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Jornal Laboratório do Curso de Comunicação Social do UniBH Ano 32 • número 198 • Junho de 2015 • Belo Horizonte/MG
danilo silveira
arte e vício fotos: REPRODUÇÃO
O Ministério da Cultura adverte: as obras de arte não existem para ensinar, doutrinar, dar respostas, mas para encantar, provocar, levantar dúvidas .
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Alex Moura Mariana Gualberto No prefácio de O retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde diz: “Toda arte é completamente inútil”. Não, o escritor, poeta e dramaturgo irlandês não subestimava a arte. Muito pelo contrário. Algo inútil, levando em consideração apenas a etimologia da palavra, é aquilo que não tem uma função preestabelecida, que não tem, em sua concepção, um objetivo que não seja ele próprio. Para ele, a arte é o que é, sem acréscimo. A arte não carrega missão. Não traz lições de moral, não fala como as coisas devem ser. Ao contrário, apresenta as coisas como realmente são, como podem ser e como não são, ao mesmo tempo. Por meio da arte, cultivam-se muito mais dúvidas, incertezas e perplexidades do que verdades e dogmas. Estamos na esfera da liberdade das emoções, das sensações, e não da pedagogia e da doutrinação.
Dossiê arte e vício A esfera da arte é capaz de falar dos vícios e, na mesma mão, da festa, do perigo e do barato; da vida, da morte, da alegria e da tristeza. Nessa linha, fica a pergunta: a arte tem alguma função, algum sentido? Indo mais além, para uma discussão sempre em pauta: para produzir arte é necessário estar sob efeito de bebidas, drogas ou outro qualquer tipo de entorpecente? Ou, pelo contrário, para fazer algo de qualidade, é melhor estar limpo, sem ter usado algum tipo de substância? Talvez a história da arte dê vários exemplos para corroborar as duas possibilidades. Segundo Stephanie Boaventura, 28, graduada em Belas Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e em Cinema pela Escola Livre de Cinema, não há ligação direta entre arte e vício. Para ela, essa relação não é a regra, mas a exceção. “É uma associação preconceituosa, ou, talvez, uma visão ultrapassada da arte, do artista incompreendido e sofredor,
“Lança menina, lança todo este perfume Desbaratina, não dá pra ficar imune Ao teu amor, que tem cheiro de coisa maluca” Rita Lee Lança perfume
que desconta suas dores em alucinógenos. É uma visão romantizada, mas as coisas não são bem assim. Pessoas atormentadas existem em todos os meios, talvez a única diferença seja que, no artístico, isso pode aparecer na obra do artista”, analisa. Stephanie comenta, ainda, que algumas substâncias, não necessariamente viciantes ou ilícitas, podem incitar a produtividade de inúmeros profissionais, não apenas dos artistas. “Conheço pessoas de várias áreas que precisam de substâncias para se tornar produtivos, seja o café matinal ou o cigarro depois do almoço”, pontua. A diferença entre os vícios ligados à arte e às demais profissões encontra-se na maneira como é encarada. “Em termos de drogas, talvez exista, no meio artístico, uma visão mais progressista do tema, uma tolerância maior. Em termos de uso, contudo, não duvido que existam tantos ou mais profissionais de outras áreas que fazem uso de substâncias ilícitas”, conclui. Heróis sem overdose Ainda hoje, o discurso antidrogas é forte em nossa sociedade. O usuário e o viciado são postos no mesmo bojo. E se alguém fuma um “beque” para relaxar após um dia cansativo de serviço? É maconheiro! Mas será assim, mesmo? Todos que usam alguma substância desse tipo podem ser chamados de drogados ou viciados? Essa definição tem a ver com o que é usado ou com a relação estabelecida entre a pessoa e aquilo? Em texto publicado pela Folha de S.Paulo, no dia 18 de maio deste ano, o escritor João Paulo Cuenca abordou o tema na coluna “Saindo do Armário”. Nela, ele assumiu ser usuário de maconha, haxixe e skunk e defendeu a importância de seus pares também saírem do armário. O escritor alerta para o fato de que a discussão está além da questão de segurança. O assunto, para ele, é, sobretudo, de saúde pública. Frequentador dos mesmos ambientes de atores, músicos e artistas de modo geral, Cuenca diz que já viu famosos usando entorpecentes. “Perdi a conta de quantas estrelas de TV, músicos consagrados, escritores, dramaturgos, jornalistas, editores, galãs de novela, celebridades e capas de revista vi fumar unzinho ou esticar uma carreira em festinhas de apartamento ou camarins de shows”, relembra. O escritor questiona a subserviência e a inércia do meio artístico brasileiro, que, para ele, “é um dos mais dóceis do planeta quando se trata de desafiar o status quo – talvez por covardia pura e simples de contrariar quem emite seus contracheques e quem pode lhes oferecer um edital. Que tentem dormir tranquilos: para quem tem voz nesse país, ficar em silêncio é sujar as mãos”.
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“Não dá pra ficar imune” Ela não nasceu “para casar e lavar cuecas”. Nem para fazer aquilo que a sociedade aceita ou acha certo. Sempre foi a ovelha negra, em todos os aspectos possíveis. Define-se como cria de uma “boa trepada”. Talvez aí esteja a gênese para a coragem que teve em enfrentar “a caretice”, ainda na década de 1960, e pôr eternos tabus, como sexo e drogas, em suas músicas. “Venenosa/ Erva venenosa / É pior do que cobra cascavel / Seu veneno é cruel”. A erva – a maconha – citada na letra de Rita, versão de Poison Ivy – de Jerry Leiber e Mike Stoller – é tão perigosa que a levou à prisão em certo momento de sua vida. Já em Lança Perfume, um amor alucinógeno ganha corpo, todo o corpo, diga-se de passagem: “Lança menina, lança todo este perfume / Desbaratina, não dá pra ficar imune/ Ao teu amor, que tem cheiro de coisa maluca”. O cantor estadunidense Ben Harper usou a droga como tema de algumas de suas canções, e de formas bem distintas. Em Burn one down, Harper, calmo e sereno, convida seu amigo para “queimar um” sem se importar com a opinião dos outros. Na letra, faz questão de deixar claro que o fato de consumir aquela substância só afeta a ele, e a ninguém mais. Então, não há motivo para os outros recriminarem. Contudo, em outra canção interpretada por Harper – The drugs don’t work, de Richard Ashcroft –, as substâncias são tratadas de outra forma, com viés negativo. Na música, a droga não tranquiliza, nem facilita a busca por uma direção. Pelo contrário, ela causa efeitos colaterais, descaracterizando a pessoa amada. A erva também está nas telonas. Segurando as pontas, filme de 2008, dirigido por David Gordon Green, narra a história de um maconheiro preguiçoso que se mete numa tremenda confusão – digna de Sessão da Tarde. O personagem principal, Dale, quando estava prestes a experimentar um novo tipo de baseado, presencia um assassinato. Ao ver a cena, joga a droga no chão, deixando, assim, um rastro. Para produzir o filme, o diretor teve que, além de guardar o roteiro por quase sete anos, trabalhar com um orçamento reduzido, devido ao tema polêmico. Inicialmente, era de U$ 50 mi de dólares, mas foi cortado pela metade. Carreiras curtas Como quase tudo na vida, há dois lados em tudo. O que, para alguns, é recreação, diversão e festa, para outros, revela-se vício, dependência, fundo do posso e, às vezes, morte. Há, na história das artes, de maneira geral, várias casos que comprovam isso. Muitos artistas morreram em decorrência do uso de entorpecen-
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tes. Isso, porém, não é algo recente. Historiadores afirmam que, há 5 mil anos, tribos indígenas já faziam uso de plantas capazes de alterar o estado e causar entorpecimento. Essas substâncias começaram a ser proibidas apenas no início do século passado, quando sanções globais foram adotadas, a fim de coibir o uso e a comercialização. Ao longo da história da arte, álcool, maconha, heroína, cocaína e outros tipos de entorpecentes têm sido constantes. Em seus escritos, Homero, o poeta grego, já tratava de uma bebida capaz de gerar sensações. A canção Cocaine, composta por J. J. Cale e interpretada por Eric Clapton, trata da relação que muitos estabelecem com a droga. Tudo que acontece acaba virando motivo para o uso da substância: quando há más notícias ou mesmo se não existe nada para comemorar. Tudo se torna razão para o consumo de cocaína. Muitos julgam a música como uma ode ao pó branco. Até Clapton pensava dessa forma, o que o fez, quando decidiu abandonar o álcool e as drogas, tirá-la de seu setlist (lista de músicas tocadas em um show) por muito tempo. Em um leito de hospital, um doente terminal suplica por uma dose de morfina. Na falta dela, o pó branco também é bem-vindo. Tudo isso para diminuir a dor, que só será interrompida, definitivamente, ao amanhecer.
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“When I put a spike into my vein Then I tell you things aren’t quite the same” Lou Reed Heroin Mick Jagger, Keith Richards e Marianne Faithfull descreveram essa cena em Sister Morphine (Irmã morfina), música dos Rolling Stones. Uma ascensão repentina e considerável. Um tombo à altura. O diretor de cinema Martin Scorsese adaptou para o cinema a biografia de Jordan Belfort, intitulada O lobo de Wall Street, uma história permeada por drogas, bebidas, sexo e crimes. Leonardo DiCaprio teve a missão de reconstruir, nas telonas, a saga de Belfort, um inescrupuloso corretor de imóveis que não mede esforços para conseguir o que quer: dinheiro e suas benesses. Veia artística O ano é 1981. David Bowie sobe ao palco com uma jaqueta vermelha sobre a camisa azul e cabelos louros acobreados. A música Station to station é tocada, do palco para a tela, no filme alemão “Eu, Christiane F”. “Não são os efeitos colaterais da cocaína / estou achando que isso deve ser amor” (It’s not the side-effects of the cocaine / I’m thinking that it must be love). Instantes
antes da cena, Christiane alcança a frente do palco e ali se queda a admirar o ídolo, como uma dica ao espectador do que estava para acontecer. Pouca idade e algumas experiências com as drogas ilícitas já moldavam a jovem. Existem, no meio da arte, inúmeras obras que apresentam ao público exemplos do que é estar sob o efeito de drogas. Neste caso, a vida em meio ao estado alterado de consciência estava prestes a receber mais uma adepta: Christiane F., homônimo do livro no qual foi baseado, o filme apresenta uma história real. Christiane existe e já experimentou da maconha à heroína. Seja na tela, seja nas páginas do livro, o estado que a levou da boate Sound à Estação Zoo, onde se prostituía, comprava e usava heroína, é detalhadamente abordado. O processo de dependência, as relações familiares desmoronando, o desespero da abstinência em meio à tentativa de abandonar a droga e a decadência de uma jovem de apenas 13 anos saltam aos olhos do leitor e do espectador.
“It’s not the side-effects of the cocaine I’m thinking that it must be love” David Bowie Station to station (Trilha musical de Eu, Christiane F.)
Um dos maiores problemas enfrentados por Christiane foi a dependência da heroína. A experiência do uso desse químico também é abordada em outra obra, a música Heroin, da banda norte-americana Velvet Underground. A faixa, que faz parte do emblemático álbum Velvet Underground & Nico, de 1967, foi composta por Lou Reed e leva ao ouvinte uma ideia das sensações provocadas pela droga. Reed já inicia a letra sobre a imersão no estado alterado de consciência. “Quando eu coloco uma agulha dentro da minha veia / então eu digo a você que as coisas não são mais as mesmas” (When I put a spike into my vein / Then I tell you things aren’t quite the same). A droga funciona, ainda, como a busca do usuário por uma realidade alheia aos problemas do dia a dia e de uma sociedade na qual, segundo a letra, não se pode ser livre. “Pois quando a dose começa a fluir / Eu realmente não me importo mais / Com todos os babacas desta cidade / Nem com todos os políticos fazendo sons malucos / Nem com todo mundo maltratando todo mundo / Nem com todos os corpos mortos empilhados em montes”. (Because when the smack begins to flow / I really don’t care anymore / About all the Jim-Jims in this town / And all the politicians making crazy sounds / And everybody putting everybody else down / And all the dead bodies piled up in mounds). Heroin é finalizada com a ideia da sensação provocada pela droga enquanto circula pela corrente sanguínea. “Ah, quando a heroína está em meu sangue / E o sangue está na minha cabeça / Cara, agradeço a Deus por estar bem como um morto”. (Ah, when that heroin is in my blood / And the blood is in my head / Man thank God that I’m as good as dead). AmbiguidARTE O universo da arte, ao cruzar com a temática dos vícios, também é capaz de brincar com as palavras e tecer metáforas. Às vezes, nem tudo é o que parece ser. Sob canções que, à primeira vista, escondem declarações de amor, outras interpretações se fazem possíveis. No caso de I’ve got you under my skin, emblemática música de Cole Porter, os versos, num olhar inicial, podem remeter a alguma musa inspiradora. “Eu tenho você sob a minha pele / Eu tenho você no fundo do meu coração / Tão no fundo do meu coração, que você é realmente uma parte de mim” (I’ve got you under my skin / I’ve got you deep in the heart of me / So deep in my heart, that you’re really a part of me). Entretanto, se analisada com mais cuidado, a letra ganha uma nova interpretação, remetendo ao uso de entorpecentes que correm pelas veias, sob a pele do personagem. Outro indício da metáfora escon-
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A maconha é tema de Segurando as pontas, produção de 2008
dida na música de Porter é a ausência de palavras que possam remeter ao amor sob forma humana. Em toda a na letra, não se encontram termos como “ela” ou “amor”. A canção faz alusão ao desejo incessante de usar a droga, que não abandona o corpo do protagonista. “Mas por que eu deveria tentar resistir, quando, baby, eu sei tão bem / que tenho você sob a minha pele” (But why should I try to resist, when baby you know so well / That I’ve got you under my skin). Inúmeras canções, permeando os mais variados gêneros e estilos, fazem também a analogia entre o amor e a droga. Do rock sofisticado do Roxy Music, de Bryan Ferry “O amor é a droga que eu estou procurando” (Love is the drug that I´m looking for), ao rock básico de Huey Lewis: “Eu quero uma nova droga, uma que não me deixe enjoado… Uma que me faça sentir como me sinto quando estou com você” (I want a new drug, one that won´t make me sick…One that makes me feel like I feel when I’m with you), passando também por Robert Palmer, que fala das pessoas “viciadas” em amor : “Você gosta de pensar que é imune ao troço, mas é mais próximo da verdade dizer que você nunca tem o suficiente, você vai ter que
encarar o fato de que é viciada em amor” (You like to think that you´re immune to the stuff, it´s closer to the truth to say you can´t get enough, you´re gonna have to face it, you´re addicted to love). No Brasil, a banda Barão Vermelho gravou a canção Puro Êxtase. A composição de Guto Goffi e Maurício Barros narra a noite de uma menina sem limites. “Toda brincadeira não devia ter hora para acabar/ Toda quarta-feira ela sai sem pressa pra voltar/ Esmalte vermelho, tinta no cabelo/ Os pés no salto alto, cheios de desejo/ Vontade de dançar até o amanhecer/ Ela está suada, pronta pra se derreter! / Ela é puro êxtase, êxtase/ Barbies, Betty Boops/ Puro êxtase”. A garota da canção é tão quente que é capaz de gerar as mesmas sensações da droga êxtase: aceleramento de batimentos cardíacos, aumento de temperatura corporal e alucinações. Talvez, nessa praia, o maior sucesso brasileiro seja a música Lança-perfume, de Rita Lee, que provoca: “Não dá pra ficar imune ao seu amor, que tem cheiro de coisa maluca”. “Em um leito de hospital, um doente terminal suplica por uma dose de morfina. Na falta dela, o pó branco também é bem-vindo”
“Esmalte vermelho, tinta no cabelo Os pés no salto alto, cheios de desejo Vontade de dançar até o amanhecer Ela está suada, pronta pra se derreter! Ela é puro êxtase, êxtase Barbies, Betty Boops Puro êxtase.”
Barão Vermelho Puro êxtase
Arte serve para quê, mesmo? Wilson Albino Já duvidei que pergunta puxasse pergunta, mas quem cursou a disciplina “Arte e Estética” e conheceu as ideias de Pierra Cabanni, Anne Cauquelin e Ferreira Gullar compreendeu que a arte tem finalidades diversas: narrar, provocar, situar, contextualizar, ordenar e, inclusive, entreter. Ao assistir a um filme, quem se acomoda na poltrona diante de uma tela de cinema ou TV sabe, antecipadamente, que tudo não passa de encenação. No entanto, se, mesmo assim, a pessoa se indignar, chorar, xingar ou questionar, então, já foi provocada. O gancho arpado da arte, aquele ponto de interrogação em forma de anzol, acaba de fisgar mais um. Quem se atraca a um livro, de qualquer gênero literário, e, com ele em punho, esquece o mundo lá fora, ao mergulhar verticalmente na história, tem consciência de que as coisas escritas ali podem não corresponder com a realidade. Mas quantas vezes o leitor se identifica com algum personagem e, a partir do livro, se pergunta: quem sou? De onde venho? Para onde irei após meu último brado? Qual meu papel social? Quais meus valores e minha visão de mundo? Qual minha opinião em relação a tal assunto? O que trago em minha bagagem cultural? Em contato com a arte, o leitor pode produzir respostas bem diversas, e complexas. A arte estrutura aspectos narrativos, linguísticos, rítmicos e estéticos,
dentre outros. Por meio dela, aponta-se o estilo ou a completa ausência dele. Na arte, é possível encontrar informação ou diversão, dúvida e fé, certezas contrárias nascidas da mesma literatura religiosa. Quem busca respostas claras, elucidação e doutrinação por meio da arte talvez saia mais confuso. A arte também possui seus labirintos. Por meio da arte, o homem renasceu senhor de si, das ciências, das serras, dos ares e dos mares. Ali, o homem registra sua eterna inquietação, sua incansável busca. O descontentamento humano com o presente, o sonho de retroceder no tempo para mudar o passado, e a tentativa de vislumbrar o futuro também são todos sentimentos deflagrados pela mesma arte. A arte proporciona conscientização sociopolítica quando incita a critica, quando facilita a compreensão e as idealizações, quando o homem se percebe falível nos ideais, perecível ao tempo e sujeito a ser escravo de seus próprios desejos e vícios. Neste ponto, a arte se faz mais presente do que nunca. Ela assume a vez do espelho, que revela parte da complexidade humana. Talvez haja, na arte, registro que possa explicar ou questionar o desejo que alguns homens têm de abreviar ou alongar a existência. O mais incrível é que o conjunto de transformações eterniza desenredos. Por meio da própria arte, alguns homens se tornam eternos.
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Torpore Texto e fotos de Danilo Silveira Se você é conservador: este ensaio não quer mostrar um ladro sombrio do vício. Se você é liberal: este também não será tema de debate sobre a legalização ou o fenômeno como fonte de prazer ao homem. O assunto é mais complexo do que se imagina, mas vamos simplificar. Pense em uma pedra. Como ela é útil na edificação de uma casa e como arma na mão de um torcedor inconsequente. A ideia de vício é como uma pedra: possui diversas funções. Pode ser usada como saída, entrada, defesa, ataque, lucro, prejuízo, ganha-pão, miséria etc. Não tente enxergar como o que é certo ou que é errado, o que lhe trará salvação espiritual ou pensar no que vai te dar um barato. Simplesmente fique nu de tudo aquilo o que sabe do assunto. Veja como uma criança recém-chegada ao mundo da cultura. Enxergue apenas um fenômeno. Uma Estética.
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Uni-duni-tablet Infância ontem e hoje: a criança antes e durante a era tecnológica Arquivo Pessoal
Ana Carolina Reis Rodrigo Oliveira O mundo moderno trouxe inovações tecnológicas capazes de deixar Graham Bell, o inventor do telefone, de queixo caído. Hoje, como num passe de mágica, as pessoas se comunicam com o mundo, rompendo as barreiras da distância, do tempo e das horas. Em tempos atuais, as brincadeiras escolhidas estão quase sempre ligadas à tecnologia, tablets, notebooks, videogames, smartphones. Os brinquedos tradicionais saem de cena e os pais buscam por aqueles mais educativos e que ajudem as crianças a desenvolver a parte motora e visual. Para Patrícia Silva, gerente de uma loja de brinquedos no Minas Shopping, os pais, desde cedo, já procuram por aparelhos eletrônicos para os pequenos. “Como as crianças veem os pais usando, elas também querem um”, comenta. O celular é um objeto de desejo da criançada. Os meninos já têm em mente qual aparelho querem. Os filhos, que acompanham os pais no momento da compra, optam pelos que têm a tela maior ou que são os mais caros. Matheus Lacerda, que trabalha em uma loja de telefonia, conta que as crianças já chegam sabendo o que vão levar, na maioria das vezes, sabem mais dos aparelhos do que os próprios pais: “Elas querem o top de linha; o iPhone 4 pra elas já está ultrapassado”. Pela falta de tempo ou de espaço nas casas, as horas das brincadeiras lúdicas são substituídas por jogos no computador ou no smartphone; de preferência conectados à internet. Sem se darem conta, os pais acabam permitindo que seus filhos sejam expostos à rede, a partir do momento em que trazem essa tecnologia para a criança sem o devido acompanhamento do conteúdo que acessam. Limites Diretora da escola infantil Construindo a Vida, localizada no bairro Cidade Nova, em BH, Nathalha Andrade não vê com bons olhos o uso precoce da tecnologia, e delega essa responsabilidade aos genitores: “A escola infantil ainda entende o brincar de outra maneira. Nesse sentido, a tecnologia sem limites interfere, sim, na socialização da criança, que aprende a brincar sozinho; que acaba preferindo essa prática, achando o jogo eletrônico, com seus sons e movimentos, mais interessante”, comenta. O professor Luiz Magalhães tem outro ponto de vista: “As crianças vão
Diálogo é algo fundamental na relação entre Carla e seu filho, Samuel
se constituindo a partir de um mundo mente o meu celular e por, no máxique já está aí quando elas chegam; se mo, 30 minutos diários”, conta. Carla esse mundo é o do contato virtual em explica que se preocupa com o que o detrimento do convívio mais próxifilho assiste, pois há muito conteúdo mo, há grandes chances de a criança impróprio na rede. Por isso, zela tanto se reconhecer nessa lógica também. pela fiscalização: “Conversei com o SaMas isso não muel previamente é ausência de e ele sempre me As horas das interação e sim pergunta se pode um novo tipo de abrir algum link brincadeiras lúdicas interação, com ou vídeo”, relata. novos alcances e Como a rotisão substituídas por novos impasses”, na das famílias conclui. jogos no computador se difere e alguns As tecnolopais trabalham o gias chegaram dia inteiro, o diou no smartphone para ficar e há álogo e a troca, quem prove ser fundamentais na possível manter um relacionamento formação da criança, às vezes têm se saudável com os aparelhos. Carla de perdido. As raras horas de lazer com Melo, 37, estabelece horários para os filhos são substituídas por algum que o filho, Samuel, 5, navegue pela tipo de recompensa, em que os pais internet. A mãe diz que o menino se abstêm do convívio diário com as começou a descobrir os recursos do crianças. As conversas e as brincadeicelular há pouco tempo: “Ele usa soras que fazem parte do desenvolvi-
mento socioafetivo e que contribuem para a construção desse novo sujeito para o mundo perdem-se no meio do caminho. Carla, que também é pedagoga e professora do Sesi, mostra-se contra esse comportamento: “O diálogo é a base da confiança entre pais e filhos. É normal, nessa idade, a criança não querer aceitar as regras impostas pelos pais. E o meu filho não é diferente! Às vezes contesta as regras de casa, mas estabelecemos um momento de conversa para que ele possa entender o motivo daquilo”, finaliza. A infância de ontem e hoje não são tão diferentes. A criança continua sendo criança, e, na essência, o que mais deseja é o carinho e atenção dos pais. A tecnologia não é uma vilã, tampouco os brinquedos saíram de moda. É preciso nos adaptar às mudanças tecnológicas que os tempos modernos trazem, pois o mundo segue a passos largos, na ciranda cirandinha da vida.
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Documentário resgata infância lúdica
Em um mundo onde a tecnologia está tão presente, em que frequentemente crianças estão envolvidas com brinquedos ultramodernos, é possível descobrir outras infâncias na versão mais simples e lúdica possível. O longa-metragem Território de brincar é quem faz as honras. O projeto foi criado pela educadora Renata Meirelles e pelo documentarista David Reeks, em parceira com Instituto Alana, Ong voltada para pesquisas e projetos dedicados às crianças. Ao longo de dois anos, o
casal de cineastas percorreu o Brasil e registrou as diferentes facetas do brincar, colheu imagens e diálogos dos mais diversos ambientes, desde comunidades indígenas até as grandes metrópoles. Sem preocupação didática, o filme apresenta uma infância que muita gente pensa não existir mais. Uma viagem que busca compreender o ambiente das crianças, o seu brincar e, de forma sutil, levanta o questionamento de como essa infância vem sendo cuidada pelos adultos.
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Pequenos no tempo Quem foi criança noutros tempos, antes que toda a tecnologia tomasse conta do mundo, sabe bem o que é brincar na rua, prática que quase não vemos mais entre os pequenos de hoje, devido aos altos índices de nas grandes cidades. Brincadeiras tradicionais, como pique-esconde, rouba-bandeira, amarelinha, cantigas de roda ou, até mesmo, aquela velha história contada pelos avós parecem não mais chamar a atenção da garotada de hoje, que, além de tecnologia, tem uma grande carga de responsabilidades em seus ombros: estudar, aulas de línguas, judô, ballet, dentre outras atividades, o que as torna uma espécie de adulto em miniatura. As crianças de classes menos privilegiadas também têm suas ocupações, graças aos programas criados pelo governo, como o projeto Curumim, que, há 15 anos, retira crianças das ruas de Belo Horizonte e oferece atividades esportivas, artísticas e culturais. A iniciativa Criança Esperança também possui unidades de lazer e aprendizado para os menores de baixa renda. A criança, no passado, sabia tirar proveito de toda simplicidade das condições que o mundo lhes oferecia, pois até mesmo palito de picolé e tampinha de garrafa viravam brinquedos. E, quando o assunto era diversão, bastava reunirem-se em grupo, pra que a casa pegasse fogo. (Essa temática é discutida no livro O desaparecimento da infância, do sociólogo Neil Postman, cuja resenha você confere na página 10 deste caderno). A arte imitando a vida Adaptado da obra de Ziraldo, o filme O Menino Maluquinho, de 1991, dirigido por Helvécio Ratton, mostra bem como era a realidade da criança no passado. Na história, o Vovô Passarinho, personagem interpretado por Luis Carlos Arutin, leva Maluquinho e todos seus amiguinhos da cidade grande para passar uns dias na fazenda, onde vivem mil aventuras, como roubar fruta na casa do vizinho bravo, andar de balão e campeonato de futebol. O filme tem um momento tocante: o Vovô descobre, numa velha caixa, seus pertences de criança, dentre eles, um pião que imediatamente é rodado na sala de sua casa, remetendo às lembranças de um passado longínquo, mas que ainda estava ali, no gosto da garotada. Na época, entretanto, nem tudo eram flores. A dona de casa Olga Maria, mãe de três filhos, recorda-se bem de sua infância difícil no interior: “Meus pais eram muito pobres, eu só tinha duas roupas, que era a de sair e a de usar no dia a dia. Meu sonho era ter uma boneca, mas, quando fi-
nalmente a ganhei, era de papel, e eu dei um banho nela, vendo meu sonho de infância se desfazer em minutos”, conta. Olga também relata a diferença da vida que seus filhos tiveram, graças ao esforço do marido, que trabalhava três horários como professor e, de quebra, ainda pegava algumas obras para fiscalizar, enquanto cursava Engenharia Civil. “Eu costumo dizer que meus filhos foram agraciados por Deus. Dentro do possível, eles tiveram os brinquedos que quiseram; os discos infantis da época, as roupas que as crianças da TV usavam. Eles também puderam brincar na rua, e viveram a liberdade daqueles tempos”, relembra. Sobre o contraste material observados na criação de Olga e dos filhos, o professor, e filósofo Luiz Magalhães pontua: “Não podemos imaginar que antes não existiam desigualdades. Algumas crianças frequentavam clubes, iam às melhores salas de cinema, viajavam, tinham televisão em casa e o pai tinha automóvel. Outras, sequer iam além do cinema do bairro, quando tinha. Ou seja, diferença sempre existiu”. Na tela do faz de conta A TV era outro atrativo interessante para a criança do passado, que aprendia a desenhar, criar seus próprios brinquedos, ensinados por um carinha dentuço e de gravatinha borboleta, chamado Daniel Azulay, que permaneceu no ar de 1976 a 1986. Noções de números, letras e palavras eram ensinadas em Vila Sésamo. Garibaldo, uma ave gigante e desengonçada, com a mentalidade de uma criança de seis anos, era o principal personagem da atração dos anos 1970. Cláudio Petraglia, produtor da versão brasileira de Sesame Street, afirma que tudo foi feito e pensado na realidade da nossa criança: “Toda a ideia da atração era ser um refúgio encantado para a criança se libertar da realidade cruel e violenta do dia a dia. Um lugar aonde a gente sempre é feliz”. Também havia a adaptação da obra de Monteiro Lobato, Sítio do Picapau Amarelo, que era um reflexo da infância de outras décadas. No lado musical, crianças cantavam para os próprios pequenos, como os grupos A Turma do Balão Mágico e Trem da Alegria, que caíram no gosto da garotada e de adultos, vendendo milhões de cópias. Mais tarde, a TV foi invadida por uma série de “louras de botas” - expressão utilizada por Daniel Azulay - que teve início com Xuxa, perpetuando um reinado até meados dos anos 2000, quando lançou o projeto XSPB (Xuxa Só Para Baixinhos), indicado seis vezes ao Grammy Latino.
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Procura-se infância desaparecida Em livro contundente, Neil Postman questiona: onde estão nossas crianças? fotos: REPRODUÇÃO
precocemente aos hábitos e estilo de vida de uma pessoa mais velha. Porém, o século XX assistiu a uma nova reversão do processo, trazendo o que Postman chama de “desaparecimento da infância”. O autor cita como os anúncios publicitários erotizam as crianças, e já não fazem mais distinção entre elas e os adultos. Meninas e mulheres têm a mesma opção de roupas; não há qualquer diferenciação em seus figurinos. Praticamente não há mais as brincadeiras, tampouco as atividades lúdicas. As crianças compartilham o mesmo espaço dos adultos, que lhes revelam segredos que ainda nem conseguem assimilar. Fala-se de tudo, não há limites sobre o que discutir. Hoje acontece o oposto: quanto mais cedo as crianças adquirirem o comportamento adulto, melhor é para o mercado. O ambiente - supostamente designado para os adultos – é facilmente atingido pelas crianças. A televisão é um belo exemplo de que não existe separação entre eles, está disponível para todos os públicos. Os pequenos são expostos a conteúdos e ideias do mundo adulto. A TV elimina a divisão e estabelece os mesmos padrões para crianças e adultos, que sem perceber aceitam as mensagens. Além disso, torna o privado em público, onde informações com teor violento ou sexual são despejadas sobre as crianças sem qualquer receio. A TV também acarreta outra inversão de valor: surge o fenômeno do adultoAna Carolina Reis A infância está desaparecendo ou já desapareceu? Neil Postman, autor de “O Desparecimento da Infância”, nos provoca com essa questão. Crítico social e professor de Comunicação na Universidade de Nova York, Postman – morto em 2003 – faz um alerta sobre a linha que divide a infância da fase adulta. A infância está mudando, as crianças passam por um processo que as tornam “adultas” rapidamente. O livro, divido em duas partes, mostra um contraponto: a invenção da infância e o desaparecimento dela. Na Idade Média, permitia-se dizer tudo na frente das crianças. A infância terminava aos sete anos e já era feito o preparo para a fase adulta, sendo a
criança invisível. Nada muito diferente do que vivenciamos hoje. Depois da criação da prensa tipográfica, a situação se alterou. Os adultos, que antes excluíam as crianças, precisaram retomar a ideia da infância, para que elas se tornassem pessoas letradas. Precisaram aprender a ler e escrever; consequentemente a educação foi posta no centro e as crianças reconhecidas como importantes novamente. A partir desse fato, os adultos perceberam que a infância fazia parte da ordem natural da vida, começando a ser respeitada e vista como necessária. As crianças passaram a ser notadas pela sociedade. Eles compreenderam que as crianças, então em fase de formação, não podiam ser iniciadas
“E como as crianças foram expulsas do mundo adulto, tornou-se necessário encontrar um outro mundo que elas pudessem habitar. Este outro mundo veio a ser conhecido como infância” -criança, que renuncia ao comportamento adulto e passa a ser associado aos modos infantis. Infelizmente, a infância está mesmo desaparecendo, segundo Postman. Muitas crianças que vemos hoje se tornaram miniaturas de adultos, absorvendo seus modos e costumes, praticando-os. A sociedade não reconhece que existem grandes diferenças entre os dois grupos, por isso há também o empobrecimento da vida adulta. Crianças e adultos tendem a se fundir num só meio, o que pode acarretar sérios problemas futuros. Afinal, criança é criança, adulto é adulto. No campo minado das emoções humanas, certamente ainda há espaço para ambos.
Ficha Técnica
Título: O desaparecimento da infância (The disappearance of childhood) Ano: 1999 Autor: Neil Postman Gênero: Ciências sociais Editora: Graphia 190 páginas
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Belo Horizonte, Junho de 2015
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Procura-se filho desaparecido Philomena traz a luta de uma mulher para reencontrar seu filho retirado pela igreja Amanda Costa O cineasta britânico Stephen Frears traz em seus longas mulheres fortes. Foi assim com Ligações perigosas, Os imorais, A Rainha, O segredo de Mary Reilly. O porque disso nem ele sabe. Em seu mais recente trabalho, Philomena, a mulher de atitude, carregada de sentimentos, está presente mais uma vez. Baseado em história real, o filme é uma adaptação do livro O filho perdido de Philomena Lee, do jornalista Martin Sixmith. A protagonista é uma enfermeira irlandesa aposentada. Em sua primeira transa, na adolescência, engravidou, o que levou seu pai a colocá-la para fora de casa, considerando seu ato imoral. Na época – meados do século XX – era comum famílias católicas enviarem aos conventos as garotas solteiras que engravidassem. Ali, abandonadas, pagariam a culpa. Philomena foi morar no convento Madre Madalena, onde deveria trabalhar, para que as freiras cuidassem do recém-nascido. Acontece que o pequeno Anthony, sem conhecimento de Philomena, é vendido pelas freiras a uma família de Detroit e, a jovem, atormentada e com sentimento de culpa, ainda movida pela fé católica, acaba se silenciando. Por muitos séculos, o medo mantinha os fiéis na linha e a culpa assombrava as almas pecadoras. Quando o filho perdido completa 50 anos, Philomena conta seu segredo para outro filho, que por sua vez pede ajuda ao jornalista Martin Sixmith. Repórter político recém-demitido e em crise de depressão, Martin não se interessa pelas matérias chamadas “de interesse humano”, que considera populistas. Porém enxerga naquele caso a possibilidade de produzir um artigo e ajudar Philomena. Os dois partem para os EUA em busca de Michael, nome que a nova família deu à criança adotada. A história comove qualquer pessoa que se diga insensível. Frears, com inteligência, consegue dosar o filme entre tristeza, alegria e humor, afastando-se de qualquer melodrama hollywoodiano e mantendo o foco e o ritmo de forma harmoniosa. Além da construção narrativa, o longa tem mérito nos diálogos e atuações. Não podemos deixar de destacar a brilhante Judi Dench, no papel de Philomena Lee. Ícone do teatro e do cinema britânicos, a atriz fixa os olhos do espectador na tela, com sua
Ficha Técnica Título : Philomena País: Reino Unido, EUA, França Diretor: Stephen Frears Elenco: Judi Dench, Steve Coogan, Sophie Kennedy Clark, Michelle Fairley Gênero: Drama/comédia Data: 2013 Duração: 98 min
figura carismática, uma personagem forte e doce. Ao lado dela, o comediante Steve Coogan, no papel de Sixmith, também tem excelente interpretação. A ligação entra a mulher simples e o jornalista inteligente é construída sem simplificar os personagens nem banalizar uma história tão emocional. Além da comovente busca da mãe pelo filho, outro aspecto pareceu interessar ao diretor, que é ateu declarado: retratar o passado sombrio da igreja irlandesa, seus costumes e a negação da sexualidade. As primeiras cenas do filme – nascimento e adoção de Anthony – acontecem em 1957, pré-Concílio Vaticano II. O restante se passa em 2009, período marcado também pela ortodoxia do pontificado
de Bento XVI, diante da sexualidade, diferente dos novos tempos que se anunciam com o Papa Francisco. Em fevereiro de 2014, o argentino recebeu a verdadeira Philomena Lee juntamente com o ator Steve Coogan – que também produziu e roteirizou o filme – em audiência na Basílica de São Pedro. A irlandesa coordena o “Philomena Project”, que ajuda outras mães a encontrar seus filhos e luta para que o governo do país promulgue uma lei que permita a consulta aos registro de crianças adotadas. Embora não tenha conquistado nenhuma das 4 estatuetas do Oscar a que foi indicado, Philomena venceu o prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Veneza e Melhor Roteiro Adaptado no Bafta. REPRODUÇÃO
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Belo HorIzonte, JunHo De 2015
Crônicas
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O herói nosso de cada dia Ana Flávia Miranda Toda tarde, depois de chegar do cansativo trabalho de soldador, um homem alto, forte e meio solitário pega um de seus trajes preferidos e vai às ruas pregar o que, para ele, é essencial aos dias de hoje: o amor. Mesmo com as peculiares características de uma pessoa sem perspectiva na vida, por que uma pessoa, que deveria cuidar de seu próprio bem-estar, se vestiria de Batman?... Sim, foi isso o que você leu: o homem-morcego! Em Chiba, cidadezinha localizada ao sudeste de Tóquio, no Japão, há mais de três anos, o Chibatman sai pelas ruas fazendo a alegria dos mais carentes, de crianças a idosos, junto de sua chibatmoto. Em uma das ações, quem estava presente pôde se comover com o carinho do soldador grandão pelos mais necessitados. Durante a exibição com a moto de última geração, eis que um menininho, com aparentes seis anos, magrinho de dar dó e segurando um boneco do cavaleiro das trevas, apresenta-se e começa a fazer aquelas típicas observações de criança. - O senhor não é o Batman!
- O quê, o quê você disse? - É, a Dona Shimago me contou sobre você na escola, e o papai disse que o Batman de verdade só combate à noite, e não de dia! - Mas por quê você acha que eu não sou o Batman de verdade? Só porque estou aqui na rua numa hora dessas? - Ah, é porque o Batman também é mais forte, muuuuuito mais forte. Eu já assisti a um tantão de filmes e desenhos sobre o verdadeiro Batman. A conversa fluía naturalmente. Afinal de contas, não há muito o que questionar sobre o diálogo entre um homem e uma criança,
quando ela afirma, com todas as letras, que algo está errado. Intrigado com as perguntas e com a firmeza do pequenino, o Chibatman se curva perante o garotinho. - Posso te contar um segredo?, pergunta o Batman japonês. - Pode. - Quando eu tinha a sua idade, também achava que nenhum herói existia, que eram apenas as histórias das revistinhas. Até que, um dia, minha mamãe (que o bom Deus a tenha!), me levou à batcaverna e foi lá que descobri os maiores segredos do Batman. Aliás, pensando bem, você tem razão. Eu não sou o Batman! - Nãããããão?! - Não! Como o
Batman pode ser gordinho, de olho puxadinho, baixinho? E olha que nem tão baixo eu sou! - Então por que você finge ser uma pessoa que não é? - Porque eu aprendi que, fantasiado, poderia levar alegria às pessoas como você, de extrair nelas o que há de melhor e, também, é uma forma de me sentir bem e de deixar o mundo um pouco mais colorido. - Colorido? - É, colorido! Com mais alegria, cuidado, educação e carinho... Para que as pessoas possam me olhar com os olhos de criança, assim como os seus! O garotinho põe a mão na cabeça e pensa e pensa e pensa... Até que... - Uma vez, a Dona Shimago e a minha mamãe me disseram que pessoas que fazem o bem vão para o céu, assim como você. Espero que possa voar tão alto quanto o Batman de verdade, porque, aí, vou saber que você quer salvar o mundo das pessoas ruins. Nesse momento, deu pra perceber o quanto as pessoas se tornam especiais por fazerem tão pouco, esse tão pouco que, para tantos, se torna muito. Após a conversa inspiradora com o garotinho, o homem-morcego na versão japonesa pegou o sua chibatmoto e saiu dali com um gosto de quero mais, para fazer mais com o pouco dos poderes que o Batman verdadeiro lhe concedeu – disseminando a paz.
Sem saudades do amanhã Emelyn Dias Fim de tarde e a piscina continuava cheia. Tinha alguém com um guarda-chuva aberto. E se chovia, era só amor. Hoje, são apenas respingos de saudade. Uns foram pra Bahia, outros para o Paraná – e quem continua aqui, parece pra lá de Bagdá. Nem de longe podia entender que momentos como aquele em família seriam raridade dali para frente. Desencontros que a vida nos prega. Lembro também daquele burburinho insuportável do ensino médio e dos lanches trocados nas primeiras séries. Tem
cheiro de romã e sabor de descobertas. Pessoas que nos deixam boas lembranças e ensinamentos que levam tempo para serem assimilados. Laços que construímos e desatamos, mesmo sem querer, dia após dia. E dá saudades do jogo de cintura ser apenas para o bambolê. Das pequenas escolhas que já podiam ser declaradas como dia da independência. Saudades até mesmo de não entender o que representava todas aquelas carinhas assustadas diante da televisão naquele 11 de setembro. Nesses reflexos nostálgicos é que co-
meço a pensar o quão frágeis somos em relação ao tempo. Não peço paciência, mas que não me falte a destreza do olhar e ouvir. Que as cores do céu ainda me encantem todos os dias. Que o vento não passe sem que eu sinta seu toque. E que a inocência das crianças me lembrem que ainda há esperança e futuro. De certa forma, é uma ingenuidade que procuro manter – sem me esquivar do real. Prefiro acreditar que ainda é possível pensar diferente nos acontecimentos que já beiram como realidade inevitável. Deixar florescer solidariedade e compaixão nas dificuldades. Plantar
bons sentimentos. Pequenas ações capazes de se tornar uma rede bem. Coisas assim, que o tempo não apaga e que deixam um ar de dever cumprido. Ainda assim, continuo cantarolando para que o tempo voe e, nem de longe, consigo entender a pressa de concluir as etapas do agora. Parece irresponsável. É uma ansiedade que, acredito eu, faça parte de todos nós. Incertezas, saudades, receios e anseios. Dependência do tempo e a própria pressão em ser melhor a cada dia. Saudades. E talvez, é válido o clichê que a saudade é a prova que, até aqui, tudo valeu a pena.