inventam umas com as outras. O que a preocupa é a frequência com que os passarinhos têm visitado o local onde coloca o alpiste. “As abelhas descobriram essa comida e agora os canarinhos estão com medo delas”, explica o conflito. “Mas na hora que a fome aperta, eles descem e comem, com ou sem abelha”, completa. Conversamos sobre tudo nesse meio tempo. José Hamilton tem no currículo as redações das revistas Quatro Rodas, Realidade – marco do jornalismo literário no Brasil–, Globo Rural, Folha de S.Paulo, Globo Repórter, Fantástico. Trabalhamos na mesma emissora. Eu na Globo Minas e ele em São Paulo. A todos me apresenta como “colega lá da televisão”. Ele conta que está produzindo uma reportagem para o Globo
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Rural sobre São Gonçalo. “Não era um santo como se vê normalmente. Ele se dedicava a converter mulheres de vida incerta. Mas dizem que gostava de uma festa”, cochicha. Em outro ponto da conversa, deixa claro seu descontentamento com a imprensa superficial. “Jornalismo tem que agregar, tem que se aprofundar. Não pode ser raso!”, sentencia. A revista Realidade é recorrentemente apontada como a “representante do New Journalism no Brasil”. Há estudos acadêmicos que fazem coro, outros refutam. José Hamilton Ribeiro não considera equivocada a associação entre a corrente norte-americana de Gay Talese, Tom Wolfe, Norman Mailer, Truman Capote, entre outros gênios do jornalismo. O repórter atribui ao contexto histórico, os anos 1960, a fórmula detentora dos ingredientes para o surgimento do moderno modo de se fazer e pensar a notícia, a escrita e a profissão. “A cultura jornalística brasileira daquele tempo estava precisando de uma mexida, uma... eu não digo renovada porque não é uma renovação, mas é um jeito novo, um olhar novo para as coisas que eram retratadas pela imprensa”, avalia. Na linha desse novo modo de se fazer jornalismo, José Hamilton me conta como foi traçar o perfil de um coronel da cidade de Limoeiro, no agreste pernambucano. A
reportagem foi publicada na revista Realidade em novembro de 1966, mas é contada como se tivesse acabado de ser vivida. – Naquela época, falava-se muito ainda do coronelismo que existia no Nordeste, dos currais de votos. E votos comprados... assim, no atacado, por intermédio de cabos eleitorais fortes que eram os coronéis. Mas isso era um folclore, uma coisa que se falava muito, mas não se pegava na mão. Como que se faria uma denúncia desse porte? Então, fazer o perfil do Chico Heráclio foi a forma que a revista encontrou para mostrar a realidade por meio da vida daquele homem. Pergunto se ele não fi-
cou com medo. Afinal, os coronéis, ao que me constava, costumavam andar com capangas bem “aparelhados”. O repórter responde: – Havia certa tensão, certa eletricidade. Mas medo eu não cheguei a sentir. Porque teve um momento capital na apuração: quando ele pergunta pra gente quanto vai custar a reportagem. Até então, ele tava amarrado. Ele raciocinava que se falasse muito, ficaria muito cara a reportagem. Depois de esclarecer a Chico Heráclio que ele não teria de pagar nada, a reportagem passou a correr mais tranquila. “Por aqui, tudo que fazem comigo eu tenho que pagar”, disse o coronel. A gente é que estava pensando que teria que pagar a ele!”, confessa Zé Hamilton. Depois de comentar que um dos objetivos de meu TCC é identificar os momentos nos quais ele registra os sotaques e outras peculiaridades da fala dos personagens, seu semblante até muda. “Isso é uma preciosidade. Quando você consegue captar, né? Às vezes o camarada fala uma frase bonita, mas fora do contexto. Quando você consegue pegar um personagem que tem um jeito próprio de falar, tem os provérbios, os dizeres, e você consegue captar isso, é uma delícia, enriquece demais a reportagem”, avalia. Sobre como a pauta e como é vista atualmente, José Hamilton não esconde sua opinião. “Bons jornalistas dizem que não existe pauta ruim, existe a ineficiência na hora de realizar, né?”, brinca. Fico
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imaginando em qual campo ele se colocaria, neste caso. Ele mesmo completa: “Mas, eu acho que há pautas boas, pautas que saltam, que brilham e outras que não, que são arrastadas”. Nesse momento, José Hamilton relembra outra reportagem. Nesta, publicada na revista Realidade junho de 1968, ele descreve a rotina da guerra, o dia a dia no front e o convívio com os vietnamitas. Foi durante a execução dessa pauta que o ele perdeu parte da perna esquerda. Pergunto como ele fazia para não redigir os textos e não perder as informações naquele ambiente hostil aos nativos e ainda mais a jornalistas estrangeiros. “Eu só tinha um caderno. Fazia as anotações cifradas, só pra eu me lembrar. Com medo que me tomassem o caderninho, elas eram mínimas. Não escrevi nada lá, só fui escrever nos Estados Unidos, quando estava em tratamento”, relembra. Despedida
Meu tempo está se esgotando, começo a arrumar minhas malas. Enquanto José Hamilton lê no cantinho da rede, passo anotações para o computador e rezo para não ter problemas com o equipamento. Registro tudo no celular, num iPod, num Panasonic RQ-L11, gravador de fita cassete emprestado – daqueles grandões –, e algumas impressões em folhas de papel ou na mão mesmo, coisas para não me esquecer. Não há internet na fazenda. E com a sorte que tenho, para todos os aparelhos pifarem e os papéis serem molhados por um vazamento vindo de uma
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parede que sequer havia encanamento, pouco custa. Por isso, rezo. Acho que fui ouvido. Percebo que José Hamilton se cansa às vezes. Respeito esses momentos. Seus 78 anos merecem respeito. Lembrei-me que ele havia falado duas ou três vezes, durante o passeio a cavalo, que tinha um chapéu igual ao que eu usava, mas que perdera o estimado objeto. Entrei em seu quarto e deixei sobre um banco, como lembrança. A despedida foi breve. Saí, confesso, muito emocionado. Cristina já aguardava para me levar à rodoviária. Pode parecer “lugar comum”, mas minha bagagem voltaria a Belo Horizonte deveras mais pesada. E não apenas por conta dos doces que comprei e do canivete que ganhei de presente. Pude perceber, com mais clareza, o valor que um profissional com mais de cinco décadas de plena atividade atribui ao papel do jornalista na sociedade. A reportagem sobre o coronel Chico Heráclio, por exemplo, expôs à os mandos e os desmandos de um homem que governava uma cidade a seu bel prazer. Além disso, a falta de equipamentos também não pode servir de desculpa. José Hamilton usou de inteligência para codificar as informações que apurava no Vietnã, mas, de concreto, se valeu apenas lápis e papel. Concluo que sou um repórter normal, em busca de aprimoramento, entrevistando um ás da reportagem. Eu disse “entrevistando”? Desculpem. Queria ter dito “tendo aula”.
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Vida de bombeiro é fogo Nem só de incêndios vive a corporação: a rotina além dos chamados de emergência PAOLA GOMeS
legenda legenda Há nove anos no Corpo de Bombeiros, Fernanda
Ione Caetano Juçara Moreira Paula Vieira Paola Gomes Poliana Michelleti 6º PeRíODO
Devido à necessidade de desempenhar atendimento em outra vertente do militarismo, em 1911, iniciou-se a criação do Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais (CBMMG). Naquela época, o então presidente, Júlio Bueno Brandão, assinou a lei nº 557, que previa a organização da Seção de Bombeiros Profissionais, de modo a aproveitar o efetivo da guarda-civil. Até 1997, era uma instituição interligada à Polícia Militar. Após a greve, naquele ano, o registro foi alterado e surgiu o Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais. Devido à greve, os militares conseguiram mais liberdade de expressão e relacionamento com a população. O que possibilitou a realização da pauta, passar um dia conhecendo e acompanhado a rotina do batalhão. Três batalhões se subdividem em 10 pelotões que atendem as demandas convencionais e de ações aéreas em Belo Horizonte e na Região Metropolitana. Fomos à Avenida Presidente Antônio Carlos, nº 4013, bairro
Markowisk usa a competência para driblar o preconceito
São Francisco, no 3º Batalhão de Bombeiros de Minas Gerais, responsável pela maior área de recobrimento do estado. Subir a mais de 50 metros, em um caminhão de salvamento, foi uma experiência única. Apesar disso, é possível perceber que o ofício dos bombeiros vai além de vestir farda e atender ocorrências de ‘grande vulto’. Influenciado por amigos e familiares, Cleyton Batista de Jesus, 25, abandonou a Engenharia Eletrônica e fez o Curso de Formação de Soldado. “Desde 2006, quando entrei nos bombeiros, convivo com a dúvida de não saber quando estarei em casa. No início, trabalhei na cidade de Três Corações, mas recorri e consegui voltar para Divinópolis”, explica. A saudade dos familiares e amigos é a principal dificuldade enfrentada por Cleyton, que, hoje, em Belo Horizonte, participa do Curso de Formação de Oficiais. “Prestar outro concurso foi uma opção para conseguir ajudar ainda mais meus familiares. Estou longe e isso não é fácil. Já pensei em desistir. O que me dá forças é saber que eles estão em Divinópolis e precisam de mim”, acrescenta. Mulheres de farda
Unhas pintadas de vermelho, brincos pequenos, batom e ma-
quiagem neutra. Bruna Carla Conceição de Souza, 29, estava de sentinela no 3° BBM. Por se interessar pela área da saúde e achar belo a atividade dos bombeiros, ela queria pôr em prática, na corporação, a formação de técnica em enfermagem. “Fiz o curso de primeiros socorros na Cruz Vermelha. Lá, tive certeza que esta seria a minha carreira”, confessa. Atraídas pelo serviço, as mulheres ainda enfrentam preconceito e sofrem com o desgaste da profissão. “Somos muito cobradas. Por isso, algumas desistem. Trabalhando, convivemos com discriminação e restrições durante a realização de determinadas tarefas. Na academia, desempenhamos as mesmas atividades dos homens, mas com prazos diferentes para execução”, comenta, ao explicar que tais prazos podem comprometer, por exemplo, o atendimento a ocorrência. “Por isso que existe limitação quanto ao número de mulheres nas operações”, completa. A participação delas na área operacional e nos alojamentos é reduzida. O motivo é a porcentagem das vagas femininas na corporação, apenas 5%. Devido às condições de trabalho, muitas migram para o setor administrativo. “Lá consegui concluir a graduação, por trabalhar das 8h às 17h30. Dá tem-
po para frequentar as aulas à noite. No operacional, são 24h, com folga de 48h. É mais complicado ter compromissos acadêmicos”, acrescenta. Assédio
Mesmo fardadas, elas são desrespeitadas e ouvem comentários desagradáveis. Fernanda Langbehn Markowisk, há nove anos na instituição, dirige um dos veículos de emergência, o caminhão ‘auto-bomba’. “Sempre ouço comentários desnecessários, cheios de malícia e falta de respeito”, desabafa. Em sentido contrário ao machismo, quem deu início à carreira de Fernanda foi o pai, “Ele me inscreveu no processo seletivo. Porém, dirigir o caminhão não fazia parte dos planos”, relembra. A oportunidade surgiu há três anos, quando ela atuava como motorista da viatura de poda de árvores. Devido à falta de militares interessados, o convite para o cargo tornou-se inevitável. “A missão é muito complexa. O motorista é responsável pelas infrações e acidentes de trânsito que envolvem as viaturas. Por isso é que ninguém quer. Gosto do que faço e tenho muito orgulho. Estou esperando a oportunidade de me habilitar na categoria E, e, quem sabe, vir a dirigir carretas”, conclui.