Edicao 196 - Caderno 2

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DO!S Jornal Laboratório do Curso de Comunicação Social do UniBH Ano 32 • número 196 Outubro de 2014 Belo Horizonte/MG

E quando acaba a gente pensa que ele nunca existiu... Cada vez mais usadas em shows e musicais, holografias matam saudades e despertam polêmicas entre fãs e críticos. Veja reportagem nas Páginas 6 e 7.


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Literatura

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Coração de cronista, alma de passarinho Jornalista Ricardo Albino abre seu báu de histórias

fotos: wilson albino

O amante das letras não abre mão de exercitar o corpo e a mente

Alex Moura Wilson Albino Em 14 de dezembro de 1977, Ricardo Flávio Mendlovitz Albino estreou na vida prematuramente. Seu nascimento se deu no sexto mês de gestação, e por causa disso, teve parada respiratória e falta de oxigenação no cérebro. Tais fatores ocasionaram uma paralisia cerebral, que afetou severamente sua coordenação motora e sua visão. Tudo bem ser diferente, mas irradiar alegria, independentemente das adversidades, é incomum. Ao longo da vida, seus pais sempre o incentivaram a enfrentar os desafios, a ser feliz e a tornar-se independente. Basta um curto diálogo com Ricardo para con-

firmar que é mesmo por meio do fruto que se conhece a árvore. “Considero minha família algo fundamental”, afirma Ricardo. Em sua trajetória, os ídolos e os amigos também desempenharam papeis importantes. Foram eles as inspirações, as diretrizes e as pontes que possibilitaram conquistas, até então, inimagináveis. Há oito anos, Ricardo Albino realizou um de seus sonhos: formou-se em jornalismo pelo UNI-BH. “Eu nunca soube, ao certo, se escolhi ou fui escolhido pela profissão que hoje exerço com tanto orgulho”, declara. O jornalista faz da crônica uma arte para unir linguagem, pensamento, sentimento e liberdade, sem qualquer tipo de preconceito. “Por meio

das crônicas, conto a vida de dentro para fora”, afirma. Quando a discussão em pauta está ligada a música ou acessibilidade, Ricardo se empolga, pois são assuntos que ama. Já os livros e os shows, além de alegrias, são para ele inesgotáveis fontes de inspiração. “Se eu pudesse, moraria numa rádio”, comenta o jornalista, que diz amar todos os gêneros. “Meu gosto musical passeia por várias vertentes”, completa. “Assim como ouço ópera, MPB ou samba, do mesmo modo ouço axé, rap ou funk. Sou mesmo assim – eclético”, conclui. No universo da música há uma canção com a qual Ricardo se identifica muito, a ponto de emocionar-se sempre que a escuta. “Esta é minha história musicada”, afirma. Trata-se

da canção “Tente outra vez”, de Raul seixas. “É uma musica maravilhosa. É belíssima, além de alimentar minha esperança, ainda resgata e humaniza tudo que senti e vi por causa de várias cirurgias e internações e hospitalares”, relembra. É fácil perceber que Ricardo Albino emociona-se com frequência ao recordar maus ou bons momentos, todos vivenciados com intensidade. O cronista sorri muito ao lembrar o dia no qual Ivete Sangalo sentou-se comodamente em seu colo. Momento que entrou para história, literalmente. Tal instante ficou eternizado numa foto, que serve de prova, e que Ricardo guarda cuidadosamente. O esporte foi um dos motivos que me levaram ao jornalismo. “Quan-


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do ainda sonhava em andar, queria jogar futebol no Flamengo. E por falar nisso, lembrei-me do Galinho de Quintino”, afirma. Ao falar de uma visita que fez a Zico, hospitalizado por causa de uma operação no joelho, o rosto de Ricardo se ilumina com um sorriso. O jornalista chega a fechar os olhos e abraçar-se consigo mesmo, numa tentativa de reconstituir, por meio da imaginação, o tão sonhado abraço do ídolo. Quando perguntado sobre seus projetos, Ricardo afirma que é movido a sonhos, e que lançar seu livro de crônicas, “Alma de Passarinho”, é um deles. O cronista sonha também em viver numa Belo Horizonte em que haja mais acessibilidade e menos preconceito com os portadores de deficiência física. Entre uma revelação de projeto e outra, ficou evidente que seu anseio maior é constituir uma família. Seus olhos brilharam ao dizer que já se vê bem casado e embalando seu filho carinhosamente, ao qual dará o nome de Rafael. Se for menina, Rafaela será sua graça. “Independentemente disso, o bebê que vier será amado e muito bem cuidado. Quero ensinar para minha criança tanto a importância das pequenas coisas, quanto o valor das coisas que considero nobres. Como, por exemplo, respeitar as pessoas e aceitá-las como são, não importa a cor, credo ou posição social,” declara. O futuro pai e esposo disse que, para embalar o bebê durante as noites, pretende cantar baixinho um sem número de antigas canções de ninar. Músicas que ele traz guardadas den-

tro de si, e que, em certos momentos, desencadeiam uma sequência de delicadas lembranças. “Tudo é fruto da educação e do amor que recebi de minha família”, afirma.

Ricardo é presença confirmada nos treinos de bocha

Ricardo é cadeirante, e, por isso, romper limites tornou-se sua maior especialidade. Entretanto, o preconceito é um obstáculo que surge diariamente em seu caminho, e, apesar

de invisível, em certas ocasiões parece quase intransponível. Ao comparecer a shows, incontáveis vezes, Ricardo já foi questionado por outras pessoas: “o que você está fazendo nesse ambiente?”. Em perguntas assim, o preconceito se faz presente nas palavras, mas é no desvio dos olhares, na ignorância ou na apatia dos gestos que ele mais se evidencia. Às quartas e sextas-feiras, Ricardo tem um encontro marcado, para treinar bocha. O esporte, que foi inventado na época do império romano, conquistou adeptos em todo mundo. O Brasil já conquistou a medalha de ouro por duas vezes no jogo de bocha paralímpico. É no espaço aberto pelo Programa Superar que Ricardo joga. “Já disputei um torneio e fui vice-campeão dos Jogos paradesportivos em 2011. Tudo graças à professora Anita, meu anjo da guarda, que me apresentou à bocha, ao basquete em cadeira de rodas e à dança esportiva. A partir daí são 3 medalhas na estante e a vontade de estar no Rio 2016”, diz. As calçadas irregulares, a falta de rampas, ou mesmo as placas afixadas no meio dos passeios públicos, dificultam a vida dos deficientes físicos. Bem-aventurado o cadeirante que nasceu com o coração de cronista e com alma de passarinho, pois as irregularidades locais obrigam-no a fazer melhor uso das asas que dos membros inferiores.


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Artes visuais

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Cupcakes divertidos colorem a cidade e estimulam população a observar a paisagem

Isabelle Lima Luana Arcuri Marcela Hilário Nathália Simões Eu era um bolinho pequeno, triste e sem cor. Até que, certo dia, alguém decidiu me colorir e me caracterizar. Virei personagem de desenho animado, vilão de filme e agora qualquer pessoa pode me ver pintado nos muros de BH. Eu era uma ideia, um pensamento, saí do metafísico e virei arte. E, hoje, embelezo a cidade. Ao caminhar pelas ruas, pode-se perceber que, na maioria das paredes, há vestígios de grafite, tipo de arte que se expande rapidamente, ga-

nhando espaço nos grandes centros urbanos. Em Belo Horizonte, a mais destacada obra do gênero são os cupcakes animados, ou, simplesmente, “bolinhos”, como são carinhosamente chamados. A criadora de tais desenhos, hoje espalhados pela capital e em cidades do interior, é a itabirana Maria Raquel Bolinho, que se formou em Letras na UFMG. Seu objetivo é levar arte a todos os tipos de pessoas, sejam elas crianças, adultos, homens ou mulheres. A iniciativa tem surtido efeito. Grafites são desenhos que deixam a cidade colorida e hospitaleira. Alguns são compreensíveis, outros não. Os bolinhos de Maria Raquel, porém, chamam a atenção de qualquer um, apesar da dificuldade das pessoas em perceber o mundo

ao redor – o que remonta, por vezes, a rotinas diárias que se resumem em correria. “Não tinha reparado nos bolinhos, mas achei a ideia legal. Agora, vou prestar mais atenção nas ruas da cidade”, comenta o estudante Yuri Sousa. O curioso é lembrar que os espaços urbanos estão repletos de paisagens naturais, construções históricas e obras artísticas, clássicas e populares. De olho nas ruas Você seria capaz de lembrar ao menos cinco obras presentes nas ruas de Belo Horizonte? Que tal o Pirulito da Praça Sete de Setembro, a Igrejinha da Pampulha, o Coreto e a Praça dos Fundadores do Parque Municipal ou o Palácio da


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Artes visuais

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o fato de deixar a cidade mais bonita, o grafite funciona como ferramenta de manifestação de insatisfações políticas, principalmente, de jovens. Ao andar pelo Centro de Belo Horizonte, em regiões próximas à rodoviária e ao viaduto Santa Tereza, é possível ver a arte de muitos grafiteiros. Na região Centro-Sul também é comum depararmos com muros inteiros cheios de desenhos, principalmente, na Savassi. Que o diga a rua Professor Morais, no bairro Funcionários, onde fica um dos bolinhos de Maria Raquel.

A arte não se cala nos muros da cidade

Liberdade? Trata-se de monumentos artísticos espalhados pela capital mineira. Por vezes, nem as reconhecemos, não é, mesmo? O que dizer, então, dos grafites da cidade? Lembra-se de algum? Sabe contar onde ele estava? Demorou, mas o gênero vem sendo reconhecido por sua importância no processo de recuperação visual das cidades, principalmente, nos grandes centros urbanos, que convivem com a sujeira proveniente da indústria, do trânsito, do comércio, das residências. Essa arte conta, justamente, com o intuito de valorizar espaços públicos e/ou privados, e tem muito a ver com o cotidiano da urbanidade. Além disso, o grafite busca realizar crítica a assuntos discutidos no momento, com ênfase àqueles relacionados à política. Por meio dos bolinhos, Maria Raquel repercute tais temas, assim homenageia personagens de séries e filmes. Há, ainda, bolinhos especiais, para datas comemora-

tivas. A verdade é que inspiração e assunto não lhe faltam. A estudante Thais Teixeira passou a observar com maior atenção a arte urbana. “Esses grafites me chamaram a atenção pela criatividade e pela beleza. Comecei a reparar os bolinhos desenhados em vários pontos de Beagá”, conta. Confusão Graças à Lei 12.048, sancionada pela presidente Dilma em 2011, a prática do grafite não constitui crime se houver autorização do proprietário da área. A regra é de extrema importância para valorizar ainda mais o trabalho de artistas como Maria Raquel, que, por meio de traços milimetricamente pensados, embelezam a cidade. Apesar de ainda ser visto com preconceito por certas pessoas, o grafite era tratado de maneira ainda pior, sendo, por vezes, confundido com a pichação – considerada vandalismo, além de contribuir com a poluição visual da cidade. Afora

Muitos estilos Existem várias modalidades de grafite. O 3D, por exemplo, transmite às pessoas a sensação de que fazem parte da obra. Já o estilo “de livre figuração” envolve caricaturas, elementos abstratos e personagens de histórias de quadrinhos. Outra modalidade, também encontrada em Belo Horizonte, é o gênero “reverso”, feito sem qualquer tipo de tinta. Usam-se, apenas, água e pano, além da criatividade do autor. Trata-se da elaboração de desenhos em lugares sujos, com uso destes próprios materiais. Questiona-se, assim, por exemplo, se as cidades têm boa limpeza urbana. No Complexo da Lagoinha, o artista visual Drin Cortês, a convite do jornal O Tempo, fez o grafite reverso de uma série que pretende ocupar vários pontos da região. A ideia do colorido é fantástica, mas será que realmente o enxergamos? Nas grandes cidades, grande maioria das pessoas é bastante distraída. Sem contar os apressadinhos, que só veem o que está à sua frente e têm como único objetivo chegar em seu destino. Nos ônibus, o que se vê são indivíduos grudados em smartphones, alheios ao mundo para além das janelas e pronto a ser explorado pelos olhos. Alguns já abatidos pelo cansaço do dia a dia, nem forças têm para mantê-los abertos. Legal mesmo seria estar no lugar de um bolinho. Imagine só viver a emoção de ganhar um Oscar? Ou de ser um zumbi da série The Walking Dead? Quem sabe pôr um fone de ouvido e sair correndo, a sentir apenas a emoção causada pela música. Ou tornar-se o Chaplin e sentir o gostinho de ser um gênio do cinema.


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Música

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Eles estão

Grandes astros da música nacional e internacional fotos : mariana gualberto

Mariana Gualberto Eu vi Elvis. Sim, no ano passado, eu vi o rei do rock no palco. Mais ainda: vi o espetáculo Elvis Presley in Concert, a maior turnê já realizada com um artista que – ao menos, “aparentemente” – não permanece entre nós. Era outubro de 2013, uma noite movimentada no entorno do Mineirinho, em Belo Horizonte. Filas e mais filas de carros estacionados me fizeram andar muito, depois de encontrar uma vaga bem distante do portão de entrada. Uma legião de fãs, composta, em sua maioria, por pessoas mais velhas, ia aos poucos preenchendo as cadeiras do ginásio. Havia uma parcela de jovens, acompanhados daqueles que pareciam ser seus pais e avós. Havia, também, os jovens acompanhados de jovens. Em meio a camisas estampadas com o rosto de Elvis e pessoas perfeitamente fantasiadas como o próprio, o público foi ganhando identidade. Com parte do local já ocupado, as luzes se apagaram. Era a hora de o espetáculo começar. Em meio a telões de LED gigantescos, a imagem do mito surgia, projetada como mágica, numa apresentação em perfeita sincronia com os inúmeros músicos no

palco. Não se trata, contudo, de quaisquer músicos; muitos deles acompanharam Elvis em vida, o que aumentou a sensação de deslumbramento da plateia, que sabia de tal detalhe. Aquilo me encantou. Emanava história daquele palco. História, por sua vez, que refletia diretamente no brilho dos meus olhos e de toda a plateia, que permanecia atenta a cada movimento. Naquela noite, ouvi clássicos como Love me tender e Always on my mind e vi o que nunca havia imaginado ser possível: Elvis, ainda que num telão, numa projeção, em plena ação. Era a tecnologia me presenteando com o deleite de assistir a um show do rei do rock 36 anos após sua morte. Holografia e música Michael Jackson e Tupac não morreram? Cazuza e Renato Russo foram vistos em 2013, em solo tupiniquim! Seria a volta dos que nunca foram? Muito vivos no imaginário popular, grandes nomes da música conseguiram a façanha de se “reapresentar” para os fãs anos após suas mortes. Tudo graças a outro nome que também já não está mais entre nós, o húngaro Dennis Gabor, prêmio Nobel de Física em 1971, responsável

pela invenção e pelo aprimoramento da holografia. O recurso é uma espécie de projeção aperfeiçoada, que propicia, ao espectador, imagens mais reais, devido à sensação de profundidade oferecida pela técnica. Desde 2012, quando Tupac, já mor-

Elvis ressurge no palco do Mineirinho

to, apareceu ao lado de Snoop Dog, por meio da holografia, em um show do rapper no Festival Coachella, a técnica tem ganhado espaço no cenário musical. Em 2014, foi a vez de outro astro internacional “dar as caras”: Michael Jackson apareceu no Billboard Music


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música

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entre nós!

retornam aos palcos graças à técnica da holografia Awards e surpreendeu a todos. A técnica da holografia, que não encanta apenas os gringos, ganha força também em solo brasileiro. Em 2013, dois grandes nomes da nossa música ressurgiram no palco. Cazuza esteve no show em homenagem aos 50 anos que completaria caso estivesse vivo; já Renato Russo apareceu, em forma de holograma, na música “Há tempos”, durante o especial “Renato Russo Sinfônico”, do canal Multishow. Omar Marzagão, produtor e diretor da Se7e Ar7es Produções, que idealizou a homenagem a Cazuza, comenta a preocupação e o respeito que envolveu a produção do espetáculo. “Fizemos algo que representasse o Cazuza, queríamos mostrar suas etapas criativas. Procuramos montar a banda com parceiros dele, representando sua carreira”, comenta. O produtor, que decidiu trazer a técnica da holografia para o Brasil – após, numa viagem a Londres, ter conhecido a empresa responsável pelo holograma de Tupac – aponta as vantagens da tecnologia: “É uma experiência sensorial, um passo muito bacana para relembrar o artista. Ninguém o está ressuscitando. Estamos apenas mostrando como era um show dele”.

UniBH, enxerga pontos positivos na prática. “Trata-se de tecnologia com recursos muito interessantes, mas todos sabem que a holografia apresentada é uma imagem e nada mais. Cabe aos atuais detentores dos direitos autorais, como é o caso do filho de Renato Russo, resolver dar esta destinação ao acervo sob sua guarda”, pontuou. Para Soraia Carellos, professora de Psicologia da PUC Minas, a prática da holografia relacionada a músicos já fale-

cidos reflete, em certa medida, a relação do homem com a morte. “Vivemos num mundo, principalmente no Ocidente, em que esquecemos o tempo todo sobre a questão da morte. A gente fala que querer é poder, mas isso é mentira. Não sei se seria dificuldade em lidar com a morte, mas tem algo que remete a essa relação. Temos tido dificuldade de lidar com o fim, em face da longevidade, das questões sociais e econômicas alcançadas”, comenta.

Saiba mais...

Questão de ética Um ponto que merece destaque com relação ao tema é a questão ética. Há quem se pergunte se é moralmente correto trazer ao palco artistas que já morreram. Luiz Magalhães, mestre em Filosofia pela UFMG e professor do Toquinho prevê um encontro consigo mesmo, por meio da holografia

Os vivos também podem A tecnologia holográfica também caiu nas graças de artistas vivos. O músico Toquinho completa 50 anos de carreira em 2014 e pretende comemorar de forma bem moderna. Realizará um encontro com sua imagem mais jovem no palco, numa interação cheia de história. O projeto foi idealizado pela Se7e Ar7es Produções, a empresa responsável pela holografia de Cazuza em 2013. Toquinho acredita que “o encontro consigo mesmo” será uma experiência divertida. “Talvez eu me sinta um Dorian Gray ao avesso, como se o retrato fosse eu, e o holograma, o Toquinho de hoje. Será, no mínimo, estimulador! Achei também muito sugestiva a expressão “Arte do encontro” para título do

espetáculo. Gosto dessa ideia lúdica de brincar com o tempo e comparar os retratos de cada época”, brinca. Quanto à origem da ideia de usar holografias, o músico defendeu o uso da técnica, que alinha a tecnologia à arte, enquanto ponte entre o passado e o presente. “Temos de usar toda forma nova de tecnologia. Se a holografia nos permite isso, por que não usá-la? Transformar a ilusão numa realidade viva, ativar um passado e conviver com ele numa espécie de agradecimento a tudo que se construiu com garra e talento é uma forma de mostrar às novas gerações que o tempo pode ser recuperado sem angústias ou ressentimentos”, pontua. Sobre o uso do recurso para revi-

ver artistas já mortos, o músico também se mostra a favor e ressalta que o mecanismo é interessante para maior compreensão dos fatos. “Enquanto se puder conservar a arte, a cultura de um povo será cada vez mais viva. Reviver astros ou personagens de outra época é um recurso inteligente e ainda uma novidade que facilita a interpretação da história”, pondera. Em 2012, ao comemorar seus 70 anos, Gilberto Gil usou a técnica para interagir consigo mesmo no palco. A holografia durou pouco mais de cinco minutos e o dueto aconteceu durante a música “Lamento Sertanejo”, na apresentação para o “Festival Natura Musical”, em Belo Horizonte.


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Cinema

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Mary Poppins, 50 anos da babá mais que perfeita! Rodrigo de Olliveira Quando se assiste ao filme Mary Poppins, não se imagina o quão difícil foi comprar os direitos de produção para o cinema. Walt Disney, que sempre foi um dos mais respeitados produtores de filmes, teve que rebolar para convencer a autora P. L. Travers, a conceder a tão esperada autorização para a produção cinematográfica que há 50 anos vem conquistando novas gerações de fãs. “Não quero que mude a história”, dizia a autora, que já havia escrito alguns livros da série literária de Poppins. Após duas décadas de conversas, e a garantia de um contrato de 100 mil dólares, incluindo 5% dos lucros de bilheteria, Walt Disney conseguiu os direitos de produção, dando início à seleção do elenco. Outra condição da autora foi sua participação direta no roteiro. O crítico de cinema Renato Silveira, responsável pelo site Cinema em Cena, não sabe se a história aconteceu exatamente como o estúdio descreve, mas acredita que todo o esforço de Walt Disney tenha valido a pena. “O filme tem apelo atemporal, e mesmo não conhecendo o livro de Travers, reconheço na produção cinematográfica um trabalho de grande qualidade”. Silveira ainda relata: “É uma história que conversa com todas as gerações, independentemente de ser situada em década tal. Além disso, vale lembrar que a televisão foi responsável por perpetuar a exibição do filme durante muito tempo e o estúdio sempre foi bom em não deixar suas produções de sucesso serem esquecidas”. A escolha da atriz Mas em um projeto tão grandioso, qual a atriz ideal para interpretar Mary Poppins? A resposta veio quando Disney assistiu à peça Camelot, protagonizada pela atriz e cantora, Julie

Andrews. A atriz seria a escolha perfeita para o papel, que exigiria um dinamismo muito grande por parte de sua intérprete, que teria que cantar, dançar, interpretar e emocionar o público alvo mais sincero e exigente: as crianças. Julie Andrews foi escalada para interpretar a mágica babá, enquanto Dick Van Dick, famoso por um programa de TV homônimo, na época, fora escalado para viver Bert, o melhor amigo de Mary Poppins. Para viver o ambicioso banqueiro Mr. Banks, que só pensava em trabalho e dinheiro 24 horas por dia, foi escalado David Tomlinson. Sua esposa, interpretada por Glynis Jonhs, era uma feminista que vivia com a cabeça na lua. As crianças Jane e Michael foram interpretadas por Karen Dotrice e Matthew Gaber, respectivamente. 50 velinhas Musical por excelência, o filme Mary Poppins teve sua trilha composta pelos irmãos Sherman, que criaram canções inesquecíveis, como aquela da palavra que se diz quando não há mais nada a se dizer, “Supercalifragilisticexpialidocious”. As músicas “Spoonful of sugar”, “Feed The Birds” e “Chim Chim Cher-re” também constituíram um grande sucesso. Os efeitos especiais do filme são um capítulo à parte. Inovadores para a época, são capazes de impressionar qualquer criança que assista ao filme, simplesmente pelo fato de terem sido feitos com um maior realismo e naturalidade. “Disney sempre foi excelência nesse quesito. Eu arriscaria dizer até que uma refilmagem hoje em dia teria que batalhar muito para superar o que foi feito lá atrás”, afirma o crítico Renato Silveira. O filme ganha em 2014 uma edição especial em Blu-Ray e DVD,

com muitos extras, imagens e sons totalmente restaurados. A edição brasileira é simples, enquanto a americana contém um livro com fotos exclusivas, e curiosidades sobre o filme.Também foi lançada uma nova edição do livro no Brasil, pela Cosac Naify, com ilustrações do artista mineiro Ronaldo Fraga, que contou com a ajuda de seus dois filhos para a criação. Também participa do projeto uma equipe de bordadeiras de Itabira, dando a sensação de algo que está por um fio, de imprevisibilidade, assim como Poppins, que chega e parte sem dar explicações. A edição vem dentro de uma bolsa fashion (veja imagem na página ao lado), que em nada lembra a bolsa mágica da babá voadora. Biografia Outro lançamento literário de peso é a biografia que resgata a história da escritora australiana, intitulada Mary Poppins e sua criadora – a vida de Pamela Travers, onde é revelada a verdadeira face de Poppins, que de mágica não tinha nada, tampouco o poder de arrumar o quarto num estalar de dedos. Segundo a obra da autora Valerie Lawson, a babá criada por P.L Travers era rígida, superficial e vaidosa, longe da simpatia cativante

de miss Julie Andrews. Em 2013, foi lançado Walt nos bastidores de Mary Poppins, com Tom Hanks e Emma Thompson, e que conta a difícil convivência de Disney com a autora temperamental que criava obstáculos em tudo, por ter em contrato o direito de opinar como bem entendesse no desenrolar da criação. O filme

é um prato cheio para admiradores do longa de 1964. O musical da Broadway, produzido pela Walt Disney Theatrical, segue suas apresentações com grande êxito em 2014, viajando para vários países e recebendo diversas premiações. A página oficial de Mary Poppins no Facebook tem quase 1,4 milhão de seguidores, que, a estas alturas, devem estar cantando parabéns e estourando balões a cada lançamento no mercado mundial. E outro meio século de sucesso virá, pois ninguém sabe melhor sobre isso do que Poppins: o tempo voa!


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O pai de Mickey e outros mitos Walt Disney é conhecido mundialmente por suas geniais criações, dentre elas, a Disneylândia. Mas, bem antes do surgimento deste “fantástico mundo da fantasia”, Walt já se dedicava à arte de desenhar. Em 1928, criou Mickey Mouse, o camundongo mais famoso da história das animações; mais conhecido e reverenciado que muitos astros hollywoodianos de peso. Ao longo dos anos, outros personagens do estúdio tornaram-se tão populares quanto seu antecessor, a exemplo de Pateta, Minnie Mouse, a namorada de Mickey, o mal-humorado Pato Donald, e uma infinidade de figuras animadas, que perambulam pelo imaginário de crianças de todas as idades, dos 8 aos 80 anos. Mas nem tudo foram flores na vida de Walt, que arriscou sua fortuna pessoal para a criação de seu primeiro longa animado, Branca de Neve e os Sete Anões, do ano de 1937, totalmente colorido. O filme foi a glória para o mago da animação, rendendo-lhe um Oscar por melhor trilha sonora, e outras sete estatuetas em miniaturas, representando os sete anões. Com o sucesso de Branca de Neve, foi criado todo esse universo de magia infantil, que engloba um dos estúdios mais poderosos do mundo, o Walt Disney Pictures, responsável por clássicos como Pinóquio, Dumbo, Bambi e outros, que geram, ainda hoje, um dos maiores faturamentos em licenciamentos de produtos. Seu empreendedor, Walt Disney, não se contentava com pouco, e queria sempre mais: mais criatividade, mais tecnologia e mais sucesso. Foi com essa

sempre arrojado, walt disney nunca mediu esforços para construir seu império da fantasia

visão tão aberta que os estúdios Disney começaram a produzir outros gêneros de filmes, que misturavam pessoas reais com animação. Um belo exemplo dessa nova tecnologia para a época foi à produção do filme A Canção do Sul, de 1946, que contava a história do

velho e bom Tio Remus, usando de muita magia, de fantásticas canções, e, acima de tudo, de tecnologia. Os filmes de Walt Disney nesse gênero constituíram grande sucesso, abrindo caminho para uma maior ousadia, que seria produzir um grande

filme musical, contando com a presença de renomados atores, personagens cativantes em desenho animado, crianças espevitadas, e adultos mais sem juízo que as próprias crianças: Mary Poppins, a babá praticamente perfeita em tudo.

revelando a mágica: um pulinho nos bastidores Como Mary Poppins retira coisas absurdamente grandes em sua bolsa? Como os objetos do quarto das crianças vão parar no lugar? Papagaio falante? Tudo isso são curiosidades do filme, e a mágica é revelada com o lançamento do primeiro DVD editado no Brasil, em 2000. Confira: • Karen Dotrice, que interpretou a pequena Jane, nunca havia visto o filme na íntegra. Apenas recentemente, com o lançamento da edição de 50 anos, foi que assistiu ao filme, ao lado dos filhos. • Bonecos animatrônicos foram usados nas filmagens, já que estavam espalhados por toda a Disneylândia; • Os atores eram pendurados por cabos de aço. Numa das tomadas, a equipe saiu para almoçar e esqueceu o elenco pendurado; • Na cena em que Poppins retira objetos de sua misteriosa bolsa, os atores mirins não foram avisados, para que pudessem demonstrar mais realismo na hora da filmagem. Até uma luminária de pé foi retirada da bolsa;

• Para pôr tudo de volta ao lugar, e arrumar o quarto das crianças, foi só voltar a fita de trás para frente; • Também na mesma cena, foi usada a inovadora tecnologia stop motion; • Muitos efeitos de chroma key foram usados, especialmente nas cenas em que o elenco contracenava com desenhos;

• O filme não teve tomadas externas. Foi todo rodado em estúdio, o que o deixou um tanto quanto “acinzentado”; • Mary Poppins ganhou cinco Oscars: atriz, efeitos especiais, edição, trilha sonora original, e canção (Chim Chim Cher-ee).


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Você já viu?

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Desvairada ventania Clássico de Disney representou uma rajada de novidades ao cinema hollywoodiano fotos: reprodução

Rodrigo de Olliveira A família Banks vive no caos há alguns meses, pela falta de uma governanta que possa agradar às crianças Jane e Michael, que estão desaparecidas. Mr. Banks decide acionar a polícia, para que as procure, e, após serem encontradas, ditam a seu pai, o senhor Banks, sob forma de canção, como seria a babá perfeita. Mr. Banks ignora completamente o bilhete, rasgando-o e lançando-o à lareira. De repente, os pedacinhos do bilhete são levados ao céu e caem nas mãos de Mary Poppins. Um anúncio é publicado no Times, formando uma grande fila de governantas na porta dos Banks, porém, uma ventania desvairada faz com que todas saiam voando e do céu, como mágica, aparece Mary Poppins, chegando à residência, usando como pára-quedas seu guarda-chuva e portando uma bolsa misteriosa. Poppins, com seu jeito prático de ser, revirou para sempre a vida de todos, inclusive a de Mr. Banks, o chefe da família, que não era capaz de enxergar um palmo adiante de seu nariz, até que tudo começou a mudar... Uma espécie de feiticeira do bem, que faz com que a mágica se confunda com a realidade, e vice-versa, Poppins é uma babá que foge completamente ao antigo estereótipo de babás americanas, que se vestem de preto, tem a cara fechada, são bravas e arredias. Poppins é bonita, não pode ser considerada a mais doce das criaturas, é verdade, mas como ela mesma se define, é “praticamente perfeita em quase tudo”. Quem não adoraria pular num desenho em plena calçada de Londres, participar de uma corrida com os cavalos de um carrossel, ou tomar o famoso “chá das cinco” no teto? Com Poppins isso é possível!

Jane e Michael, as comportadas crianças Banks, viveram as melhores aventuras de suas vidas ao lado de sua cuidadora nada comum, que não mede esforços para realizar seus mais simples e inusitados sonhos, e ensinar palavras mágicas, como aquela que se diz quando não há o que se dizer. Hum, vejamos, super... supercali... supercalifra... supercalifragilis... supercalifragilisticexpialidocious, ufa! De fato, Mary Poppins é mesmo de tirar o fôlego, e prova disso foi seu orçamento de seis milhes de dólares e um faturamento cincos vezes maior, chegando aos 30 milhões. Os Estúdios Disney apostaram certo na escolha, valendo a pena cada um dos penosos 20 anos que o todo poderoso mago dos sonhos infantis, Walt Disney, levou para conseguir os direitos de produção do filme. Com uma contagiante trilha sonora, realizada pelos irmãos Sherman, o filme arrebatou cinco premiações do Oscar, dentre elas a de melhor atriz, para Julie Andrews, efeitos especiais e canção original. Mary Poppins tornou-se o segundo filme favorito de Walt Disney – o primeiro foi a animação Bambi – que sentia-se orgulhosíssimo de ter conseguido levar às telas um filme tão grandioso, no sentido literal da palavra, feito com os melhores recursos disponíveis na época, alguns criados exclusivamente para o longa. Mas o que o faz tão amado e adorado por uma legião de fãs e cinéfilos durante meio século? O segredo pode estar nas canções, tão especiais e tocantes, na atuação magnífica dos atores, também podem ser os efeitos visuais, e ao mesmo tempo tudo junto, somado à magia de Walt Disney, que soube dar ao mundo a certeza de que sonhos não são impossíveis, e devem ser realizados. Mesmo que tenhamos que escrever um bilhete a Mary Poppins. Certamente, ela saberá o que fazer.

Ficha Técnica

Gênero: Musical Direção: Robert Stevenson Roteiro: Bill Walsh, Don DaGradi Elenco: Arthur Treacher, David Tomlison, Dick Van Dyke, Ed Wynn, Glynis Johns, Harmione Baddeley, Jane Darwell, Julie Andrews, Karen Dotrice, Matthew Garber Produção: Bill Walsh, Walt Disney Fotografia: Edward Colman Trilha Sonora: Irwin Kostal, Richard M. Sherman, Robert B. Sherman Duração: 140 min


Você já ouviu?

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Da Lama ao Caos comemora 20 anos em 2014, o primeiro álbum da nação Zumbi continua a encantar MARiAnA guAlbeRtO

Mariana Gualberto “Emergência! Um choque rápido ou Recife morre de infarto!”. O trecho faz parte do manifesto Caranguejos com Cérebro, percursor do movimento Manguebeat, uma autêntica antena parabólica enfiada na lama do mangue de Recife, para conectar as boas vibrações do regional com o mundo. O texto, escrito em 1992 pelo músico pernambucano Fred Zero Quatro, da banda Mundo Livre S/A, desnudou a realidade, mostrou problemas e passou por três ideias de mangue: o conceito, a cidade e a cena. Clamou, ainda, pela desobstrução das artérias bloqueadas de Recife, para que o sangue voltasse a circular por suas veias. Vários mangueboys e manguegirls se identificaram, e a descarga inicial de energia na lama foi dada: emergiu dali uma cena cultural carregada de vitalidade e raízes. Em 1994, Chico Science & Nação Zumbi – uma das bandas com forte ligação ao manifesto do mangue –, lançou o emblemático álbum Da Lama ao Caos, ícone do movimento Manguebeat. Com 14 faixas que transpiram Recife, exalam o mangue e apresentam críticas sociais em suas letras, o disco se tornou um marco, conquistando fãs, mesmo após 20 anos, em meio “a rios, pontes e overdrives”. A ferida da desigualdade social, de “sempre uns com mais e outros com menos”, é a temática central do dis-

nação Zumbi agita o público no festival natura Musical

co, trabalhada em forma de poesia e musicalidade marcante, que mistura sons e gêneros, dando a luz a algo único. Talvez pela singularidade do projeto, associada ao fato de tratar de um assunto que continua a assolar brasileiros de todos os cantos, de dentro e de fora do mangue, Da Lama ao Caos conta com reconhecimento

crítico tão positivo, e suas canções ainda façam multidões pularem nos shows. “Viva, Zapata! Viva, Sandino! Viva, Zumbi! Antônio Conselheiro, todos os Panteras Negras! Lampião, sua imagem e semelhança. Eu tenho certeza, eles também cantaram um dia”. Chico Science nos deixou em 1997, após um acidente automobilístico em Pernambuco. Desde então, a banda atende simplesmente por Nação Zumbi. Mas, nos palcos, os integrantes permanecem presenteando os fãs com canções escritas na era de Science, com toda a efervescência social típica daquele começo marcante. “E com o bucho mais cheio, comecei a pensar que, eu me organizando, posso desorganizar. Da lama ao caos, do caos à lama, um homem roubado nunca se engana”.

Hits do mangue No dia 14 de setembro deste ano, Nação Zumbi se apresentou em BH, durante a quarta edição do Festival Natura Musical. A banda pernambucana, sob o comando vocal de Jorge du Peixe, valorizou o passado e apresentou um repertório que percorreu diversas fases do grupo. Começando por sucessos do último disco de estúdio, lançado em 2014, foi feita uma linha do tempo decrescente no palco. Os fãs se deliciaram com sucessos dos álbuns Nação Zumbi (2014), Fome de Tudo (2007), Futura (2005), Nação Zumbi (2002), Rádio S.Amb.A. (2000), CSZN (1998), Afrociberdélia (1996) e Da Lama ao Caos (1994). O fervor do público crescia conforme a banda se aproximava de seus sucessos nos anos 1990. Os pulos e o canto em coro da plateia se faziam uniformes em hits como A Cidade e Maracatu Atômico. Já as canções do álbum Nação Zumbi (2014), encantavam de forma mais sucinta. As pessoas mantinham-se vidradas, apreciando as letras – sempre muito bem construídas –, ainda pouco memorizadas. Eram poucas as vozes que acompanhavam Jorge Du Peixe em Um Sonho e Cicatriz.


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BELo HorIzontE, outuBro dE 2014

Crônicas

Miss Black Power

ImprEssão

Elissandra Flávia Santos Na manhã do dia vinte e oito de agosto, abri a internet e me deparei com o comentário de um internauta: “Esse cabelo não se encaixa nos padrões de beleza”. Ele se referia ao cabelo estilo Black Power da Miss Minas Gerais 2014, Karen Porfíro, eleita na noite anterior. Tentei entender o motivo desse comentário do internauta e de tantos outros que comungavam da mesma opinião. Eles dedicaram boa parte do dia para agredir a recém-eleita miss com comentários maldosos sobre o seu cabelo. Depois de algum tempo de reflexão percebi que não era tão difícil entender os motivos dos comentários. A população preta e parda no Brasil corresponde a 50,7% de acordo com o Censo do IBGE. Apesar desses dados, não vejo um balanço quando o assunto é beleza da mulher brasileira. O concurso Miss Minas Gerais tinha trinta candidatas, apenas uma era negra, fato que se repete em praticamente todos os concursos de beleza no Brasil. A mulher negra não está presente quando o assunto é representatividade da beleza da mulher brasileira. Assisti ao concurso com a esperança de ver a vitória da primeira Miss Black Power do Brasil. Enquanto assistia lembrei-me da minha infância e dos apelidos que recebia por usar meus cabelos naturais assim como os da Miss. Era chamada de macaca do cabelo duro, cabelo de Bombril, palha de aço, pixaim, capacete e tantos outros apelidos. Assim como a maioria das crespas, negras, cresci negando a minha cor e os meus cabelos. Um dia eu acordei e percebi que essa opressão me travou por muito tempo. Eu não enxergava a minha beleza porque na televisão não apareciam mulheres negras a não ser em novelas de escravidão. O comentário do internauta e tantos outros que prefiro nem mencionar revela a dificuldade que as pessoas ainda têm em reconhecer a beleza negra, mestiça. Karen Porfíro é sem sombra de dúvida a cara do nosso país miscigenado. Negra, olhos verdes e cabelos crespos considerado desarrumado para muitos. Uma mulher de cabelos crespos no século XXI significa que ela não quer mais viver sob os efeitos da ditadura da beleza, ela se assume, está com a auto estima em dia e sabe que terá que enfrentar comentários preconceituosos pela frente. Não estou aqui para impor um estilo e sim para defender a liberdade. Temos opção, podemos escolher, não queremos ser escravas da ditadura da beleza. Há 50 anos, a primeira mulher negra era coroada miss Brasil. Vera Lúcia Couto carioca, enfrentou o racismo, subiu na passarela e recebeu a faixa de miss. A história se repete, Karen Porfíro Miss Minas Gerais 2014 enfrentou o racismo e hoje é a nossa representante no concurso Miss Brasil 2014.

A crônica Laura Maria Certo dia o professor disse para a sua turma: - Pra próxima aula vocês devem fazer uma crônica. O burburinho foi geral. Fazer uma crônica? Mal sabiam fazer uma nota de rodapé, quanto mais uma crônica! Mas de nada adiantaram as reclamações. A tarefa estava dada e com direito a advertência: - Quem não fizer, perde cinco pontos! Desde aquele dia, então, a cabeça de Jorge não parou. Sempre gostara de ler, especialmente crônicas, mas, mesmo fazendo curso de jornalismo, nunca pensou na possibilidade em escrever algo desse gênero literário. Mas como missão dada é missão cumprida, ele não poderia deixar de fazê-la, ainda mais quando estavam

em jogo cinco pontos. As ideias que Jorge tinha, no entanto, não ajudavam muito. Pensou em escrever desde a guerra na Faixa de Gaza, até sobre pessoas que jogam balde de água gelada nas cabeças. Pensou em falar sobre responsabilidade social, sobre conservação do meio ambiente, sobre a maturação correta do cacau... Pensou em falar dos imigrantes ilegais, dos calabouços, bruxas e temporais. Pensou em Raul Seixas. Pensou em Raul Gil – este com menos intensidade. Pensou na vida, pensou na morte, pensou no purgatório. Desceu ao inferno de Dante, subiu ao céu de Ícaro. Caiu na ponte do Rio que Cai; escalou o monte Everest. Quis morrer de ciúme, quase enlouqueceu, mas depois, como era de costume, obedeceu. As ideias, na verdade, não eram um problema. Or-

ganizá-las ou mesmo escolher só uma delas era impossível! Que maldade seria escolher uma em detrimento da outra... Agora que via a possibilidade em escrever uma crônica, não queria perder a oportunidade em algo que não valesse a pena de verdade. E, para ele, tudo valia! No dia seguinte, o professor disse: - Exercícios em cima da minha mesa, por favor. O professor notou que Jorge não se movia. Nem tinha papel nenhum em sua mesa. Nem sinal de que ele iria se levantar e pedir para entregar depois. - O que foi, Jorge? Não fez o trabalho? Esqueceu-se? - Não, professor. O trabalho está aqui. - Onde? - Em mim. Sou uma própria crônica. Melhor dizendo, várias.


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