Edição 204 - Caderno 2

Page 1

JORGE LOPES

Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo do UniBH Ano 35 • Número 204 • Abril de 2017 • Belo Horizonte • MG


Tramas contemporanêas

Tramas contemporanêas

Censura velada? Ana Borges Bernardo Franco Preto, branco, pardo, afrodescendente, mulato, mulata, negro, negra? Que termo seria mais adequado? Alguns deveriam ser extintos ou modificados? E quanto a obras de anos ou décadas atrás? O que dizer da forma como Emília trata Tia Nastácia? Por fim, e a famosa cabeleira do Zezé? É comum a discussão acerca do uso de certos vocábulos: seriam corretos ou não? O debate faz parte da “onda” do politicamente correto, que defende a substituição de termos ofensivos para acabar com os estereótipos e o preconceito. Tal alteração, por outro lado, costuma acarretar choques culturais e, até mesmo, iniciativas de censura a obras tradicionais. No carnaval deste ano, blocos do Rio de Janeiro, como “Mulheres Rodadas”, “Cordão do Boitatá” e “Charanga do França”, chamaram a atenção por abolir de seus repertórios antigas “marchinhas” que contêm termos considerados ofensivos. Organizadora do “Mulheres Rodadas”, Renata Rodrigues disse, em recente entrevista, que, por se tratar de um bloco feminista, não seria correto fazer coro com o que possa ser preconceituoso. Já o professor e músico Renato Villaça, entusiasta das marchinhas de carnaval, se incomoda com os excessos dessa onda. “Os valores da sociedade à época das marchinhas clássicas eram completamente outros. Não se pode julgar uma pessoa que viveu tempos atrás a partir dos valores de hoje”. Renato argumenta que as marchinhas fazem parte da história da música brasileira e não

Diuly Guerra

Onda do “politicamente correto” ameaça canções tradicionais e obras literárias se ganha nada apagando fragmentos do passado. “A intolerância é significativa na atualidade. Grande parte da população pensa que é proibido refletir de forma diferente e isso é muito arriscado, já que fundamentalismo, ditadura e desdém podem vir daí”, condena.

Manhê! O Brasil passou por duas ditaduras: a primeira durante o Estado Novo, que, por meio do Departamento de Imprensa e Publicidade (DIP), censurava certas expressões e produtos culturais. O Presidente Getúlio Vargas impôs que os compositores exaltassem o Brasil, e, por consequência, o seu governo. O segundo período autoritário, sob o regime militar, também promoveu censura, sobretudo após a promulgação do AI-5, em 1968. A definição de ditadura. no dicionário é a seguinte: “Ação de controlar qualquer tipo de informação, geralmente através de repressão à imprensa”. O “politicamente correto” seria, então, de maneira inconsciente, uma forma de censura velada, por recriminar certos termos? Ator, locutor e humorista há 22 anos, Bruno Matos chama o “politicamente correto” de “politicamente chato”. Ele considera a discussão saudável, pois há uma linha tênue entre o engraçado e o desrespeitoso, porém, vê excessos no debate. “O ideal seria que a população tivesse bom senso. Estamos vivendo um AI-5 popular, no qual as pessoas interferem no trabalho de outras, pelo simples prazer de criticar”, comenta. Bruno acredita que as mesmas pessoas fazem questão de se ofen-

Abril de 2017 Jornal Impressão

de combatê-las”. Quando as marchinhas são tocadas, é possível perceber a época em que foram compostas. “Dessa forma, não vemos apenas as belezas de tal período, mas também seus problemas. Não digo, de forma alguma, que alguém é obrigado ou não a banir certa ‘marchinha’ de seu repertório. Muito pelo contrário: elas cairão em desuso com o tempo”, finaliza.

Cantigas O cenário musical é vítima do politicamente correto, por incrível que possa parecer a área infantil é talvez a mais afetada. A clássica cantiga “Atirei o Pau no Gato” vira “Não Atire o Pau no Gato”, o cravo não briga mais com a rosa e Samba Lelê não está mais doente nem com a cabeça quebrada. Para a musicista e professora infantil de educação musical, Nádia Caramaschi, a mudança é um absurdo. De acordo com a professora as cantigas não possuem o poder de despertar um lado perverso nas crianças. A musicista já está familiarizada com o tema, em sua pós- graduação lembra-se da

abordagem do politicamente correto e a interferência na música, que a levou seguinte conclusão: “As cantigas são importantes na história da música, não é certo apagá-las. O “Atirei o Pau no Gato” deve ser cantado, assim como o “Não Atire o Pau no Gato”.

Versão raiz x versão nutella Atirei o pau no gato tô Mas o gato tô Não morreu reu reu Dona Chica cá Admirou-se se Do berro, do berro que o gato deu. Miau!

O cravo brigou com a rosa Debaixo de uma sacada O cravo saiu ferido e a rosa despedaçada.

FotÓgrafo no espelho

Jorge Lopes der, com o intuito de processar alguém, e se preocupa com o cerceamento à liberdade de expressão. “O ‘vou processar você!’ é o novo ‘vou contar para minha mãe!’, já reparou?”, ironiza, destacando que Os Trapalhões, por exemplo, seriam processados e não teriam sucesso, em virtude de cenas como aquela em que o Mussum explode e fica branco.

Emília! A polêmica passa também por Monteiro Lobato, cujas obras incluem termos que

podem ser entendidos como de natureza ofensiva, principalmente quando a Emília se refere à Tia Nastácia. A controvérsia se iniciou com o livro Caçadas de Pedrinho, que contém palavras que, para o Conselho Nacional de Educação, seriam reprováveis. Marisa Lajolo, escritora e especialista em Lobato, é uma das principais vozes contrárias à realização de alterações nos livros do escritor. Em entrevista ao “Programa Do Jô”, em 2013, ela condena as notas de rodapé usadas para advertir as

crianças leitoras, por exemplo, sobre o erro que é assassinar uma onça – como na nova edição das Caçadas de Pedrinho. A pesquisadora também não acha que Lobato era racista, mas apenas um homem de seu tempo.

Mulata? Entre os termos atingidos, um dos questionamentos é o uso da palavra “mulata”. Alguns alegam que a palavra se origina de Mula, espécie provinda do cruzamento de égua com jumento. O termo é bastante discutido

por haver várias obras populares (principalmente na música) que o utilizam. Até mesmo a famosa “Tropicália”, de Caetano Veloso. O historiador Thiago Braga lembra que a língua é viva: “Acredito que os termos caem em desuso. Não sei se a adequação de algum deles pode ter efeito. O que faz isso é o tempo, até mesmo porque as obras foram escritas à época delas”, argumenta. “Temos que continuar discutindo obras antigas. Não basta fingir que elas não existem. Esse é o único modo

3 Diuly Guerra

2

Abril de 2017 Jornal Impressão

Qual é o padrão de beleza ideal para as mulheres nos dias de hoje? Uma pergunta difícil com uma infinidade de respostas. Muitas vezes celebridades ditam o “ritmo” do que é belo e o que deixou de ser. O estereótipo da mulher ideal que a mídia divulga está longe de nossa realidade. Quando nos deparamos com o belo que foge desse estereótipo, isso chama a atenção e encanta! Foi o que aconteceu no último carnaval em Belo Horizonte. Fotografando o bloco

Juventude Bronzeada, topei com uma moça linda e excêntrica: uma jovem negra de cabelos raspados, com um belíssimo corpo e uma alegria que contagiava; na hora não tive dúvida, apontei minha câmera e fiz a foto. Depois de um mês do registro pronto, a foto foi ecolhida para a capa do Caderno DO!S do IMPRESSÃO. E aí veio a dúvida: quem era aquela linda mulher? Postei a foto na página do bloco, procurando achar alguém que a conhecesse, porém sem resultados. Então a outra alternativa era pesquisar em páginas de amigos, e amigos de amigos, com o intuito de

encontrar alguém que estivesse no bloco. E assim o fiz até encontrar os vocalistas que em sua lista de amigos tinham aquela garota. Hadassa Baptista é modelo fotográfica, atua em Belo Horizonte e região e tem um estilo único que a destaca. O processo de pesquisa demorou cerca de 12 horas, mas foi extremamente gratificante encontrá -la, apresentar o trabalho e contar a história por trás da foto. Esse é o objetivo da fotografia: abdicar de técnicas, conceitos, estereótipos, padrões para mostrar e viver sentimentos; isso não tem preço.

Não atire o pau no gato Por que isso sô Não se faz faz faz O gatinho nhô É nosso amigo gô Não devemos maltratar os animais... Jamais!

O cravo encontrou a rosa Debaixo de uma sacada O cravo ficou feliz e a rosa ficou encantada


4

Música

Abril de 2017 Jornal Impressão

Música

Abril de 2017 Jornal Impressão

SERTANEJAS DE RAIZ

A luta e ascensão das mulheres no mercado da música sertaneja

Em entrevista, Bruna Viola comemora o sucesso do gênero

Quando falamos em música sertaneja, muitos cantores e ritmos surgem em nossa mente. Durante anos, este mercado tão amplo foi dominado apenas por um gênero: o masculino. O sertanejo feminino sempre existiu, mas, somente a partir de 2016 cantoras como Marília Mendonça, Naiara Azevedo e as duplas Maiara & Maraísa e Simone & Simaria chacoalharam o mercado. Elas, porém, não foram as primeiras. Estas poderosas mulheres estão dando continuidade a antigos ícones do gênero, como Roberta Miranda, Irmãs Galvão e Inezita Barroso. As mulheres, que antes costumavam integrar as equipes de produção ou assessoria de imprensa, chegaram agora ao que pode ser considerado o ponto principal do universo musical: os palcos.

Olhar feminino Quando tratamos das composições, poucas são as diferenças em relação às letras masculinas. As mulheres também lançam seus olhares e tomam como inspiração os mais diversos temas. A diferença aparece na forma como elas enfrentam e enxergam determinadas situações, o chamado “olhar feminino”. O surgimento de tantas vozes femininas tem valor significativo quando se trata da quebra de mais um paradigma dentro da sociedade brasileira: o machismo. E, sim, ele também está presente no meio musical. Olhares e comentários reprovando a ascensão das mulheres no segmento, por muito tempo, foram algo comum.

Foto: Jorge Lopes

Bárbara Souza Isabela Santana João Gabriel

A cantonra Dani Morais acredita que a era da submissão feminina ficou para trás

“A música estava mais ligada ao romantismo. A mulher sofria e o homem ia para a balada, tomava todas e fazia a fila andar. Hoje, sinto que isso se igualou e a mulher não fica mais sofrendo em casa. Ela também sai com as amigas para curtir. Na verdade, as mulheres já faziam isso, mas não tinham coragem de expor nas letras. Afinal, deviam ser submissas. Mas isso acabou”, diz a cantora Dani Morais, que já participou de programas como The Voice Brasil e Ídolos. Dani começou como cantora de MPB. Porém, devido ao crescimento constante do sertanejo, resolveu se lançar no ritmo e começar de novo. E isso não é exclusividade dela. Wanessa Camargo, cantora que esteve consolidada no pop nacional e internacional durante anos, desistiu e

voltou para as raízes de sua família. Nas rádios, o sertanejo é, atualmente, o gênero mais tocado, e o maior responsável pelo movimento do mercado de shows, segundo pesquisa realizada pela gravadora Som Livre. “Trata-se da música pop que se faz hoje no Brasil. A programação da Liberdade, 100% sertaneja, é terreno cheio de cantoras. Aquelas que já se consolidaram e as novidades que chegam para fazer o que é mais difícil: fortalecer o movimento e se renovar, enquanto estilo e temática”, diz o locutor Gutemberg Gomes, da Liberdade FM, de BH. O sertanejo possui certa facilidade em se renovar. Constantemente, o foco, os clipes e as letras se transformam. Dani Morais revela que, com essa mudança, o ritmo já não é tão

sertanejo como antes e se tornou um pouco mais pop. Em relação às mulheres, Dani acredita que hoje, a mídia se voltou para elas e dá uma atenção cada vez maior. Isso cria expectativas nos ouvintes. “Os direitos estão se igualando e acho isso muito importante. As mulheres falam das mulheres e para as mulheres de uma forma comum, normal, deixando de lado um pouco do romantismo, porque, às vezes, a vida não é tão romântica assim”, declara Dani. Vivendo em uma era digital, as redes sociais tornaram-se importantes aliadas deste rápido crescimento, pois, por meio delas, as cantoras aumentam o alcance de suas músicas e a interação com o público. Além disso, estes meios, são, em muitas vezes, o primeiro passo

de jovens cantoras que buscam seu espaço não só no sertanejo, mas na música em geral. Considerando os últimos anos, Paula Fernandes era uma das cantoras de maior sucesso, ocupando a 25° colocação com a regravação da música “You’re Still The One”, canção original da cantora Shaina Twain. Mas, em 2016, Naiara Azevedo, Marilia Mendonça e Maiara & Maraísa passaram a ocupar três dos cinco primeiros lugares das músicas mais tocadas do ano, segundo pesquisa realizada pelo site Imirante, ou três entre as oito mais, de acordo com pesquisa realizada pela consultoria Crowley Broadcast Analysis (veja box ao lado)

Na ponta da língua Para o público, o sertanejo passa em suas le-

tras acontecimentos do dia a dia. Seja um coração partido, uma festa, ou um novo amor, sempre existirá uma música para combinar com o momento. Quando questionados sobre as mulheres no ramo, as opiniões são diversas. Enquanto alguns se mantém enraizados aos arranjos antigos, outros gostam muito e têm as letras na ponta da língua. “Amo muito sertanejo! Ele faz parte da minha vida há anos e muitas músicas me lembram momentos marcantes. Quando é de uma cantora, eu me sinto mais representada e fico muito feliz com esse crescimento das mulheres. Porque, vivendo em um mundo tão machista, temos mesmo que lutar pelo nosso espaço”, comemora a tecnóloga em logística Luciene Calixto.

O IMPRESSÃO entrevistou a violeira, compositora e cantora cuiabana Bruna Viola. Com 23 anos de mais de 1 milhão de seguidores no Facebook, Bruna acredita que ainda há muito o que conquistar e que o sertanejo atual representa a diversidade da música brasileira.

Se as sertanejas universitárias estão conquistando espaço no cenário musical atual, as violeiras de raiz também buscam se consolidar e manter viva a essência do gênero. Nomes como Bruna Viola, Lucyana Villar e a dupla Juliana Andrade & Jucimara são sucesso por onde passam e não têm medo do crescimento do sertanejo universitário. Bruna Viola possui referências no “sertanejo raiz”, tendo como ídolo Tião Carreiro e Inezita Barroso. A cantora teve seu álbum de estreia em 2015, intitulado Sem Fronteiras. O trabalho rendeu frutos: o hit “Se você voltar”, com participação de César Menotti e Fabiano, estourou e fez parte da programação musical de rádios em todo o país. No ano seguinte, a música virou trilha da novela Velho Chico da Rede Globo. A discografia da cantora possui, ainda, outro disco, gravado em 2016, intitulado Melodias do Sertão - ao vivo.

Você encontra alguma resistência público/social por ser uma cantora de sertanejo raiz dentro de uma atualidade tão “universitária”? Não mais. No começo o público achou estranho, contratantes e empresários não confiaram que eu poderia ter espaço em um meio sertanejo universitário cantando os modões, mas eu cheguei até aqui e pretendo ir mais longe. Hoje ao invés de resistência e crítica, eu recebo muito amor, carinho e elogios. O que você acha desse “novo” sertanejo? O sertanejo hoje é considerado pop né? Não tem mais aquela

Reprodução

A era das patroas

5

coisa pra um público segmentado. Tem sertanejo com funk, com eletrônico, com pagode, com raiz, tem de tudo um pouco e isso é maravilhoso. Essa mistura toda só mostra a diversidade da nossa música brasileira e fortalece o gênero sertanejo. O que você sente ao ver essa conquista da mulher não só no sertanejo, mas em grande parte das áreas que por muito tempo foram quase totalmente masculinas? As mulheres vêm mostrando e conquistando seu espaço há um tempo já. Nós estamos mostrando que somos capazes de fazer tudo o que o homem faz, que podemos ocupar posição social, altos cargos empresariais, ser donas dos nossos próprios negócios tanto quanto eles. Eu fico feliz em poder ser uma referência para muitas mulheres, sendo tão nova. Principalmente para as mulheres do campo, do meio sertanejo.

Sertanejos (e jas) detonam as ondas do rádio

TOP 20 DE 2016 1

Seu Polícia

Zé Neto & Cristiano

2

Infiel

Marília Mendonça

3

Pronto falei

Eduardo Costa

4

Romântico Anônimo

Marcos & Belutti

5

Medo Bobo

Maiara & Maraísa

6

Vai me perdoando

Victor & Léo

7

Sosseguei

Jorge e Mateus

8

50 reais

Naiara Azevedo

9

Esqueci você

Henrique & Diego

10

Que Pena Que Acabou

Gusttavo Lima

11

Como é Que A Gente Fica

Henrique & Juliano

12

O Nosso Santo Bateu

Matheus e Kauan

13

40 Graus de amor

Bruno Barreto

14

Batom Vermelho

Lucas Lucco

15

Pra Ter Você Aqui

Thaeme & Thiago

16

Homem de Família

Gusttavo Lima

17

Sonha Comigo

Zé Neto & Cristiano

18

10%

Maiara e Maraísa

19

Vício

João Neto & Frederico

20

Cancun

Thiaguinho

Levantamento da consultoria Crowley, com dezenas de rádios brasileiras, a pedido da Rede Globo, indica predomínio avassalador do gênero sertanejo, com grande presença de Maiara & Maraísa, Marília Mendonça e Naiara Azevedo. Entre as 20 músicas mais tocadas nas rádios, ao longo de 2016, apenas uma não é sertaneja: “Cancun”, do pagodeiro Thiaguinho. Entre as 100 mais, 90 são do gênero, em duplas, trios ou carreira solo. E a soberania não para por aí. Das 100 mais tocadas, 15 canções são de “sertanejas”. Dentre as 20 primeiras colocações, quatro possuem a presença das mulheres. Marília Mendonça aparece logo na segunda posição, com “Infiel” (Ao Vivo). No ranking das mais tocadas, apenas duas são internacionais: “Sorry”, do canadense Justin Bieber, e “Photograph”, do britânico Ed Sheeran. Esta onipresença do gênero sertanejo levou o jornalista Marco Antônio Barbosa a apelidar o cenário musical brasileiro de “monocultura”, em alusão ao sistema de exploração do solo, especializado em um só produto, típico de países subdesenvolvidos e considerado prejudicial ao terreno.


6

RELIGIÃO

Abril de 2017 Jornal Impressão

RELIGIÃO

Sim, Ele também quer arte! No movimento Hare Krishna, a relação com Deus é construída por meio de variadas expressões culturais Tainá Silveira Vitória Ohana

fica “conexão”; Bahtka quer dizer “devoção”, “amor”. Essa conexão, presente na Filosofia, tem, como parte essencial, as manifestações artísticas, pois é por meio delas que se pode estabelecer uma relação com Deus. “Na verdade, todas as coisas que a gente faz dentro do movimento Hare Krishna diz respeito à ideia de ‘conexão’. Até mesmo o ato de comer: a gente prepara a comida e pensa que a está fazendo para Krishna. Aí, nem experimenta, pois oferece, primeiro, a Ele, e, depois, come”.

Não doeu, está errado A frase que dá título a esta seção foi dita durante uma aula de dança de Kamalaski Rupini, mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com formação Bharatanatyam sob os cuidados dos gurus B Bhanumati,

Shivagami Vanka Mithun Shyam. A técnica usada pelas dançarinas exige coordenação motora, força nos músculos e extrema concentração, o que a torna quase inacessível a quem não é habituado a praticar os movimentos. “A pessoa precisa de muitas horas de treinamento diário e ininterrupto. Você não tem férias. É necessário aprofundamento”, diz Kamalaski. A professora relata, ainda, o caso de uma colega que aprendeu, desde criança, todas as danças clássicas indianas. Quando se formou, sua guru começou a ensinar tudo novamente, com novo grau de complexidade e outras visões dos mesmos movimentos. No Hare Krishna, a dança divina conta com duas bases: a primeira é a conexão com o Deus; a segunda, a comunicação do artista com o público. As duas não

existem separadamente. Segundo Kamalaski, a ideia é a que a dançarina faça a ponte entre o público e o plano divino. Isso só acontece quando ela consegue comunicar, às pessoas, o que sente. Ou seja, a dança nunca será só para você. Segundo a crença, mesmo que, durante um ensaio, ninguém observe, a dançarina não está sozinha, pois seres divinos sempre a presenciam. Além disso, é necessário entender que quem dança não comunica apenas as próprias questões íntimas. Isso é considerado muito pequeno para eles. Pretende-se que a dançarina consiga transcender seu ego e acessar outro estado, onde está a origem de todos os sentimentos de maneira universalizada. “E como você precisa executar com muita perfeição a técnica, seu grau de atenção deve ser muito grande. Quando isso acontece,

fica-se muito presente no espaço, e o tempo se dilata porque você está fazendo um milhão de coisas em um segundo. A dilatação do tempo e do espaço é o que te leva a novo estado de consciência”, explica a professora. Outro aspecto interessante na filosofia Hare Krishna é a preservação da figura dos mestres. Mesmo que uma pessoa tenha talento e traga consigo suas impressões kármicas – bagagens de vidas anteriores –, não existem autodidatas. Segundo Barucha, um estudioso indiano, é impossível ver uma “dançarina dançando”. O que é visto, na verdade, é o mestre dançando através dela, de maneira a representar uma tradição. Uma pessoa só veria Kamalaski dançando, por exemplo, quando visse uma de suas alunas a praticar a dança. Fotos: Jorge Lopes

A ligação entre expressões artísticas e religião sempre esteve presente nas manifestações de fé, além de servir como instrumento de demonstração de poder. Que o diga a arte barroca. Ao retratar o relacionamento entre Deus e o homem com exuberância e dramaticidade, a arte daquele período revelava a força da Igreja à época da chamada Contrarreforma – iniciativa instaurada pelos católicos, em meados do século XVI, em reação à reforma protestante de Martinho Lutero. Também o movimento Hare Krishna, desde sua origem, usa expressões artísticas como forma de comunicação. Segundo a crença, Sri Chaitanya, uma encarnação de Deus, desceu à Terra em 1486 e iniciou o chamado movimento de Bahkti. As escrituras

sagradas, Vedas, relatam que Chaitanya deixou, para a humanidade, oito poemas, além de difundir sua prática ao cantar. Ele buscava transmitir as filosofias do movimento com grupos de músicos que cantarolavam pelas ruas. Chaitanya deixou, na linha de sucessão discipular, vários escritores. Alguns deles escreviam sobre Filosofia; outros, peças teatrais, poesias e canções. Tudo, tudo, incorporava-se à dança, sempre retratando as atividades de Krishna com seus devotos e devotas. O que mais chama a atenção, nessa cultura, segundo os adeptos, é a visão integrada dos compartimentos da vida. Os costumes ocidentais têm o hábito de separar a vida em segmentos: pessoal, profissional e espiritual, dentre outros. Tal visão fragmentada, porém, é impossível dentro do processo de Bahkti Yoga – termo que Yoga signi-

Logo na entrada do templo, adeptos adoram a estátua do fundador do movimento Hare Krishna, Abhay Charanaravinda Bhaktivendanta Swami Prabhupada

De coração limpo No Hare Krishna, o canto é visto como ferramenta de expulsão das ansiedades da vida. Segundo Romero Carvalho, presidente da Sociedade Intern da Conscência de Krishna (ISKCON), em BH, todas as cerimônias e cultos, são inteiramente musicais. Eis o motivo pelo qual os adeptos dessa filosofia de vida são conhecidos como Hare Krishna: devido à insistência em cantar o mantra homônimo. As insistentes recitações têm significado e objetivo espirituais. “Os mantras consistem em glorificar a Deus e, também, aos nomes Dele. Diz-se que o sacro -ofício da era atual é o cantar dos santos nomes de Deus, explica Jay Kirtana Rasa, professor de música devocional. Tal modo de cantar, segundo o professor, ajuda a controlar a ira, ansiedades, angústias, tristezas, medos, impulsos e devaneios das mentes dos adeptos, deixando-os com o coração limpo e leve. “Assim somos capazes de desenvolver o amor a Deus e a todas as entidades vivas”, completa. Para o professor,

cantar e produzir música sagrada é encher o coração de felicidade. Segundo ele, as peças sacras existem para iluminar a si mesmo e ao outro. É importante ressaltar que os mantras são cantados em sânscrito, língua na qual foram originalmente escritos, e é de extrema importância entender o que se canta, para emanar o tipo de energia correspondente à mensagem dos textos sagrados. Portanto, os devotos, de uma maneira ou de outra, têm a obrigação de estudar o sânscrito. A diferença entre a “música do mundo” e a Hare Krishna, ainda para Jay Kirtana, está no fato de que a primeira não tem relação com Deus, e seu objetivo é mexer com as emoções em uma plataforma material e temporária. Já a função da música Krishna é mais profunda, pois se destina a alimentar o verdadeiro “eu eterno”. Apesar disso, a musicalidade é um dos pilares da filosofia Krishna que mais se mistura com o resto do mundo. Antes mesmo do lançamento das escrituras, o mestre Prabhupada lançou um LP em que cantava mantras.

Abril de 2017 Jornal Impressão Romero Carvalho relembra a existência de vários crossovers nas músicas nacionais e internacionais, como a obra dos Beatles e de Nando Reis, que incluíram trechos de mantras em suas melodias. Além disso, ele destaca que, em nenhum momento, os adeptos da corrente religiosa desejavam que as pessoas abandonassem as “coisas mundanas”. Prabhupada buscava difundir a filosofia não como modo de conversão, mas como ferramenta de transformação pessoal. “Ele sempre incentivou o teatro, e se emocionava quando seus discípulos apresentavam peças e lançavam discos”, garante. Exemplo disso é a relação de Prabhupada com o beatle George Harrison. “Ele nunca falou: ‘Olha, George, largue sua carreira. Venha morar com a gente e raspe o cabelo, que vou te dar uma roupa laranja’. Não, ele disse: ‘Cara, você tem esse talento. Use isso para iluminar as pessoas!”, comenta Romero. Essa sempre foi a máxima dele, fosse com Harrison ou qualquer outro com quem se encontrou”, conclui.

7

Adeptos do Hare Krishna misturam, em sua devoção cotidiana, elementos da música e dança

Relação conjugal As artes plásticas também marcam presença no movimento Hare Krishna. Nos templos, há sempre a representação das deidades (fonte de tudo aquilo que é divino), em pinturas, desenhos, fotografias e esculturas. Tais representações, frequentemente, mostram as atividades íntimas de Deus, o que também é retratado na literatura védica e nas poesias do movimento. Os Krishna acreditam em Deus como várias pessoas supremas, e, ao mesmo tempo, como apenas uma: a soma das várias partes. Em uma pintura que decora a recepção do

templo da Movimento para Consciência de Krishna (ISKCON), em Belo Horizonte, pode-se ver, representado, um namoro entre Krishna e Rhadarani. “Essa pintura é a representação de Deus em nossa cultura. Esse menino e essa menina – e não é ‘um ou outro’ – são os dois juntos”, explica Romero Carvalho, mais conhecido como Sri Krsna Murti Das, presidente do templo. Ele ressalta que não é possível estabelecer relação entre essa visão e as religiões ocidentais, mesmo dentro de um estudo comparado, porque nenhuma outra narrativa sagrada explo-

ra esse nível de intimidade entre as partes de Deus e o devoto. “Há exceções, como Santa Teresa de Ávila, mas, em geral, nossa didática das religiões Abraâmicas usa um estado de espírito mais reverencial e distante”, esclarece. As poesias de Santa Teresa de Ávila, citadas por Romero, retratam relacionamentos de amizade e/ou conjugais com Deus. Nesse aspecto, se assemelham bastante com as poesias de Sri Chaitanya – a encarnação de Deus, que veio à Terra na Idade Média – e falam sobre a atitude do devoto ao se relacionar e se entregar a Ele.

Para poucos? Professor de música devocional, Jay Kirtana Rasa conta que as obras cantadas nos cultos foram trazidas pelo mestre espiritual e fundador do movimento no Ocidente. Para preservar a métrica e a melodia, as abras ainda são cantadas no idioma original, o sânscrito, que, segundo ele, todos podem aprender essa nova língua. Mas, será mesmo? De todo modo, Kamalaski, professora de dança, ressalta a necessidade de treinamento e dedicação. Ela conta conta que, na Índia, seis meses de aulas de dança é o tempo para que a pessoal se considere “experimental” no assunto, pois o aluno aprende pouco sobre as técnicas. Apesar disso, Romero Carvalho acredita que o movimento Hare Krishna não é uma comunidade inacessível, e relembra os eventos que levam um pouco da cultura ao público externo, como o Festival da Índia Ratha-Yatra, realizado, anualmente, no Parque Municipal, com atividades culturais gratuitas, como música, mantras, yoga e bharatnatyam, a dança clássica indiana.


Colecionismo

Colecionismo da Alemanha. Amante da cultura oriental, incluiu, em sua coleção, também, doces de desenhos japoneses, como Hello Kitty.

Estranho é não colecionar

Camila Marques Stephanie Morgana Camisas de árbitro de futebol não têm valor algum, mas tente convencer Claudio Salvio. Ele não é aspirante à profissão, nem sequer filho de juiz: é um colecionador. “Um dia, tive a oportunidade de comprar uma camisa de árbitro da Federação Mineira de Futebol (FMF). Poucos dias depois, por coincidência ou não, ganhei outras duas. Decidi, então, me empenhar nessa coleção”. O ato de colecionar é uma prática comum, extremamente diversificada, além de ser uma das atividades mais antigas da humanidade. Desde que o mundo é mundo, há pessoas que se dedicam a guardar imagens, objetos e textos. Aliás, se não fosse por estes materiais, não poderíamos conhecer nem metade da história dos povos.

Colecionar é um ato que pode durar poucos anos, ou acompanhar toda uma vida. Com o tempo, a prática se torna um hábito, e, portanto, algo bem particular. Portanto, é difícil dizer o que ainda não virou coleção. No entanto, existem pessoas que fogem de coleções consideradas tradicionais, como miniaturas de carros, cartões telefônicos, selos ou objetos de séries famosas. O que poderia influenciar, então, a decisão de reunir camisas de árbitro de futebol, balas e jacarés? São coleções, no mínimo, curiosas, mas com justificativas bem peculiares. Dentre as razões que podem motivar o colecionismo, estão desde a preservação de momentos significativos de vida, associados a determinado objeto, até um ato despretensioso, advindo de uma ação corriqueira. Para a psicóloga

Mayana Perácio, o colecionismo, quando há equilíbrio, pode proporcionar benefícios para o indivíduo. “O colecionador, diferentemente do acumulador, tem consciência de seu ato, ou seja, faz porque sente prazer, independentemente do objeto. Mas é preciso haver equilíbrio, caso contrário, o caso pode evoluir para obsessão e, consequentemente, dar início a alguma patologia”, explica. Muitas pessoas já viveram, por menor que seja, uma experiência colecionista. E, mesmo que não tenha dado continuidade, há sempre uma palavra de reconhecimento, saudade e admiração pelo que se fez algum dia. Acredite: colecionar é normal!

Bolas e balas É muito comum encontrar pessoas que, no “país da bola”, colecionam camisas de time. Contudo, não se pode dizer a mesma coisa so-

bre uniformes de árbitro de futebol – considerado, por muitos, o grande vilão das partidas de futebol. Se assim o é, o empresário Cláudio Salvio, com sua coleção, de mais de 50 camisas de árbitros, conspira contra o universo. “Tenho essa coleção há dois anos, aproximadamente. E a história mais engraçada é que, ao final de uma partida, abordei um árbitro e perguntei se ele gostaria de trocar camisas comigo. Visivelmente espantado, o juiz me fez a seguinte pergunta: ‘O que você vai fazer com isso?’”, recorda-se, com bom humor. Por fim, para quem a imaginar uma coleção monocromática, vale lembrar que, atualmente, os juízes apitam vestidos de vermelho, amarelo, rosa etc. “Tenho poucas camisas pretas”, revela. Para a jovem jornalista Laura Sampaio, colecionar é uma opção de entretenimento.

que, na semana da entrevista, seu “tesouro” foi saqueado por um casal de primos de oito e doze anos. “São crianças. Por isso, os perdoo”, brinca a jornalista. Mesmo diante da TPM e do desgaste recente para concluir o TCC, Laura conta que precisou de resistência para não atacar sua própria coleção. Como alternativa, teve que recorrer à drogaria mais próxima para descontar a ansiedade em barras de chocolate – doce que prefere deixar de fora da coleção, pois estraga facilmente. Sobre os métodos usados para conservar as guloseimas, a jornalista afirma que nenhuma formiga ousou se aventurar em sua caixa. Engana-se quem imagina não existir pré-requisito para fazer parte da coleção de Laura. O fator determinante é, sem dúvidas, checar a procedência do doce. Alguns vieram do bairro Liberdade, em São Paulo, enquanto outros cruzaram o oceano: há guloseimas, até mesmo,

Fotos: Arquivo Pessoal

Tesouro de doces da jornalista Laura sobrevive às tentações alheias

“Não fumo, não bebo. Então, colecionar é um prazer. Não critico os prazeres alheios, mas o de alimentar uma coleção é uma diversão para mim”, explica Laura, que adquiriu o hábito ainda na infância, com exoesqueletos de cigarra. “Era um fascínio que eu tinha, brincava com eles e, de repente, olha eu com caixas e mais caixas de cigarras”, lembra. Depois, vieram coleções de folhas de fichário e livros antigos. “Precisei me desfazer de algumas, por questão de organização. Até porque minhas coleções têm muito a ver com meu contexto de vida. Em geral, sou uma pessoa recheada de fases boas, porém, penso que alguns vínculos se perdem com o passar do tempo”, diz, saudosa. Atualmente, Laura coleciona doces: balas, chicletes, pirulitos. Este tipo de coleção pode se tornar um sacrifício e tanto, não é mesmo? Aos risos, ela conta ao IMPRESSÃO

Colecionando histórias Fazer parte de um submundo. Essa é a sensação que sentimos ao visitar o Museu do Cotidiano, nos arredores do Circuito Liberdade, região central de BH. Ao contrário dos outros museus da região, o acervo do “objeteiro” – como gosta de ser chamado – Antônio Carlos Figueiredo não possui fachada na porta, que costuma ficar fechada. Nem os funcionários do Distrito Policial ao lado sabiam que ali havia um museu. Em uma área de mais de 600 metros, dividida em oito galpões, o acervo de Antônio é composto por 100 mil

Arquivo Pessoal

CAMILA MARQUES

Desde que o mundo é mundo, pessoas se dedicam a reunir objetos

Na coleção de Claudio Salvio, a mais nova aquisição veio da Bélgica

objetos, reunidos ao longo de 30 anos e que estão sendo reorganizados. Para isso, Antônio conta com a ajuda de Expedito, o “santo”, há mais de vinte anos. “Colecionar objetos é colecionar histórias”, diz Antônio. De fato, o que não falta no Museu do Cotidiano são histórias. Fomos apresentados a coleções de TVs, bicicletas, carrinhos, máquinas de fotografia, rádios, chaveiros e tantos outros, de várias épocas. “As coleções são a história que queremos contar através dos objetos”, explica o objeteiro. Para o sistemático economista de formação (ou “desformação”, como gosta de referir), um item só é atraente para o acervo se for peculiar; diferente. Para nossa equipe, ele exemplificou esse

Abril de 2017 Jornal Impressão critério por meio de um objeto em forma de maçã. O que nos parecia um enfeite, na verdade era um balde de gelo. Para conseguir os objetos, o colecionador costuma comprar, achar ou, até mesmo, receber doações.

Ao apresentar uma coleção de máquinas de escrever, Antônio mostra um modelo grego, (no qual usa-se apenas um dedo, para teclar) e uma, digamos, mais recente. “As máquinas de escrever, ao serem expostas em série, con-

tam uma história, em uma linha do tempo”, explica. Apesar do intuito em expandir o acervo, Antônio não tem a expectativa de que as coleções sejam mantidas após sua morte, e, de vez em quando, inter-

9

rompe as visitas – realizadas apenas sob agendamento – por tempo indeterminado. Deixar uma contribuição para a sociedade, por meio da história e da arte é, de fato, fazer a sua parte para a construção de um mundo melhor. REPRODUÇÃO

8

Abril de 2017 Jornal Impressão

Coleções são ampliadas constantemente no Museu do Cotidiano. em Belo Horizonte

Os jacarés de João Caré A coleção do escritor, músico e ilustrador João Guimarães começou ainda na infância. “Aos cinco anos, ganhei dos meus pais uma série de livros infantis da Walt Disney”, conta. Uma dessas histórias tinha um personagem, também chamado João, que trabalhava na casa de um milionário, e cuja função principal era cuidar dos crocodilos. Era uma bagunça e tanto, pois os bichos andavam pela casa e quebravam os móveis. Além de cuidador, o personagem vivia tentando calcular quantos crocodilos havia ali, mas sempre se confundia e perdia a conta. “Aquele foi o único livro no qual escrevi meu nome e tornei a guardá-lo na biblioteca dos meus pais”, relembra. O tempo passou e João foi morar em Berlim, na Alemanha. Por coincidência ou não, ganhou, como presente de um grande amigo, dois objetos: um apontador e um artigo de praia,

ambos decorados com a figura de um jacaré. Desde então, o artista começou a colecionar jacarés e crocodilos. Nenhum vivo ou empalhado... Fiquem tranquilos! Pouco tempo depois, João decidiu voltar ao Brasil.. À época, sua mulher decidiu procurar as obras infantis na biblioteca do sogro, para mostrar à filha. Foi quando encontrou aquele livro da Disney. “Descobrimos, então, que aquele foi o primeiro exemplar de jacaré da minha coleção”, acrescenta. Atualmente, a coleção conta com mais de mil unidades, de objetos bem diversos. Tudo que faz menção a jacaré ou crocodilo é passível de virar item colecionável. João tem exemplares de músicas, lápis, símbolos, grampeadores e, acredite se quiser, preservativos. Apesar de ter nascido em Porto Alegre, e, teoricamente, estar ambientado com o frio, João sofreu um pouco para superar os longos

e intensos invernos de Berlim. Nessa perspectiva, a figura do réptil foi uma espécie de metáfora na vida dele. “O jacaré me lembrava sobre o aspecto da vida tropical que havia no Brasil. E, ao invés de ser um peixe, eu me sentia um jacaré fora d’água”, conclui. O artista diz ganhar muitos exemplares, atualmente, mas nem sempre foi assim. “Teve época em que já gastei muito dinheiro. Cheguei a ficar endividado porque o meu ímpeto de colecionador era muito intenso. Desde então, encontrei outra maneira de alimentar minha coleção, para não ir à falência”, explica. Algo inerente aos colecionadores é ter um olhar bem clínico e enxergar, em algo talvez comum, uma possibilidade de adquirir mais um exemplar. “Às vezes topo com um grafite de jacaré em um muro. Então eu tiro foto e essa imagem passa a ser mais um artigo da coleção”.

A intenção de João é, um dia, ter a oportunidade de compartilhar a coleção com aqueles que tiverem interesse. “Construir uma espécie de museu. Que seja uma casa no campo ou até mesmo na praia e disponibilizar meus exemplares, como se fosse um museu do jacaré ou do crocodilo”, conclui. Embora exista uma ligação muito forte, João não se considera obsessivo quanto a sua própria coleção. Em sua opinião, não se trata da necessidade de criar um submundo no qual poderia exercer certo controle, mas apenas a ideia de ser o maior colecionador de jacarés do mundo, por exemplo. Fruto de um acervo que começou há muitos anos, João, hoje com 53 anos, se tornou ilustrador e não resistiu: adotou o nome artístico JoãoCaré, sugerido por uma amiga. “Acabou que tornei ‘objeto’ da minha própria coleção, sou parte dela”, finaliza o artista.


10

Você já viu?

Abril de 2017 Jornal Impressão

Você já leu?

Abril de 2017 Jornal Impressão

Quebra cabeça distópico

A luta das Estrelas além do tempo contra uma sociedade machista e racista

Livro para jovens adultos apresenta um universo que está “desgraçado” de diversas formas

Olga Benário, Anita Garilbadi, Bertha Lutz, Malala Yousafzai, Maria da Penha e Joana D’Arc, diferentes em nacionalidade, cor, formação profissional, idade, entre tantas outras características. Além de serem mulheres, possuem outro ponto em comum: cada qual, em sua época e país, lutou por seus ideais, propósitos, reconhecimento e direitos iguais perante os homens. Assim como estas guerreiras, Katherine Johnson, Dorothy Vaughan e Mary Jackson enfrentaram preconceitos e empenharam-se em quebrar paradigmas impostos por uma sociedade machista e racista. Americanas e negras, as três compunham um grupo de afrodescendentes que se destacavam na área da matemática e da física, no National Advisory Committee for Aeronautics (NACA), atualmente National Aeronautics and Space Administration (NASA). Em meados da década de 40 e 50, época em que estas “estrelas além do tempo” iniciaram seu trabalho na NASA, a segregação racial nos Estados Unidos se sobrepunha à inteligência e habilidades dos negros. Em tal agência do governo americano não era diferente, com

setores divididos entre negros e brancos, para que não se misturassem, assim como os banheiros e refeitórios. O diretor Theodore Melfi aborda este tema no filme Estrelas além do Tempo, que narra a história da corrida espacial durante a Guerra Fria. Amante da ciência e dona de um coração enorme, Jackson participou da construção de um túnel de vento usado para experiências do clube de Ciência do Centro Comunitário King Street em Hampton. Formada em Matemática e Ciências Físicas, em 1958, após uma luta judicial para cursar Engenharia na Universidade da Virgínia, Mary Jackson tornou-se a primeira mulher negra engenheira do NACA. Dorothy Vaughan iniciou sua carreira na National Aeronautics and Space Administration como matemática na unidade destinada aos negros West Area Computing. Em 1949 foi promovida, sendo a pioneira como supervisora negra do NACA. Posteriormente, já como NASA, a Instituição aderiu à computação e Vaughan especializou-se em programação. Katherine Johnson, prodígio da Matemática, era responsável pelo diagnóstico de dados dos testes de voo e lançamento de foguetes.

Em 1961, ela fez a análise de trajetória para a missão de Alan Shepard, Liberdade 7, o primeiro vôo espacial humano da América. O ápice de seu trabalho foi a missão orbital de John Glenn, primordial para o avanço dos Estados Unidos frente à União Soviética, na competição espacial.

coadjuvante (Octavia Spencer) e roteiro adaptado. Além disso, venceu o prêmio de melhor Elenco no Sindicato de Atores americano, o Screen Actors Guild. No Globo de Ouro, o filme concorreu nas categorias Melhor atriz coadjuvante e melhor

trilha sonora (que mistura o clássico Hans Zimmer, ao pop Pharrell Williams, além de Benjamin Wallfisch). O contexto dramático – mas sem deixar de lado várias situações cômicas – instiga o espectador a repensar seus pré-conceitos

Bárbara Souza

acerca da posição da mulher no mercado de trabalho, em casa e na sociedade de modo geral. Então: qual é o lugar da mulher? Deixo a conclusão para a consciência de cada um, mas já adianto, o filme por si só responde a esta pergunta. FOTOS: Reprodução

Francyne Perácio

Corrida espacial Inspirado no livro Estrelas além do tempo, da autora Margot Lee Shetterly, o filme narra o papel das três funcionárias da Nasa no sucesso de uma importante missão: o lançamento do astronauta John Glenn em órbita à Terra. Tudo ocorre em meio um cenário explicitamente nebuloso: guerra fria, corrida espacial, sociedade machista e preconceito racial. Quando os soviéticos lançam em 1957, o primeiro satélite que chegou ao espaço, os americanos ampliam seus testes e cálculos em busca de avanços, então as “heroínas” entram em cena, cada qual com seus atributos. Além de todos os dilemas que essas guerreiras enfrentam, ainda atuam em jornada tripla, como mães e donas de casa. Estrelas Além do Tempo concorreu ao Oscar nas categorias de melhor filme, atriz Ficha Técnica Título: Estrelas além do tempo Título original: Hidden figures Direção: Theodore Melfi Elenco: Taraji P. Henson, Octavia Spencer, Janelle Monáe, Kirsten Dunst, Kevin Costner, Mahershala Ali, Jim Parsons Gênero: Drama Ano: 2017 Roteiro: Allison Schroeder e Theodore Melfi, baseado no livro de Margot Lee Shetterly Trilha sonora: Pharrell Williams e Hans Zimmer Produção: Theodore Melfi e Peter Chernin

A narrativa de Fragmentados, do americano Neal Shusterman, se passa em meio a uma Guerra Civil – mais conhecida como Guerra de Heartland –, na qual houve conflitos e várias mortes, motivados pelo aborto. Para acabar com o problema, são criadas várias emendas constitucionais, conhecidas como a ‘‘Lei da Vida”. Essa lei determina que a vida do ser humano deve ser preservada até completar 13 anos, e, entre os 13 e os 17 anos, os pais poderão decidir se os filhos continuam vivendo normalmente ou serão fragmentados. A fragmentação é um processo de retirada de órgãos e partes do corpo, no qual as crianças ainda continuam vivas. Sim! Isso mesmo. Embora haja essa separação, a alma desses adolescentes permanece viva. Com isso, a medicina quase não existe mais, sendo substituída, em grande parte, por cirurgiões que simplesmente substituem as partes do corpo que dão problemas por outras novas. É nesse ambiente conturbado que o leitor conhece os protagonistas da história. Connor, adolescente problemático, de 16 anos. Cansados de tantas reclamações vindas da escola, seus pais decidem que ele irá para a fragmentação. Ao saber disso, o rapaz foge de casa rumo ao desconhecido, para evitar ser capturado pela Policia Juvenil. A jovem Risa, de 15 anos, vive em uma Casa Estatal (local para onde vão crianças abandonadas), e tenta se destacar na música tocando piano, mas, como não é possível sobreviver da música, o Governo deci-

FOTOS: Reprodução

Qual é o seu lugar?

11

de que não irá mantê-la. Após uma conversa com o diretor, Risa percebe que seu destino está traçado: também será fragmentada. Ao ser levada para o campo de colheita, sofre um acidente e encontra a oportunidade para fugir e tentar sobreviver, longe dos olhos da polícia, até completar 18 anos. Lev é um dízimo e sabe disso desde que nasceu. Vindo de família religiosa, que oferece 10% de tudo o que consegue para Deus. Ele tem consciência de que, por ser o décimo filho, está condenado à fragmentação. Mas, ao contrário de Connor e Risa, não se importa com tal risco, pelo contrário: sente-se honrado. Porém, no caminho para o campo de colheita, um acidente interrompe o tráfego e Lev é arrancado de dentro do carro por um desconhecido.

“Não sei o que acontece com nossa consciência quando somos fragmentados. Nem sei quando é que começa a consciência. Mas de uma coisa eu sei. Nós temos direito à vida!” A partir daí, o leitor acompanha a trajetória dos três jovens, juntos, em luta pela vida. Se conseguirem sobreviver, estarão livres. Mas, se forem pegos, a fragmentação acontecerá mais rápido do que antes, porque agora, além de condenados à fragmentação, também serão tratados como fugitivos federais. Como sugere o título do livro, trata-se de um thriller, porém leve. Narrado em terceira pessoa, a obra nos apresenta uma distopia diferente de outros exemplares recentes da chamada ficção Young Adult – voltada para “jovens adultos”. A crueldade

não é característica apenas do governo – como nas séries Jogos Vorazes e Divergente –, mas também das pessoas, que de tão acostumadas à situação, são incapazes de perceber a frieza de seus atos. O sistema não é questionado e nele a sociedade é só mais uma peça, usada como objeto, facilmente descartável e moldável. Os diálogos criam um ambiente intimista e a forma como os personagens são apresen-

tados é fascinante, pois proporciona interação e proximidade com as histórias narradas. Dividido em partes, o livro passa por diversos assuntos e, ao final, (lá vem spoiler!) eles se unem como se a história fosse o tempo todo um quebra cabeça. Como todas as boas obras distópicas, Fragmentados é um livro que faz o leitor refletir, parar e pensar: poderia a humanidade chegar a esse ponto?

FICHA TÉCNICA Título: Fragmentados Título Original: Unwind País de Origem: Estados Unidos Autor: Neal Shusterman Editora: Novo Conceito Ano: 2015 Páginas: 320


CRÔNICas

A esperança gera frutos Victória Farias

Certa vez, eu ganhei um peixinho laranja. Foi na festa junina da minha escola, em que eles colocavam peixinhos dentro de sacos plásticos e os deixavam flutuando, como numa espécie de piscina. Meu pai o pescou para mim. Na piscina, havia peixinhos de todas as cores, mas eu sempre gostei de laranja, então, o escolhi. Na volta para casa, cortamos uma garrafa pet, enchemos de água e o colocamos. Não tínhamos mais um aquário, pois o que tínhamos antes minha mãe doou depois do meu último peixinho comer todos os seus filhotes e, em seguida, arrancar a própria nadadeira. Ele era um amor. O meu peixinho laranja não se movia muito, quase não comia e, raramente, respondia aos meus toques na garrafa. Certo dia, percebemos que ele estava

inchado e chegamos à conclusão de que ele, que agora havia virado “ela”, estava grávida. Fiquei muito feliz ao saber que teríamos novos peixinhos na garrafa e mesmo com o meu primogênito ainda se comportando de maneira estranha, fui dormir muito contente naquela noite, afinal, querendo ou não, sempre gostei de peixes. Levei um susto ao acordar no dia seguinte. Meu peixe, de fato, teve novos peixinhos, mas tínhamos, também, um sério problema. Descobrimos que ela não estava agindo de maneira estranha à toa, ela estava morta, e a única coisa que a mantinha flutuando era o peso dos peixinhos dentro dela. E isso me fez pensar sobre a vida como um todo. Assim somos nós, seres humanos, em relação a esperança. A esperança que muitos discutem ser um mal para a sociedade, pois

estava junto de todos os males quando a caixa de Pandora foi aberta, pode ser a única coisa que nos mantém vivos. Como no caso do meu primeiro peixinho que comeu todos os filhotes e depois se suicidou, (podemos chamar a morte de um peixe de suicídio?) às vezes, nos esquecemos de todas as coisas boas que a esperança pode proporcionar, como a realização de sonhos e a possibilidade de se viver uma vida nova todos os dias. A esperança, sendo um mal ou não, me ajudou a viver os dias seguintes, sendo eles bons ou ruins, confirmando que nada é impossível. E, se em alguns casos, ela não for acolhida, não se preocupe: o peso da esperança dentro de você sempre te mostrará um rumo e te fará flutuar e sobreviver por essas águas turbulentas e tumultuadas... que muitos por aí chamam de vida.

Piscinas, danças e cordas Ana Borges Quando os editores me pediram uma crônica, disseram que era com “tema livre”, porém eu não poderia falar sobre meus temas de sempre: o Galo, a “cegolândia”, o rock nacional dos anos 1980. Pensando sobre o que escrever, lembreime então do local onde cresci, o Jaraguá Country Club, em BH. Como na época eu ainda enxergava, tenho muitas memórias das cores e formas daquele local. Digo sempre que só não nasci na piscina porque vim ao mundo a 6 de novembro de 1984, uma terça-feira, dia em que as pessoas não costumam ir aos clubes. Acho, contudo, que frequento tal am-

biente desde antes de me entender por gente, pois costumava dormir ali, ainda bebê. Nesses 32 anos, o Jaraguá sofreu muitas modificações. Na minha infância, ficávamos sentados em um banco circular, que circundava uma mesa redonda de pedra. Alguns metros à direita, havia outra mesa com outro banco, e, à frente, quadras de peteca. Recordo-me, ainda, de uma escada, que, dizem, era estreita e muito perigosa. Ela dava acesso a outras duas quadras de peteca, para onde descíamos quando tínhamos sede, para nos fartar em um bebedouro, tanto para adultos quanto para crianças. Mais à direita, em uma descida do

gramado, sentávamos numa árvore morta, mas ainda enraizada e semitombada, para balançar e brincar de cavalinho. Tinha também um gramado natural, que descia em direção ao campo de futebol. Sentados em papelões, escorregávamos no gramado, fingindo que aquilo era um tobogã. O clube tinha duas piscinas: uma era metade rasa, metade funda; outra, olímpica. As duas ainda existem, mas, àquela época, a água era gelada e, mesmo assim, as crianças ficavam nela por muito tempo. Quando voltávamos para a mesa, as tias nos comparavam a picolés. No patamar de cima dessas piscinas, tinha outras três: uma delas, devido a muitos aciden-

tes, foi interditada, mas continua lá Logo ao lado, uma piscina de criança e, alguns metros depois, uma de bebês. Nesta última, tinha uma estátua de anão que, foi retirada, e, posteriormente, o desenho de um sol. Ficou conhecida como a piscina do solzinho. Para mim, é triste pensar que, na piscina em que nadávamos, depois de terem colocado um toboágua, uns anos atrás, uma criança de 8 anos se afogou depois de ter descido no toboágua. E meu afilhado por pouco não presenciou a cena. Pouco antes, a avó o chamou para fazer um lanche. Na nossa época, tinha um gravadorzinho, Meu Primeiro Gradiente. Uma espécie de ma-

letinha vermelha, com uma listra emborrachada. Toca-fita amarelo, caixa de som azul, microfonezinho vermelho. Eu o levava sempre para o clube e lembro de um dia especial, emque brincávamos de Xou da Xuxa. Bárbara, a prima mais velha, foi escolhida como Xuxa. As outras – Júlia, Lídia, Marcela e eu – éramos as paquitas, e ouvíamos juntas as músicas da loura. Será que meus editores vão perceber que eu consegui contrabandear a música dos anos 80 para o meio da crônica? Lembro o dia em que eu e Bárbara ganhamos esse brinquedo, no Natal, não sei se de 1988 ou 1989, em Cabo Frio. Como eu era uma criança muito inocente, fui dormir na

véspera e no dia seguinte estava o brinquedo. Voltando ao Jaraguá, lembro que eu era fissurada em pular corda, mas não tinha coordenação motora para bater e pular ao mesmo tempo. Por isso sempre enchia a paciência de alguma tia para que batesse a corda. Para não atrapalhar mais alguém, essa pessoa amarrava o outro lado da corda numa árvore e batia... e batia... e batia... Eu era incansável. Coitada da tia Sandra, acho que sobrou muitas vezes para ela. Outra coisa que lembro de lá é que sempre comprávamos chiclete da marca Ping-Pong, ou Mini Adams, ou picolés. Humm! Que saudosismo de tantas cores e sabores.

Ludmila Alves

12

Abril de 2017 Jornal Impressão


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.