Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo do UniBH
Ano 35 | Nº 202 Belo Horizonte | MG
Setembro | 2016
Montagem de Juliana Rolim Sobre Fotografia de Danilo Silveira
DISTRIBUIÇÃO GRATUITA
Dossiê LGBT*: riscos, desafios, sonhos, lutas e oportunidades páginas 4 a 10
Alunos do Jornalismo passam uma semana em outros cursos páginas 12 e 13
Jornalista Clara Becker fala da rotina de trabalho na revista piauí
o enigmático
caderno DO!S
Sorriso da Liberdade
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primeiras palavras
Setembro de 2016 Jornal Impressão
A EDIÇÃo da diversidade Marcelo Gomes Esta edição, contempla um grupo ainda marginalizado na sociedade: o segmento LGBT*. Aliás, a sigla que marca nosso dossiê central gerou muito debate e reflexão. GLS, LGBT, LGBTi, qual a melhor forma? Optamos pela versão com o asterisco, que contempla as diversas variáveis “trans”, o que é reforçado pela recriação, na capa, da célebre Mona Lisa, de Da Vinci, aqui, com uma modelo transexual. Com o dossiê, o IMPRESSÃO remete, inevitavelmente, ao extinto Lampião da Esquina – que deixou saudades. No primeiro texto, o leitor vai conhecer o Transvest, um cursinho pré-Enem de BH, voltado aos trans, com a proposta de reverter o quadro de
baixas expectativas que o grupo enfrenta. A segunda reportagem mostra que, dentro da própria comunidade LGBT*, há preconceitos. Sim! Com os bissexuais, por exemplo. Eles são bastante estereotipados e julgados como “em cima do muro”. Se o sociológo Émilie Durkheim lesse a reportagem “Se os azulejos falassem”, talvez identificasse um novo fato social: a “pegação” gay em banheiros públicos está em alta. Completar o dossiê o perfil de Helen de Castro, ativista que nos busca a quebra dos padrões de uma sociedade tão calcada no ódio ao diferente. Outras reportagens da edição também hão de encantar o leitor. O que está além de nós? Você já observou as es-
trelas, ou melhor, já reservou um tempo para observá-las? Não? Saiba como foi a sensação da galera que foi até a serra da Piedade observar o além e tentar imaginar como são as coisas fora do mundo – o que os levou a indagações de natureza filosófica, mas sem respostas físicas. Outro experimento bem diferente vivenciaram cinco alunos de jornalismo do UniBH, que saíram de seu “campo” e, durante uma semana, adentraram outros cursos, tais como Medicina, Engenharia Química, Geologia...leia para saber no que isso deu. Lado a lado, duas reportagens escancaram os dilemas do corpo humano, em situações extremas. De um lado, a beleza humana confrontada, ou desafiada, pelo mito do corpo ideal, no
universo das modelos. Elas descobrem que o sonho pode ser mera ilusão e se inteiram de possíveis consequências devastadoras. Em seguida, uma reportagem sobre o corpo decomposto. O IMPRESSÃO apresenta um ofício provavelmente bem desconhecido para você: o de coveiro. Saiba como é a rotina dessas pessoas, as quais estão rotineiramente expostas a restos mortais, que podem ser os dos próprios filhos. Já em nossa página de jornalismo hiperlocal, dedicada ao bairro Buritis e entorno, temos uma reportagem sobre a “Segundalada”, grupo de moradores do bairro que, semanalmente, realiza passeios de bicicleta durante a noite. Haja coração, e, acima disso, vitalidade!
expediente
O caderno DO!S também está bastante múltiplo. Inicialmente, nosso repórter foi conhecer a rotina de um templo mórmon, religião ainda pouco divulgada no Brasil, mas que inspirou, nos EUA, o musical mais premiado e bem-sucedido do século XXI. Em seguida, nosso caderno cultural passa pelo grupo Os Ciriacos, irmandade cultural e religiosa de Contagem (MG), pelo jornalismo literário de Clara Becker, na revista piauí, e pelo setor de livros em braile, na Biblioteca Pública Estadual de BH. Resenhas e crônicas encerram, com arte, inspiração e leveza, esta edição do jornal. Este é o seu e o nosso IMPRESSÃO. Fique forte!
VICE-REITORA Profa. Vânia Café
INSTITUTO DE COMUNICAÇÃO E DESIGN Profa. Cynthia Enoque
COORDENAÇÃO DO CURSO DE JORNALISMO Prof. João Carvalho
LABORATÓRIO DE JORNALISMO EDITORES Prof. Leo Cunha Prof. Maurício Guilherme Silva Jr.
DIAGRAMAÇÃO Juliana Rolim (LEGRA)
PROJETO GRÁFICO Laboratório de Experimentações Gráficas (LEGRA)
ESTAGIÁRIOS Danilo Silveira Rodrigo Oliveira
ILUSTRAÇÃO William Araújo
em uma redação qualquer... william araújo
PARCERIAS Laboratório de Jornalismo Online Laboratório de Fotografia Laboratório de Experimentações Gráficas (LEGRA)
IMPRESSÃO/TIRAGEM Sempre Editora 2.000 exemplares
Eleito o melhor Jornal-laboratório do país na Expocom 2009 e o 2º melhor na Expocom 2003 O jornal IMPRESSÃO é um projeto de ensino coordenado pelos professores Maurício Guilherme e Leo Cunha, com os alunos do curso de Jornalismo do UniBH. Mesmo como projeto do curso de Jornalismo, o jornal está aberto a colaborações de alunos e professores de outros cursos do Centro Universitário. Espera-se que os alunos possam exercitar a prática e divulgar suas produções neste espaço. Participe do JORNAL IMPRESSÃO e faça contato com a nossa equipe: Av. Mário Werneck, 1685 BH/MG CEP: 31110-320 Tel.: (31) 3207-2811 Email: impresso@unibh.br
visão crítica
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Anderson Pena Caso você fosse atleta em uma Olimpíada, como faria para se colocar em destaque? Ou como agiria se tivesse a oportunidade de ter os “quinze minutos de fama”? Certamente responderia que iria dar o melhor de si para conquistar a medalha de ouro. Na pior das hipóteses conquistar o segundo, talvez, o terceiro lugar, colocando o país que representa em uma posição de destaque, no ranking da modalidade a ser disputada. Na Olimpíada Rio 2016, organizada pelo Comitê Olímpico Internacional (COI), participaram os melhores atletas dos mais de 200 países membros. E muitos deles confirmaram o ditado que diz: o que um país tem de melhor é a sua gente, O Brasil, anfitrião dos jogos olímpicos, sabe demonstrar como é verídica tal afirmação, porque é um dos lugares com população mais miscigenada, alegre e irreverente, de todo o planeta.
Ser o melhor atleta de uma delegação não significa que será fácil a conquista do tão sonhado ouro olímpico. Na Rio 2016, competiram esportistas renomados como Michael Phelps, Usain Bolt, Arthur Zanetti, Simone Biles, Serginho do vôlei, dentre outros. Os Estados Unidos, Grã-Bretanha, China, Rússia e, porque não, o Brasil foram considerados um páreo duro para países relativamente pequenos, com pouca ou nenhuma estrutura e tradição em esportes olímpicos. Porém, o que parecia improvável aconteceu. E, digamos, de forma inusitada! Como a situação provocada pelo porta-bandeira de Tonga, o lutador de taekwondo Pita Nikolas Aufatofua. Ele chamou a atenção do mundo inteiro na cerimônia de abertura dos Jogos do Rio de Janeiro, quando entrou em cena com um traje típico daquela região, composto por um tecido tradicional da Polinésia feito de casca
de árvore, e o corpo brilhantemente besuntado de óleo. Com a ajuda das redes sociais, em questão de minutos todos sabiam quem e de onde era aquele atleta. Quem diria que Tonga, um país da Oceania formado por cerca de 170 ilhas do sul do oceano Pacífico iria atrair os holofotes? Em sua declaração, Nikolas disse que, “não esperava tamanha repercussão”. Segundo o atleta, seu país se tornara mundialmente conhecido e isso para ele já valia o ouro. E o que dizer da desenvoltura do levantador de peso David Katoatau, quando divertidamente não poupou esforços na sua dança, meio desengonçada, mas irreverente, após a tentativa frustrada de levantar impressionantes 94kg? David era outro desconhecido, de um país chamado Kiribati, menos conhecido ainda. A pequena ilha fica entre o Havaí e Austrália, no Oceano Pacífico, e possui pouco mais de
william araújo
Coadjuvantes em destaque
100 mil habitantes. A estratégia deu certo. Segundo portais de notícia, além de competir, o desportista queria voltar as atenções para seu país. A ilha pode desaparecer por causa do aquecimento global, que está elevando o nível do mar. Até então, as duas situações caíram na graça da população brasileira e, arrisco dizer, do mundo inteiro. Só que algo mais forte e de maior apelo já havia ocorrido.
Bem antes dos jogos olímpicos acontecerem, todos os atletas precisaram se destacar nas suas respectivas nações. Mas e aqueles competidores altamente gabaritados para participar de uma olimpíada, cheios de sonhos e vontade de lutar por algo fantástico como a paz mundial? Antes de serem classificados como atletas, eles eram pais, filhos, irmãos... que de alguma maneira saíram de suas casas, cidades, paí-
ses por causa da perseguição e da guerra. Cito o caso dos refugiados. Eles não defenderam nenhuma federação, porém foram bem representados pela bandeira olímpica. Por fim, como, no Brasil, tudo acaba em samba. Em nome do esporte, todos aqueles atletas e países foram e continuarão sendo símbolos de esperança para o mundo, que, juntos, falaram uma só língua.
rodapé Doentes mesmo são os pobres de amor Gabriela Hott Naquele dia, Silvana Batista estranhou quando abriu a porta de casa e viu a sala de estar lotada de amigos e familiares. Ela estava voltando de sua primeira sessão de quimioterapia e, no susto, não conseguiu entender a presença de todos ali. Há muito tempo, Silvana sofre com o câncer de mama. Casada e com dois filhos pequenos para criar, aos quarenta e dois anos, ela luta
contra os efeitos da doença, que começou a se manifestar quando ainda tinha trinta e cinco. Sua vida sempre foi cercada de desafios, mas isso não a desmotivou. Durante o tratamento, ela sentiu dores muito fortes, mas ter a família a seu lado foi o que trouxe a força que ela precisava para continuar a lutar. Mesmo com todas as dificuldades, Silvana é grata por tudo o que tem a oportunidade de viver. Por isso, relembra
A busca por um bom lugar Lucas Soares
Dezoito anos e uma com felicidade aquele vida pela frente. Ricarque foi o dia mais feliz do Luiz está no 3º ano de sua vida, logo após a do ensino médio e com primeira “quimio”. planos indefinidos. DiPor ironia do des- ferentemente de muitino, era o dia de tos de sua idade, não seu aniversário e ela se sente pressionado nem se lembrava! pela família, nem anO apoio foi essencial sioso com o vestibular. para a superação dessa Só está indeciso sobre o fase. “Naquele momen- que cursar: Jornalismo to, percebi o quanto sou ou Ciências Sociais? feliz. Tenho câncer, vou “Gosto da amplitumorrer, mas me sinto de que o Jornalismo amada, como muitas proporciona”, diz Ric, pessoas saudáveis não como é conhecido. Pose sentem. Descobri que rém, Ciências Sociais doentes mesmo são os lhe abriria um caminho pobres de amor”. mais próximo de suas
vontades. “Quero fazer o que gosto, sem me preocupar se ganharei bem”, completa. Com as pernas cruzadas e uma xícara de café na mão, Ricardo fala da necessidade que as pessoas têm de acumular riquezas. “Eu sempre digo que dinheiro é necessário, mas, muita gente fica alucinado com isso”, desabafa, após uma golada da bebida, prepararada com carinho. Segundo o garoto, que tem como parte sagrada do dia escutar rappers como Criolo, Marechal, Sabotage e o
grupo Pentágono, “ser bem sucedido não é ser rico”. O futuro jornalista ou sociólogo sonha com filhos, uma esposa “foda”, amigos para toda obra e um carro legal. “Quero viver suave, sem muitas preocupações”, frisa. Ao final da conversa, Ricardo mostrou um poema de um dos seus autores preferidos, Sérgio Vaz, e que serve de inspiração para a intensidade exigida no dia a dia: “Quem segue o Amor sabe que o milagre não está na vida, mas na coragem de viver”.
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DOSSIÊ LGBT*
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TRAVESTIS NO ENEM Fotos: Tainá Silveira
Em Belo Horizonte, pré-vestibular exclusivo para alunos trans reúne histórias de aflição e esperança
Além de preparar para o vestibular, Transvest atende pessoas marcadas pela luta contra a intolerância
Tainá Silveira Guilherme Peixoto Palavras aparentemente distantes, vestibular e travesti possuem mais elementos em comum do que se imagina. Do latim vestibulum, a primeira refere-se a uma peça na entrada de residências antigas, destinada a guardar agasalhos, chapéus e acessórios, podendo indicar também algo compartilhado pelos dois gêneros. O segundo termo – travesti –, de origem francesa, identifica o indivíduo que se disfarçar sob trajes de outro sexo. Não soa irônico que termos com etimologias tão parecidas sejam, no cotidiano, separadas por um abismo tão grande?
É raro ver transgêneros nas universidades. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais, 90% da comunidade trans brasileira tem a prostituição como fonte de renda. Isso se deve, principalmente, ao preconceito presente na sociedade, que lhes nega acesso ao ensino superior. No entanto, algumas iniciativas têm buscado mudar esse panorama. O tradicional Edifício Maletta, no centro de Belo Horizonte, sedia o TransVest, curso prévestibular voltado para a comunidade trans. Fundado pelo professor Eduardo Salabert, formado em Letras, o projeto busca preparar seus partici-
pantes para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), em aulas vespertinas as segundas, quartas e sextas. Amanda Araújo, aluna do cursinho, destaca o tratamento sem hierarquia do TransVest. Ela, que deseja cursar Biomedicina, relaciona o interesse pela área a seu processo de transformação. “Quando entro em uma clínica de estética, o ambiente desperta minha curiosidade, a vontade de saber o que estão fazendo e de participar de cada processo”, diz. O diálogo democrático entre professores e alunos também é elogiado por Tiffany Maria Almeida de Castro, outra participante do projeto.
Ela deseja cursar Moda para “sair da estatística dos travestis e transexuais que precisam se prostituir”. Pitty, como é chamada pelos companheiros, no entanto, trata a universidade como incógnita, sobretudo por conta de possíveis atitudes preconceituosas. A escolha da graduação em Moda vem do desejo pessoal de criar uma marca de roupas voltada para o público trans.
Outras iniciativas A relação entre a população trans e a prostituição é fator determinante para a baixa expectativa de vida da comunidade, que não ultrapassa os 35 anos. Os cursos de graduação, então, são
vistos, naturalmente, como “porta de saída” da marginalização. Em instituições de ensino tradicionais, entretanto, muitas vezes, a comunidade ainda tem seus direitos vedados. É o que conta Mychellyya Colt, aluna do cursinho, e que, na ocasião de nossa visita, estava em seu primeiro dia de aula. Ela relata o constrangimento passado ao ter negada a sua participação na formatura de um curso técnico de Vigilância Patrimonial, em uma renomada escola belo-horizontina de segurança, na qual foi aluna. “No dia, me barraram, fiquei chateada e chamei a atenção da direção”, diz. Ao ver que Mychellyya tinha a
documentação feminina legal, os responsáveis pela instituição acabaram cedendo e permitindo sua entrada na cerimônia. O uso do nome social é um recurso garantido pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), órgão governamental responsável pelo Enem, que permite aos transexuais serem chamados de acordo com o gênero com o qual se identificam. Criada em 2014, a iniciativa ganhou adeptos ao longo dos anos, mas ainda é pouco conhecida. Em 2015, apenas 278 pedidos do tipo foram feitos, contra 406 na atual edição. Minas Gerais é um dos estados com
DOSSIÊ LGBT* mais solicitações: 29 no ano passado, contra 37 em 2016.
Inserção e convivência João Maria tem 25 anos, e, apesar da pouca idade, já passou por várias experiências. Aos 17, entrou na faculdade de Jornalismo, onde ficou por um ano. Não se adaptou e foi
cursar Letras, chegando ao sexto período. Apesar de gostar da área, as situações de preconceito vividas no ambiente universitário fizeram com que ele desistisse, naquele momento, de seu sonho. “Eu sofria constrangimentos e humilhações porque não consideravam o nome
Setembro de 2016 Jornal Impressão social”, conta. O uso dos banheiros também foi apontado por João como exemplo de acontecimento recorrente do tipo. Relatos como o dele apenas evidenciam que, mais árduo do que ingressar no ensino superior, são a permanência e o término do curso em ambientes carrega-
sem estigma O projeto nasceu da necessidade de retirar o estigma de que os transexuais estão fadados à prostituição. As tão citadas estatísticas são o combustível que move o idealizador, Eduardo Salabert. Dudu, como é conhecido por suas alunas, conta com a ajuda de doadores anônimos e professores voluntários, que, durante a semana, ministram as aulas tradicionais, com os conteúdos do Enem. Ainda aos sábados, há aulas de inglês, espanhol e francês. Esporadicamente, outros cursos e oficinas gratuitas são oferecidos, mas também dependem de professores voluntá-
rios, o que dificulta sua realização. Segundo pesquisa realizada pelo Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (NUH), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), travestis, transexuais e transgêneros saem de casa entre os 9 e os 17 anos. Com o início do projeto, Dudu confirmou essa estatística. Para ele, mesmo a oferta de cursos sem custo não é suficiente para mantê-los na sala de aula. Muitos alunos não têm recursos nem para se deslocar até o projeto. Assim, para garantir o sucesso da iniciativa, é necessário, também, auxílio para transporte e lanche.
Mesmo com as doações e a colaboração de voluntários, custear um projeto que não recebe auxílio governamental é uma tarefa árdua, e Salabert, muitas vezes, precisa tirar recursos do próprio bolso. “Para mantê-lo, a gente tem um gasto mensal de quase R$ 2 mil, e estamos tirando do bolso. Não temos suporte do governo nem patrocínio. A gente busca doações, mas a arrecadação é insuficiente”. Eduardo Salabert resume a criação do TransVest como uma tentativa de “criar um espaço bem aconchegante, para que a população trans se sinta empoderada”.
Em sentido horário, a partir do alto, à direita: Eduardo Salabert, idealizador do Transvest, e suas alunas, sem medo de ser feliz
dos de preconceito e conservadorismo. Hoje, ele, que vive de artesanato, está no TransVest e pretende cursar Pedagogia, “por adorar trabalhar com crianças”, ou Belas Artes, por conta de sua ocupação atual. João, no entanto, sabe das dificuldades enfrentadas a partir das manifestações
de preconceito por parte daqueles considerados “acadêmicos”. Em sua visão, os mais instruídos “sentem-se no direito de oprimir”, apenas por questões intelectuais, o que ele classifica como “arrogância”. João Maria denuncia ainda a insuficiência da universidade como espaço único de absor-
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ção de conhecimento e vivências. “Frequentar um lugar com pessoas que estão com a mesma militância e passam pelas mesmas coisas ajuda a ter força. Às vezes, a gente pensa em desistir por algumas coisas que acontecem, mas vê várias pessoas nessa luta, pela desconstrução”, finaliza.
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B DE BANANA Bissexuais sofrem com estereótipos e discriminação
seado na falta de confiança no parceiro, mas sim na falta de confiança em si mesmo. Isso ocorre, por exemplo, se a parte mono da relação não se sentir suficiente para satisfazer o parceiro bi, “Se relacionar com alguém que não tem um ‘pré requisito’ de gênero para se sentir atraído é assustador, por não saber o que a pessoa gosta na hora de fazer com que ela se sinta atraída por você” conta Mariana Moralles, de 18 anos. Outro estereótipo comum relaciona a bissexualidade aos triângulos amorosos. Quem jogar a palavra “bissexual” no Google vai encontrar várias referências ao sexo a três. Apesar do senso comum de que todo bissexual está disposto e tem vontade de participar de um ménage a trois, nem todos estão. Questões como essa vão
Devido ao interesse por ambos os gêneros, os bissexuais muitas vezes são vistos como pessoas com dificuldades em manter um relacionamento, como se não fossem capazes manter uma relação fiel e duradoura. Os relacionamentos entre bissexuais e monossexuais podem ser particularmente complicados. Geralmente a parte mono da relação se sente ameaçada, fruto de mais um dos estereótipos que giram em torno do termo “bissexual”. Elisa Marcondes, 20, conta que seu namorado não tinha confiança de que ela não ficaria com garotas, mas tinha segurança quando se tratava de meninos. “Se você está com uma pessoa, você é fiel ou infiel, independentemente de sua orientação sexual”, afirma Elisa. O problema pode também não estar ba-
além da opção sexual, porém acabam se tornando mais uma arma do preconceito.
Bifobia e vida dupla De acordo com o ponto de vista psicológico, a bissexualidade é uma opção sexual real, ainda que minoritária. Pesquisa da PUC-RS constatou que 11,8% dos jovens brasileiros de 18 a 34 anos se dizem bissexuais. Outro estudo, publicado em 2013, nos Estados Unidos, apontou que 28% dos que se consideravam bissexuais se disseram abertos quanto à sua sexualidade, devido à marginalização e discriminação que sofrem na sociedade e até mesmo no meio LGBT. É o que chamamos de bifobia. Os bissexuais sofrem com a “fetichização”, os estereótipos e a invalidação de demandas e sentimentos vin-
dos dos heterossexuais e dos homossexuais. A grande maioria dos bissexuais não se assume nem diante dos prestadores de cuidados com a saúde, e por isso recebem informações incompletas quanto à prática sexual segura. Podem apresentar taxas mais altas de hipertensão, problemas de saúde física, maior probabilidade de depressão e transtornos de humor ou ansiedade, se comparados aos hétero e aos homossexuais. A maioria dos programas de prevenção de DSTS e HIV não são adequadamente direcionados às necessidades de saúde dos bissexuais, já que eles mantêm relações sexuais com homens e mulheres. Assim, os bissexuais se assumem numa parcela bem menor do que a real e tendem mais à vida dupla e tentativa de suicídio. MARIANA FERNANDES
Ou você é 100% homossexual ou 100% hétero. Esta é a visão de muitas pessoas dentro da comunidade LGBT. Para elas, não pode haver meio termo. Outros acham que a bissexualidade é apenas uma desculpa para se relacionar com ambos os sexos. Ainda há aqueles que, antes de se assumirem gays ou lésbicas, eram tidos como bissexuais, e, após assumirem um lado, acabam achando que todos os casos são assim. Dessa forma, a bissexualidade é vista como uma fase, um momento de confusão que posteriormente resultará em uma escolha. Os relatos de bissexuais que sofreram discriminação por parte da comunidade LGTB estão cada vez mais frequentes. Sua sexu-
alidade é colocada em questionamento e suas relações são deslegitimadas, colocando-os em situações difíceis e desconfortáveis. Em um ambiente onde deveria haver apoio e confiança, os bissexuais são colocados de lado. O B da sigla é muitas vezes ignorado. O fato de sentir atração e se interessar por ambos os gêneros é desconsiderado e visto apenas como indecisão. “Algumas pessoas falaram que eu estava confusa, que eu ia acabar me decidindo em algum momento” conta Ghiulia Cabral, 18. Já Ravi Stewart, 18, também passou por uma situação parecida: seus próprios amigos disseram que só se tratava de confusão e que na verdade ele era gay. “Tem muitas pessoas na comunidade que praticam o mesmo preconceito que eles sofrem”, comentou.
MARIANA FERNANDES
Érika Costa Mariana Fernandes Rita Lima
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pele ou Máscara? sexualidade começou a ser estudada. Sabe-se, porém, que Freud a estudou nas neuropsicoses por cerca de 40 anos, tendo início em meados de 1897, quando divulgou sua teoria sobre o Complexo de Édipo. A psicóloga Amanda Carvalho afirma que, na atualidade, ainda existem divergências nos estudos sobre essa atração por ambos os sexos, “Existem psicólogos que afirmam que a bissexualidade é uma máscara para os homossexuais que têm dificuldade em se assumir. Outros estudiosos garantem que todos nascemos bissexuais, principalmente, as mulheres. Existiria pré-disponibilidade a se relacionar sexualmente
com ambos os sexos, mas isso só não acontece pelo fato de sermos educados nos parâmetros da igreja católica, para quem homossexualidade e poligamia são pecados, e, por isso, não podem ser praticados”, conta. Amanda ainda diz que o indivíduo pode manter o interesse por ambos por toda a vida, ou mesmo por um momento. Há aqueles que irão experimentar e repetir, aqueles que não irão repetir e aqueles que nem vão experimentar, por puro receio. Entretanto, ela declara: “Por isso, digo que toda orientação sexual é real, ainda que não se perpetue por toda a vida do indivíduo”.
BISSEXUALIDADE NO BRASIL Belo Horizonte
Manaus
2,4 %
1,6 %
1,5 %
1,2 %
Brasília
Porto Alegre
2,9 %
1,3 %
0,6 %
1,8 %
Cuiabá
Rio de Janeiro
4,1 %
4,8 %
0%
2,3 %
Curitiba
Salvador
2%
1,6 %
1,4 %
1,2 %
Fortaleza
São Paulo
3,4 %
1,7 %
2%
1,7 %
Legenda:
Homens
Mulheres
Dados da pesquisa Mosaico Brasil que foi realizada pelo Projeto Sexualidade (Prossex), do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo.
Talita amorim
Bissexual é a pessoa que sente atração, tem desejos e estabelece vontades sexuais com pessoas do mesmo sexo e também do sexo oposto. Nascemos homens ou mulheres, o que biologicamente não é o suficiente para definir nossa sexualidade, existe apenas uma potencialidade e a identidade sexual será construída por meio de processos de identificação pessoal. É durante a infância, entre os 5 e os 7 anos, que se desenvolve a formação da identidade sexual,e nessa etapa de reconhecimento a sociedade tem papel determinante. Não se sabe a data específica em que a bis-
RITA LIMA
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Se Os azulejos falassem... Danilo Silveira
A pegação gay nos banheiros públicos de Belo Horizonte
Discretos, sedentos por prazer, movidos pela vontade de realizar fetiches, os homossexuais recorrem frequentemente às cabines de banheiros públicos
Rodrigo de Oliveira Desde que o mundo é mundo, os seres humanos revelam os mais variados fetiches sexuais, das práticas consideradas “normais” – como o voyeurismo (gosto por observar os outros), o a podolatria (atração sexual por pés) – àquelas mais bizarras, algumas das quais são crimes, a exemplo da necrofilia (atração por cadáveres) e da pedofilia (sexo com menores). Com o público gay, a história não é diferente. Esses anseios fervorosos, por vezes, começam quando alguém se encontra com outro em um banheiro público, e, ali mesmo, no mictório, faz a propaganda de seu “material” (órgão genital), de modo a despertar no outro o desejo imenso de “cair de boca” na pegação, ou, até mesmo, de fugir, deixando o compa-
nheiro com as calças nas mãos, a “ver navios”. Tais fetiches são considerados normais para alguns, mas pecaminosos e nojentos para outros. Normalmente, não são vistos com bons olhos pela sociedade, e, especialmente, pelos homofóbicos. Mas como reprimir e resistir a algo tão excitante, que está ali, pulsando como um vulcão bravio, a ponto de jorrar suas lavas? É difícil fugir à tentação. Nessas horas, nem reza brava resolve; nem macumba da boa! É coisa de pele, de tesão. Jovem estudante universitário, de, aproximadamente, 30 anos, MF prefere não se identificar, e diz que já praticou muita pegação em banheiros gays, além de já ter sido flagrado, pelos seguranças de um shopping, com um cara numa cabine. Seu maior e mais atemorizante drama se deu quando ele achou que havia con-
traído HIV. “Nunca me preocupava com o preservativo no sexo oral. Daí, coincidentemente, tive pneumonia. Fiquei internado por oito meses, emagreci muito, vi a morte de perto, mas não era nada”, relata.
Prazer adrenalínico Em plena luz do dia, pela tarde, à noite, ou mesmo de madrugada, os banheiros públicos masculinos de Belo Horizonte (e, por que não dizer, do mundo!), transformam-se em palco para o “show” que acontecerá ali, sem holofotes, discretamente. Em tradução mais próxima da realidade, o termo “pegação” poderia ser explicado de forma simples e sem pudores: dois homens se pegam numa cabine, praticam sexo oral,ou se masturbam. Importante ressaltar que outras modalidades sexuais, como o sexo anal, não são comuns ali.
“Se essas paredes falassem...”, diz, revoltado, o encarregado do banheiro de um supermercado da cidade, que também não quer se identificar. “Já vi de tudo por aqui! De senhores casados que deixam a esposa fazendo compras a homossexuais novos e velhos, alguns sem a menor pinta, que passam por héteros numa boa. Também já vi aqueles que encontram a namorada na porta do banheiro ao sair. Elas nem sonham”, conta. O encarregado assegura que, se perceber algo durante seu expediente, não deixa. “Se tiver que xingar, eu xingo. Chamo a atenção e aciono a segurança. Aqui não é lugar para pouca vergonha e putaria”, afirma, ao confessar que teme perder o emprego. “Não deixo o campo aberto para eles. Uns vêm de longe, e até de outras cidades vizinhas, mas quebram a
cara quando chegam e me veem. Vejo faíscas em seus olhos”, conclui.
Riscos X Prazer Há um entra e sai de homens dentro do banheiro, mas o que eles realmente fazem lá? Xiiii... Xiiii ... (silêncio!) Alguns usam por necessidade fisiológica mesmo; outros, frequentam os sanitários para ver estrelas, gozar, ou, como eles mesmos dizem, “tirar um sarro”. O clima esquenta aos finais de semana, especialmente em feriados e domingos, quando as lojas estão quase todas fechadas, o movimento é pequeno e os auxiliares da limpeza estão de folga, “facilitando” a prática aos adeptos do voyeurismo, ou da pegação em si. D. F. S gosta de dar uma passadinha para conferir o movimento. “Venho mais para olhar. Não tenho coragem de participar. É muito ex-
citante, mas também é perigoso, em todos os sentidos, da doença que se pode contrair à possibilidade a ser pego em flagrante”, comenta. Em um domingo de feriado, com o shopping supervazio, havia dez ou doze gays se pegando no banheiro. “Um deles vigiava a porta, enquanto outro praticava sexo oral. Os demais se masturbavam sozinhos ou mutuamente. Precisa de mais alguma coisa? É relaxar e gozar”, enfatiza. Nem tudo, porém, são flores e prazer na “pegação” dos banheiros públicos, das festas fechadas e das saunas gays do mundo. Um programa de TV dominical levou ao ar uma reportagem sobre “carimbadores”, que, na gíria, seriam homens soropositivos frequentadores das “pegações” com o intuito de “carimbar” outros usuários. Será que eles existem, mesmo?
Danilo SIlveira
Quando questionado sobre a questão, o professor de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Alexandre Teixeira, estudioso do assunto, diz que desconhece o fato. “Não sei se essas festas existem e quais seriam a sua motivação. A única coisa que posso dizer é que adultos, homens e mulheres, cada um deve se responsabilizar por suas escolhas, por seus desejos e pelo cuidado de si, em relação ao corpo, às práticas e aos cuidados relativos à possibilidade de transmissão e de contaminação por HIV e DSTs [Doenças Sexualmente Transmissíveis]. Se deliberadamente optam por fazer jogos sexuais sabendo dos riscos, isso é uma escolha pessoal sobre a qual não cabe nenhum tipo de questionamento ou juízo de valor”, afirma. Já Thiago Oliveira, que defendeu dissertação sobre “pegação” no estado da Paraíba, tem visão bem clara e aprofundada sobre a questão, desmentindo tal prática: “Durante os três anos em que desenvolvi pesquisa sobre pessoas que participam e frequentam espaços de pegação em variados
níveis (espaços públicos, comerciais, virtuais ou em festas domésticas), percebi que o espectro que o HIV teve – e continua tendo – sobre as pessoas é absolutamente presente. Ou seja, a maior parte das pessoas que conheci tem consciência dos efeitos do sexo sem camisinha, seja com conhecidos ou com desconhecidos, e quase sempre optam por sexo com preservativo”, explica. Quando questionada sobre esse tipo de fetiche sexual masculino, e os riscos de contaminações pelo vírus HIV, a professora de psicologia do Centro Universitário de Belo Horizonte (UniBH), Virgínia Viana, relata que pode, sim, haver pessoas que transmitam a doença propositalmente, mas que isso seria um desvio de conduta grave, algo perverso: “Os jovens até podem participar de festas onde há sexo livre, pois estão em busca de sensações, e gostam de correr riscos. É algo muito comum na idade deles. Já os gays têm se cuidado muito, tomando medicações antes da pré-exposição ao vírus. Lembrando apenas que a responsabilidade do sexo desprotegido é pessoal”, arremata.
Feito um dois de paus Não é difícil perceber o movimento dentro dos banheiros masculinos. De certo modo, os “pegadores”, já estão “manjados” no lugar. Normalmente, são clientes que compram frequentemente, e, como há muita discrição em suas experiências sexuais dentro de cabines de banheiros, os encarregados e vigias dos locais costumam fazer “vista grossa”. Também há aqueles que ficam parados em frente aos banheiros, na esperança de que alguém apareça para satisfazer seus desejos secretos. Renato, que reside próximo a um famoso shopping de BH, e não quer revelar seu sobrenome, costuma aparecer frequentemente no local. De cabelos negros, 58 anos, ele assume que tem um fetiche especial por garotões. “Não me interessam os caras de minha idade. Minha atração é por meninos de 20 e poucos anos. Passou dos 35, já não me desperta nada”. Renato se considera bom de briga, e defensor dos amigos gays (ou afins) que costumam frequentar os locais. “Uma vez, um amigo meu me disse que, ao sair do banhei-
ro, ouviu o encarregado da limpeza do banheiro desfazer de sua pessoa, com palavreado chulo, para um cliente que entrava. Fiquei possesso, com o demo no corpo. Se eu pegasse essa ‘bicha enrustida’, quebrava sua cara. Sou bom até demais, mas não mexa comigo e com os meus”.
De volta pra casa Motorista de ônibus, casado. Assim é a vida de P.N., de 56 anos, que está acostumado a pegar no duro desde cedo. Quase sempre, após horas de trabalho no trânsito pesado de Belo Horizonte, costuma passar no banheiro do mesmo shopping frequentado por Renato, para satisfazer seus desejos secretos. Sobre o fato de ser casado, ele age com a maior naturalidade: “Minha esposa é evangélica, fica muito tempo na igreja e nem desconfia do que faço”. Quando questionado sobre sua posição (ativo ou passivo) nas relações, logo se arma e engrossa a voz. “Sou ativo, rapaz! Gosto que me desejem, e de atender aos desejos dos outros, mas só como ativo, mesmo. Não vou mudar de lado”, enfatiza.
9 Fotos: Danilo Silveira sob montagem de Juliana Rolim
DOSSIÊ LGBT*
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DOSSIÊ LGBT*
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TODO DIA, EU MESMA Por meio da militância, Helen de Castro busca um mundo mais justo JÉSSICA TORRES
cimento e amor próprio para se permitir ser do único modo como poderia: lésbica.
Madeixas e mente iluminadas: luta contra padrões estéticos discrepantes da realidade brasileira
Jéssica Torres Aos 27 anos, a belo-horizontina Helen de Castro é precisa ao explicar sua tendência política: “Estou na esquerda, é óbvio. O que aconteceu com a presidente Dilma é machismo e elitismo”. Embora seu interesse pelo assunto seja antigo, a concepção de um professor foi essencial para sua investida. “Ele dizia que, se a gente não se interessa e não faz política, terá alguém que faça por nós. Mas nem todos são bem intencionados”, relembra. Defensora de movimentos sociais, necessários à garantia dos direi-
tos humanos, Helen tem se engajado na luta pelo rompimento do silêncio ditatorial de mulheres negras e lésbicas, cuja invisibilidade ainda se revela vasta, apesar dos avanços do ativismo. Para ela, a demanda de tais grupos é ainda mais específica, uma vez que há preconceito dentro dos próprios grupos de ação, a exemplo do “feminismo branco” e do universo LGBT* (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis). “Durante a Parada Gay, as mulheres negras e lésbicas são representadas e definidas como um subgrupo específico”, explica.
Engenheira civil pela faculdade Pitágoras, Helen de Castro também conta com formação técnica em segurança do trabalho, pelo Sistema Organizacional Técnico (Soter), de Parauapebas, no Pará. Funcionária em um escritório de engenharia, a mineira pretende criar um instituto cultural “no âmbito da diáspora africana”, tal como um salão de beleza que desconstrua padrões estéticos discrepantes da realidade brasileira. Seu abraço à causa, porém, é estendido a outras tantas razões. Após muita reflexão interna, aos 18 anos, Helen teve autoconhe-
Luta compartilhada Há cerca de seis anos, sua luta ganhou curvas, personalidade e um sonoro nome: Marília Martinez. Ao lado da companheira, que trabalha como agente penitenciária, Helen tem motivos para defender a ultrapassada rede social Orkut, que entrou para o cemitério cibernético em 2014. Afinal, foi por meio dela que o casal se formou. Elas são unânimes na escolha de felicidades atribuídas ao casamento, que vigora há cerca de dois anos: maratona na Netflix, preferencialmente, de pijama! Ganham destaque as séries House of Cards, Orange is The New Black, How To Get Away With Murder e The Walking Dead. Séries à parte, Marília apresenta lições do casamento que escapam ao senso comum. “Contas, divisão de tarefas, crescimento mútuo. Estar casada é saber que o amor, apenas, não sustenta o relacionamento. Nossa cama não vai estar sempre arrumada e não nos importamos com isso”, destaca a funcionária pública. O casal já usufrui da Resolução número 175, do Conselho Nacional de Justiça, de 14 de maio de 2013, e do Supremo Tribunal Federal, que reconhece o casamento civil homoafetivo e obriga os cartórios a realizar a cerimônia. Além de ter direito ao seguro de vida do escritório onde trabalha sua companheira, - Marília foi incluída como dependente -, no plano de saúde da esposa, e o apartamento acabou registrado com o nome das duas.
Vida errante Devido à profissão do pai, já desde pequena, Helen aprendera a mudar, constantemente, de cidade. Aos sete anos, a primogênita de quatro irmãos trocou a capital mineira por Santa Catarina. De encontro à reação natural de uma criança, Helen se apaixonou pelo hábito, desafiador e maduro, de embalar os pertences rumo a outra aventura. Conhecer o mundo era, para a viajante, mais tentador do que estabelecer raízes. Para desbravar os novos cenários, contava com a companhia dos irmãos, Keid, hoje com 25 anos, e Júnior, 23. A caçula absoluta, Vitória, veio muito tempo depois, e, atualmente, tem 7 anos. Certo dia, após inúmeras viagens - e para desgosto da primogênita -, sua mãe, Sidilene, resolvera guardar, definitivamente, o plástico bolha, para que os filhos pudessem estudar. Em tal período, a jovem militante lidava com os infortúnios da adolescência. Hoje, ao seguir os passos da mãe, cabeleireira, - e, claro, quando não está a acompanhar obras ou a coordenar o corpo técnico do escritório de Engenharia -, Helen atende no salão de beleza da família, ou a domicilio. “Faço parte de um coletivo voltado ao empoderamento e ao combate ao racismo de mulheres e crianças negras, por meio da estética”, explica. Para tanto, ela organiza intervenções artísticas, palestras e workshops em escolas e comunidades, bem como ocupações e eventos que promovam a cultura negra ligada à estética. Também engenheira civil, Andréa Pontes, professora de Helen, relembra suas peculia-
ridades da, hoje, amiga: “Definitivamente, o que mais me chamava atenção nela eram as mudanças diárias em seu cabelo”. Dona de um crespo 4 A, com várias texturas, Helen faz questão de, literalmente, manter suas raízes, já que se recusa a alisar as madeixas. De outro modo, o que nunca mudou na amiga, segundo a ex-professora, é sua ironia. “Ela tem a capacidade de rir de tudo, não importa quão séria seja a situação”, ressalta.
Militância O escritor e filósofo italiano, Umberto Eco, (1932-1916) concluiu, com primazia, que idiotas ganharam voz com o advento da internet. Apesar disso, há quem a utilize para tornar acessíveis as ideias constitucionais. Por meio do canal eletrônico “Domínio Pessoal”, Helen e sua amiga, Fernanda Fernandes, difundem a cultura lésbica. “Produzo conteúdo que apresente informação, reflexão e questionamentos ao sistema excludente em que vivemos”, afirma. Helen tenta superar a si mesma por meio de metas sobre diversos nichos, ao estabelecer prioridades. O instinto materno é, relativamente, novo para ela, que deseja, a princípio, e, em consonância com Marília, recorrer à adoção. No mais, resta a luta por um mundo melhor: “Em casa, tento fazer com que haja um lar. O peso e a vida ruim ficam sempre da porta para fora”, afirma. Já no trabalho, para além das piadas que divertem o ambiente e amenizam a rotina corrida, esta incansável belo-horizontina busca respeitar o espaço de cada colega: “Ao olhar para além do meu umbigo e das minhas necessidades, ajudamos aos outros da melhor forma possível”.
UM DIA NO...
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Ora, direis, ouvir estrelas PIXABAY
Observatório da Serra da Piedade convida visitantes a desvendar os mistérios do céu
Observar os astros é muito mais do que apenas olhar para o céu, pois diz respeito à possibilidade de autoconhecimento
Ana Carolina Reis Naíne Fernandes Thiago Souza Tuany Alves O universo conta com bilhões de galáxias, compostas por planetas, asteroides, estrelas, cometas, satélites naturais, dentre outros corpos celestes. Observá-lo é uma prática muito antiga, que impulsiona a humanidade ao conhecimento – a ponto de o célebre físico Carl Sagan (1934-1996), um dos precursores da divulgação científica, dizer que somos feitos de poeira estrelar. Neste sentido, o que, afinal, nos levaria a observar o céu? A partir de tal indagação, ao final da tarde de uma terça-feira, começamos nossa aventura. O sol já se põe e a noite começa a cair. Além de limpe, o céu se revela completamente estrelado: dia perfeito, portanto, para contemplar os astros. O cenário de nossas peripécias fica
entre Belo Horizonte e a cidade de Caeté. Tratase do Observatório Frei Rosário, localizado no topo da Serra da Piedade. Ainda na estrada, é possível avistá-lo, juntamente à beleza do céu. O frescor da natureza e da brisa invade o carro e indica que já estamos distantes da cidade grande. Enquanto isso, curvas sinuosas ditam o caminho ao cume de nosso destino. Não nos basta, porém, toda a reflexão sobre o cosmos realizada durante o trajeto. Para entendermos um pouco mais sobre Astronomia – a ciência que estuda os corpos celestes – e a história do Observatório, participamos, antes, de uma aula sobre o universo. Ao som de Gilberto Gil e Lulu Santos, em uma sala com paredes semelhantes às de uma caverna, e quadros que representam as constelações, o clima da apresentação é ainda mais lúdico.
Pronto! É chegada a hora mais do que esperada. Em aproximadamente 1.746 metros de altitude, observamos duas constelações: acima, um céu estrelado; abaixo, as luzes de Caeté. Agraciados com a vista, somos levados ao espaço: em um lugar como esse, é difícil não se sentir tocado e, às vezes – por que, não? –, intimidado com a imensidão do universo. Aender Martins é vigia do Observatório há mais de 20 anos e considera maravilhoso e gratificante trabalhar ali. “Não tem preço poder admirar o pôr do sol, o anoitecer, e perceber que, em todos esses anos, o céu sempre se mostra diferente”, descreve. Assim como nós, um grupo de estudantes do ensino fundamental acompanha a visita e se encanta com o rodar da cúpula. Um simples movimento permite visões
do céu em 360 graus. Para os alunos, estar naquele lugar lhes traz a sensação de estarem próximo aos astros e ao universo. Eles acabam despertos à curiosidade e ao sentimento de que “uma olhada é pouco”. O interesse dos adolescentes se assemelha ao do físico Renato Las Casas, professor do Departamento de Física da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenador do Observatório desde 1987. “Comecei a me interessar pela Astronomia quando ainda era criança. Olhava a lua cheia e minha mãe me dizia que havia um caminho até ela e que meu pai iria me levar. Passei anos pensando se esse trajeto realmente existia”, lembra.
Telescópio Ainda na cúpula, aguardamos ver Júpiter, maior planeta do Sistema Solar, e visível a olho nu. No entanto,
com a ajuda de um telescópio profissional – o segundo maior do país –, temos a oportunidade de perceber detalhes que o cercam. O aparelho está fixo na rocha da Serra da Piedade, em lugar separado ao do resto do prédio, o que ameniza as oscilações, pois qualquer movimento pode atrapalhar as observações. Ou seja: o que, por vezes, parece imperceptível afeta, consideravelmente, a precisão do equipamento. Desde 1972, o instrumento está instalado na Serra. Em termos mundiais, o telescópio é considerado pequeno. Seu espelho principal possui 60 cm de diâmetro, enquanto os maiores, localizados no Havaí, chegam a oito metros. Além do telescópio principal, os monitores usam aparelhos amadores, de diversos tipos e tamanhos, o que inclui lunetas, telescópios refratores e binóculos. Observar os astros, porém, é muito mais do que apenas olhar para o céu. Segundo Las Casas, a Astronomia remete a questões básicas do homem, como “Quem sou?”, “Qual minha origem?” e “Estou sozinho no universo?”. Tais questões acabam por misturar Filosofia e Física, de modo a proporcionar observações críticas acerca da própria ciência. Essa apreciação é essencial à Astronomia, que sempre está sendo revista e atualizada. No entanto, para a sociedade em geral, pode ser difícil manter-se atualizado sobre o assunto. Para isso, de acordo com seu coordenador, o Observatório realiza um trabalho de ensino e divulgação científica. “Precisamos familiarizar a sociedade com a ciência”, afirma.
Mantido pela UFMG, o local recebe cerca de 50 pessoas durante as visitas, realizadas às terças e quintas, das 18h às 23h. Segundo o monitor Henrique Braga, os visitantes são, geralmente, alunos de escolas e faculdades, além de pessoas que apreciam o tema. O observatório também oferece serviços itinerantes. “Visitamos cidades do interior que não têm recursos para instalar um observatório. Fazemos observações, palestras e apresentamos o projeto ‘Física fácil’. Também mostramos um pequeno laboratório, para que as pessoas entendam, de maneira simples, certas coisas sobre Física, relacionadas à Astronomia e a outros campos da disciplina”, esclarece.
Entre mundos Após a observação, deitados no alto da Serra, com o vento sussurrando em nossos ouvidos, pudemos, assim como Olavo Bilac, “ouvir as estrelas”. Rodeados de um jardim natural, em meio ao cerrado e às montanhas, o silêncio traz tranquilidade, o que afasta a correria da mente. Observamos, então, a imagem do santuário de Nossa Senhora da Piedade. A visão nos remete a outra questão, também bastante complexa: este é um lugar de ciência ou de religião? Bem... Tradicionalmente, trata-se de espaço religioso. Por volta do século XVIII, os portugueses Antônio da Silva Bracarena e Irmão Lourenço chegaram à Serra da Piedade. Tempos depois, construíram um cemitério, e, ao lado, a igreja dedicada à santa, que, em 20 de novembro de 1958, seria nomeada, pelo Papa João XXIII, como Padroeira do Estado de Minas Gerais.
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universidade
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(Des)conexão universitária Alunos do Jornalismo se aventuram durante uma semana na sala de aula de cursos bem distantes de sua área Há exatos dois anos, adentramos a vida acadêmica. Espaço de tribos e de diferentes campos do conhecimento, a universidade se tornou o território a ser explorado. Imbuídos pelos desejos de aventura e descoberta, decidi-
mos desbravar esse circuito de saberes, a fim de relatar vivências pessoais, surpresas e estranhamentos. Com base em tal intuito, as turmas de quinto período dos cursos de Engenharia Química, Sistema de
Informação, Geologia e Educação Física, além do segundo período de Medicina, transformaram-se em espaço a ser explorado por nós, estudantes de Jornalismo, declaradamente ávidos pela experimentação.
Error 404: Not Found Desconfio, pelos olhares que me são lançados, que me empolguei na apresentação. Falar sobre o meu desejo de conhecer a área de exatas parece não ter sido uma boa estratégia para quem deseja se enturmar. Já no primeiro dia junto a turma de Sistema de Informação, chego à conclusão de que, além das disciplinas, será preciso me adaptar ao nível de concentração da turma. Como um “peixe fora d’agua”, tento me alocar aos poucos. Inibida e com receio de atrapalhar, deduzo que precisarei calcular, friamente, cada movimento. A aula segue e eu pouco consigo compreender. Logo desvio meu olhar e percebo que boa parte da turma, assim como eu, não larga o celular. Eis o meu primeiro alívio! Parecemos, enfim, ter encontrado algo em comum: a paixão pela internet. Como continuo à procura de motivos para me ambientar, a cena satisfatória me incomoda um pouco. Aquela primeira impressão, de uma turma sem um só minuto de desatenção, é desmistificada. Compartilho a impressão com a aluna à minha frente. Entre risos, ela justifica que todos usam o celular para buscar exemplos, e revela que a turma tem suas matrículas bloqueadas para usar o wi-fi durante as aulas. Já não fosse aquela uma experiência confusa, eu teria pela frente a aula de banco de dados. Fiel ao sentido literal das palavras, embarco numa viagem abstrata, para tentar compreender a disciplina. Enquanto admiro a vista imaginária de uma praça infantil, com bancos em formas de dados, desembarco em território real, com um professor a alertar sobre os cuidados de armazenar dados no banco de informações. Acredito que a viagem é meu primeiro sintoma de cansaço. O corpo pede descanso, em meio à semana agitada. Porém, minha resistência estará à prova, ainda, das aulas de “Sistema de informação”, “Cálculo numérico” e “Matemática discreta e teórica”. De todo modo, o desfecho cômico estava reservado para a aula prática. A professora pede que todos encontrem, no teclado, a tecla “Delete”. Com pronúncia destoante e uma sonoridade com a qual não me acostumei, não compreendo o símbolo ao qual ela se refere. Ao observar minha agonia, a aluna ao lado me questiona, em tom de brincadeira, se eu nunca deletara um arquivo no computador. A ficha caiu. Buguei!
Enzimas: como assim? “Quem é ela? Será uma aluna nova? ”. Responder ao bombardeio de perguntas é bem menos complexo do que compreender termos e cálculos. Potássio, cobre e ferro soam familiares, mas uma tal de “enzima da indústria têxtil” é mesmo intraduzível. O leitor pode imaginar o que uma estudante de Jornalismo pensaria ao escutar tal vocábulo? Deixar meu habitat, no curso de Comunicação, para as difíceis criações industriais da Engenharia Química é minha missão. O fato de chegar a uma turma com pessoas e disciplinas diferentes – quando, na verdade, a única diferente sou eu – evidencia minha personalidade acanhada. O estranhamento é ainda maior ao escutar o despertador vibrar às seis horas da manhã. Eu sabia, obviamente, que não seria fácil compreender as disciplinas: o desempenho escolar durante o ensino médio sustentava a previsão. Todavia, até arrisco cálculos e anotações, mas aquelas combinações e terminologias apenas bagunçam minhas reações. Prossigo na lida, com o objetivo de compreender os motivos dos alunos para escolher o curso. Estudar disciplinas, a meu ver, incompreensíveis, parece, mesmo, inaceitável. Minha companhia na jornada semanal, Luana Araújo, de 22 anos, revela-me ser apaixonada por cálculos e Química. Diz-me, também, que seu desejo é atuar na área dos cosméticos. A afirmação de minha colega não se contradiz às justificativas e aos anseios da turma. A verdade é que, em ambiente regado a tabela periódica, sou eu o hidrogênio, um elemento de características únicas.
Mariana Souza
Fotos: Abraão Bruck
Larissa Bismarck
universidade
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Pânico anatômico Chego a meu destino sem saber o que essa experiência há de me reservar. Logo no primeiro contato, encontro a turma acomodada em um canto da sala. Contudo, à beira de um ataque de nervos, recolhome solitário ao lado oposto, como uma Coreia do Norte lacrada de apreensão e insegurança. De repente, o professor, de passos rápidos e mãos inquietas, me convida para uma apresentação. Minha inexperiência com aquele ambiente de Guyton, Keith Moore, Galeano e Sócrates, referências no ensino de Medicina, logo é compensada com uma brincadeira. “Seja bem-vindo. Mas você terá que fazer as provas”, diz uma das alunas, que tem, nas mãos, um tablet, livros e um amontoado de folhas com as anotações para a avaliação de Histologia, que acontecera após aquele horário. Sentado na primeira carteira da fila à esquerda, desenvolvo sanhas interiores frente ao teste avaliativo. Descrever algo histologicamente parece bem mais assustador do que estudar Semiótica. Incapacitado, até mesmo, de arriscar uma resposta, recorro ao hábito de contar as palavras para passar o tempo. Seria aquela uma tarefa divertida, principalmente, em um universo com termos como “otorrinolaringolóficas”, formado por 22 letras. Antes da aula de anatomia, questionava-me sobre a violação à regra máster. Para participar de uma aula prática da disciplina, seria preciso superar meus medos. Dessa forma, ao término da aula teórica, duas opções tangiam minha rotina: a prática de anatomia ou a de microbiologia. Estudar bactérias, fungos e meios de cultura é bem mais receptivo do que estar ao lado do cadáver. Contudo, essa não poderia ser a minha sina. Na quinta-feira, uma nova chance para estar diante do causador de minha fobia. Com passos calmos, voz embargada e olhar desconfiado, caminho em direção ao laboratório. Os grupos de estudo já se ajeitam, mas permaneço ao lado de fora, a examinar aquele ambiente. “Entre, não é isso tudo, não! Vai ser tranquilo”, dizem alguns dos alunos que ali estão. O sentimento de coragem ludibria-me, e, aos poucos, me aproxima dos alunos. O silêncio que temo logo se aproxima. Já é tarde, porém. A violação à regra máster já está feita: o olhar direcionado ao vilão.
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No meio do caminho tinha uma pedra... “Preciso me concentrar”. Eis o mantra da semana. Os primeiros minutos naquele espaço são acompanhados da tensão de quem acaba de ser realocada. Analisar uma lâmina de rocha e caracterizá -la são meus primeiros desafios. Não faço a menor ideia de como proceder com as “manchinhas”. Toda experiência tem suas dificuldades, e as minhas começaram a aparecer já nos primeiros dias. O desconforto de ter que faltar às aulas de Jornalismo, para estar ali, é grande. As salas de aulas dos dois cursos são distantes e há problemas a resolver com o meu grupo. Contudo, chego à conclusão de que é preciso me concentrar. Sei que algo ainda mais complexo me aguarda... Geofísica. A explicação do professor Dionísio soa grego aos meus ouvidos. Foi a aula mais difícil de acompanhar. Desconheço cálculos e fórmulas desde o Ensino Médio. Durante certo esclarecimento sobre condutores intermediários, vem a situação cômica. De repente, o professor pergunta: “A repórter está aqui?”. Ainda não me apresentara, como sempre faço com os professores, justificando minha presença nas aulas. Fico constrangida. “Repórter? Ainda não, mas pode ser que, um dia, eu seja”. Risos. Envergonhada, retomo os desenhos de vetores. Naquela semana, a estudante Helena foi minha bússola. Logo no primeiro contato, ela me diz que o Jornalismo veio para florir o campus. “A faculdade está mais colorida com a chegada de vocês”, dispara. Helena veio lapidar meus robustos paradigmas sobre Geologia. Compreendo, assim, mundos diferentes – mas que compartilham o desejo de desvendar os mistérios escondidos nesta estrutura que chamamos de Terra. Aline Reis
Rayllan Oliveira
Fora de campo Decido chegar antes de todos, a fim de evitar olhares. Percebo, porém, que minha estratégia não será bem-sucedida: é impossível que um rosto estranho, na turma, passe despercebido. Continuo firme, quieta, até que começo a me incomodar com a falta de perguntas. Converso com pessoas próximas. Naquele primeiro contato com a Educação Física, tento esclarecer todas as minhas dúvidas. Logo, sou surpreendida com a informação da desistência de 60 alunos. Fico ainda mais estarrecida ao saber que apenas seis, dessa mesma turma, continuam no curso. O bate-papo está bom, mas já é hora do rúgbi. Entre gritos e empurrões, o professor revela o objetivo de sua aula, que não tem o futebol como esporte preferido. “São somente modalidas a que eles não terão acesso fácil”, diz-me, com um sorriso sarcástico no rosto, aguardando minha reação à “notícia-bomba”. Fico realmente surpresa! O que falar, quando se espera que o futebol seja o favorito? Ao término da aula, no campo de futebol, percebo os primeiros sinais de dor de cabeça e o nariz congestionado. A gripe é uma das boas-vindas à minha chegada ao curso. Do campo à sala de aula, minha saga continua nas aulas teóricas. Sempre me arrisco a fazer alguma atividade. E, acredite, apesar de odiados por mim, me saio muito bem com os números. Termos como “Vo2 máximo”, “três tipos de fibras” e “estímulo central”, embora não tão bem compreendidos, me ajudam a desmistificar paradigmas sobre o curso. Ao término da maratona semanal, concluo que cada curso tem suas particularidades e seus admiradores. Cada pessoa tem um dom, e deve cultivá-lo da melhor maneira. Ao findar a experiência, porém, a certeza que tenho é a de que permaneço aqui, nesse universo das palavras chamado “Jornalismo”. Bárbara Rodrigues
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Tramas contemporâneas
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Entre sonho e ilusão Modelos superam desafios físicos e psicológicos em nome da moda
Geralmente, tudo começa na adolescência, quando surge o desejo de ser modelo. Muitos imaginam que a profissão seja feita apenas de luxo, fama e sucesso. Mas não é bem assim. “Durante a carreira, principalmente no início, sofre-se muito em busca do corpo ideal”, afirma a modelo Ana Luiza Araújo, de 16 anos. Ao contrário do que se imagina, os desafios da carreira são enormes. Diariamente, as modelos enfrentam pressões para atingir medidas, muitas vezes, não proporcionais a seus corpos, vistos por muitos como meros cabides. Tal fato acontece porque os principais estilistas criam peças com medidas proporcionalmente baseadas em cabides, e exigem quadris com menos de 90 cm de circunferência. Isso faz com que as modelos busquem meios radicais para alcançar um resultado mais rápido e eficaz. Ana Luiza afirma ter presenciado a prática de vômito induzido, antes de desfiles. Além disso, viu meninas muito magras sendo chamadas de gordas. A cobrança torna-se tão grande, em cabeças tão imaturas, que a anorexia e a bulimia são consequências do sonho de se tornar a próxima Gisele Bündchen. A constante saga pela imagem perfeita está sujeita a múltiplos recursos para alcançar esses objetivos, mesmo que o resultado cause danos à saúde física e emocional. A ditadura da beleza é gritante, o que
sempre conseguir alcançar seus objetivos.
Acervo pessoal
Hellen Cristina Marcelo Teixeira Sophia Tibúrcio
leva a modelo a ter sentimentos de medo, angústia e insegurança, que, por sua vez, facilitam a depressão. Não é preciso muito conhecimento para constatarmos que não só a depressão, como outras doenças, decorrem da busca por status e pelo corpo notável. A
busca exagerada pela plenitude gera grave fragilidade emocional.
O peso da mídia No mundo contemporâneo, a magreza extrema está diretamente relacionada às mulheres bem-sucedidas. A mídia contribui, ao projetar a imagem da mulher ma-
gra como base para uma vida perfeita. Entretanto, sabe-se que nem tudo que é transmitido aos espectadores é real. Exemplo disso é o caso da consagrada modelo e apresentadora Isabella Fiorentino, hoje com 39 anos, que recentemente declarou ter sofrido de anorexia
no auge de sua carreira internacional. Segundo ela, na época, pesava 49 Kg com 1,78m de altura, e se achava gorda. Com o padrão de beleza que a mídia nos apresenta, é possível observar que cada vez mais jovens se espelham nos ídolos, mas se desiludem por nem
Deslumbre ilusório As agências de moda são um ambiente propício à ampliação dos problemas pessoais, pois nutrem a esperança de jovens que não têm o perfil para seguir a carreira. Além disso, tais agências exigem books muito caros e prometem contratos internacionais milionários, que, na verdade, raramente acontecem. A psicóloga humanista e cognitivo-comportamental Jaqueline Costa alerta: “Muitas agências deveriam se responsabilizar por essas meninas, e ter um serviço de acompanhamento médico e nutricional. No entanto, não têm interesse por elas, o que faz com que muitas abandonem os estudos para seguir carreira”. Ainda na busca por uma trajetória de sucesso, as modelos descobrem que nem tudo é somente luxo e fama. Ao verem que, em um dia de trabalho pesado, o retorno financeiro não é compensatório, tornam-se sujeitas a cair em armadilhas do mundo da moda, dentre elas, o mercado sexual. Historicamente, o mundo da moda é comparado ao universo da prostituição. Porém, há alguns anos essa prática vem sendo chamada de “book rosa”, um catálogo de modelos que também fazem programas, às vezes oferecidos por agências. Mesmo as modelos que servem de espelho para as demais não vivem apenas de luxo. A carreira exige bastante da profissional, principalmente foco e determinação, não só no começo, mas durante toda a profissão.
Um dia como...
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Entre ossos e ofícios Repórteres do IMPRESSÃO vivenciam um dia como coveiros no cemitério do Bonfim O relógio marca pouco mais de 7h. Encaramos o céu, preenchido por nuvens escuras, que minutos mais tarde desagua impiedoso sobre a necrópole e seu acervo patrimonial, cultural e histórico. Manhã fria no Bonfim. Só há espaço para uma súplica – aconchego. Antes de ingressarmos no campo santo para vivenciar um dia de coveiro, passamos na administração. Luiz Carlos Zaidan, o porteiro, nos aguarda. Porteiro, nesse caso, não é quem controla o tráfego de pedestres, mas aquele que recebe, no portão, os familiares do falecido, informa sobre taxas a serem pagas e coordena os coveiros. Às 8h, somos apresentados aos quatro responsáveis pelos enterros e “desenterros” nas 11 horas seguintes. Iremos conhecê-los enquanto seguem à primeira tarefa: uma exumação. “Meu nome é Daniel”, diz o mais sorridente e proativo. Coveiro concursado há nove anos, Daniel Ribeiro Pinto fala dos riscos aos quais toda equipe está sujeita nas 54 quadras do imenso cemitério. “Já fui picado por escorpião amarelo duas vezes em um único dia”, revela, ao falar ainda do pavor por aranhas e cobras. Zaidan faz questão de informar nomes e apelidos dos outros três, trabalhadores terceirizados: “Esse é o José Pereira dos Santos, ou só Pereira, mesmo. Ele é até microempresário nas horas de folga”, brinca. “O de lá é o Eustáquio, mais conhecido por Bigode. Este aqui, ó, é o Leonardo, só que o chamamos de Pastor”.
FotoS: IGOR MOREIRA
Igor Moreira Wilson Albino
Daniel afirma, ainda, que autópsias o deixam assustado. Já Maurício, o Chocolate, hoje é chefe do setor de velório. Trabalhou com autópsia e sepultamentos por 23 anos, sempre à noite. “É um trabalho como qualquer outro”, afirma, ao destacar, porém, que já passou por dor inacreditável: “Enterrei, aqui no Bonfim, meu próprio filho. Morreu ferido por projétil”, finaliza.
O bafo da morte Até chegarmos ao local onde seria realizada a primeira exumação, andamos oito minutos, se tanto. “É aqui”, aponta Zaidan, ao verificar na campa números iguais aos do papel. Com uma picareta, Daniel abre a lateral do túmulo. Ao desobstruir um dos lados do jazigo, mergulha no breu e, segundos depois, nos diz: “Toma aqui, ó”. Além das alças enferrujadas
de um caixão, ali depositado há três anos, ele traz uma caixa craniana amarelada, ainda com chumaços de cabelos na protuberância occipital externa (a nuca). Próximo a nós, há um parente do falecido, responsável por acompanhar o processo. Embora estejamos devidamente autorizados, respeitamos o momento, e, enquanto nos preparamos para guardar a máquina fotográfica, como manda o proceder ético, o parente do finado diz: “Não, gente. Tudo bem, tudo bem. É o trabalho de vocês”. Pereira, que está ao lado, apressa-se em apanhar uma pequena urna de zinco, e, ali, Daniel deposita, um a um, os ossos maiores recolhidos na tumba. Depois de retirados úmeros, rádios, fêmures, tíbias e costelas, o coveiro faz uma trouxa com lona preta e a entrega a Bigode. Afora as alças
metálicas e tubulares, o plástico é a única parte do caixão que permanece intacta, mesmo que enterrado há 36 meses. Bigode apanha o embrulho e caminha por 20 metros, calça as luvas cirúrgicas e vasculha as ruínas fúnebres, à caça dos ossos menores. Talvez, seja este o momento que requer mais minúcia por parte do trabalhador: evitar que fragmentos ósseos sigam misturados a trapos e cavacos para um aterro sanitário. Por ignorância, nos aproximamos da ossada com excesso de cuidado. O medo é que nossos narizes e pulmões sejam invadidos por algum fétido odor cadavérico. Nada a ver. Ossos recolhidos da cova, depois de 1080 dias enterrados, exalam mofo apenas. Enquanto Bigode revira farrapos e farelos enfestados de baratas e
outros insetos, também recolhe rótulas, vértebras, falanges e outros ossos das mãos. Os cuboides, metatarsos, astrágalos, maléolos – subdivisões que formam os pés – são recolhidos de uma só vez, sem esforço, pois estão agrupados nas meias de poliéster azul-marinho. De soslaio, Bigode pergunta: “Vocês estão filmando isso aqui?”. “Só fotografando”, explicamos. Ao saber nosso modo de registro, os trabalhadores ficam mais à vontade e passam a conversam amistosamente. Durante a última exumação, brotam assuntos, mas não surge nenhuma brincadeira sobre os restos mortais. Enquanto escavam, conversam sobre a crise econômica do Brasil, golpismo e outras safadagens políticas. Depois, a pauta muda: futebol, criminalidade e desejos póstumos. O palavrório
finda com alguém se gabando de insaciável apetite sexual. A turma é animada e disposta a nos ajudar. As brincadeiras servem para descontrair e tornar suportável a rotina de trabalho. Durante os bate-papos individuais, notamos uma insatisfação geral. Os terceirizados se sentem inferiores, pois executam a mesmíssima função que os concursados pela prefeitura, mas recebem quase 50% a menos. O grupo é unânime em dizer que, às vezes, são mal tratados pelas famílias dos mortos. Além das emoções, o manejo de pesadas ferramentas torna o trabalho exaustivo. Muita gente nem imagina, mas o que esses trabalhadores querem, de fato, é respeito e valorização. “Fotografa tudo e publica tudo. Assim, o povo entende como é importante o nosso trabalho”. Concordamos. Tanto que o cemitério pode funcionar sem um ou outro da administração, mas se faltar coveiro, nada flui. A rotina de 12 horas de trabalho por 36 de descanso permite ofícios extras. Nas folgas, Leonardo, realiza trabalhos sociais no centro de BH. Recolhe moradores de rua viciados em drogas e os leva para uma casa de recuperação. Já Daniel é pedreiro e Pereira tem um “topa tudo”. A morte, para o poeta Augusto dos Anjos, “é o ponto final da última cena”. Depois de um sepultamento e três exumações, saímos sem saber se a experiência foi boa ou ruim. Desejamos apenas que os mortos tenham aproveitado suas existências. Que, entre a primeira respiração e o último suspiro, a vida tenha valido a pena.
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Setembro de 2016 Jornal Impressão
jornal daqui (Buritis e região)
Meu dia de ciclista
Uma experiência eterna a cada segunda-feira
WELLESON MENDES
WELLESON MENDES
WILLIAM ARAÚJO
Victória Farias
Do alto para baixo, a repórter Victória, o grupo no ponto de chegada e a alegria após mais uma Segundalada
Com capacetes iluminados e roupas verde reluzentes, a equipe de ciclistas do bairro Buritis, que participa do passeio chamado “Segundalada”, se prepara para, uma vez mais, desbravar Belo Horizonte. E que belo horizonte! Mesmo na noite fria e sem lua, quem olhasse atentamente perceberia que as montanhas continuavam lá, silenciosas, prontas para serem admiradas. A equipe do Jornal Daqui acompanhou o passeio, e eu fui entre os ciclistas, admirando o silêncio e, até mesmo, as frases que eu percebia pela metade. Em uma noite tranquila de segunda-feira, você pode até mesmo ouvir, esporadicamente, reclamações de pessoas já cansadas da semana. Não é o caso dessas pessoas. Fui conversando com um moço cujo nome, me perdoem, não recordo. Ele me contava que a bicicleta o salvou de uma vida sedentária e sem expectativas. Eu não prestava atenção nele, para ser sincera. O vento estava forte demais, e a noite, bonita demais para me ater a suas palavras. Por isso me limitei a dizer: “Que interessante...” O grupo se atrasou um pouco para concluir o trajeto, pois toda hora eu parava para entender os comandos de como “deixar a bicicleta mais leve ou mais pesada”. E, assim, subi morros parecendo que carregava três de mim – e olhem que tenho apenas 45 quilos! –, e desci ruas prestes a levantar voo. Logo atrás, para nos proteger dos motoristas desavisados e desesperados, vinha um carro de apoio, com um giroflex, e tocando músicas animadas – o que
atrapalhava a minha leve e falha linha de pensamento. A toda hora, o motorista gritava o nome de um patrocinador ou oferecia água aos ciclistas – erro meu em aceitá-la. Afinal, antes mesmo de chegar ao meu destino, estava muito apertada para ir ao banheiro. O trajeto escolhido, em homenagem a minha iniciação em longas distâncias de bicicleta, foi sem morros e não exigia longo esforço físico – o que ajudou, e muito, meu desempenho a caminho do destino. Como a mim só havia sido oferecido um capacete para proteção, minhas mãos doíam no meio do percurso, por falta de luvas, mas a dor só seria problema um dia depois do passeio. Aliás, a magrela, como é popularmente conhecida a bicicleta por seus admiradores, tem seu primeiro protótipo datado de 1490. Depois disso, passou por muitos melhoramentos e novos projetos até chegar ao modelo que conhecemos hoje, mais leve, mais rápida e mais bonita.
Fim de linha O destino escolhido para aquela segunda era a Estação Central. Linda e imponente como sempre, ela esperava por nós com um silêncio, às vezes, incômodo, outras vezes, quase sobrenatural. Quando acabamos o percurso e resolvemos descansar na Estação, a equipe do jornal parou para fotografar o grupo e eu fiquei caminhando entre eles, observando, para recuperar minhas forças. Na volta, fui impedida de pedalar com o meu novo grupo. A equipe do jornal precisava voltar à redação,
para fazer a matéria e publicá-la no dia seguinte. Tive que voltar de carro, e ouvi alguém gritar em apoio ao meu esforço: “Impedir você de voltar pedalando é como tirar o doce da boca de uma criança!”. Pura verdade! Não estava cansada o bastante para parar, mas sabia que não continuaria – para quem passa o dia todo sentada em um escritório, uma reviravolta de atividades assim pode ser bem pesada. Mas eu continuaria, e voltaria na próxima semana e na outra também. Ótima experiência. Ótima vida. Quando decidi pelo curso de jornalismo, sabia que experiências incríveis esperavam por mim, e que precisaria de fôlego para fazer reportagens. Não tinha noção, porém, que tudo ocorreria de forma tão rápida e literal!
Pedala! Pedala! O nome do projeto surgiu de maneira icônica. Ao criar um grupo em um aplicativo de mensagens, Fabrico Brandão, idealizador do projeto, queria chamar o grupo de “Pedalada da Segunda”. Por um erro de digitação, virou “Segundalada”. No início, apenas ele, o irmão e o filho se reuniam para pedalar pela cidade. Hoje, são quase 100 ciclistas que, toda segunda-feira, rodam pela cidade. Os “segundatletas” possuem uniformes verdes para se diferenciar de outros grupos. E já expandem os passeios para outras regiões mais distantes e íngremes. O projeto é uma ótima experiência para quem está começando. E uma experiência eterna para quem volta na próxima segunda.